"La dificultad no debe ser un motivo para desistir sino un estímulo para continuar"

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Guerra e paz - Lev Tolstoi - Livro em portugués

 Lev Tolstói GUERRA E PAZ © 2012, Centaur Editions centaur.editions@gmail.com ÍNDICE LIVRO PRIMEIRO PRIMEIRA PARTE SEGUNDA PARTE TERCEIRA PARTE LIVRO SEGUNDO PRIMEIRA PARTE SEGUNDA PARTE TERCEIRA PARTE QUARTA PARTE QUINTA PARTE LIVRO TERCEIRO PRIMEIRA PARTE SEGUNDA PARTE TERCEIRA PARTE LIVRO QUARTO PRIMEIRA PARTE SEGUNDA PARTE TERCEIRA PARTE QUARTA PARTE EPÍLOGO PRIMEIRA PARTE SEGUNDA PARTE APÊNDICE LIVRO PRIMEIRO PRIMEIRA PARTE [I] [II] [III] [IV] [V] [VI] [VII] [VIII] [IX] [X] [XI] [XII] [XIII] [XIV] [XV] [XVI] [XVII] [XVIII] [XIX] [XX] [XXI] [XXII] [XXIII] [XXIV] [XXV] [XXVI] [XXVII] [XXVIII] [I] — Pois bem, meu príncipe. Génova e Luca mais não são do que apanágios, domínios, da família Bonaparte. Não, previno-o de que, se me diz que não teremos guerra, se se permitir ainda atenuar todas as infâmias, todas as atrocidades desse — Anticristo (palavra de honra, para mim, é o que ele é), desconheço-o, deixo de considerá-lo meu amigo, meu fiel servidor, como costumo dizer. Vamos, vejamos, como está, como está? Bem veio que lhe meto medo. Sente-se e conte-me novidades. Foi com estas palavras que em Julho de 1805 a conhecida dama de honor, íntima da imperatriz Maria Fiodorovna. Ana Pavlovna Scherer, acolheu o príncipe Vassili, pessoa importante e de alta estirpe, o primeiro dos convidados a chegar à sua recepção daquela noite. Havia algum tempo já que Ana Pavlovna tossicava, estava com gripe, como ela dizia — gripe era então um novo vocábulo, que poucas pessoas ainda empregavam. Nessa mesma manhã tinha ela mandado entregar, por um lacaio de libré encarnada, a toda a gente, indistintamente, um bilhetinho redigido nestes termos: Se não tem nada melhor a fazer. Senhor Conde — ou então: meu príncipe —, e se a perspectiva de passar a noite em casa de uma pobre doente não o assusta muito, sentir-me-ei encantada de o ver em minha casa entre as 7 e as 10 horas. Annette Scherer. — Meu Deus, que violência! — retorquiu o príncipe no seu uniforme de gala, o peito coberto de condecorações, na face achatada um ar florescente, sem ligar a mínima importância a semelhante acolhimento. Exprimia-se nesse francês precioso, que falavam e em que até pensavam os nossos avós, e a que adicionavam esse sotaque protector, essas entoações suavestão naturais a quem envelheceu na sociedade e com prestígio na corte. Aproximou-se de Ana Pavlovna, beijou-lhe a mão, exibindo a calva perfumada e reluzente, e sentou-se, tranquilamente, num divã. — Antes de mais nada, diga-me, como tem passado, querida amiga? Tranquilize este seu amigo — prosseguiu ele no mesmo tom e numa voz em que, sob a cortesia e a afabilidade, transpareciam a indiferença e até mesmo urna certa mofa. — Como é que uma pessoa há-de passar bem de saúde.., quando, moralmente, não pode deixar de sofrer? Quem é que no nosso tempo há-de estar sereno, desde que seja pessoa de coração? — redarguiu Ana Pavlovna.— Vai ficar toda a noite, não é verdade? — E a festa na Embaixada de Inglaterra? É hoje quarta-feira. Não posso deixar de aparecer — disse o príncipe.— Minha filha ficou de passar por aqui para me levar. — Julguei que a festa tinha sido adiada. Confesso-lhe que todas estas festas e todos estes jogos de artifício começam a tornar-se insípidos. — Se tivessem sabido que era esse o seu desejo, teriam adiado a festa — tornou o príncipe, o qual, como um relógio certo, tinha por hábito dizer, em determinadas circunstâncias, frases que ele próprio não esperava que fossem acreditadas. — Não me atormente. Afinal, que decidiram em relação ao telegrama de Novosiltzov? O senhor costuma saber tudo. — Que lhe hei-de eu dizer? — volveu o príncipe num tom frio e enfastiado.— Que decidiram? Decidiram que Bonaparte chegou a ponto de não poder recuar e eu acho que está aqui, está a acontecer-nos o mesmo. O príncipe Vassili falava sempre com indolência, como um actor que recita um papel há muito decorado. Ana Pavlovna, pelo contrário, apesar dos seus quarenta anos, toda ela era vivacidade e expansão. Ser entusiasta era a sua função social, e até mesmo quando não era essa a sua disposição natural procurava sê-lo, para que as pessoas suas conhecidas se não sentissem desapontadas. O sorriso constrangido que lhe andava sempre no rosto, conquanto não dissesse muito bem com os seus traços já fatigados, denunciava, como acontece nas crianças mimadas, a existência de um pecadilho, pecadilho de que ela não queria, nem podia, nem mesmo julgava útil corrigir-se.No decurso da conversa sobre política. Ana Pavlovna exaltou-se. — Ah! Não me fale da Áustria! Talvez eu seja uma parva, mas estou convencida de que a Áustria não quis nem quer a guerra. Está a atraiçoar-nos. É à Rússia sozinha que compete salvar a Europa. O nosso benfeitor conhece a alta missão a que está destinado e cumpri-la-á. É a única coisa em que tenho confiança. O nosso sublime imperador tem um grande papel a desempenhar no mundo, e é tão virtuoso e tão nobre que Deus não o abandonará e há-de cumprir a sua missão: esmagar a hidra da Revolução, ainda mais terrível desde que encarnou nesse assassino e nesse salteador. É a nós, e só a nós, a quem compete resgatar o sangue do justo... E pergunto-lhe eu agora: com quem poderemos nós contar? A Inglaterra, com o seu espírito comercial, não compreende nem pode compreender toda a grandeza da alma do imperador Alexandre. Recusou-se a evacuar Malta. O que ela quer é ver, procurar na nossa conduta ideias reservadas. Que é que eles disseram a Novosiltzov?... Nada. Não compreenderam, não podem compreender o desinteresse do nosso imperador, que nada quer para ele e tudo faz para bem da humanidade. E que prometeram eles? Nada. E até aquilo que prometeram acabará por não vir a realizar-se. A Prússia já declarou que Bonaparte era invencível e que a Europa inteira nada podia contra ele... E eu por mim, não acredito numa só palavra do que dizem Hardenberg ou Haugwitz. Essa famosa neutralidade prussiana não passa de uma armadilha. Só em Deus confio e no alto destino do nosso augusto imperador. Ele salvará a Europa!... De súbito calou-se, sorrindo ela mesma, antes de mais ninguém, da veemência das suas próprias palavras. — Estou persuadido — disse o príncipe com um sorriso— de que se a tivessem mandado a si, minha querida amiga, em lugar, do nosso muito querido Wintzengerode, a esta hora tínhamos tomado de assalto a adesão do rei da Prússia. Quer dar-me uma xícara de chá? — Com certeza. A propósito — acrescentou ela num tom sereno —, tenho hoje duas pessoas muito interessantes: o visconde de Mortemart; está aparentado com os Montmorency pelos Rohans, um dos mais ilustres nomes da França. É um dos nossos bons emigrados, autêntico! E também o abade Morio. Conhece este espírito profundo? Foi recebido pelo imperador. Conhece-o? — Terei um grande prazer! Diga-me uma coisa — acrescentou, negligentemente, e como se só naquele momento se tivesse lembrado disso,quando, realmente, esse era o objectivo principal da sua visita. — É verdade que a imperatriz-mãe se interessa pela nomeação do barão de Funke para o lugar de primeiro-secretário em Viena? Esse barão, ao que parece, é uma triste personagem. O príncipe Vassili pretendia ver nomeado para esse posto um filho seu, e o barão era a pessoa indicada para tal cargo pelas pessoas que procuravam ganhar a influência da imperatriz Maria Fiodorovna. — O Senhor Barão de Funke foi recomendado à imperatriz pela irmã — foi tudo quanto ela disse em resposta, secamente, e com um ar triste. Quando Ana Pavlovna pronunciou o nome da imperatriz pintou-se-lhe no rosto, subitamente, a dedicação e o respeito mais profundos e sinceros, ao mesmo tempo que lhe desceu sobre a máscara aquele ar de tristeza que nunca a abandonava sempre que, no decurso de uma conversa, se falava na sua augusta protectora. E acrescentou que Sua Majestade se tinha dignado testemunhar ao barão de Funke muita estima, enquanto o olhar novamente se lhe velava de tristeza. O príncipe, como que indiferente, mantinha-se calado. Ana Pavlovna, com a sua finura especial de dama da corte e o seu tacto feminino, ao mesmo tempo— que dirigia um remoque ao príncipe por ter ousado exprimir-se tão livremente a respeito da conduta de uma pessoa recomendada à imperatriz, procurava de certo modo consolá-lo. — Mas, a propósito da sua família — disse-lhe ela —, não sei se sabe que a sua filha, desde que frequenta a sociedade, faz as delícias de toda a gente. Dizem que é linda como os deuses. O príncipe curvou-se em sinal de estima e gratidão. — Costumo dizer muitas vezes de mim para comigo — continuou Ana Pavlovna, depois de um momento de silêncio, aproximando-se do príncipe com um sorriso gracioso, como se quisesse significar que estavam terminadas as conversas sobre assuntos políticos e mundanos e que as confidências íntimas iam principiar —, muitas vezes digo a mim mesma que a felicidade neste mundo é coisa muito desigualmente repartida. Porque seria que o destino lhe deu a si, meu amigo, dois filhos tão belos, à parte o Anatole, o seu benjamim, que não me agrada por aí além — tinha lançado esta observação num tom que não admitia réplica, franzindo as sobrancelhas... —, tão encantadores? Sim, quando o senhor, na verdade, é a pessoa que menos importância liga aos filhos; não os merece.E teve um sorriso vitorioso. — Que quer? Lavater diria que eu não tenho a bossa da paternidade — respondeu o príncipe. — Deixemo-nos de brincadeiras. Quero falar-lhe a sério. Sabe? Estou descontente com o seu, filho mais novo. Aqui entre nós — e um ar de tristeza lhe perpassou pelo rosto —, falaram dele perante Sua Majestade, e lamentam-no, a si... O príncipe não respondeu, mas ela, lançando-lhe um olhar significativo, aguardava, sem dizer palavra, que ele dissesse qualquer coisa. O príncipe Vassili franziu as sobrancelhas. — Que quer que eu faça? — acabou por dizer.— Bem sabe que fiz tudo o que um pai pode fazer pela educação dos seus filhos, e o que é certo é que ambos não passam de dois imbecis. O Hipólito, pelo menos, é um imbecil sossegado, enquanto o Anatole é um imbecil turbulento. É a única diferença entre os dois — acrescentou com um sorriso mais constrangido e acentuado que de costume, enquanto as rugas que se lhe formavam em tomo da boca denunciavam mais claramente do que nunca a amargura e a irritação que inopinadamente o invadiam. — Para que é que as pessoas como o senhor hão-de ter filhos? Se não fosse pai, nada teria a censurar-lhe — disse Ana Pavlovna, erguendo os olhos cismadores. — Sou o seu fiel escravo, e só a si o posso confiar. Os meus filhos são os impecilhos da minha existência. São a minha cruz, compreendo-o perfeitamente. Que quer?... Calou-se, mostrando com um gesto que se submetia ao cruel destino. Ana Pavlovna assumiu uma atitude cismadora. — Nunca se lembrou, meu caro príncipe, de casar o seu filho pródigo, o Anatole? Dizem que as solteironas têm a mania do casalhento. Não creio que eu já esteja em idade de ter fraquezas semelhantes, mas o que é certo é que conheço uma criaturinha que é muito infeliz com o pai, uma nossa parente, uma princesa Bolkonskaia. O príncipe Vassili não respondeu, embora, com o seu golpe de vista e a sua finura de homem de sociedade, desse a entender, num simples movimento de cabeça, que não esqueceria o facto. — Pois a verdade é que o Anatole me custa por ano à volta de quarenta milrublos — disse ele, sem que, evidentemente, lhe fosse possível refrear o curso dos pensamentos. Esteve alguns instantes calado. — Que será feito dele, dentro de uns cinco anos, se as coisas continuarem da mesma maneira? Aqui tem a vantagem de se ser pai. É rica, essa sua princesa? — O pai é riquíssimo e avaro. Vive no campo. Deve ter ouvido falar nele. É um tal príncipe Bolkonski, que se reformou ainda em vida do falecido imperador e a quem chamavam o «rei da Prússia». É um homem bastante inteligente, mas com as suas manias. Não é nada cómodo. A pobre pequena é infeliz como tudo. Tem um irmão que casou há pouco com Lisa Meinen, um ajudante-de-campo de Kutuzov. Deve aparecer hoje por aí. — Ouça, querida Annette — disse o príncipe, pegando, subitamente, na mão da sua interlocutora e puxando-a a si. — Arranje-me isso e eu serei o seu muito fiel escravo para sempre: o seu «escrafo», como o meu estaroste costuma escrever nos seus relatórios: com um f. Se é de excelente família e rica, não é preciso mais nada. E com os seus gestos fáceis, familiares e graciosos que tanto o distinguiam, o príncipe inclinou-se, apertou a mão da dama de honor, beijou-a, e de novo se enterrou na sua macia poltrona, desviando a vista. — Espere — disse Ana Pavlovna, pensativa. — Ainda hoje mesmo falarei à Lisa, a mulher do jovem Bolkonski. E talvez as coisas se arranjem. Na sua família começarei a aprender para solteirona. [II] O salão de Ana Pavlovna foi-se enchendo a pouco e pouco. Toda a aristocracia de Petersburgo tinha aparecido, gente de idades e caracteres muito diversos, mas toda do mesmo mundo. Chegou também a filha de Vassili, a bela Helena, que vinha buscar o pai para a festa da Embaixada de Inglaterra. Exibia o seu monograma imperial e trazia um vestido de noite. E também apareceu a jovem e pequenina princesa Bolkonskaia, conhecida por a mulher mais sedutora de Petersburgo, que casara no último Inverno e ainda não aparecera na sociedade por causa do seu estado de gravidez, mas que costumava frequentar as reuniões íntimas. Por fim também surgiu o príncipe Hipólito, o filho do príncipe Vassili, nacompanhia de Mortemart, a quem apresentou, e em seguida o abade Morio e muitos outros. — Ainda a não viram, não a conhecem? Não conhecem minha tia? — dizia Ana Pavlovna para os seus convidados, e com a maior gravidade ia-os conduzindo um por um, à medida que chegavam, — até junto de uma minúscula senhora de idade, enfeitada de grandes fitas, que estava na sala contígua. Depois, pronunciando o nome de cada um deles, passeava, lentamente, os olhos entre os seus convidados e minha tia, e daí a pouco desaparecia. Todos eram obrigados a cumprir aquele ritual, saudando esta tia desconhecida e inútil, que a ninguém interessava. Ana Pavlovna, muito séria e solene, assistia à cerimónia dos cumprimentos, dando a sua aprovação, sem abrir a boca. Minha tia falava a toda a gente, invariavelmente, nos mesmos termos, do estado da saúde de cada um, do estado da sua própria saúde e do estado da saúde de Sua Majestade, o qual, graças a Deus, passava agora melhor. E todos, sem mostrar, por decoro, que se davam pressa, se iam despedindo da idosa senhora com a sensação de alívio que se tem depois de se cumprir uma enfadonha obrigação e, claro está, para a não tornarem a ver em toda a roda da noite. A jovem princesa Bolkonskaia tinha trazido consigo o seu bordado num pequenino saco de veludo lavrado a ouro. O seu bonito làbiozinho superior, ligeiramente sombreado por uma breve penugem, era um pouco curto, mas nem por isso parecia menos gracioso entreaberto nem era menos delicioso no momo que fazia ao apoiar-se no lábio inferior. Como em geral acontece com todas as pessoas realmente sedutoras, estas suas pequeninas imperfeições, o lábio curto de mais e a boca entreaberta, tinham nela um atractivo especial, uma beleza própria. Era uma alegria para todos a presença desta futura mãe tão bonita, cheia de saúde e de vida, suportando perfeitamente os incómodos do seu estado. Os velhos e os jovens entediados e cheios de enfado imaginavam-se como ela só por terem passado alguns momentos na sua intimidade. Todos os que conversavam alguns instantes com a princesinha podiam ver como o seu luminoso sorriso cintilava após cada uma das suas palavras e como os seus dentes sempre à mostra eram de uma brancura esplendorosa, quanto bastava para que todos se sentissem naquele momento de uma particular afabilidade. E era assim a ilusão que ela criava em toda a gente. A princesinha, no seu andar ondulante, caminhando em passinhos rápidos, deua volta à sala, o saco de trabalho na mão, e depois de imprimir um jeito gracioso à toilette veio sentar-se num divã, junto do samovar de prata, como se tudo que ela fizesse fosse uma espécie de divertimento não só para ela própria, mas também para aqueles que a cercavam. — Trouxe comigo o meu trabalho! — exclamou ela, abrindo o saquinho bordado a ouro e como se se dirigisse, a toda a gente ao mesmo tempo. — Cuidado. Annette, não me faça uma partida — prosseguiu ela, desta vez para a dona da casa. — Mandou-me dizer que era apenas uma pequena reunião; olhe como eu venho vestida. Dizendo o que estendeu os braços para melhor deixar ver o seu elegante vestido cinzento, guarnecido de rendas, com uma larga fita a servir de cinto, um pouco abaixo do seio. — Esteja descansada. Lisa, será sempre a mais bela — replicou Ana Pavlovna. — Sabe, o meu marido vai abandonar-me — prosseguiu ela no mesmo tom, dirigindo-se a um general.— Vai procurar a morte. Diga-me: para que serve esta maldita guerra? — disse ao príncipe Vassili, e, sem esperar qualquer resposta, voltou-se para a filha deste, a bela Helena. — Que pessoa deliciosa, aquela princesinha! — murmurou o príncipe Vassili, em voz baixa, para Ana Pav1ovna. Pouco depois da princesinha, entrou na sala um jovem corpulento e maciço, de cabelo rapado, lunetas, calças claras, à moda da época, um alto jabot e fraque pardacento. Este moço era filho natural de uma célebre personagem do tempo de Catarina, o conde Besukov, naquela altura moribundo em Moscovo. Ainda não tinha qualquer ocupação, acabava de chegar do estrangeiro, onde fora educado, e era a primeira vez que aparecia na sociedade. Ana Pav1ovna acolheu-o com a saudação que costumava usar para com as pessoas de mais baixa classe. No entanto, apesar deste seu acolhimento de inferior qualidade, ao vé-1o entrar deixou transparecer no rosto medo e inquietação, como quando nos vemos perante qualquer coisa de desmedido e fora do seu lugar. Pedro era, realmente, um pouco maior que as outras pessoas, mas o receio que se pintara no rosto de Ana Pavlovna podia ser antes motivado por esse olhar ao mesmo tempo tímido e penetrante, observador e franco, que o distinguia de todos os demais convidados. — É muito amável da sua parte. Senhor Pedro, ter vindo visitar uma pobre doente — disse-lhe Ana Pavlovna, trocando um olhar de pânico com a tia, a quemo ia conduzindo. Pedro resmungou uma frase incompreensível enquanto com os olhos continuava à procura de qualquer coisa. Teve um sorriso jovial ao cumprimentar a princesinha, como se ela fosse um conhecimento íntimo, e aproximou-se da tia. O medo de Ana Pavlovna não era destituído de fundamento, pois a verdade é que Pedro afastou-se dessa senhora sem esperar que a tia concluísse as suas considerações acerca da saúde de Sua Majestade. Ana Pavlovna, horrorizada, deteve-o. — Não conhece o abade Morio? É uma pessoa muito interessante... — disse- lhe ela. — Sim, ouvi falar do seu plano de paz perpétua, que é aliciante. Mas será possível?... — Acha que sim?... — observou Ana Pavlovna, para dizer alguma coisa, pronta a voltar ao cumprimento dos seus deveres de dona de casa. Pedro, porém, cometeu uma segunda indelicadeza: primeiro afastara-se da sua interlocutora antes de ela ter acabado de falar; agora retinha esta, dirigindo-lhe a palavra, quando ela precisava de o deixar. De cabeça baixa e afastando as suas grandes pernas, pôs-se a demonstrar a Ana Pavlovna a razão por que considerava quimérico o plano do abade Morio. — Falaremos disso mais tarde — disse Ana Pavlovna, sorrindo. E, libertando-se daquele jovem sem hábitos de sociedade, regressou às suas ocupações de dona de casa, continuando a ouvir e a observar, pronta sempre a intervir onde a conversa esmorecesse. Tal qual como um contramestre de uma fábrica de fiação que, depois de instalar cada um dos seus operários diante do seu tear, se põe a andar de um lado para o outro, observando se os fusos param ou se estão a produzir qualquer ruído anormal, rangente ou áspero de mais, e incansavelmente os retém ou lhes imprime o andamento necessário, assim Ana Pav1ovna ia e vinha pelo salão, se aproximava dos grupos que se calavam ou falavam de mais, e com uma palavra pronunciada a tempo obrigava a máquina a comportar-se nos justos limites das conveniências mundanas. Mas todos estes múltiplos cuidados não a impediam de deixar perceber aos outros o receio especial que lhe causava o comportamento de Pedro. Ia-o seguindo atentamente com os olhos quando ele se aproximava para escutar o que se dizia ao pé de Mortemart e depois dirigia-se para o outro grupo onde pontificava o abade. Para Pedro, quetinha sido educado no estrangeiro, esta soirée em casa de Ana Pavlovna era a primeira reunião mundana a que assistia na Rússia. Não ignorava que nestas salas estava reunida a fina flor da gente instruída de Petersburgo e por isso abria muito os olhos, como uma criança diante de uma loja de brinquedos. Só receava perder qualquer sábia observação que lhe fosse dado ouvir. Ao ver reunidas ali todas aquelas personagens de aspecto distinto e cheias de certezas, estava sempre à espera de qualquer coisa particularmente espiritual. Por fim, aproximou-se de Morio. A conversa tinha-lhe parecido interessante. Deteve-se, aguardando o momento de expor o seu ponto de vista, como costuma fazer a gente nova. [III] A soirée de Ana Pavlovna atingia o auge. Os fusos esparsos pela sala roncavam sem atritos e constantemente. Se se abstraísse de minha tia, junto da qual não estava senão uma senhora idosa, de rosto esquálido e como que consumido pelas lágrimas, algo deslocada no meio daquela brilhante sociedade, todos os demais convidados se haviam repartido em três grupos. Um deles, formado especialmente de homens, tinha por centro o abade; no outro, uma roda de gente nova, pontificava a princesa Bolkonskaia, toda rosada e de formas um tudo-nada amplas de mais, atendendo à sua juventude; o terceiro era dirigido por Mortemart e Ana Pavlovna. O visconde era um jovem amável, de traços finos e maneiras suaves, que a si mesmo, visivelmente, se considerava uma figura sensacional, embora, por mera boa educação, se oferecesse, modestamente, à curiosidade da sociedade em que se encontrava. Ana Pav1ovna, visivelmente também, dele tirava partido para regalo dos seus convidados. A semelhança do chefe de mesa, que gosta de apresentar, como coisa superlativamente delicada, uma posta de carne em que ninguém ousaria tocar numa cozinha sórdida, assim, na sua reunião. Ana Pavlovna ia servindo aos seus convidados, primeiro o visconde, e em seguida o abade, como se se tratasse de iguarias superlativamente requintadas. No grupo de Mortemart tinha vindo à baila, imediatamente, o assassínio do duque de Enghien. O viscondeera de opinião de que o duque fora vítima da sua magnanimidade e que havia razões particulares para o ressentimento de Bonaparte. — Ah!, vejamos. Conte-nos isso, visconde — exclamou Ana Pavlovna, apercebendo-se com júbilo de que esta simples frase: Conte-nos isso, visconde, tinha um sabor a Luís XV. O visconde inclinou-se em sinal de obediência e sorriu com toda a cortesia. Ana Pavlovna fez que o grupo o rodeasse e convidou toda a gente a ouvir a sua história. — O visconde conheceu monsenhor pessoalmente — segredou ela ao ouvido de um dos convidados. — O visconde é um narrador perfeito — garantia a outro.— Vê-se logo nele o homem de sociedade — dizia a um terceiro. E o jovem foi apresentado à sociedade sob o seu ângulo mais distinto e favorável, como um rosbife, num prato bem quente, todo guarnecido de salsa. O visconde preparou-se para dar princípio à sua narrativa e sorriu com finura. — Venha cá, querida Helena — disse Ana Pavlovna à bela princesa, que estava a distância, no centro do outro grupo. A princesa Helena sorriu: levantou-se, conservando nos lábios esse sorriso imutável de mulher impecavelmente bela com que entrara no salão. No ligeiro roçagar do seu vestido de baile todo branco, guarnecido de hera e musgo, no esplendor das suas brancas espáduas, no brilho da sua cabeleira e no cintilar dos seus brilhantes, avançou por entre uma ala de cavalheiros, e, empertigada, sem fitar ninguém em especial, embora sorrindo a todos, como se assim fosse dando a cada um o direito de admirar a beleza da sua cintura, dos seus ombros cheios, do seu decote muito pronunciado, conforme a moda da época, levando após si, na sua esteira, todo o esplendor da reunião, aproximou-se de Ana Pavlovna. Helena era tão bela que não traía a mais pequena sombra de coquetterie; pelo contrário, parecia ter vergonha da sua incontestável, da sua por de mais poderosa e por de mais triunfante beleza. Dir-se-ia ser seu desejo, sem o conseguir, amortecer-lhe o próprio esplendor. — Que bela mulher! — eis a frase que vinha aos lábios de toda a gente quando ela passava. Como ao peso de uma estranha impressão, o visconde curvou-se um pouco e baixou os olhos no Momento em que ela se instalava diante dele e o iluminava, a ele também, com o seu imutável sorriso. — Minha senhora, diante de um tal auditório, receio não ser capaz — disseele, inclinando-se e sorrindo. A princesa apoiou num guéridon um dos seus braços nus, bem modelados, sem pensar que seria útil responder. Esperava, sorridente. Enquanto durou a história manteve-se com o busto erecto, contemplando, uma vez por outra, o seu lindo braço, cuja foi-ma perfeita se esmagava contra a mesa, ou o próprio colo, mais encantador ainda, sobre o qual ajeitava a gargantilha de diamantes; várias vezes procurou acertar as pregas do vestido, e, quando a narrativa produzia algum efeito, trocava um olhar com Ana Pavlovna, copiando, imediatamente, a expressão da dama de honor, para depois imobilizar, de novo, a máscara no seu resplandecente sorriso. Como Helena, a princesinha tinha também abandonado a sua mesa de chá. — Espere, vou buscar o meu bordado — disse ela. — Então, em que está a pensar? — acrescentou, dirigindo-se ao príncipe Hipólito. — Traga-me o meu saquinho. A princesa, que sorria, e dirigia a palavra a todos, produziu um certo burburinho ao sentar-se, alegremente, enquanto ajeitava as pregas do vestido. — Agora, sim! — exclamou, e, pedindo que se principiasse, pôs-se ela própria a trabalhar. O príncipe Hipólito, que veio trazer-lhe o saquinho, acompanhou-a na sua mudança de lugar, e, aproximando dela um fauteil, sentou-se a seu lado. O encantador Hipólito impressionava pela sua extraordinária parecença com a irmã, tanto mais que, apesar dessa semelhança, era muitíssimo feio. Os seus traços pareciam-se, de facto, com os da irmã, mas nesta tudo resplandecia iluminado pelo seu eterno sorriso, jovem, satisfeito, pleno de vida, e 1)ela rara perfeição da sua beleza clássica; no irmão, pelo contrário, o rosto era como que entenebrecido pela falta de inteligência e por uma constante expressão a um tempo suficiente e azeda. Quanto à figura, era de corpo magro e enfesado. Tinha os olhos, o nariz, a boca continuamente contraídos numa careta indefinida e desagradável; os braços e as pernas tomavam-lhe sempre posições pouco naturais. — Não se trata de uma história de fantasmas? — murmurou ele, ao sentar-se ao lado da princesa, enquanto assestava o lorgnon, como se não pudesse dispensar esse acessório para abordar uma conversa. — Não, meu caro! — exclamou o narrador, surpreendido, encolhendo os ombros.— É que detesto as histórias de fantasmas — tornou ele, num tom de que se depreendia que ele falava e só depois de falar compreendia o que queria dizer. Tamanha era a segurança que punha nas suas palavras que ninguém poderia dizer se essas palavras eram muito sensatas ou muito estúpidas. Vestia um fraque verde-carregado, uns calções cor-de-rosa-pálidos, meias de seda e escarpins. O visconde contava com muito agrado a história, então muito divulgada, segundo a qual o duque de Enghien tinha ido secretamente a Paris encontrar-se com Mademoiselle Georges e aí se lhe deparara Bonaparte, que, por essa altura, também era íntimo da famosa actriz. Na presença do duque. Napoleão tinha tido, de súbito, um pequeno desmaio, coisa que lhe acontecia frequentes vezes, e ficara à mercê do duque, circunstância de que este não quisera tirar partido. Bonaparte, mais tarde, vingara-se desta magnanimidade do duque mandando matar o adversário. A história era muito bonita e cheia de interesse, sobretudo naquele ponto em que os dois rivais se reconheciam de repente, e as senhoras pareceram muito emocionadas com isso. — Encantador — exclamou Ana Pavlovna, lançando um olhar interrogativo à princesinha. — Encantador — murmurou a princesinha, espetando a agulha no bordado, como para mostrar que o interesse e o encanto da história a impediam de trabalhar. O visconde mostrou apreciar esta homenagem muda, e, sorrindo, grato, prosseguiu na sua narrativa; mas nesse momento Ana Pavlovna, que ainda não tinha deixado de observar o jovem que tanto a assustava, ao ver que ele punha calor demasiado na sua conversa com o abade, falando muito alto, deu-se pressa em comparecer no local ameaçado. Efectivamente. Pedro tinha-se embrenhado com o abade numa conversa sobre o equilíbrio político, e este, visivelmente interessado pelo ingénuo entusiasmo do jovem, pusera-se a desenvolver perante ele as suas teorias favoritas. Ambos ouviam e respondiam com grande vivacidade e muito espontaneamente, e isso não agradava a Ana Pavlovna. — A solução é o equilíbrio europeu e o direito dos povos — dizia o abade. — É de toda a conveniência para um Estado poderoso como a Rússia, reputado bárbaro, colocar-se generosamente à frente de uma liga que tenha por objectivo o equilíbrio da Europa, e é assim que a Rússia salvará o mundo!— E como é que se obterá esse equilíbrio? — principiou Pedro. Mas neste momento Ana Pavlovna aproximou-se, e, fitando este com severidade, perguntou ao italiano como é que ele achava o clima do país. O rosto do abade mudou repentinamente, tomando aquela expressão mortificada e doce que era a sua expressão habitual quando falava com senhoras. — Tão encantado ando com a gentileza de espírito e a distinção da gente da sociedade, sobretudo do elemento feminino, em cujo meio tive a felicidade de ser recebido, que ainda não tive tempo de pensar no clima — respondeu ele. Sem abandonar o abade nem Pedro. Ana Pavlovna, para melhor os observar, arrastou-os consigo para o grupo em que estava. [IV] Nessa altura um novo convidado penetrou no salão. Era o jovem príncipe André Bolkonski, o marido da princesinha, um belo moço, de pequena estatura e traços acentuados e secos. Tudo nele, desde o olhar lasso e enfadado ao andar tranquilo e circunspecto, oferecia o mais violento contraste com a sua mulherzinha, a inquietação em pessoa. Conhecia tão bem por dentro e por fora a gente da sociedade, que tanto o enfadava, que bastava vê-la e ouvir-lhe o ruído das vozes para a sentir insuportável. E entre todas as pessoas que mais o exasperavam contava-se, precisamente, a sua linda mulherzinha. Com um ricto que lhe alterou os traços regulares, afastou-se dela assim que a viu. Depois, beijando a mão de Ana Pavlovna e piscando os olhos, perpassou a vista pela assistência. — Alistou-se para ir para a guerra, meu príncipe? — disse Ana Pavlovna. — O general Kutuzov — volveu Bolkonski, acentuando a última sílaba zov, como os Franceses — teve a condescendência de me chamar para ajudante-de- campo... — E Lisa, sua mulher? — Irá para o campo. — E não tem escrúpulos de nos privar da presença da sua encantadora mulher? — André — exclamou esta última, dirigindo-se ao marido com a mesmacoquetterie com que se dirigia aos estranhos —, que história é essa de Mademoiselle Georges e Bonaparte que o visconde acaba de nos contar? O príncipe André franziu as sobrancelhas e desviou a cara. Pedro, que desde o momento em que André entrara no salão não mais tinha deixado de o seguir com o seu olhar alegre e amistoso, aproximou-se dele e pegou-lhe no braço. O príncipe André, sem se voltar, teve uma visagem de descontentamento para com aquele que lhe pegava no braço, mas, ao deparar-se-lhe o rosto sorridente de Pedro, um sorriso inesperado, amável e bom se lhe pintou também na figura. — Que vejo?! Também tu na alta-roda?! — exclamou. — Tinha a certeza de que o havia de encontrar aqui — retorquiu Pedro.— Queria pedir-lhe que me desse de cear — acrescentou em voz baixa, para não perturbar o visconde, que continuava a sua história — É possível? — Não, é impossível — respondeu André, rindo e fazendo compreender a Pedro, pela maneira como lhe apertou a mão, que isso era coisa que nem se perguntava. Quis dizer mais, mas nessa altura o príncipe Vassili e a filha levantaram-se, e os jovens abriram alas para os deixar passar. — Desculpe, meu caro visconde — disse em francês o príncipe Vassili, segurando-o amistosamente pela manga, para que ele se não levantasse. — Esta estopada da festa em casa do embaixador priva-me do prazer de o ouvir e obriga- me a interrompê-lo. Lamento muito ter de abandonar a sua maravilhosa recepção — disse ele, dirigindo-se a Ana Pavlovna. Sua filha, a princesa Helena, soerguendo ligeiramente a cauda do vestido, passou entre uma ala de cadeiras e o sorriso ainda lhe iluminou mais o belo rosto. Pedro contemplou esta beldade, ao vê-la passar diante de si, com olhos onde havia admiração e quase receio. — É muito bela — disse o príncipe André. — É — repetiu Pedro. Ao passar, o príncipe Vassili pegou no braço de Pedro, e voltando-se para Ana Pavlovna: — Domestique-me este urso — disse. — Há um mês que o tenho em minha casa e é a primeira vez que o vejo na sociedade. Não há nada melhor para os rapazes que o convívio das mulheres inteligentes. Ana Pavlovna teve um sorriso e prometeu tomar conta de Pedro, o qual, comoela muito bem sabia, era aparentado com o príncipe Vassili pelo lado paterno. A senhora idosa que estava a fazer companhia a minha tia levantou-se, apressadamente, e correu para falar com o príncipe Vassili, que já estava no vestíbulo. Perdera por completo o falso ar de interesse mundano que aparentara até então. O seu bondoso rosto macerado pelas lágrimas só reflectia receio e inquietação. — Que me diz, príncipe, do meu Bóris?! — exclamou ela, correndo atrás dele. Pronunciava o nome Bóris acentuando particularmente o o. — Já não posso estar mais tempo em Petersburgo. Diga-me, que hei-de eu comunicar ao meu desventurado filho? Conquanto o príncipe Vassili estivesse a ouvi-la com desprazer e quase que impolidamente, dando a perceber, mesmo, uma certa impaciência, a senhora que o perseguia sorria-lhe com uma amabilidade enternecedora e, para o não deixar afastar-se dela, pegava-lhe, inclusivamente, num braço. — Não lhe custava nada dizer uma palavrinha ao imperador, estou convencida de que ele seria logo transferido para a Guarda — prosseguiu ela. — Esteja certa de que farei tudo o que puder, princesa — respondeu o príncipe Vassili —, mas não me é fácil dirigir-me assim ao imperador. Achava melhor que pedisse antes a Rumiantsov por intermédio do príncipe Galitâne. Era bem melhor. A senhora idosa era a princesa Drubetzkaia, um dos mais ilustres nomes da aristocracia russa, mas, pobre, há muito que não frequentava a sociedade e tinha perdido as suas antigas relações. Viera àquela reunião para tentar obter a transferência do seu filho único para a Guarda. Não se apresentara na recepção de Ana Pavlovna senão para falar ao príncipe Vassili e não fora por outra razão que escutara a história do visconde. Mas as palavras do príncipe Vassili tinham-na desolado; no belo rosto pintou-se-lhe, por instantes, uma espécie de irritação, mas não por muito tempo. Logo se pôs a sorrir, e apertando muito o braço do príncipe: — Ouça, príncipe – disse —, nunca lhe pedi coisa alguma, nunca mais lhe tornarei a pedir seja o que for, nunca lhe falei na amizade de meu pai por si. Mas agora peço-lhe em nome de Deus que faça isso por meu filho e ficar-lhe-ei reconhecida até ao fim da vida — acrescentou, precipitadamente.— Não se zangue e prometa-me interessar-se. Já pedi a Galitzine, e ele não me quis atender. Seja bom menino como antigamente — e procurava sorrir, embora as lágrimas lhe boiassem nos olhos.— Pai, vamos chegar tarde! — exclamou a princesa Helena, que esperava à porta, inclinando a bela cabeça sobre o ombro de estátua antiga. A influência de que se desfruta na sociedade é um capital que convém salvaguardar para que se não dissipe. O príncipe Vassili sabia-o muitíssimo bem, e, por isso, persuadido de que, se se pusesse a interceder por toda a gente, nada mais poderia pedir para si próprio, raramente lançava mão do crédito de que dispunha. No caso da princesa Drubetzkaia, no entanto, sobretudo depois do seu último apelo, viera-lhe ao espírito uma espécie de remorso. Tinha ela evocado qualquer coisa de muito verdadeiro. Os primeiros passos na carreira devia-os ele, efectivamente, ao pai da princesa. Além disso, pela forma como ela agia, verificava estar em presença de uma dessas mulheres, ou, antes, de uma dessas mães, que, quando se lhes mete qualquer coisa na cabeça, só desistem desde que conseguem o que desejam, ou então, no caso de uma negativa, são muito capazes de teimar, dia após dia e a toda a hora, chegando inclusivamente a recorrer a cenas públicas. Foi esta última consideração que o demoveu. — Querida Ana Mikailovna — disse ele, no seu tom familiar habitual e ao mesmo tempo desprendido —, é-me quase impossível fazer o que me pede; mas, para lhe demonstrar quanto a estimo e como respeito a memória do seu falecido pai, prometo-lhe que farei tudo quanto estiver na minha mão. Dou-lhe a minha palavra de que o seu filho será transferido para a Guarda. Está contente? — Meu querido amigo, meu benfeitor! Não esperava outra coisa de si; eu bem sabia que era bom. O príncipe fez menção de partir. — Espere, mais duas palavras. Uma vez na Guarda... -hesitou.— Como está em boas relações com Mikail Ilarionovitch Kutuzov, peço-lhe que lhe fale de Bóris para ajudante-de-campo; ficarei assim mais tranquila e nada mais lhe pedirei... O príncipe Vassili teve um sorriso. — Nada lhe prometo. Mal imagina os pedidos que chovem sobre Kutuzov desde que foi nomeado general-chefe. Ele próprio me disse que todas as senhoras de Moscovo tinham armado um complot para lhe oferecer os filhos como ajudantes-de-campo. — Ah!, prometa-me. Não o deixarei partir, meu querido amigo, meu benfeitor... — Pai — voltou a bela Helena, no mesmo tom —, vamos chegar tarde.— Bem, até à vista, adeus. Está a ver? — Então fala amanhã ao imperador? — Sem falta, mas no que diz respeito a Krituzov não prometo nada. — Ah!, prometa, prometa. Basile — exclamou Ana Mikailovna, perseguindo-o com um sorriso de mulher coquette, outrora natural nela, certamente, mas que então estava longe de se harmonizar com a sua máscara decrépita. Evidentemente que tinha esquecido a idade e, pela força do hábito, pusera em campo todos os seus expedientes femininos. No entanto, mal o príncipe Vassili saiu, logo ela retomou o aspecto frio e constrangido que aparentava anteriormente. Voltou ao grupo em que o visconde continuava a contar as suas histórias e fingiu que escutava, aguardando a oportunidade de se eclipsar, pois o assunto que a levara ali estava resolvido. [V] — Mas que me diz dessa última comédia da sagração de Milão? — observou Ana Pavlovna.— E a nova comédia dos povos de Génova e Luca, que iam apresentar as suas homenagens ao senhor Bonaparte sentado no trono e recebendo as homenagens das nações! Adoráveis! Não, mas é de endoidecer! Dir- se-ia que o mundo inteiro perdeu a cabeça! O príncipe André pôs-se a sorrir olhando nos olhos Ana Pavlovna. — É Deus quem ma dá, ai de quem lhe tocar — disse ele. Foram estas as palavras que Bonaparte proferiu na coroação. Dizem que estava muito belo quando pronunciou estas palavras — acrescentou, e repetiu a frase em italiano — Dio me l’ha data e guai a chi la tocca. — Espero, enfim — prosseguiu Ana Pavlovna — que esta seja a gota que fará transbordar o vaso. Os soberanos já não podem mais com este homem, que a todos ameaça. — Os soberanos? Não falo da Rússia — observou o visconde com o seu ar cortês e desencantado, — Os soberanos, minha senhora! Que fizeram eles por Luís XVI, pela rainha, por Madame Elisabeth? Nada — continuou com animação. — E pode crer, estão a receber o castigo pela traição à causa dos Bourbons. Ossoberanos? Mandam embaixadores cumprimentar o usurpador. E, suspirando, retirou-se com uma expressão desdenhosa. O príncipe Hipólito, depois de ter estado a fitar longamente o visconde com o seu lorgnon, ao ouvir estas palavras, desviou-se subitamente, voltando-se para a princesinha, e, pedindo-lhe urna das suas agulhas, pôs-se a indicar-lhe, desenhando-as em cima da mesa, as armas dos Condés! E explicava-lhas com uma tal seriedade que dir-se-ia que ela lhe pedira um tal serviço. — Bastão de goles, denteado de goles de blau, é a casa de Condé — murmurou ele. A princesa ouvia-o, sorrindo. — Se Bonaparte ficar ainda um ano no trono da França — prosseguiu o visconde com ar de quem não ouve o que os outros dizem e está apenas a seguir o fio das suas ideias a respeito de um assunto que conhece melhor do que ninguém —, não sei onde iremos parar. Com tantas intrigas, tantas violências, tantos exílios, tantos suplícios, não tarda que a sociedade francesa, a alta sociedade, claro está, se veja completamente aniquilada e para sempre, e então... Teve um movimento de ombros ao afastar os braços. Pedro quis dar a sua opinião, pois a conversa interessava-o, mas Ana Pavlovna que o vigiava de perto, interrompeu-o. — O imperador Alexandre — disse ela com aquele tom sério com que se referia sempre à família imperial— declarou que deixaria os próprios franceses escolherem a sua forma de governo. E estou convencida de que não há dúvida de que toda a nação, uma vez liberta do jugo do usurpador, se lançará nos braços do seu soberano legítimo — acrescentou ela, para se mostrar amável para com um emigrado e um realista. — Duvido — observou o príncipe André.— O Senhor Visconde tem toda a razão ao pensar que as coisas já foram longe de mais. Creio que será muito difícil voltar ao passado. — Pelo que eu tenho ouvido dizer — interveio Pedro, corando —, quase toda a nobreza está já do lado de Bonaparte. — Isso é o que dizem os bonapartistas — observou o visconde sem olhar para Pedro. — É muito difícil, actualmente, conhecer a opinião pública em França. — Bonaparte disse-o — objectou o príncipe André, sorrindo. Via-se muito bem que o visconde lhe não agradava e que, sem olhar para ele, era ele que visavacomo seu adversário. — «Mostrei-lhes o caminho da glória» — acrescentou ele, depois de uma ligeira pose, citando as próprias palavras de Napoleão: «eles não o quiseram; abri- lhes as minhas antecâmaras, entraram por ali dentro aos montes».., não sei até que ponto teve o direito de o dizer. — Nenhum — replicou o visconde.— Depois do assassinato do duque, até os seus mais fiéis partidários deixaram de ver nele um herói. Se essa peste chegou a ser um herói para certa gente — acrescentou, dirigindo-se a Ana Pavlovna —, depois do assassinato do duque há mais um mártir no Céu, um herói de menos na Terra. Mal tiveram tempo. Ana Pavlovna e os outros, de aprovar estas palavras com um sorriso, e já Pedro se tinha lançado, uma vez mais, no meio da conversa. Ana Pavlovna, conquanto pressentisse que ele ia dizer coisas fora de propósito, não foi capaz de o deter. — A execução do duque de Enghien — disse o Senhor Pedro— foi uma necessidade pública; e para mim o facto de Napoleão não ter receio de assumir a responsabilidade de um tal acto só atesta precisamente a sua grandeza de alma. — Oh! Meu Deus! — murmurou Ana Pavlovna, aterrorizada. — Como. Senhor Pedro, acha que o assassinato é grandeza de alma? — disse a princesinha, sorrindo e debruçando-se sobre o seu bordado, — Ah! Oh! — exclamaram várias pessoas. — Capital! — disse em inglês o príncipe Hipólito, dando palmadas na coxa. O visconde contentou-se em encolher os ombros. Pedro olhou triunfantemente os seus interlocutores através das suas lunetas. — Eu falo assim — prosseguiu ele, pondo de lado todos os rodeios de linguagem— porque os Bourbons fugiram da Revolução abandonando o povo à anarquia; só Napoleão soube compreender a Revolução e dominá-la. E aí está porque, em nome do bem-estar de todos, ele não podia deter-se perante a vida de um homem. — Não quereria sentar-se aqui a esta mesa? — interrogou Ana Pavlovna. Mas Pedro, sem lhe responder, continuou: — Sim — disse ele, cada vez mais animado — Napoleão é grande porque soube elevar-se acima da Revolução, porque sufocou os abusos a que ela tinha levado, aproveitando o que nela havia de bom, isto é, a igualdade dos cidadãos e aliberdade do pensamento e da imprensa. E não foi por outro motivo que subiu ao Poder. — Realmente — interrompeu o visconde —, se, tornando conta do Poder, ele o não tem aproveitado para cometer um crime, e confiasse o trono ao seu rei legítimo, era justo chamar-lhe um grande homem. — Napoleão nunca podia ter agido dessa maneira. O povo confiara-lhe o Poder exactamente para que ele o livrasse dos Bourbons, e por isso mesmo é que o povo viu nele o estofo de um grande homem. A Revolução foi uma grande coisa — continuou o Senhor Pedro, demonstrando, com esta audaciosa e provocante afirmação, não só a sua muita juventude, mas também o seu desejo de dizer tudo de uma vez. — A Revolução e o regicídio, grandes coisas?... Depois disso... Mas não seria melhor sentar-se aqui a esta mesa? — repetia Ana Pavlovna. — O Contrato Social — disse o visconde com um sorriso condescendente. — Eu não falo do regicídio, falo de ideias. — Sim, sim, as ideias de pilhagem, de assassínio, de regicídio — interrompeu ainda uma voz irónica. — Claro Que se praticaram excessos, mas não era isso que tinha importância; o que importava eram os direitos do homem, a abolição dos privilégios, a igualdade dos cidadãos. E estas ideias manteve-as Napoleão integralmente, — A liberdade e a igualdade — exclamou, desdenhosamente, o visconde, que parecia querer, finalmente, mostrar a sério àquele mancebo a tolice dos seus argumentos —, tudo isso são frases sonoras de há muito sem sentido. Quem é que não gosta da liberdade e da igualdade? Já o Salvador pregava a liberdade e a igualdade. Foram os homens mais felizes depois da Revolução? Pelo contrário, nós é que queríamos a liberdade, e Napoleão foi quem acabou com ela. O Príncipe André, sorrindo, ora fitava Pedro, ora o visconde, ora a dona da casa. No primeiro momento, quando Pedro pronunciou as primeiras palavras. Ana Pavlovna ficou como fulminada, não obstante todos os seus hábitos de sociedade. Mas, ao verificar que, apesar dos sacrílegos argumentos de Pedro, o visconde não perdia as estribeiras, quando se convenceu de que não era possível sufocar tais palavras, ganhou ânimo e, unindo as suas forças às do visconde, caiu sobre o orador. — Mas, meu caro Senhor Pedro – exclamou —, como é que o senhor explicaque esse grande homem mandasse executar o duque, um simples cidadão afinal, sem julgamento prévio e sem que ele fosse culpado? — E eu — acrescentou o visconde— atrever-me-ei a perguntar como é que o senhor explica o 18 de Brumário. Não acha que foi um logro? É um logro que não parece próprio da maneira de proceder de um grande homem. — E os deportados de África chacinados à ordem dele? É horrível! — exclamou a princesinha, fazendo um gesto de pânico. — É um plebeu, diga o senhor o que disser — corroborou o príncipe Hipólito. O Senhor Pedro não sabia a quem prestar atenção; fitava-os a todos, sorrindo. O seu sorriso não era como o das demais pessoas, à mistura com qualquer coisa de sério. Ele, pelo contrário, quando se lembrava de sorrir, perdia, de repente, toda a seriedade, e a máscara, sempre um pouco enfadonha, transfigurava-se-lhe: ficava com o seu quê de infantil, de pobre diabo, um pouco estúpido até, com o ar de quem quer pedir perdão. O visconde, que o via pela primeira vez, compreendeu imediatamente que aquele jacobino não era tão terrível nos actos como nas palavras. Todos se calaram. — Como querem que Pedro responda a toda a gente ao mesmo tempo? — interrogou o príncipe André. — Além disso, nos actos de um homem de Estado é preciso saber distinguir os que ele pratica como simples particular dos que ele pratica como chefe do exército ou como imperador. Parece-me da mais elementar justiça. — Claro, claro — interveio Pedro, satisfeito com a ajuda que recebia. — É impossível não o reconhecer — continuou o príncipe André. — Napoleão, o homem, é grande na ponte de Arcole, no hospital de Jafa, quando aperta a mão aos pestíferos, mas.., mas há outros actos seus difíceis de justificar. O príncipe André, que manifestamente pretendera atenuar o embaraço que tinham provocado as palavras de Pedro, ergueu-se para se retirar, e fez sinal à mulher. De súbito, o príncipe Hipólito, levantando-se, pediu a todos, com um gesto, que se conservassem sentados e principiou a dizer: — Contaram-me hoje uma anedota moscovita encantadora; têm de a ouvir. Queira perdoar-me, visconde, tenho de a contar em russo. De outra maneira, perde o sal.E o príncipe Hipólito pôs-se a falar russo como o falam os franceses chegados à Rússia há menos de um ano. Todos prestaram atenção, tão viva e instantemente o príncipe reclamara que lhe fizessem esse favor. — Em Moscovo há uma senhora. E é muito avara. E precisava de arranjar dois lacaios para a sua carruagem. E de grande estatura. Era assim que ela gostava. E tinha uma criada de quarto também de grande estatura. E então disse... Neste ponto, o príncipe Hipólito teve um momento de reflexão, mostrando certa dificuldade em combinar as frases. — E então disse.., sim, disse: «Menina (para a criada de quarto) enfia a libré e vem daí comigo fazer visitas.» Nesta altura o príncipe Hipólito deu uma gargalhada, rindo antes de mais ninguém, o que criou um pouco de embaraço ao narrador. Entretanto, várias pessoas, entre as quais a senhora idosa e Ana Pavlovna, sorriram. — Lá foram. De repente levantou-se um grande vendaval. A rapariga ficou sem o chapéu e a cabeleira desprendeu-se-lhe... Aqui não pôde aguentar-se mais e um grande acesso de riso o tomou, ao mesmo tempo que dizia: — E toda a gente soube... E assim terminou a anedota, ainda que ninguém pudesse compreender porque a tinha ele contado e a que propósito lhe parecera indispensável narrá-la em russo. Ana Pavlovna e os demais convivas apreciaram a cortesia mundana do príncipe Hipólito, que assim tinha posto ponto final ao penoso e pouco cortês despropósito do Senhor Pedro. A conversa dispersou-se em seguida por miúdos e insignificantes dizeres a propósito de bailes em perspectiva ou já passados, em alusões a espectáculos ou então em referências a circunstâncias ou a locais onde as pessoas poderiam vir a encontrar-se. [VI] Depois de felicitarem Ana Pavlovna pela sua encantadora reunião, os convidados principiaram a retirar-se. Pedro era um desajeitado. Gordo, estatura acima de mediana, largo de ombros, com enormes mãos vermelhuscas, se não sabia estar numa sala, como secostuma dizer, muito menos sabia sair dela, quer dizer, muito menos sabia pronunciar, antes de partir, as palavras atenciosas da praxe. Além disso, era distraído. Quando se levantou, em vez de pegar no chapéu que lhe pertencia, pegou num tricórnio empenachado de general e assim esteve, com ele na mão, sacudindo o penacho, até que o proprietário veio pedir-lhe que lho restituísse. É certo que estas suas distracções e o seu desconhecimento de usos e costumes da sociedade eram largamente compensados por um ar ingénuo, simples e modesto. Ana Pavlovna virou-se para onde ele estava, e cheia de indulgência cristã perdoou-lhe a intempestiva saída, dizendo-lhe, enquanto meneava a cabeça: — Espero tornar a vê-lo, mas também desejo que mude de ideias, meu caro Senhor Pedro. Pedro nada teve para responder a estas palavras, contentando-se em inclinar- se e em mostrar mais uma vez o seu sorriso, um sorriso em que se lia: «As minhas ideias são as minhas ideias, mas, no entanto, reparem como eu sou bom rapaz,» Ora era isso exactamente o que Ana Pavlovna e todos os demais estavam a dizer com os seus botões. O príncipe André saiu para o vestíbulo, e ao mesmo tempo que voltava as costas ao lacaio que lhe vestia o sobretudo ouvia, distraidamente, a frívola tagarelice da mulher com o príncipe Hipólito, que também se preparava para abalar. O príncipe Hipólito, ao lado da linda princesinha grávida, fixava-a obstinadamente com o lorgnon. — Vá-se embora. Annette, está a apanhar frio — disse ela, despedindo-se de Ana Pavlovna. — Está decidido — acrescentou em voz baixa. Ana Pavlovna já tivera tempo de dizer duas palavras a Lisa sobre o projecto de casamento entre Anatole e a cunhada da princesinha. — Conto consigo, querida amiga — respondeu Ana Pavlovna igualmente em voz baixa —, escreva-lhe e diga-me depois como encarará o pai o caso. Até à vista — e saiu do vestíbulo. O príncipe Hipólito aproximou-se da princesinha e, debruçando-se muito para ela, murmurou-lhe qualquer coisa ao ouvido. Dois lacaios, o da princesa e o do príncipe, aguardando que os amos acabassem de falar, ali estavam, um com um xale, o outro com um sobretudo, e ouviam-nos falar francês, língua que desconheciam, mas dando-se ares de quem compreende e o não quer dar a perceber.A princesa, como de costume, sorria enquanto falava e escutava sorrindo, — Estou radiante por não ter ido à Embaixada — dizia o príncipe Hipólito. — Que estopada... Encantadora noite, não é verdade? Um encanto. — Dizem que o baile vai ser uma beleza — retorquiu a princesa, desenhando- se-lhe um trejeito no lábio sombreado pela ligeira penugem. — Vão lá aparecer todas as nossas beldades mundanas. — Nem todas, visto que a princesa lá não estará; nem todas — disse o príncipe Hipólito com jovialidade, e, pegando no xale, que tirou das mãos do lacaio, a quem deu mesmo um encontrão, lançou-o sobre os ombros da princesa. Por falta de jeito ou de propósito, quem o poderia dizer?, quedou-se muito tempo sem baixar as mãos, embora o xale já estivesse no seu lugar. Dir-se-ia enlaçar a jovem princesa. Evitando-o graciosamente, e sem deixar de sorrir, a princesa voltou-se e olhou para o marido. O príncipe André, de olhos fechados, parecia fatigado e sonolento. — Está pronta? — perguntou ele à mulher, envolvendo-a num olhar. O príncipe Hipólito enfiou apressadamente o sobretudo, que lhe descia até aos tacões, à última moda, e, tropeçando nas pregas do casacão, deu-se pressa em seguir a princesa, escadaria abaixo, que subia para a carruagem, auxiliada pelo lacaio. — Princesa, até à vista! — gritou ele, tropeçando nas palavras como tinha tropeçado nas dobras do sobretudo. A princesa, soerguendo o vestido, entrou na obscuridade da carruagem; o marido afivelava o sabre; o príncipe Hipólito, com o pretexto de ser útil, incomodava toda a gente. — Com licença — disse em russo o príncipe André, num tom seco e pouco amável, dirigindo-se a Hipólito, que lhe vedava a passagem. — Pedro, espero-te em casa — articulou a mesma voz com um ar afável e carinhoso. O postilhão pôs a equipagem em andamento, que arrancou com fragor. O príncipe Hipólito ficara na escadaria, rindo ainda, aos sacões, enquanto esperava pelo visconde, a quem prometera reconduzir a casa. — Pois bem, meu caro, a sua princesinha é um encanto, um encanto — dizia o visconde, ao sentar-se ao lado de Hipólito.— Mas o que se chama um encanto. — E atirando um beijo com a ponta dos dedos: — E francesa até à medula.Hipólito riu estrepitosamente. — Sabe que é terrível com o seu arzinho inocente — prosseguiu o visconde. — Lamento o pobre marido, esse oficialzito, que se dá ares de príncipe reinante. Hipólito continuava a rir a bom rir, e, mesmo rindo, foi dizendo: — E dizia o senhor que as damas russas não chegavam aos calcanhares das francesas. É preciso é saber tratar com elas. Pedro, que chegara primeiro, como íntimo da casa que era, entrou no gabinete do príncipe André, e mal se sentou no divã tirou da estante o primeiro livro que lhe veio à mão — calhou ser os Comentários, de César —, pondo-se a ler, ao acaso, apoiado sobre os cotovelos. — Fizeste-la bonita em casa de Mademoiselle Scherer! É certo e sabido que a pobre senhora vai cair doente — disse o príncipe André, ao entrar no gabinete, enquanto esfregava as mãos brancas. Pedro voltou-se com todo o peso do seu corpo, e de tal maneira que o divã rangeu debaixo dele. O seu rosto animado fixou-se no do seu companheiro e com um sorriso aberto fez-lhe um gesto amistoso. — Realmente, o abade é uma pessoa muito interessante, mas não compreende as coisas como elas são... Na minha opinião, a paz perpétua é possível, mas, como direi?..., não por meio do equilíbrio político... André, visivelmente, não apreciava estas discussões abstractas. — Ah, não, meu caro, não podemos dizer em toda a parte o que pensamos. Ora conta-me lá, já te resolveste, finalmente, a fazer qualquer coisa? Que queres tu ser, cavaleiro da Guarda ou diplomata? — perguntou o príncipe André, depois de alguns instantes de silêncio. Pedro voltou a sentar-se no divã, encolhendo as pernas debaixo de si. — Veja lá, não sei, realmente. Nem uma nem outra dessas situações se me dá com o feitio. — No entanto, precisas de tomar uma resolução. Teu pai está à espera que te decidas. Pedro fora enviado para o estrangeiro, aos dez anos, na companhia de um padre, seu preceptor. E por lã ficara até aos vinte. Quando voltou para Moscovo, o pai despediu o padre e disse ao jovem: «Agora vai até Petersburgo, observa e escolhe. Estou de acordo desde já com o que tu decidires. Aqui tens uma carta para o príncipe Vassili e dinheiro. Vai-me dando notícias, e conta comigo.» Haviajá três meses que Pedro procurava decidir-se por uma carreira e não chegava a conclusão alguma. Era a tal escolha que o príncipe André aludia. Pedro passou a mão pela testa. — Estou convencido de que o homem é mação — murmurou, pensando no abade que encontrara na recepção. — Basta de frioleiras — voltou André, interrompendo-o.— Falemos de coisas sérias. Estás decidido pela Guarda montada?... — Não, mas vou dizer-lhe urna coisa que me veio a cabeça. Estamos actualmente em guerra com Napoleão. Se se tratasse, de uma guerra de libertação, então, sim, compreendia, seria mesmo o primeiro a alistar-me. Mas ajudar a 1nglaterra e a Áustria contra o maior homem que há no mundo.., não está certo. O príncipe André contentou-se, em encolher os ombros perante as infantis considerações de Pedro. O seu ar queria dizer que nada tinha a replicar a uma tal patetice; e, com efeito, seria difícil responder de outra maneira a uma tal ingenuidade. — Se as pessoas fossem para a guerra só por convicção, não haveria guerra — disse ele. — E era isso que convinha — respondeu Pedro. O Príncipe André sorriu. — É muito possível, mas aí está uma coisa que nunca acontecerá. — E então por que diabo é que o André vai para a guerra? perguntou Pedro, — Porquê? Não sei. É assim. Além disso, eu vou... — Calou-se.— Eu vou porque esta vida que levo aqui, esta vida não me— convém. [VII] Na sala contígua ouviu-se o ruge-ruge de um vestido. André teve um sobressalto, como se recuperasse os sentidos, e a sua máscara tomou a expressão com que se exibira nos salões de Ana Pavlovna. Pedro tirou os pés de cima do divã. A princesa entrou. Tinha outro vestido, um vestido íntimo, mas nem por isso menos fresco e elegante. O príncipe André levantou-se e ofereceu-lhe,cortesmente, uma cadeira, — Uma coisa eu nunca deixo de perguntar a mim mesma — disse ela, como sempre, em francês, sentando-se com prontidão — porque é que a Annette se não teria casado? Que tolos vocês foram, senhores, não casando com ela! Desculpem, mas vocês não percebem nado de saias. Muito gosta de discutir. Senhor Pedro... — Precisamente, não faço outra coisa senão discutir com o seu marido. Não compreendo porque é que ele quer ir para a guerra — disse Pedro, dirigindo-se à princesa sem o mais pequeno acanhamento, coisa, aliás, perfeitamente natural, tratando-se de um rapaz e de uma senhora jovem. A princesa estremeceu. Evidentemente que as palavras de Pedro a tinham atingido no ponto sensível. — É o que eu lhe estou sempre a dizer! — redarguiu ela. Não compreendo, decididamente não compreendo como é que os homens não podem passar sem a guerra! E que nós, mulheres, não possamos fazer nada, não tenhamos voz nesse capítulo! Ora, ouça, faça de conta que é um juiz. Passo a vida a dizer-lhe a mesma coisa. O André é ajudante-de-campo do tio, tem aqui uma brilhante situação. Toda a gente o conhece, toda a gente o aprecia. No outro dia, em casa dos Apraxine, ouvi uma senhora perguntar: «Este é que é o famoso príncipe André? Palavra!» — Ele pôs-se a rir. — É assim que o recebem em toda a parte. Tinha toda a facilidade em vir a ser ajudante-de-campo do imperador. Sabe que o imperador lhe dirigiu graciosamente a palavra? A Annette e eu estamos convencidas de que era tão fácil! Que acha? Pedro olhou para o príncipe André, e, vendo que a conversa não agradava ao amigo, nada respondeu. — Quando parte? — interrogou ele. — Ah! Não me fale dessa partida, não me fale. Não quero ouvir falar nisso! — exclamou a princesa nesse mesmo tom de coquetterie satisfeita de si que ela mostrara quando, no salão de Ana Pavlovna, conversava com Hipólito, mas que naquele ambiente de intimidade familiar em que Pedro era recebido não caía nada bem. — Actualmente, quando me lembro de que temos de interromper todas as nossas queridas relações... E, além disso, não sei, sabes. André? — Teve para o marido um ligeiro piscar de olhos. — Tenho medo, tenho medo! — acrescentou muito baixo, estremecendo. O marido olhou para ela com o ar surpreendido que teria se estivesse maisalguém presente que não fosse Pedro e ele próprio. André. Depois, com uma fria polidez, disse: — Que receias. Lisa? Não compreendo... — Ora aqui está o egoísmo dos homens! Não há um que se salve: são todos, todos egoístas, para satisfazerem os seus caprichos! Só Deus sabe porque é que ele me vai deixar enclausurada no campo. — Com meu pai e minha irmã, não te esqueças — articulou, tranquilamente, o príncipe André. — Nem por isso estarei menos só, sem as minhas amigas... E ainda ele quer que eu não tenha medo. Tinha adoptado um tom de amuo e fazia um trejeito que lhe dava um ar já não alegre, mas quase animal, um ar de um pequenino esquilo. Calou-se, pensando não ser conveniente falar diante de Pedro do seu estado, no fundo a causa de tudo. — Continuo a não compreender de que é que tens medo — disse, lentamente, o príncipe André, sem deixar de a fitar. A princesa corou e fez um gesto impetuoso. — Não. André, eu acho é que mudou tanto, tanto... — O teu médico aconselhou-te a que te deitasses cedo — disse o príncipe André. — Era melhor que te retirasses. A princesa nada disse, mas, de súbito, o seu lábio, sombreado por uma penugem ligeira, pôs-se a tremer; André levantou-se, encolhendo os ombros, e começou a andar de um lado para o outro. Pedro, com um ar espantado e ingénuo, olhava por detrás das lunetas ora um ora outro, e agitava-se, como se ele também quisesse levantar-se, mas continuava indeciso. — Quero lá saber que esteja aqui o Senhor Pedro — disse, abruptamente, a princesinha, e pelo seu delicado rosto perpassou, de súbito, um ricto como de quem vai chorar.— Há muito tempo que eu te queria dizer. André. Porque é que mudaste tanto para comigo? Que te fiz eu? Vais para a guerra e não tens pena de mim. Porquê? — Lisa! — foi tudo quanto disse André. Mas nesta palavra havia ao mesmo tempo uma súplica e uma ameaça, e sobretudo qualquer coisa em que se lia que ela havia de arrepender-se de ter proferido aquelas palavras. Precipitadamente, ela continuou:— Tratas-me como uma doente ou como uma criança. Eu bem vejo. Achas que eras assim há seis meses? — Lisa, peço-te que te cales — disse André numa voz cortante. Pedro, cada vez mais perturbado com aquela troca de palavras, levantou-se e aproximou-se da princesa. Dir-se-ia não poder suportar a vista das lágrimas e ele próprio estava quase a chorar. — Sossegue, princesa. É o que lhe parece; porque eu próprio tive a mesma impressão.., porque... é que... Ah!, desculpe-me, sinto que estou aqui a mais... Ah!, sossegue... Adeus... O príncipe André segurou-o por um braço. — Um momento. Pedro. A princesa é tão boa que não quererá privar-me do prazer de passar a noite contigo. — Vê, vê, não pensas senão nele! — exclamou a princesa, sem poder reter as lágrimas, onde havia revolta. — Lisa — disse o príncipe secamente, erguendo o tom da voz a uma altura tal que significava ter perdido por completo a paciência. Subitamente, o arzinho de esquilo furioso que se pintara no rosto da princesa converteu-se num medo impressionante, digno de piedade. Lançou, furtivamente, com os seus belos olhos um rápido olhar ao marido e teve essa expressão tímida e submissa de um cão batido que foge com a cauda entre as pernas. — Meu Deus, meu Deus! — murmurou, pegando na cauda do vestido, e, aproximando-se do marido, beijou-o na testa. — Boa noite. Lisa — disse o príncipe André erguendo-se e beijando-lhe a mão com cortesia, como se fosse uma estranha. [VIII] Os dois amigos ficaram silenciosos. Nem um nem outro ousavam falar. Pedro tinha os olhos pousados no príncipe André, que passava a fina mão pela testa. — Vamos cear — disse ele, suspirando. Levantou-se e dirigiu-se para a porta. Entraram na sala de jantar, elegantíssima, recém-arranjada e ricamente posta. Tudo, desde os guardanapos às pratas, à baixela e aos cristais, tinha esse aspectonovo característico das casas dos recém-casados. No meio do repasto o príncipe André apertou a cabeça entre as mãos, e, como alguém muito preocupado que finalmente resolve abrir-se, principiou a dizer, com um nervosismo que Pedro lhe não conhecia. — Não, te cases nunca, nunca, meu amigo; é o conselho que te dou. Não te cases antes de estares convencido de que fizeste tudo de que eras capaz, antes de teres deixado de amar a mulher que escolheste, antes de a teres visto bem; sem isso, enganar-te-ás cruelmente e sem remissão. Casa-te quando fores velho e já não prestares para coisa alguma... Se o não fizeres, perder-se-á tudo quanto houver em ti de bom e de grande. Tudo irá por água abaixo. Sim, sim, sim! Não me olhes com essa cara de espanto. Se estás convencido de que serás capaz de fazer alguma coisa no futuro, verificarás que tudo acabou para ti, que tudo te está vedado, salvo o salão onde virás a encontrar-te ao nível de qualquer lacaio ou de qualquer imbecil... E aqui tens! Teve um gesto enérgico. Pedro tirou as lunetas, ficando com outra cara, ainda mais bondosa, e fitou o amigo com espanto. — A minha mulher — continuou o príncipe André— é uma excelente senhora. É uma dessas raras pessoas que não fazem perigar a nossa honra. Mas. Deus meu, o que daria eu para me não ter casado! És tu a primeira e a única pessoa a quem o digo, porque sou teu amigo. Enquanto falava, o príncipe André cada vez se parecia menos com esse Bolkonski enterrado numa cadeira em casa de Ana Pavlovna deixando passar por entre dentes, de olhos piscos, frases francesas. Todos os músculos da sua seca máscara estavam agitados por movimentos nervosos; os seus olhos, em que o fogo da vida, até então, parecia extinto, brilhavam agora com um fulgor luminoso e claro. Dir-se-ia que quanto menos vida nele havia habitualmente mais enérgico parecia nestes instantes de uma excitação quase anormal. — Tu não compreendes porque eu falo assim. No entanto estás diante da história de toda uma existência. Tu dizes Bonaparte e a sua carreira — continuou ele, embora Pedro nada tivesse dito acerca de Bonaparte. — Dizes: Bonaparte. Mas Bonaparte, quando trabalhava, quando caminhava, passo a passo, para o seu fim era livre, não tinha mais nada em vista senão esse objectivo, e atingiu-o. Porém, se tu te ligares a uma mulher, como um forçado com uma braga aos pés,perderás toda a liberdade. E tudo quanto em ti possa haver de esperança e de energia tornar-se-á um peso morto, que te oprimirá de desgosto. Os salões, a má- língua, os bailes, a vaidade, as futilidades, eis daí por diante o círculo vicioso de que é impossível uma pessoa evadir-se. Vou partir para a guerra, para a maior das guerras, e não sei nada, e não presto para nada. Sou muito amável e muito cáustico e as pessoas ouvem-me quando eu falo em casa de Ana Pavlovna. E aí tens essa estúpida sociedade mundana sem a qual não podem passar nem a minha mulher nem essas mulheres... Se tu ao menos pudesses fazer uma ideia do que são todas as mulheres distintas e todas as mulheres em geral. Meu pai tem razão. O egoísmo, a vaidade, a tolice, a nulidade em tudo, aí tens a mulher quando se mostra tal qual é. Quando a gente a vê na sociedade, julga que vale alguma coisa, e não vale nada, nada, nada! É o que te digo: não te cases, meu caro, não te cases — concluiu. — Que vontade de rir que isto me dá — disse Pedro. — Pois é o André, o André, precisamente, que se considera a si próprio um incapaz, que considera falhada a sua vida? O André que tem o futuro diante de si, todo um futuro? O André... «De que não será capaz?», pensou, mas o tom da sua voz denunciava claramente a alta estima em que ele tinha o amigo e o que esperava dele para mais tarde. «Como pode ele falar assim!», dizia Pedro de si para consigo. E efectivamente Pedro via no príncipe André como que um modelo de todas as perfeições, precisamente porque ele era dotado no mais alto grau das qualidades que ele próprio não tinha, essas qualidades que mais do que quaisquer outras exigem força de vontade. Sempre lhe causara admiração a serenidade que o príncipe André sabia manter nas relações com as pessoas mais diversas e a sua memória extraordinária, as suas vastas leituras — tinha lido tudo, sabia tudo, compreendia tudo — e sobretudo a sua capacidade de trabalho e de assimilação. E, se é verdade que frequentes vezes o impressionava, a ele. Pedro, a pouca tendência que o príncipe André manifestava pela reflexão e pela filosofia, coisas para que Pedro sentia mais inclinação, estava longe de pensar que isso constituísse um defeito; pensava até que representava uma força. Nas melhores relações, nas mais amistosas e mais simples relações, a adulação ou os louvores são coisas indispensáveis, tal qual como o azeite é indispensávelnas rodas dos carros. — Sou um homem liquidado — murmurou o príncipe André. Para que havemos nós de perder tempo a falar de mim? Falemos antes de ti — acrescentou depois de um curto silêncio e sor— rindo, como se regressasse, finalmente, a um assunto mais consolador. Nessa altura um sorriso apareceu nos lábios de Pedro. — E para que havemos nós de falar de mim? — disse abandonando-se a uma despreocupada alegria.— Que sou eu, no fim de contas? Sou um bastardo! — E, subitamente, corou até às orelhas. Via-se bem que fizera um grande esforço para pronunciar estas palavras.— Sem nome, sem fortuna... E, de resto, para falar francamente... — Quereria ter dito tanto melhor, mas não concluiu a frase. — Enquanto espero, sou livre, estou satisfeito com a minha sorte. Mas o certo é que não sei o que hei-de fazer. Seriamente, queria pedir-lhe que me aconselhasse. O príncipe André olhou-o com bondade, mas, apesar disso, no seu olhar amável e amistoso sentia-se-lhe a superioridade. — Gosto de ti, sobretudo porque és tu, entre toda a gente das nossas relações, o único ser vivo. Dizes que estás satisfeito. Escolhe o que quiseres, é indiferente. Em toda a parte serás feliz. Só te peço uma coisa: deixa de conviver com esses Kuraguine, deixa a vida que levas. Isso não te convém: toda essa devassidão, esse convívio com hússares, tudo que... — Que quer, meu caro? — disse Pedro encolhendo os ombros. — As mulheres, meu caro, as mulheres! — Não compreendo — retorquiu André. — As verdadeiras senhoras, sim, essas são outra coisa, mas as mulheres de Kuraguine, as mulheres e o vinho, confesso-te que não compreendo! Pedro vivia em casa do príncipe Vassili Kuraguine e acompanhava nas suas orgias o filho deste. Anatole, esse mesmo Anatole que queriam casar, para o corrigir, com a irmã do príncipe André. — Quer saber? — disse Pedro, como se acabasse de ter uma feliz ideia. — Seriamente, há muito tempo que penso nisto. Com a vida que levo, nem posso decidir-me por coisa alguma, nem reflectir seja sobre o que for. Só dores de cabeça e o nosso dinheiro perdido. O Anatole convidou-me para esta noite, mas não vou. — Dás-me a tua palavra de honra? — Palavra de honra! [IX] Eram quase duas horas da madrugada quando Pedro saiu de casa do amigo. Era uma noite de Junho, uma noite típica de Petersburgo, sem obscuridade. Meteu-se numa carruagem de aluguer, decidido a voltar para casa. Mas à medida que se aproximava, ia sentindo que lhe não era possível dormir numa noite daquelas, que mais parecia um crepúsculo ou uma aurora. A vista perdia-se ao longe pelas ruas desertas. No caminho. Pedro lembrou-se de que em casa de Anatole Kuraguine deviam estar reunidos os convivas habituais, os jogadores, que depois do jogo se entregavam, normalmente, ao prazer da bebida, um dos seus divertimentos favoritos. «Se eu fosse a casa de Kuraguine?», disse ele para consigo mesmo. De súbito, porém, lembrou-se de que tinha dado a palavra de honra a André. Mas, de repente também, coisa natural nas pessoas que é de uso considerar-se sem carácter, sentiu um tão intenso desejo de voltar uma vez ainda a gozar aquela louca vida, que ele tão bem conhecia, que se decidiu. E então veio-lhe à mente que o compromisso tomado não valia nada, visto que antes de o ter assumido para com o príncipe André tinha prometido ao Anatole que iria a casa dele; e depois, em conclusão, dizia de si para consigo: «Todas estas palavras de honra são coisas convencionais, sem qualquer fundamento sério, sobretudo quando uma pessoa pensa que amanhã pode estar morta ou em circunstâncias tais que as palavras de honra e desonra não tenham o mais pequeno significado.» Pedro costumava fazer muitas vezes raciocínios deste gosto, que tornavam nulos todos os seus projectos e todas as suas resoluções. E dirigiu-se para casa de Kuraguine. Quando chegou à escadaria da vasta mole formada pelas casernas da Guarda montada, onde Anatole vivia, subiu os degraus iluminados e deparou-se-lhe a porta aberta. Não havia ninguém no vestíbulo; por um lado e pelo outro só se viam garrafas vazias, sobretudos, galochas; cheirava a vinho. Ouviam-se ruídos de vozes e gritos distantes. O jogo e a ceia tinham acabado, mas os convivas ainda se não haviam dispersado. Pedro despiu o sobretudo e entrou na primeira dependência, em quese viam ainda os restos do festim e onde um lacaio, julgando-se só, bebia, às escondidas, os restos de vinho dos copos. Da sala contígua saía um alarido: risos, gritos de pessoas conhecidas e grunhidos de ursos. Oito rapazes comprimiam-se, muito excitados, junto da janela aberta. Três outros entretinham-se com um ursinho novo, que um deles puxava por uma corrente para atemorizar os companheiros. — Eu aposto por Stevens cem rublos! — gritou uma voz. — Que ideia essa de apostar por ele! — exclamou um terceiro.— Kuraguine, sê tu o árbitro. — Está bem, então deixem o Michka (Nome familiar do urso na Rússia. (N, dos T.); vamos lá fazer a aposta. — De um só trago, ou então perde! — gritou uma quarta voz. — Iakov, traz uma garrafa. Iakov! — clamou o dono da casa, um rapagão magnífico, que estava no meio de todos os outros, envergando apenas uma ligeira blusa toda aberta no peito — Um momento, meus amigos! Eh! Até que enfim. Petrucha, meu caro! — exclamou dirigindo-se a Pedro. Uma outra voz, a de um homem de pequena estatura, de olhos azuis-claros, que contrastava pelos seus modos cordatos no meio de todas aquelas vozes avinhadas, gritou da janela: — Vamos, serve de árbitro na aposta! — Era Dolokov, um oficial do regimento Seminovski, famoso jogador e não menos famoso espadachim, que compartilhava dos aposentos de Anatole. Pedro sorria, lançando um olhar alegre a toda a companhia. — Não há maneira de ninguém se entender. De que se trata? — Esperem, ele não está bêbado. Venha de lá uma garrafa — disse Anatole, e, pegando num copo de cima da mesa, deu dois passos para Pedro. — Antes de mais nada, bebe, Pedro pôs-se a beber copo sobre copo, olhando de soslaio para toda aquela gente embriagada que se tinha juntado ao pé da janela e escutava o que se dizia. Anatole deitava-lhe vinho no copo e contava que Dolokov apostara com o inglês Stevens, oficial de marinha ali presente, que ele. Dolokov, seria capaz de beber uma garrafa de rum sentado na janela do segundo andar com as pernas dependuradas para a parte de fora. — Então, despeja-me lá essa garrafa! — exclamou Anatole, apresentando aPedro o último copo.— Enquanto o não beberes, não te largo. — Não, já basta — tornou Pedro recusando, ao mesmo tempo que se aproximava da janela. Dolokov segurava o inglês por uma mão e explicava claramente, com precisão, as condições da aposta, dirigindo-se de preferência a Anatole e a Pedro. Dolokov era de estatura meã, frisado, com olhos azuis-claros. Tinha aproximadamente vinte e cinco anos. Não usava bigode, como os outros oficiais de infantaria daquela época, e tinha a boca, o traço mais característico da sua figura, completamente descoberta. Era uma boca com um desenho extraordinariamente fino. O lábio superior descia sobre o forte lábio inferior formando dois ângulos agudos, em cujos cantos se via sempre esboçado uma espécie de duplo sorriso, um sorriso de cada lado. No seu conjunto, sobretudo com os seus olhos decididos, impudentes e inteligentes, dava uma impressão que obrigava as pessoas a fitá-lo. Dolokov não era rico nem tinha qualquer parente. E, conquanto Anatole gastasse dezenas de milhares de rublos. Dolokov compartilhava das suas instalações e sabia arranjar as coisas de tal maneira que o próprio Anatole e todos os seus conhecidos o estimavam mais que ao próprio dono da casa. Sabia todos os jogos e ganhava quase sempre. Por mais que bebesse, tinha sempre a cabeça no seu lugar. Kuraguine e Dolokov eram naquela época, tanto um como o outro, verdadeiras celebridades no mundo das cabeças loucas e dos boémios de Petersburgo. Trouxeram a garrafa de rum. Dois lacaios, azafamados e visivelmente estupefactos, desnorteados no meio dos gritos e das ordens que lhes davam, procuravam demolir o caixilho que impedia que uma pessoa se sentasse sobre o parapeito exterior da janela. Anatole aproximou-se com ares vitoriosos. Tinha necessidade de quebrar fosse o que fosse. Afastou os lacaios e pôs-se a puxar pelo caixilho, o qual não cedeu. Quebrou um vidro. — Experimenta tu, valentão — exclamou dirigindo-se a Pedro. Pedro agarrou- se à couceira, puxou e arrancou com fragor o enquadramento de castanho. — Tudo fora, senão depois são capazes de dizer que eu me agarrei a alguma coisa — intimou Dolokov. — O inglês perdeu a cabeça... Eh! Não é verdade? — inquiriu Anatole. — Com certeza — disse Pedro olhando para Dolokov, que, com a garrafa na mão, se aproximava da janela, através da qual se via o céu claro e a aurora, quese confundia com o crepúsculo. Dolokov, sempre com a garrafa na mão, saltou para cima da janela. — Ouçam! — gritou de pé sobre o parapeito, voltado para a assistência. Todos se calaram. — Aposto — falava em francês para que o inglês o compreendesse, embora este não fosse um portento nessa língua —, aposto cinquenta imperiais; quer apostar cem? — acrescentou, para o inglês. — Não, cinquenta — retorquiu este. — Bom, aposto cinquenta imperiais em como sou capaz de beber a garrafa de rum até à última gota, de um só trago, sentado na janela, neste sítio — debruçou- se e apontou para o parapeito inclinado no sentido da rua— e sem me segurar a coisa alguma... Está, apostado? — Perfeitamente — volveu o inglês. Anatole voltou-se para este, e, segurando-o por um botão da farda, olhou-o de cima, pois o outro era de pequena estatura, e pôs-se a repetir-lhe em inglês as condições da aposta. — Atenção! — gritou Dolokov, batendo com a garrafa na janela, para que o ouvissem— Um momento. Kuraguine. Ouçam. Se houver alguém capaz de fazer o mesmo, dou-lhe cem imperiais. Estão a compreender? O inglês disse «sim» com a cabeça, sem com isso querer dizer que tinha intenção de aceitar a nova aposta. Anatole não o largava, e, embora ele tivesse dado a entender que compreendera, traduzia-lhe para inglês as palavras de Dolokov. Um rapazola escanzinado, um hússar da Guarda, que toda a noite estivera a perder ao jogo, trepou à janela, debruçou-se e olhou lá para baixo. — Ui! Ui! Ui! exclamou, apontando as pedras da calçada. — Fora daí! — gritou Dolokov, obrigando a descer da janela o oficial, que, embaraçado nas esporas, tropeçou. Depois de ter colocado a garrafa no parapeito da janela, para assim a ter à mão. Dolokov, com prudência e serenidade içou-se para o rebordo do janelão. Depois de ter passado as pernas por cima, do alizar e de haver avançado, com o auxílio das mãos, até ao extremo do parapeito, escolheu o lugar, sentou-se, deixou pender as pernas, deslocou-se para a direita e para a esquerda e pegou na garrafa. Anatole trouxe duas velas e pousou-as sobre o parapeito, embora já fizesse dia claro. O dorso de Dolokov, de camisa branca, a cabeça anelada, recebialuz dos dois lados. Toda a gente se tinha juntado em volta da janela. O inglês estava na primeira fila. Pedro sorria sem dizer nada. Um dos presentes, mais velho do que os outros, furioso e apavorado, arremeteu, de súbito, para a janela e quis agarrar Dolokov pela camisa. — Meus senhores, isto é uma loucura; o rapaz vai matar-se! — exclamou esta criatura, mais razoável que as restantes. Anatole deteve-o. — Não lhe toques; se o assustas, ele mata-se. Hem!... E nesse caso?... Hem! Dolokov voltou-se, compôs-se e colocou-se em posição com o auxílio das mãos. — Se mais alguém mete o bedelho na minha vida — disse, deixando cair as palavras dos lábios finos e cerrados —, obrigo-o a descer imediatamente por aqui. Está combinado?... Ao dizer «Está combinado?», voltou-se ainda, soltou as mãos, pegou na garrafa e levou-a à boca, atirando a cabeça para trás e erguendo no ar a mão livre para estabelecer o equilíbrio. Um lacaio que se tinha posto a apanhar os pedaços de vidro da janela deteve-se, sempre debruçado para o chão, sem perder de vista a janela e as costas de Dolokov. Anatole conservava-se direito, de olhos arregalados. O inglês, mordendo os lábios, desviava os olhos. Aquele que tentara intervir tinha-se afastado para um canto e estiraçara-se num divã com a cara para a parede. Pedro tapou a cara e um ligeiro sorriso parecia errar-lhe na máscara, onde se estampavam agora susto e terror. Todos se calavam. Pedro tirou a mão dos olhos. Dolokov mantinha-se na mesma posição, mas com a cabeça de tal modo caída para trás que os cabelos anelados, pela retaguarda, afloravam-lhe o colarinho, e a mão com que segurava a garrafa cada vez se erguia mais, animada por um certo tremor, e como se fizesse esforço. A garrafa, que se esvaziava a olhos vistos, elevava-se ao mesmo tempo no ar, obrigando a cabeça a descair para trás. «Que tempo que isto leva!», murmurou Pedro consigo mesmo. Afigurava-se-lhe haver decorrido mais de meia hora. Subitamente Dolokov teve um movimento de espinha para a retaguarda e a mão foi-lhe sacudida por um tremor nervoso, quanto bastou para fazer avançar o corpo sentado no parapeito resvaladiço. Todo ele se deslocou, e as mãos e a cabeça, com o esforço, estremeceram-lhe ainda mais. Uma das mãos ergueu-se para se agarrar ao alizar da janela, mas logo descaiu. Pedro voltou a fechar os olhos e prometeu não tornar a abri-los. Subitamente percebeu que tinha havido um movimento na assistência. Abriu os olhos: Dolokov estava de pé sobre o parapeito, o rosto pálido e alegre.— Vazia! Atirou com a garrafa ao inglês, que a agarrou no ar. Deu um pulo da janela. Todo ele cheirava a rum. — Muito bem! Que valentão! Bela aposta, cos diabos! — dizia-se por todos os lados. O inglês tinha puxado da bolsa e contava o dinheiro. Dolokov franzia as sobrancelhas sem dizer palavra. Pedro precipitou-se para a janela. — Meus senhores. Quem é que quer apostar comigo? Estou pronto a fazer o mesmo! — gritou ele, de chofre.— De resto, dispenso as apostas. Venha de lá uma garrafa. Exactamente!... Uma garrafa. — Isso mesmo! Isso mesmo! — exclamou Dolokov, rindo. — Que mosca é que te mordeu? Estás maluco? Quem é que vai consentir nisso? Até a subir uma escada tens vertigens — dizia-se por aqui e por ali. — Vão ver como eu a bebo. Deixem-me ver uma garrafa! gritava Pedro, batendo no tampo duma mesa, com uma teimosia de bêbado. E trepou para cima da janela. Agarraram-no por um braço; mas ele era tão forte que sacudia de si os que tentavam aproximar-se dele. — É inútil, não desiste — disse Anatole.— Esperem aí, que eu ensino-o. Ouve lá, eu aposto contigo, mas fica para amanhã. Agora vamos todos para casa da... — Está bem — exclamou Pedro. — Vamos embora!... Mas o Michka também vai connosco. — Apoderou— se do urso, e agarrando nele com ambas as mãos para o obrigar a levantar-se, pôs-se a rodopiar com o bicho pelo meio da sala. [X] O príncipe Vassili cumpriu a promessa que tinha feito à princesa Drubetskaia na reunião em casa de Ana Pavlovna relativamente a seu único filho. Bóris. Falaram nele ao imperador, e a título excepcional foi promovido a alferes do regimento Seminovski. Mas não foi nomeado ajudante-de-campo, nem adido ao quartel-general de Kutuzov, apesar dos pedidos e das intrigas de Ana Mikailovna. Pouco tempo depois da reunião em casa da dama de honor. Ana Mikailovna voltoupara Moscovo e foi instalar-se em casa dos Rostov, seus ricos parentes, onde sempre se hospedava. Era ali que tinha sido educado desde criança e onde ainda vivia o seu Bóris adorado, só agora admitido no exército e que acabava de ser promovido a alferes da Guarda. O regimento tinha saído de Petersburgo a 10 de Agosto, e o rapaz, que ficara em Moscovo por causa do equipamento, devia ir ao encontro dele em Radzivilov. Em casa dos Rostov celebrava-se o aniversário das duas Natalias, a mãe e a filha mais nova. Desde manhã que era um chegar e partir de carruagens sem fim com visitas para o palácio da condessa Rostov, na Povarskaia, palácio que toda a gente conhecia em Moscovo. A condessa, acompanhada pela filha mais velha, uma linda mulher, estava no salão, rodeada das suas visitas, que não cessavam de chegar. Era a condessa Rostov urna senhora de rosto magro, tipo oriental, dos seus quarenta e cinco anos, visivelmente esgotada por doze partos sucessivos. A lentidão do seu passo e a morosidade da sua fala, consequências do quebranto das suas forças, davam-lhe um ar de dignidade que inspirava respeito. A princesa Ana Mikailovna Drubetskaia também se encontrava presente, íntima da casa que era, ajudando-a a receber as visitas e a manter a conversação. A gente nova estava nas dependências das traseiras, desinteressada das visitas. O conde lá se encarregava, de as acolher e de as conduzir, convidando toda a gente para jantar. — Estou-lhe muito reconhecido, muito, meu caro ou minha cara — dizia a toda a, gente, sem excepção, minha cara ou meu caro, sem pôr nisso qualquer distinção, quer as pessoas fossem de uma classe inferior ou superior —, estou-lhe muito reconhecido em meu nome e em nome das festejadas. Não deixe de vir jantar connosco: ficaria melindrado, meu caro. Peço-lhe, cordialmente, em nome da família, minha cara. Estas mesmas palavras, com uma expressão sempre igual no rosto cheio e sorridente, bem escanhoado, e um aperto de mão enérgico, sempre o mesmo, e breves e frequentes flexões, repetia-as ele a todos, sem excepção e sem alterar uma vírgula. Depois de acompanhar aquele que partia, ei-lo que voltava para junto daquele ou daquela que ficava no salão. Puxava de uma cadeira, e com os modos de um homem à vontade em sociedade, estendia as pernas desprendidamente, e, de mãos assentes nos joelhos, meneava a cabeça com um ar entendido, fazendo conjecturas sobre o estado do tempo, dando conselhoshigiénicos, ora em russo, ora em francês, num francês bastante mau, mas pronunciado com segurança, e depois, como uma pessoa que se sente fatigada mas quer cumprir a sua obrigação até ao fim, acompanhava as pessoas, assentando as farripas brancas sobre a calva e tornando a repetir o eterno convite. Uma que outra vez, no regresso do vestíbulo, atravessava o jardim de Inverno e a sala de espera, dirigindo-se a uma grande dependência pavimentada de mármore, onde se preparava uma mesa de oitenta talheres: lançava urna olhadela aos criados, afadigados a acarretar pratas e porcelanas, a arranjar a mesa e a estender as toalhas adamascadas, e mandava chamar Dimitri Vassilievich, um jovem fidalgo, uma espécie de seu factótum, a quem dizia: — Atenção. Mitenka, é preciso que tudo esteja em ordem. óptimo! óptimo! — Depois acrescentava, inspeccionando, satisfeito, a imensa mesa elástica. — O mais importante é uma mesa bem posta. Bom, bom... — E voltava, contente, ao salão. — Maria Lvovna Karaguine e sua filha! — anunciou em voz de baixo o imenso escudeiro às ordens da condessa penetrando no salão. A condessa, pensativa, tomou uma pitada de rapé da sua caixa dourada com o retrato do marido, — Ah! Que maçada estas visitas! — exclamou ela. — É a última que eu recebo. Que pessoa tão amaneirada! Manda entrar — ordenou para o lacaio numa voz áspera que queria dizer: «Bom, acabemos com isto!» Uma senhora, alta, de grande corpulência, ar altivo, acompanhada de sua filha, uma menina de nédias bochechas, toda sorridente, entrou na sala no meio de um ruge-ruge de vestidos. — Querida condessa, há tanto tempo.., tem estado de cama, pobre criança.., no baile dos Rasumovski.., e a condessa Apraksine.., fiquei tão contente!... — exclamavam vozes femininas muito animadas, interrompendo-se umas às outras mutuamente e confundindo-se com o sussurrar dos tecidos e o arrastar das cadeiras. Entabulou-se uma conversa tão pouco importante que permitia, assim que havia uma pausa, que as pessoas se levantassem e dissessem, rio meio do burburinho da partida: «Estou encantada; a saúde da mãe.., e a condessa Apraksine», e, em seguida, no meio de um novo ruge-ruge, passassem para o vestíbulo, pusessem os seus agasalhos e partissem. A conversa travou-se sobre a grande novidade do dia, a doença do velho e riquíssimo conde Bezukov, um dos mais belos homens do tempo de Catarina, e o comportamento do filho ilegítimo do mesmo. Pedro, que se tinha portado pessimamente ria recepção em casa de AnaPavlovna. — Muito lamento o pobre conde — disse a visita que acabava de chegar —; esta tão mal e, ainda por cima, com o desgosto daquele filho, acaba por morrer! — Que aconteceu? — inquiriu a condessa, fingindo ignorar o assunto a que aludia a interlocutora, embora já tivesse ouvido contar a história pelo menos umas quinze vezes, — São aquilo as educações modernas! Aquele tempo no estrangeiro fez com que o rapaz se tornasse insubmisso, e agora, em Petersburgo, segundo dizem, tais horrores fez que tiveram de recorrer à policia. — Que me diz! — murmurou a condessa. — São as más companhias — interveio a princesa Ana Mikailovna. — O filho do príncipe. Vassili, ele e um tal Dolokov fizeram trinta por urna linha. Dois deles sofreram-lhe as consequências: Dolokov foi obrigado a descer de posto e o filho do conde Bezukov, esse, mandaram-no para Moscovo. Quanto a Anatole Kuraguine, valeu-lhe o pai, que conseguiu abafar o escândalo. Mas também foi afastado de Petersburgo. — Que fizeram eles, afinal? — perguntou a condessa. — São uns autênticos bandidos. Principalmente esse Dolokov — disse a visita. — É o filho de Maria Ivanovna Dolokov, uma senhora da maior respeitabilidade. Pois não sabem? Imaginem que arranjaram um urso e levaram-no com eles de carruagem para casa de urnas actrizes. A polícia foi atrás deles, e eles não estiveram com meias medidas: apanham um guarda, amarram-no, costas com costas, com o urso, e atiram com os dois para o Moika (Canal do rio Neva que divide o centro da cidade do bairro de Kazari. (N, dos T.). O urso pôs-se a nadar com o polícia às costas. — Só queria ver a cara do polícia, minha amiga! — exclamou o conde, rindo a bom rir. — Parece impossível! Que horror! Como é que o conde pode achar graça a uma coisa destas? Mas as próprias senhoras não podiam suster o riso. — Foi difícil salvá-lo, àquele desgraçado — continuou a visita. — E dizer que, é o filho do conde Cirilo Vladimirovitch Bezukov quem e dedica a divertimentos tão intelectuais! E há quem o ache bem educado e espiritual. Ora aqui têm o resultado dessas educações no estrangeiro! Tenho a certeza de que ninguém aqui o vaireceber, apesar de toda a sua fortuna. Quiseram-mo apresentar. Mas eu disse redondamente que não: tenho filhas. — Porque diz que, esse homem é assim tão rico? — perguntou a condessa, debruçando-se para ela, de maneira a que as raparigas a não ouvissem, e estas logo fingiram nada entender. — Dizem que só tem filhos naturais. Com certeza.., o Pedro também é filho natural. A visita teve um gesto evasivo. — Dizem que tem um caterva de ilegítimos. A princesa Ana Mikailovna interveio, desejosa, é claro, de mostrar que tinha relações e que conhecia em pormenor todas as intrigas mundanas. — A verdade é esta — disse ela, com um ar entendido e quase em voz baixa. — A reputação do conde Cirilo Vladimirovitch toda a gente a conhece... Nem sequer sabe o nome dos filhos que tem, mas este Pedro era o seu preferido. — Que belo homem esse velho — murmurou a condessa — ainda o ano passado! Nunca vi um homem mais belo! — Agora está muito mudado — observou Ana Mikailovna.- O que eu queria dizer é que o príncipe Vassili, parente dele pelo lado materno, é que devia ser o seu herdeiro directo, mas ele gosta muito do Pedro; mandou-o educar e até escreveu a recomendá-lo ao imperador... Por isso ninguém sabe para quem irá a sua imensa fortuna, se para o Pedro se para o príncipe Vassili. Quarenta mil almas e milhões, milhões! Sei isto de fonte limpa, pois foi o próprio príncipe Vassili quem mo contou. De resto. Cirilo Vladimirovitch também é meu primo afastado pelo lado materno. E é padrinho do Bóris — insinuou ela, como se não ligasse a mais pequena importância ao facto. — O príncipe Vassili está desde ontem em Moscovo. Dizem que anda em inspecção — murmurou a visita. — Sim, mas, aqui entre nós — disse a condessa —, isso é um pretexto. O que ele veio fazer foi visitar o conde Cirilo Vladimirovitch logo que o soube muito mal. — Seja como for, minha amiga, é uma rica história — disse, de chofre, o conde, e, ao verificar que a interlocutora o não ouvia, voltou-se para as raparigas— Estou a ver a cara do polícia! E, mimando os gestos desesperados do pobre diabo, pôs-se de novo a rir, com grandes gargalhadas sonoras e profundas, que lhe faziam estremecer todo o rechonchudo corpo, um corpo de quem come bem e bebe melhor.— Então, está combinado, janta connosco — disse ele. [XI] Houve um momento de silêncio. A condessa olhava para a sua visita com um sorriso amável, sem esconder, aliás, que lhe não seria desagradável vê-la erguer- se para se ir embora. A filha já se preparava para se despedir, depois de lançar um olhar interrogativo à mãe, quando, de súbito, se ouviram na sala contígua passos precipitados de homens e senhoras, ao mesmo tempo que urna cadeira era arrastada e caía, impelida por alguém que passava. Então entrou na sala uma menina dos seus treze anos, que trazia fosse o que fosse na saia de musselina, e que parava no meio do salão. Era evidente que fora por engano e sem premeditação que viera até ali. Simultaneamente, à porta, apareceram um estudante, de gola cor de framboesa, um oficial da Guarda, uma rapariguinha dos seus quinze anos e um rapazinho, gordo e rubicundo, com um casaquito curto, O conde precipitou-se para a pequenita e impediu-lhe a entrada abrindo os braços. — Ah!, aí vem ela! — gritou ele, rindo — A heroína da festa. Minha querida fadazinha! — Minha querida, há horas para tudo — disse a condessa, fingindo-se severa— Estragas a pequena Elie — acrescentou dirigindo-se ao marido, — Bom dia, minha querida, felicito-a — disse a senhora Karaguine. — Que criança encantadora! — prosseguiu ela para a mãe. Era uma rapariguinha de olhos negros, a boca muito grande, não bonita, mas cheia de vida, com os ombros infantis descobertos, palpitando no corpete, graças à rapidez com que caminhara, os caracóis negros repuxados para trás, os braços pequeninos nus, as perninhas a sair de uma calças de rendas, e nos pés sapatos abertos. Estava naquela idade graciosa em que uma rapariga já não é criança e em que a criança ainda não é rapariga. Depois de ter conseguido escapar-se dos braços do pai, correu para a mãe e, sem prestar a mais pequena atenção às suas severas reprimendas, escondeu a cara buliçosa nas rendas da mantilha materna e pôs-se a rir. Enquanto ria ia falando, com palavras sincopadas, para a boneca quelevava metida na saia. — Vês?... Mimi... Vês? E Natacha mais não pôde dizer — tudo a fazia rir. — Deixou-se pender contra a mãe e rompeu a rir com tanta vontade e tão alto que ninguém, inclusivamente a visita de maneiras afectadas, pôde resistir ao riso. Todos riram também. — Vai-te embora, vai-te embora com esse horror! — exclamou a mãe, repelindo-a com uma cólera fingida.— É a minha filha mais nova — disse ela à visita. Natacha deixou ver a cara por momentos, no meio do fichu de rendas da mãe, olhou aquela de alto a baixo, rindo até às lágrimas, e voltou a esconder-se. A visita, obrigada a admirar esta cena de família, pensou ser necessário dizer qualquer coisa. — Dize-me cá, minha linda — perguntou a Natacha —, que parentesco tens tu com esta Mimi? É tua filha, naturalmente. Este tom de condescendência para se pôr ao seu nível de criança não agradou a Natacha, que nada disse e fitou a senhora com um ar sério. Entretanto, todo o grupo jovial: Bóris, o oficial, filho da princesa Ana Mikailovna, o estudante Nicolau, filho mais velho do conde. Sónia, sua sobrinhita de quinze anos, e o pequeno Petrucha, seu filho mais novo, procurava manter, adentro dos limites das conveniências, a animação e a alegria que fulguravam nos seus rostos. Via-se perfeitamente que lá para trás, nos aposentos das traseiras, donde eles tinham surgido tão repentinamente, se falava de coisas bem mais agradáveis que intrigas mundanas, ou o estado do tempo, ou a condessa Apraksine. Entreolhavam-se todos, rompendo a rir. Os dois rapazolas, o estudante e o oficial, amigos de infância, eram da mesma idade, ambos bonitos moços, mas sem se parecerem um com o outro. Bóris era um rapagão louro, de traços finos e regulares, de uma beleza serena; Nicolau, um rapazinho frisado, com uma expressão aberta. No seu lábio superior apontava já um ligeiro buço e o todo da sua máscara exprimia impetuosidade e entusiasmo. Nicolau ficou todo corado assim que entrou no salão. Via-se que procurava dizer qualquer coisa, mas não conseguia. Bóris, pelo contrário, mostrou-se logo à vontade e começou a contar, tranquilamente e com um ar satisfeito, que tinha conhecido a Mimi muito nova, com o nariz ainda intacto, que nos últimos cinco anos, se bem se lembrava, a pobre tinha envelhecido terrivelmente, e que tinhaagora a cabeça rachada de alto a baixo. Ao mesmo tempo que falava ia olhando para Natacha. Esta voltara a cara e olhava para o irmãozito, que ria perdidamente, com os olhos cheios de lágrimas; de súbito, sem poder mais, despediu correndo. Bóris ficou muito sério. — Naturalmente também se quer ir embora. Mamã? Precisa do carro? — disse ele para, a mãe, sorrindo. — Pois sim, manda atrelar — respondeu a mãe sorrindo igualmente. Bóris, sem nada dizer, dirigiu-se para a porta e seguiu atrás de Natacha. O rapazinho gordo correu após eles, pouco contente por ter sido perturbado nos seus entretenimentos. [XII] A excepção da filha primogénita da condessa, a qual, quatro anos mais velha que a segunda, já podia dar-se ares de pessoa crescida, e das filhas da senhora que viera de visita, juventude era coisa que não havia no salão, se excluíssemos, além delas. Nicolau e a sobrinha Sónia. Esta era uma morenita magra, uma miniaturazinha, com uns olhos doces, sombreados por longas pestanas, e uma farta trança negra que lhe dava duas voltas à cabeça, a tez olivácea acentuava-se-lhe mais ainda nos braços e no colo nus, magros, mas graciosos. A ligeireza dos seus passos, a languidez e a flexibilidade dos seus braços, os seus modos um pouco ardilosos e reservados davam-lhe ares de um lindo felino ainda não domesticado, mas prometendo vir a ser um bichano encantador. Evidentemente que ela sabia ser conveniente tomar parte, com o seu sorriso, na conversa geral, mas, sem dar por isso, por debaixo das longas pestanas, os olhos fugiam-lhe para o seu primo, que ia partir para a, tropa. No seu olhar havia uma adoração tão apaixonada que ninguém se iludiria com aquele sorriso. Toda a gente via que se o bichano ali estava tão sossegado era apenas para, mal saísse do salão, logo pôr-se a correr e a saltar com o primo, tal como Bóris e Natacha. — Sim, minha cara — dizia o velho conde para a visita, apontando Nicolau. — Como o seu amigo Bóris saiu, oficial, ele, por amizade para com o primo, não lhe quer ficar atrás. E lá vai deixar a Universidade e a mim, seu velho pai; vai alistar-se, minha cara. E já lhe tínhamos arranjado um lugar no serviço dos arquivos. Ao que leva a amizade! — E dizem que a guerra já foi declarada — observou a visita. — Há muito tempo que isso se diz — volveu o conde— Sim, diz-se e volta a dizer-se, e tudo fica na mesma. Minha cara, o que é que a amizade não faz? — repetia ele. — Vai para os hússares. A visita, como não sabia que dizer, meneava a cabeça. — Mas não, não se trata de amizade — interrompeu Nicolau, entusiasmando— se, como quem repele uma calúnia que lhe fosse odiosa.— Não se trata de amizade, mas apenas de que tenho a vocação de soldado. Envolveu num olhar a prima e a filha da visita; ambas lhe dirigiram um sorriso de aprovação. — Temos hoje a jantar o coronel Schubert, do regimento de hússares de Pavologradski. Está aqui de licença, e é ele quem o leva consigo. Que havemos nós de fazer? — disse o conde, encolhendo os ombros e falando, em tom prazenteiro, de um assunto que visivelmente lhe causava um grande desgosto. — Já lhe disse, pai — replicou o filho —, que se me não quer deixar ir eu não partirei. Mas tenho a certeza de que não sirvo para mais nada senão para soldado; não nasci, para ser nem diplomata nem funcionário; não sei esconder os meus sentimentos — acrescentou sem deixar de fitar as raparigas com a bonita desenvoltura própria da sua idade. A gatinha, que o comia com os olhos, parecia pronta a brincar e a mostrar a sua natureza felina. — Bem, bem! — disse o velho conde— Está sempre pronto a exaltar-se. Bonaparte deu volta à cabeça de toda esta gente. Lá porque ele passou de simples tenente a imperador... Seja o que Deus quiser — rematou, sem reparar no sorriso escarninho da visita. As pessoas crescidas puseram-se a falar de Bonaparte. Júlia, o filha da princesa Karaguine, voltou-se para o jovem Rostov: — Que pena que não tenha estado na quinta-feira passada em casa dos Arkarov. Não calcula a falta que me fez! — disse- lhe ela, sorrindo com afabilidade. O rapaz, lisonjeado, veio sentar-se junto dela. E sorrindo com a coquetterie própria da sua idade, entabulou uma conversa íntima, sem reparar que as suas amabilidades eram como um gládio de ciúme a trespassar o coração de Sónia, aqual, disfarçando a sua confusão, fingia estar alegre. No meio da sua conversa com Júlia, deteve os olhos em Sónia. Esta lançou-lhe um olhar cheio de amargura, retendo a custo as lágrimas, embora ainda lhe flutuasse um sorriso nos lábios, e levantando-se saiu. Toda a animação de Nicolau se desvaneceu. Aproveitou a primeira oportunidade para interromper o seu diálogo, e, inquieto, lá foi à procura de Sónia. — Oh, como toda esta juventude traz o coração na boca! — exclamou Ana Mikailovna apontando para Nicolau, que sala da sala.— Primos, maus vizinhos! — acrescentou. — É verdade! — disse a condessa, assim que desapareceu o raio de sol que a mocidade trouxera consigo ao salão. E, respondendo a uma pergunta que ninguém lhe tinha feito, mas que a preocupava:— Que contrariedades, que contrariedades as nossas para agora podermos gozar de uma certa alegria! E o certo é que ainda hoje sentimos muito mais terror que prazer. Estamos sempre com medo, sempre com medo! E é precisamente nesta idade que as raparigas e os rapazes correm maior perigo. — Tudo depende da educação que se recebe — disse a visita. — Sim, tem razão — continuou a condessa. — Até agora tenho sido sempre a amiga íntima dos meus filhos e eles têm sempre confiado em mim. — E, ao falar assim, caía no erro de muitos pais, persuadidos de que os filhos não têm segredos para eles. — Sei que serei sempre a primeira confidente dos meus filhos, e que Nikolenka, com a seu feitio ardente, se um dia fizer uma asneira — os rapazes estão sempre sujeitos a isso —, nunca se comportará como esses senhores de Petersburgo. — Sim, são muito bons pequenos — afirmou o conde, qu6 resolvia sempre os problemas embaraçosos dizendo que tudo estava bem. — Imagine! Quis assentar praça nos hússares! Que lhe havemos de fazer, minha cara! — Que linda rapariga é a sua filha mais nova! — disse a visita. — Que azougada! — É, é — replicou o conde. — Parece-se comigo! E que linda voz! Não é por ser minha filha! A verdade diga-se. Vai ser urna verdadeira cantora, uma Salomoni. Anda a tomar lições com um italiano. — Não será cedo de mais? Não é bom para a voz, segundo ouço dizer, aprender canto nesta idade. — Cedo de mais? — volveu o conde. — Então as nossas mães não se casaramdos doze para os treze anos? — E já está enamorada do Bóris! Veja isto! — disse a condessa, sorrindo, disfarçadamente, e lançando um olhar à mãe do rapaz. Depois, como que respondendo a um pensamento que não deixava de a preocupar, continuou: — Imagine que eu a educava com severidade, que a proibia... Só Deus sabe o que ela seria capaz de fazer às escondidas. (A condessa queria dizer que se beijariam.) Mas, assim, conheço-lhe todos os pensamentos. É ela própria quem me vem contar todas as noites. É possível que eu a estrague: mas estou convencida de que é esta a melhor maneira. Já a mais velha a eduquei com mais severidade. — Pois é, a mim educaram-me de maneira muito diferente — disse, sorrindo, a filha mais velha, a linda condessa Vera. O sorriso não tornava Vera mais bonita, como em geral acontece, pelo contrário, dava-lhe uma expressão pouco natural e desagradável até. Vera, a filha mais velha dos Rostov, era bonita, não era tola, tinha sido muito bem instruída, tinha uma educação excelente e urna bela voz; o que ela acabava de dizer era muito justo e a propósito, mas, coisa estranha, toda a gente, a principiar pela visita e pela própria condessa, a fitou como que surpreendida que ela tivesse falado daquela maneira, e todos sentiram um certo embaraço. — Em geral somos sempre mais rigorosos com os filhos mais velhos; pensamos sempre fazer deles pessoas excepcionais — disse a Visita. — Para que havemos de esconder os nossos erros, minha cara! A minha querida condessa quis ser exemplar com a educação de Vera — observou o conde. — Mas que se perdeu com isso? O resultado não foi nada mau— acrescentou, piscando o olho amistosamente a Vera. As visitas ergueram-se, finalmente, para se despedirem, prometendo vir jantar. — Isto é que são maneiras! Parecia que nunca mais se iam embora! — exclamou a condessa, ao ver, finalmente, as visitas pelas costas. [XIII] Quando Natacha saiu do salão a correr não foi muito longe; ficou no jardim de Inverno. E ali permaneceu ouvindo o que se dizia no salão e aguardando que Bóris chegasse. Principiava a impacientar-se, e já batia com os pés no chão, quase a chorar por o não ver aparecer, quando se principiaram a ouvir os passos do rapaz, uns passos nem muito lentos nem muito precipitados, compassadamente. Natacha correu a esconder-se atrás dos vasos das plantas. Bóris ficou parado no meio da dependência, olhou em tomo de si, sacudiu a manga do uniforme e aproximou-se de um espelho para mirar a sua linda figura. Muito quieta. Natacha espreitava lá do seu esconderijo, curiosa de ver o que ele faria. Bóris esteve alguns momentos diante do espelho, sorriu e dirigiu-se para a porta. Natacha quis chamá-lo, mas de si para consigo disse: «Ele que me procure.» Mal Bóris saíra, entrou Sónia, por outra porta, muito corada, e soltando palavras coléricas por entre um fio de lágrimas. Natacha conseguiu reprimir o seu primeiro movimento, que a impelia a correr para ela, e ficou no seu esconderijo como se estivesse debaixo do chapéu que torna as pessoas invisíveis, observando o que se passava. Tirava disso um prazer muito especial. Sónia balbuciava fosse o que fosse de indistinto, sem desviar os olhos da porta do salão. A porta abriu-se e apareceu Nicolau. — Sónia, que tens tu? Será possível?! — exclamou ele, correndo para ela. — Não é nada, não é nada, deixa-me. As lágrimas correram-lhe em fio. — Sim, bem sei o que foi. — Se sabes, é o que importa. Vai ter com ela. — Sónia! Ouve-me. Só uma palavra. Como é possível que estejamos os dois a atormentar-nos por causa de uma patetice? volveu Nicolau, pegando-lhe nas mãos. Sónia deixou-as ficar e enxugou as lágrimas. Natacha, sem um movimento, e retendo a respiração, olhava-os do seu canto com os olhos brilhantes. «Que se irá passar?», pensava ela. — Quero lá saber das outras. Sónia. Só tu és tudo para mim disse Nicolau. — Hei-de provar-to. — Por amor de Deus, não me digas essas coisas, — Não volto mais, perdoa-me. Sónia! Puxou-a para si e beijou-a.«Sim, senhor, assim mesmo!», exclamou para si mesma, e, quando Sónia e Nicolau partiram, seguiu-os — e chamou Bóris. — Bóris, venha cá — disse-lhe ela, com um arzinho de significativa astúcia, — Preciso de lhe dizer uma coisa. Venha daí, venha daí — prosseguiu ela, conduzindo- o para o jardim de Inverno, para o sítio onde estivera escondida atrás dos vasos das plantas. Bóris seguiu-a sorridente. — De que se trata? — perguntou ele. Natacha perturbou-se, olhou em tomo de si, e vendo a boneca que ficara em cima de um dos vasos pegou nela. — Dê um beijo à minha boneca — ordenou. Bóris fitou-lhe o rosto animado com um enternecedor interesse, mas nada disse. — Não quer? Então venha daí — Desapareceu no meio da verdura, atirando fora a boneca. — Chegue-se mais, chegue-se mais — murmurou. Passou o braço pelo canhão da manga do oficial e no seu rosto purpurizado havia um ar ao mesmo tempo sério e medroso. — E a mim, quer-me beijar a mim? — balbuciou numa voz quase imperceptível, olhando-o de viés, com um sorriso nos lábios e as lágrimas quase a saltarem-lhe dos olhos, tão grande era a emoção. Bóris corou. — Que estranha que a menina é! — exclamou ele, debruçando-se para ela, mas sem se decidir, e como que à espera. Subitamente. Natacha saltou para cima de uma cadeira, ficando mais alta do que ele, envolveu-lhe o pescoço nos seus pequeninos braços nus e, inclinando a cabeça para trás, beijou-o em plenos lábios. Em seguida esgueirou-se por entre os vasos do lado oposto e deteve-se, de cabeça baixa. — Natacha — disse Bóris. — Bem sabe que gosto de si, mas Gosta de mim? — perguntou ela, interrompendo -o. Sim, gosto de si, mas, por amor de Deus, não voltemos a fazer o que fizemos agora... Daqui a quatro anos... Então virei pedir a sua mão. Natacha ficou a pensar. — Treze, catorze, quinze, dezasseis... — disse, contando pelos seus pequeninos dedos.— Está bem. Fica assim combinado?E no seu rosto cheio de animação resplandeceu uma tranquila alegria. — Combinado! — repetiu Bóris. — Para sempre? — voltou a pequena.— Até à morte? E, dando-lhe o braço, dirigiu-se com ele, toda ela felicidade, para a sala contígua. [XIV] A condessa estava tão cansada de atender as visitas que disse que não receberia mais ninguém, e o guarda-portão recebeu ordem de convidar para jantar todas as pessoas que viessem apresentar felicitações. Estava morta por se ver a sós com a sua amiga de infância, a princesa Ana Mikailovna, que mal tinha visto desde que ela voltara de Petersburgo. Ana Mikailovna, com o seu bonito rosto como que intumescido de chorar, veio colocar-se muito junto da cadeira da condessa. — Vou ser absolutamente sincera contigo — disse-lhe ela. Acabaram-se-nos as velhas amigas de outrora. E por isso que eu aprecio tanto a tua amizade. Ana Mikailovna, ao ver aproximar-se Vera, calou-se. A condessa apertou a mão da amiga. — Vera — disse ela para a filha primogénita, que evidentemente não era a preferida —, vocês não percebem nada? Então ainda não compreendeste que estás aqui a mais? Vai ter com as tuas irmãs, ou então... A formosa Vera teve um sorriso um pouco desdenhoso, sem dar a perceber, de maneira alguma, que se sentia ofendida. — Se me tivesse dito mais cedo, mãe, já me teria ido embora — disse ela, afastando-se. Mas, ao passar pela sala do divã, viu que as duas janelas estavam simetricamente ocupadas pelos dois pares. Parou a olhar e teve um sorriso de desdém. Sónia estava sentada muito juntinha de Nicolau, que copiava uns versos para ela, os primeiros que tinha escrito na sua vida. Bóris e Natacha estavam na outra janela, e calaram-se quando a viram entrar. Sónia e Natacha olharam-na com um ar feliz, e ao mesmo tempo como se tivessem sido surpreendidas em flagrante. Estas garotas, que então viviam a sua primeira história de amor, eram ao mesmo tempo divertidas e comovedoras para quem as contemplasse. Mas a verdade é que não foi grande a satisfação de Vera quando deu com elas. — Quantas vezes já lhes pedi que se não apoderassem do que é meu? As meninas também têm um quarto, Tirou o tinteiro das mãos de Nicolau. — Espere, espere — exclamou ele, molhando a caneta. — Não há dúvida deque não sabem fazer nada com jeito — prosseguiu ela.— Foi uma vergonha aquela vossa entrada no salão. Apesar da justeza da observação, ou até, precisamente, por isso mesmo, ninguém abriu a boca, e os quatro limitaram-se a olhar uns para os outros. Vera continuou, com o tinteiro na mão: — Sempre gostava de saber que segredinhos é que a Natacha e o Bóris têm para dizer um ao outro.., nessa idade, e vocês também. Que patetice! — E tu que tens com isso. Vera? — disse Natacha, com a voz mais pachorrenta deste mundo, para dizer alguma coisa. Era evidente estar, como nunca, nesse dia disposta a ser boa e afectuosa para toda a gente. — Tudo isto é uma patetice — continuou Vera— Sinto vergonha por vocês. Que segredos são esses? — Toda a gente tem segredos. Nós também não nos metemos ria tua vida e na do Berg — disse Natacha, que principiava a exaltar-se. — Acho muito bem que se não metam na minha vida nem na dele, tanto mais que nada têm a dizer de nós. Deixa estar que hei-de contar à mãe como tu te portas com o Bóris. — Natália Ilinitchna porta-se muito bem comigo — disse Bóris. — Nada tenho a censurar-lhe. — Deixe-a lá. Bóris, está a ser diplomata... A palavra «diplomata» estava então em moda entre as crianças, com o significado particularíssimo que elas lhe davam. — Que maçada! — exclamou Natacha, com a voz trémula de irritação. — Porque é que ela se está sempre a meter comigo?... Tu não percebes nada — acrescentou, dirigindo-se a Vera— não admira: nunca gostaste de ninguém. Não tens coração, não passas de uma Madame de Genlis (era uma alcunha, com todo o ar de muito ofensiva, inventada por Nicolau)... Aquilo de que mais gostas é de más-criações para com os outros. Deixa-nos em paz e vai lá fazer-te coquette com o Berg. — Mas eu nunca andei a correr atrás de um rapaz diante de gente de fora... — Era isso que tu querias, não é verdade?, dizer-nos coisas desagradáveis — disse Nicolau. — Conseguiste que todos ficássemos zangados. Vamos embora para a nursery.E todos eles, como um bando de pássaros assustados, bateram as asas e despediram. — A mim é que vocês disseram coisas desagradáveis; eu, por mim, não disse coisas desagradáveis a ninguém — replicou Vera. — Madame de Genlis! Madame de Genklis! (Autor muito Iwo e traduzido na Rússia de então. (N, dos T.) — gritaram já detrás da porta as suas vozes alegres. A linda Vera, que acabara por irritar toda à gente, pôs-se a sorrir, e, completamente indiferente ao que lhe tinham dito, aproximou-se de um espelho e compôs a écharpe e o penteado. Ao ver a sua imagem no espelho, voltou. à serenidade e à frieza habituais. No salão falava-se ainda. — Ah, minha querida — dizia a condessa —, também na minha vida riem tudo é cor-de-rosa. Não vês que pelo caminho que levamos, a nossa fortuna não dura muito? E é tudo por causa do clube e da bondade dele. Julgas que descansamos quando vamos para o campo? Lá temos os espectáculos, as caçadas, e só Deus sabe que mais. Mas para que hei-de eu estar a falar de mim? E tu, como é que conseguiste tudo quanto querias? O que eu admiro, as vezes. Annette. é como tu podes, na tua idade, ir sozinha, por essas estradas, a Moscovo, a Petersburgo, procurar os ministros, a gente importante, e como tu sabes falar a todos! O que eu te, admiro! Conta, conta, como é que conseguiste? Não percebo nada. — Ali, minha filha — replicou a princesa Ana Mikailovna. Deus queira que nunca venhas a saber o que é ficar viúva, desamparada, com um filho nos braços a quem se quer doidamente. A idade pouco importa para a gente aprender — prosseguiu com altivez— Aprendi à minha custa. Quando tenho de me dirigir a qualquer graúdo, mando-lhe uma, palavrinha: «A princesa fulana deseja avistar-se com Sicrano ou Beltrano,» E meto-me num carro de praça e apresento-me uma, duas, três, quatro vezes, as precisas para conseguir o que pretendo. Pouco me importa o que eles possam pensar de mim. — Conta-me lá, a quem te dirigiste para pedir pelo Bóris? perguntou a condessa. — Aí o tens já oficial da Guarda, enquanto o meu Nicolau ainda não passou de junker. Não tenho ninguém a quem o recomendar. A quem te dirigiste? — Ao príncipe Vassili. Foi muito amável. Pôs-se logo à minha disposição. Falou ao imperador — disse a princesa Ana com um ar vitorioso, esquecendo por completo as humilhações a que tivera de sujeitar-se para alcançar os seus fins.— Que, tal está o príncipe Vassili? Envelheceu? — inquiriu a condessa. — Nunca mais o vi desde o tempo das nossas teatradas em casa dos Rumiantsov. Naturalmente já não se lembra de mim. Fazia-me a corte — acrescentou, sorrindo. — Está a mesma pessoa — replicou Ana Mikailovna — amável, atencioso. As grandezas não lhe fizeram perder a cabeça. «Lamento poder tão pouco, querida princesa», disse-me ele, «mas dê-me as suas ordens.» É o que te digo, é uma excelente pessoa e um bom parente. Tu bem sabes. Natália, o que o meu filho representa para mim. Nem eu sei o que seria capaz de fazer pela sua felicidade. Mas estou em circunstâncias tão penosas — continuou ela, num tom acabrunhado, e baixando a voz —, tão penosas, que me vejo actualmente numa situação terrível. Aquele infeliz processo em que eu me meti leva-me tudo quanto tenho, e não há maneira de andar para diante. Imagina que estou, como se diz, sem vintém, e não sei como hei-de arranjar dinheiro para pagar o equipamento do Bóris. — Puxou do lenço e pôs-se a chorar. — Preciso de quinhentos rublos, e tudo quanto tenho de meu, neste momento, é uma nota de vinte rublos. Aqui tens a minha situação... A minha única esperança, agora, é o conde Cirilo Vladimirovitch Bezukov. Se ele não vier em auxílio do afilhado — como sabes, é padrinho do Bóris — e não fizer alguma coisa por ele, tudo quanto eu consegui até agora não serve para nada: não poderei pagar o equipamento do rapaz. A condessa, de lágrimas nos olhes, ficou calada e pensativa. — Muitas vezes digo de mim para comigo, e talvez não seja bonito: ali está o conde Cirilo Vladimirovitch Bezukov, um homem que vive sozinho — e, tem urna fortuna imensa... Para que é que aquele homem vive? A vida para ele é um fardo, enquanto que o Bóris, coitado, agora é que principia a viver. — Naturalmente não deixa de se lembrar dele no testamento — disse a condessa. — Quem sabe lá, querida amiga! Estes ricaços, estes nababos, são tão egoístas! Em todo o caso estou disposto a ir visitá-lo com o Bóris e dizer-lhe francamente o que se passa. Pensem de mim o que quiserem, tanto se me dá. Nada tem importância para urna mãe quando está em risco o destino de filho. — Levantou-se para sair. — São duas horas, o vosso jantar é às quatro. Tenho tempo. E como mulher activa, da capital, que era, para quem () tempo é dinheiro. Ana Mikailovna mandou chamar o filho e saiu com ele. — Adeus, minha querida — disse para a condessa, que a acompanhou até àporta, — Deseja-me sorte — segredou-lhe, a ocultas do filho. — Vai visitar o conde Cirilo Vladimirovitch, minha cara?— inquiriu o conde, da sala de jantar, e aparecendo na antecâmara— Se ele estiver melhor, convide o Pedro em, meu nome. Ele já cá esteve em casa, já dançou com as pequenas. Convide-o em meu nome, sem falta, minha cara. Vamos a ver como se porta hoje o Taraska. Está farto de me dizer que o conde Orlov nunca deu um jantar como o que ele me está a preparar, [XV] — Meu querido Bóris — disse a princesa Ana Mikailovna para o filho quando a carruagem da condessa Rostov, que os tinha conduzido, chegou à rua atapetada de palha e penetrou no grande pátio do conde Cirilo Vladimirovitch Bezukov.— Meu querido Bóris — repetiu, enquanto retirava a mão da velha romeira de peles e a pousava no braço do filho, num gesto ao mesmo tempo tímido e enternecido— sê amável, mostra-te atencioso. O conde Cirilo Vladimirovitch sempre é teu padrinho e é dele que depende o nosso futuro. Lembra-te disso, meu querido, sê amável, como tu sabes, quando queres... — Se eu tivesse a certeza de que de tudo isto sairia alguma coisa além da humilhação que nos espera... — replicou o filho com frieza.— Mas, visto que lhe prometi, cumprirei a minha palavra; é por si que o faço. O criado, embora tivesse visto a quem pertencia a carruagem parada diante da escada, quis ver quem entrava, mas mãe e filho, sem se fazerem anunciar, penetraram, directamente, no vestíbulo guarnecido de espelhos, entre duas fileiras de estátuas perfiladas nos seus nichos. O criado, observando com um olhar significativo a velha romeira de peles, perguntou quem procuravam — as princesas ou o conde? —, e, ao verificar ser o conde, disse que, como Sua Excelência estava pior. Sua Excelência não recebia ninguém. — Vamos-nos embora — disse o filho em francês. — Meu amigo! — implorou a mãe, tocando-lhe de novo no braço, como se quisesse tranquilizá-lo e dar-lhe coragem. Bóris não disse nada, e sem despir o casacão olhou para a mãe com um arinquiridor. — Ouve — disse Ana Mikailovna para o criado, num tom insinuante —, eu bem sei que o conde Cirilo Vladimirovitch está muito mal.., e é precisamente por isso que eu aqui estou... Somos parentes... Não quero incomodar ninguém, meu amigo... Apenas desejava falar com o príncipe Vassili Serguievitch; sei que ele está aqui. Vai anunciar-nos, fazes favor. O criado, com toda a solenidade, voltou costas e puxou o cordão da campainha que tocava no andar superior. — A princesa Drubetskaia para o príncipe Vassili Serguievitch — gritou ele a um escudeiro, de calção, escarpins e sobrecasaca, que acorrera e se debruçava da balaustrada da escadaria. A princesa ajeitou as pregas do vestido de seda tingida, mirou-se no grande espelho de Veneza que pendia (Ia parede e pôs-se a subir a escada, altivamente, ao longo da passadeira, com os seus sapatos cambados. — Meu caro, prometeu-me — voltou ela para o filho, pegando-lhe no braço para encorajá-lo. O filho, de olhos baixos, seguia-a sem dizer palavra. Penetraram num salão que conduzia aos aposentos reservados para o príncipe Vassili. No momento em, que mãe e filho, tendo chegado ao centro da sala, se dispunham a perguntar a um velho criado que viera ao seu encontro qual o caminho a seguir, o batente de bronze de uma das portas girou e o príncipe Vassili, de samarra de veludo, só com uma condecoração, como era próprio da intimidade, apareceu, acompanhando um sujeito moreno, de muito bom aspecto. Era o famoso Dr. Lorrain, de Petersburgo. — É então positivo? — Meu príncipe, errare humanum est, mas... — volveu o médico, gaguejando e pronunciando o latim à francesa. — Está bem, está bem... Ao ver Ana Mikailovna e o filho, o príncipe Vassili despediu-se do médico e avançou em direcção a eles, calado, mas com uma expressão interrogadora. O filho deu-se conta de que, repentinamente, os olhos da mãe exprimiam uma profunda aflição, e um ligeiro sorriso lhe aflorou aos lábios. — É verdade, em que penosas circunstâncias nos havíamos de tornar a ver, príncipe... E como vai o nosso querido doente? inquiriu ela, sem parecer notar oolhar frio e ultrajante que ele lhe lançara. O príncipe Vassili olhou para ela e depois para Bóris, como quem interroga, sem saber o que há-de fazer. Bóris inclinou-se polidamente. O príncipe Vassili, sem corresponder ao seu cumprimento, voltou-se para Ana Mikailovna e respondeu-lhe com um aceno de cabeça e um momo de lábios nada optimista para o doente. — Será possível?! — exclamou Ana Mikailovna. — Oh, é terrível! — Não pode uma pessoa pensar numa coisa dessas... É o meu filho — acrescentou, apontando Bóris. — Quis vir agradecer-lhe pessoalmente. Bóris inclinou-se outra vez com toda a correcção. — Acredite, príncipe, um coração de mãe nunca mais esquecerá o que fez por nós. — Sinto-me feliz por lhe poder ter sido prestável, minha cara Ana Mikailovna — volveu-lhe o príncipe Vassili, compondo o jabot e pondo no seu gesto e na sua voz, em Moscovo, e na presença da sua protegida, não menos importância que em Petersburgo, na soirée de Ana Scherer, — Faça por ser um bom oficial e por se mostrar digno — — acrescentou, dirigindo-se a Bóris. — — Tenho muito prazer — Está de licença? — interrogou, num tom totalmente indiferente. — Aguardo ordens. Excelência, para me apresentar no meu novo regimento — replicou Bóris, sem mostrar quer ressentimento perante os modos abruptos do príncipe, quer desejos de prosseguir na conversa, irias respondendo com uma tão respeitosa compostura que o príncipe olhou para ele atentamente. — Está em casa de sua mãe? — Vivo em casa da condessa Rostov — tornou Bóris, sem se esquecer de acrescentar: — Excelência. — Ilia Rostov, que casou com Natália Chinchina — elucidou Ana Mikailovna. — Bem sei, bem sei — disse o príncipe Vassili, com a sua voz inexpressiva. — Nunca pude compreender como a Natália se decidiu a casar com esse burgesso! Uma pessoa estúpida e ridícula. E ainda por cima jogador, pelo que dizem. — Mas uma excelente pessoa, meu príncipe — acrescentou Ana Mikailovna, com um certo sorriso, como se ela fosse também de opinião que o conde Rostov era digno de um tal juízo, mas entendesse que as pessoas deviam mostrar indulgência para com um pobre velho. — Que dizem os médicos? — perguntou, depois de um breve silêncio, e afivelando, de novo, uma expressão de grande pesar no rosto cavado pelas lágrimas.— Há pouca esperança — volveu o príncipe. — E eu que tanto queria uma vez ainda agradecer a meu tio todas as atenções que ele tem tido para comigo e para com meu filho. É o seu afilhado — acrescentou, como se esta informação devesse causar uma grande alegria ao príncipe Vassili. Este franziu as sobrancelhas, sem dizer nada. Ana Mikailovna percebeu que ele receava ver nela uma rival na disputa da herança do conde Bezukov, e procurou logo tranquilizá-lo. — É apenas por muita estima e dedicação por meu tio – disse deixando cair, negligentemente, e com convicção, esta última palavra,— Conheço-lhe muito bem o carácter nobre e franco; mas ele não tem junto de si senão as princesas... Tão novas... Inclinou-se-lhe ao ouvido e acrescentou em voz baixa: — Ele já se preparou para a jornada, príncipe? Estas últimas horas são tão preciosas! Não há momento mais grave, é indispensável prepará-lo, visto estar tão mal. Nós, mulheres, príncipe — sorriu carinhosamente —, nós sabemos melhor do que ninguém falar destas coisas. É indispensável que eu o veja. Por mais penoso que isso seja para mim.., mas estou habituada ao sofrimento. O príncipe compreendia, e mais do que nunca, que, como na soirée de Ana Scherer, não lhe ia ser fácil desembaraçar-se de Ana Mikailovna. . Não acha que esta entrevista lhe seria muito penosa, querida Ana Mikailovna? — volveu ele.— É melhor esperarmos para amanhã. Os médicos previram uma crise. — Mas não se deve esperar em tais momentos, príncipe. Lembre-se que se trata da salvação da sua alma... Ah!, são terríveis, os deveres de um cristão... Uma porta dos aposentos interiores abriu-se e uma das sobrinhas do conde entrou, uma rapariga de aspecto triste e frio, com o tronco completamente desproporcionado em relação às pernas. O príncipe Vassili voltou-se para ela. — Então, como está ele? — Sempre na mesma. Não admira, com este barulho.., disse a princesa, olhando para Ana Mikailovna, como se ela fosse uma desconhecida. — Ah!, querida, não a conhecia! — exclamou Ana Mikailovna, com um sorriso feliz e avançando, ligeira, para a sobrinha do conde. — Acabo de chegar e estou às suas ordens para a ajudar e tratar de meu tio. Calculo o que deve ter sofrido —acrescentou com um ar compadecido. A princesa não disse nada, nem sequer sorriu, e voltou, logo a, desaparecer. Ana Mikailovna descalçou as luvas e instalou-se numa cadeira, em posição conquistada, fazendo sinal ao príncipe Vassili para sentar-se o lado dela. — Bóris! — disse para o filho, sorrindo-lhe.— Eu vou ver o conde, meu tio: tu, entretanto, meu amigo, procura o Pedro, e não te esqueças de lhe transmitir o convite dos Rostov. Querem-no lá para jantar. Naturalmente não vai, penso eu — acrescentou, para o príncipe, — Porque não? — observou este, que não parecia lá muito bem disposto.— Ficar-lhe-ei muito grato se me desembaraçar deste jovem, — Está aqui instalado. O conde ainda não pediu uma única vez para o ver. Encolheu os ombros. Um escudeiro acompanhou Bóris, fazendo-o descer a escada e conduzindo-o depois por outra aos aposentos de Pedro Kirilovitch, [XVI] Pedro, que não conseguira decidir-se por uma carreira em Petersburgo, havia sido, de facto, recambiado para Moscovo por causa do seu mau comportamento. A história que se contava em casa dos Rostov era exacta. Pedro tinha tornado parte na cena da amarração do polícia ao lombo do urso. Regressara havia apenas breves dias e, como era seu costume, instalara-se em casa do pai. Embora calculasse que a história já seria conhecida em Moscovo e que as senhoras da roda do pai, sempre mal dispostas para com ele, já teriam aproveitado a ocasião para indispor o conde consigo, nem por isso deixara de se apresentar nos aposentos do pai assim que chegara. Ao entrar no salão, quartel-general das princesas, cumprimentou as senhoras que estavam a bordar enquanto uma delas lia um livro em voz alta. Eram três. A mais velha era uma rapariga severa e de aspecto cuidado, de tronco muito alto, a mesma que aparecera a Ana Mikailovna; essa era a leitora; as duas mais novas, frescas e bonitas, tão parecidas que apenas se distinguiam pelo sinalzinho que uma delas tinha sobre o lábio e que a tornava ainda mais bonita, bordavam ao bastidor. Pedro foi recebido como um morto que ressuscita ou como um pestífero. A mais velha interrompeu a leitura e, sem dizernada, fitou-o de olhos espavoridos; a segunda, a que não tinha sinal, reproduziu exactamente a expressão da irmã; a mais nova, de feitio jovial e trocista, mergulhou a cabeça no trabalho para esconder o riso que lhe iria provocar a divertida cena com que já contava. Levantou o bastidor e inclinou-se para o bordado, como se estivesse absorta no seu trabalho, mal podendo suster o riso. — Bom dia, prima — disse Pedro. — Já não me conhece? — Conheço-o de mais, conheço-o de mais, sim, de mais. — Como está o conde? Posso vê-lo? — continuou, embaraçado, como sempre, mas sem se perturbar. — O conde está mal física e moralmente, e, pelo que sei, o Pedro tem feito o possível para lhe agravar os seus padecimentos morais. — Posso vê-lo? — repetiu Pedro. — Hum... Se o quer matar, sim; se o quer matar, então, faça favor. Olga, vai ver se o caldo do tio está pronto; estamos quase na hora — acrescentou ela, mostrando com isso a Pedro que não faziam outra coisa senão aliviar os sofrimentos do pai, enquanto ele só servia, evidentemente, para o desassossegar. Olga saiu. Pedro olhou as duas irmãs e disse, pedindo licença para se retirar: — Então vou-me embora. Quando eu puder vê-lo, espero que me mandem chamar. Saiu e o riso meio abafado da mais nova ressoou-lhe nas costas. No dia seguinte, o príncipe Vassili chegava e instalava-se em casa do conde. Mandou chamar Pedro e disse-lhe: — Meu caro, se se vai comportar aqui como em Petersburgo, acabará mal, é tudo quanto tenho a dizer-lhe. O conde está muitíssimo doente: deve evitar vê-lo por completo. A partir desse momento nunca mais ninguém pensou em Pedro, que passava os dias nos seus aposentos, no andar de cima. Quando Bóris entrou no quarto. Pedro passeava de um lado para o outro, detendo-se, de vez em quando, num dos ângulos da sala, gesticulando ameaçadoramente diante da parede, como se desafiasse qualquer inimigo invisível, e lançando olhares severos por cima das lunetas. Depois, retomava a sua caminhada, pronunciava palavras incompreensíveis, encolhia os ombros, agitava os braços. — A Inglaterra está liquidada — articulava ele, franzindo as sobrancelhas, e apontando fosse o que fosse com o dedo.— O Senhor Pitt, como traidor da nação edo direito dos povos, está condenado a... Não pôde concluir a sentença que condenava Pitt. Julgava-se Napoleão e na companhia do seu herói atravessava já o perigoso Pas de Calais, a caminho da conquista de Londres, quando viu entrar um jovem e garboso oficial. Calou-se. Tinha deixado de ver Bóris ia este nos seus catorze anos, e não se lembrava realmente dele. Apesar disso, travou-lhe do braço, com os seus modos atenciosos e espontâneos, sorrindo-lhe amistosamente, — Lembra-se de mim? — perguntou Bóris, serenamente, e com um sorriso gracioso. — Vim com minha mãe visitar o conde, mas, segundo parece, ele não está bem de saúde. — Sim, digamos, está doente. Estão sempre a incomodá-lo replicou Pedro, procurando lembrar-se donde conhecia aquele mancebo. Bóris via perfeitamente que Pedro o não reconhecia, mas não se achava na obrigação de lhe dizer quem era. E fitou-o sem o menor embaraço. — O conde Rostov pede-lhe que vá hoje jantar a casa dele — disse, após uma pausa assaz longa e algo embaraçosa para Pedro. — Ah, o conde Rostov! — exclamou Pedro muito contente.— Então é o Ilia, o filho do conde. E eu que o não tinha reconhecido no primeiro momento. Lembra-se quando íamos passear ao Monte dos Pardais (Passeio célebre em Moscovo. (N, dos T.) com Madame Jacquot... Já lá vai há muito. — Está enganado — disse Bóris, sem pressa, e com um sorriso protector e um pouco trocista. — Sou Bóris, o filho da princesa Ana Mikailovna Drubetskaia. Ilia é o Rostov pai. O filho chama-se Nicolau. E não conheço qualquer Madame Jacquot. Pedro abanou a cabeça e gesticulou, como se quisesse enxotar moscas ou abelhas importunas. — Ah!, que estou eu a dizer? Confundo tudo. Há tantos parentes em Moscovo! Já sei, o Bóris.., perfeitamente. Até que enfim que estamos de acordo. Ora, diga- me, que pensa da expedição de Bolonha? Não acha que os Ingleses ficarão em maus lençóis se Napoleão conseguir atravessar o canal? Na minha opinião, a expedição é coisa viável. Desde que Villeneuve não faça alguma asneira. Bóris não sabia absolutamente nada acerca da expedição de Bolonha; não lia os jornais, e era a primeira vez que ouvia falar em Villeneuve. — Nós, aqui, em Moscovo, preocupamo-nos mais com jantares e mexericos do que com política — disse ele no seu tom sereno e escarninho. — Nada sei a esserespeito, nem tenho opinião sobre o assunto. Moscovo é uma cidade que presta sobretudo atenção aos escândalos. Neste momento não se fala noutra coisa senão de si e do conde. Pedro sorria, e o seu sorriso bom parecia traduzir o receio de que o interlocutor se descaísse com qualquer palavra de que pudesse vir a arrepender- se. Mas Bóris falava distintamente, com nitidez e secura, fitando-o nos olhos. — Moscovo não tem mais que fazer senão coscuvilhar — continuou. — Toda a gente está morta por saber a quem é que o conde vai deixar a sua imensa fortuna, embora muito bem possa acontecer que ele cá fique para nos enterrar a todos, e faço votos para que assim seja, — Sim, tudo isto faz tristeza — murmurou Pedro.— Muita tristeza. Ainda não deixara de temer que o oficial, estouvadamente, abordasse qualquer conversa embaraçosa para ele. — Como deve calcular — continuou Bóris, corando ligeiramente, mas sem alterar o seu tom e o seu semblante reservados —, como deve calcular, o que toda a gente espera de um ricaço é vir a receber dele qualquer coisa. «Ora aí está», disse Pedro com os seus botões. — E era precisamente isso que eu lhe queria dizer, para evitar equívocos: que está muito enganado se nos considera, a minha mãe e a mim, na categoria dessa gente. Nós somos bastante pobres, mas posso garantir-lhe, pelo menos no que me diz respeito, que é precisamente porque seu pai é rico que eu me não considero seu parente, e que tanto eu como minha mãe nunca lhe pediremos seja o que for, nem nada aceitaremos dele. Levou seu tempo antes que Pedro compreendesse, mas assim que o conseguiu deu um pulo do divã, pegou em Bóris por debaixo do braço, com a sua vivacidade de gestos e a sua habitual maneira desajeitada, e, corando ainda mais que o seu interlocutor, pôs-se a dizer-lhe, num misto de pudor e embaraço: — Que está a dizer? Será possível que... Quem é que seria capaz de pensar... Eu sei perfeitamente... Mas Bóris mais uma vez lhe cortou a palavra. — Estou satisfeito por ter-lhe dito tudo isto. Naturalmente não lhe foi muito agradável de ouvir, desculpe-me — acrescentou, para tranquilizar Pedro, quandoquem devia esperar ser tranquilizado era ele próprio.— Mas espero que o não tenha ofendido. Tenho por princípio usar de franqueza... Que resposta quer que eu dê? Sempre vai ao jantar dos Rostov? Bóris, depois de assim se ter desembaraçado de um penoso dever e de ter transferido para outrem a falsa situação em que se encontrava, tomou-se muito amável, como era seu costume. — Ouça cá — disse Pedro, tranquilizado— Você é uma pessoa extraordinária. O que acaba de me dizer é bonito, muito bonito. Claro que me não conhece. Há tantos anos que nos não vemos.., desde crianças... Talvez suponha que eu... Sim, compreendo-o perfeitamente. Não teria feito uma coisa dessas, não teria tido coragem, mas acho muito bem. Gostei muito de o conhecer. É curioso — acrescentou, após uma breve pausa e sorrindo— o que foi capaz de pensar de mim! — Pôs-se a rir.— Mas que importância tem isso? Havemos de ter ocasião de nos conhecermos melhor, não é verdade? — Apertou-lhe a mão.— Fique sabendo que eu ainda não pus os pés no quarto do conde. Não me mandou sequer chamar... Tenho pena dele... Mas que hei-de eu fazer? — Acha que Napoleão será capaz de levar a cabo a travessia? — perguntou Bóris, com um sorriso. Pedro disse de si para consigo que Bóris queria mudar de conversa, e, fazendo- lhe a vontade, pôs-se a descrever-lhe, pormenorizadamente, as vantagens e as dificuldades da tentativa de Bolonha. Um criado veio procurar Bóris, mandado pela princesa, a qual ia partir. Pedro prometeu aparecer no jantar, e, para mais estreitar os seus laços com Bóris, apertou-lhe energicamente a mão. Fitando-o amistosamente através dos cristais das suas lunetas... Depois de Bóris sair continuou por muito tempo a passear no quarto, já não a rachar, de alto a baixo, inimigos invisíveis, mas sorrindo à lembrança daquele rapaz amável, ao mesmo tempo inteligente e resoluto. Como é vulgar com a gente muito moça, e especialmente se vive isolada. Pedro sentia por aquele rapaz um enternecimento sem razão de ser, prometendo de si para consigo fazer dele um verdadeiro amigo. O príncipe Vassili acompanhava a princesa. Esta levava o lenço nos olhos e tinha o rosto coberto de lágrimas. — É horrível, é horrível! — exclamava ela.— Mas hei-de cumprir o meu dever custe o que custar. Hei-de vir tomar conta dele. Não o podem deixar neste estado.Cada minuto que passa é tempo perdido. Não sei porque estão à espera as princesas. Que Deus me inspire a maneira de o preparar... — Adeus, meu príncipe, que Deus o ajude!... — Adeus, minha amiga — replicou o príncipe Vassili, ao deixá-la. — Oh, que situação terrível — disse a mãe para o filho, ao subirem para a carruagem.— Quase já não conhece ninguém. — Não chego a compreender, mãe, quais são as relações dele com o Pedro — observou o filho. — O testamento nos há-de dizer, meu amigo. E o nosso destino depende disso... — Mas, o que é que a leva a pensar que ele nos deixa alguma coisa? — Ah, meu filho! Ele é tão rico e nós somos tão pobres! — Isso não é uma razão, mãe... — Ai, meu Deus, meu Deus, o estado em que ele está! — suspirava ela. [XVII] Depois que Ana Mikailovna e o filho saíram para se dirigir a casa do conde Cirilo Vladimirovitch Bezukov, a condessa Rostov ficou por muito tempo sozinha, de lenço nos olhos. Por fim, tocou a campainha. — Que andas tu a fazer? — disse ela, irritada, para a criada, que tinha tardado alguns minutos a aparecer. — Não queres fazer as tuas obrigações? Nesse caso, posso arranjar-te outra casa. A condessa tão perturbada ficara com as aflições e a humilhante pobreza da amiga que estava de mau humor, e quando se irritava falava sempre assim à pobre rapariga. — Peço desculpa, minha senhora. — Vai dizer ao senhor conde que venha cá. O conde, no seu passo claudicante, veio ao encontro da mulher, com o ar habitual de quem é surpreendido a fazer qualquer coisa mal feita. — Oh, condessinha! Aquilo é que é um sauté de galinholas au Madère que nós lá temos, minha querida! Já o provei. Fiz muito bem em dar mil rublos ao Taraska. Vale-os bem!Sentou-se ao lado da condessa, apoiando os cotovelos nos joelhos, os cabelos brancos em desordem. — Que deseja, condessa? — Olhe lá, querido... Que nódoa é essa? — disse ela, apontando-lhe o colete.— Naturalmente, foi o sauté — acrescentou, sorrindo.— É que preciso de dinheiro. Tinha assumido uma expressão tristonha. — Ah, condessinha!... O conde deu-se pressa em ir buscar a carteira. — Preciso de muito dinheiro, conde; de quinhentos rublos. E, puxando do seu lencinho de cambraia, pôs-se a esfregar o colete do marido. — É já, é já. Eh lá! Quem é que está aí? — gritou, no tom de um homem que sabe que basta chamar para logo acorrerem ao seu apelo. — Manda cá o Mitenka. Mitenka, o jovem de boa família a educar em casa do conde, e, que estava à testa de todos os seus negócios, entrou na sala calmamente. — Ouve cá — disse o conde para o jovem, que se aproximou em atitude respeitosa. — Traz-me... — Ficou um momento a pensar. — Sim, setecentos rublos. Mas, toma cuidado, não me tragas dessas notas rasgadas e sujas, como da outra vez. Quero notas novas, são para a condessa. — Sim. Mitenka, que sejam limpas — apoiou a condessa, com um profundo suspiro. — Quando precisa desse dinheiro. Excelência? — perguntou Mitenka.— É bom que Sua Excelência saiba que... Mas não se aflija — acrescentou, notando que a respiração do conde se tornava opressa, sinal de que principiava a encolerizar-se. — Tinha-me esquecido, precisamente... Quer já essa importância? — Quero, quero, trá-la. É para a dares à condessa. — Isto é que é um tesouro, este Mitenka — prosseguiu ele, sorrindo, assim que o rapaz saiu.— Não me venham dizer que é impossível. Isso é que eu não posso tolerar. Tudo é possível. — Ah, o dinheiro, conde, o dinheiro, as aflições que o dinheiro causa neste mundo! — exclamou a condessa. — E eu preciso muito deste dinheiro. — Pois, sim, condessinha, toda a gente sabe que é uma perdulária — disse o conde; e, depois de beijar a mão da mulher, retirou-se para o seu gabinete. Quando Ana Mikailovna voltou de casa de Bezukov, já a condessa tinha em seu poder o dinheiro, todo em notas novas, em cima de uma mesa, debaixo do lenço deassoar, e Ana Mikailovna viu perfeitamente que a amiga estava preocupada. — Então, minha amiga? — inquiriu a condessa. — Ah!, que situação horrível a dele! Está irreconhecível. E tão mal, tão mal! Estive junto dele apenas uns momentos, e não lhe pude dizer uma única palavra... — Annette, por amor de Deus, não digas que não! — exclamou, de súbito, a condessa corando muito, o que era estranho naquele rosto magro e grave, nada novo já, e tirou o dinheiro que tinha debaixo do lenço. Ana Mikailovna compreendeu imediatamente de que se tratava e debruçou-se para beijar a amiga no momento propício. — Aqui tens, da minha parte, para o uniforme do Bóris. Ana Mikailovna abraçou-se então a ela a chorar. A condessa também chorou. Ambas choravam, porque ambas estavam de acordo e também porque eram pessoas de bom coração e excelentes amigas de infância e se viam obrigadas a preocupar-se com essa coisa desprezível que é o dinheiro e ainda também porque já não eram novas... Mas as suas lágrimas não eram amargas... [XVIII] A condessa Rostov estava sentada no salão, no meio de suas filhas, já entre um grande número de convidados. O conde tinha levado consigo os homens para mostrar-lhes, no gabinete, a sua colecção de cachimbos turcos. De vez em quando vinha cá fora perguntar se ela ainda não tinha chegado. Estava-se à espera de Maria Dmitrievna Akrosimova, conhecida na sociedade por o terrível dragão, uma senhora a quem não distinguiam nem a fortuna nem os títulos, mas a inteireza e a franca simplicidade de maneiras. Maria Dmitrievna era conhecida da família imperial, e toda Moscovo e toda Petersburgo a conheciam igualmente, e as duas cidades, posto a admirassem, nas costas dela zombavam do seu ar rude, contando anedotas a seu respeito. Toda a gente, sem excepção, a estimava e a temia um pouco. No gabinete, cheio de fumo, a conversa tinha por assunto guerra, que um manifesto acabava de anunciar, e o serviço de recrutamento. Ainda ninguém tinha lido esse manifesto, mas toda a gente sabia da sua existência. O conde estavasentado numa otomana, entre dois fumadores, que conversavam. Quanto a ele, não fumava nem falava. Voltando a cabeça ora para um lado ou para o outro, olhava para os interlocutores com viva satisfação e ouvia o que diziam aquelas duas criaturas que ele pusera em contacto. Um deles era civil, de rosto magro, escanhoado, bilioso e cheio de rugas. Pendia já para a velhice, conquanto vestisse como um rapaz à moda. Sentava-se à turca na otomana, como se estivesse em sua própria casa, e, com a boquilha de âmbar ao canto da boca, lançava rolos de fumo, de tempos a tempos, piscando os olhos. Era um velho celibatário. Chinchine de nome, primo da condessa, um má- língua, como se dizia nos salões moscovitas. Conversando, parecia conceder uma alta distinção ao seu interlocutor. Este era um oficial da Guarda, rosado e fresco, bem apertado, bem penteado e irrepreensível na sua farda. De cachimbo na bonita boca, soltava ligeiros rolos de fumo, por entre os lábios rosados, que subiam no ar em pequenos círculos. Era o tenente Berg, do regimento Seminovski, actual camarada de Bóris, aquele a quem Natacha chamara, para irritar a irmã, o noivo da Vera. O conde tinha-se sentado entre os dois e ouvia-os atentamente. A ocupação de que ele mais gostava, à parte o boston, que adorava, era precisamente o papel de auditor, sobretudo quando conseguira defrontar dois tagarelas. — He, como é isso, meu mui venerável Afonso Karlitch — dizia Chinchine, trocista, misturando as expressões o mais tipicamente russas com as frases francesas mais rebuscadas. — Conta tirar rendimentos do Estado, quer tirar lucros do seu esquadrão? — Não. Piotre Nikolaitch, apenas queria mostrar-lhe que a cavalaria oferece muito menos vantagens que a infantaria. Considere a minha posição. Piotre Nikolaitch... Berg falava sempre com precisão, num tom calmo e cortês. Tudo quanto dizia lhe tocava a ele próprio de perto. È era capaz de estar calado horas sem se enfadar com isso nem causar aos outros o mínimo enfado. Mas desde que a conversa o tocasse pessoalmente, logo ele intervinha com exuberância e visível prazer. — Considere a minha posição. Piotre Nikolaitch. Se eu estivesse na cavalaria não teria mais de duzentos rublos de três em três meses, mesmo no posto de tenente, e actualmente tenho duzentos e trinta... — Um alegre e afectuoso sorrisoacompanhava as suas palavras, e olhava para Chinchine e para o conde como se fosse a própria evidência os seus próprios êxitos, dele. Berg, serem como que a preocupação suprema de toda a humanidade. — Além disso. Piotre Nikolaitch, passando para a Guarda — continuou ele —, estou mais em evidência e as vagas são em muito maior número na infantaria. E, depois, pode calcular como eu me arranjo com os duzentos e trinta rublos. Pois fique sabendo que faço economias e ainda mando dinheiro a meu pai — disse, entre duas fumaças. — Aí é que está a habilidade— O Alemão malha o milho em cima do cabo de um machado, como diz o provérbio. (Provérbio russo intraduzível que se refere à, avareza. (N, dos T) — disse Chinchine, piscando o olho ao conde e mudando a posição do cachimbo. O conde soltou urna gargalhada. Alguns dos convidados, verificando que Chinchine era a alma da conversa, aproximaram-se para ouvir. Berg, que não dava nem pela zombaria nem pela frieza que acolhiam as suas considerações, continuava a historiar que, graças à sua passagem pela Guarda, já ganhara um número sobre os seus camaradas de promoção; que, em tempo de guerra, um comandante de esquadrão pode morrer e que ele, na sua qualidade de mais antigo, muito facilmente poderia vir a substitui-lo; que no seu regimento toda a gente o adorava, e que o pai estava muito contente com ele. Berg deliciava-se claramente com todas estas revelações e parecia não passar-lhe sequer pela cabeça que os demais pudessem ter também os seus interesses. A verdade, porém, é que tudo quanto ele dizia tinha um ar tão decente e tão gracioso, era tamanha a candura do seu egoísmo juvenil que os seus interlocutores se sentiam desarmados. — Bom, bom, meu filho, garanto-lhe que tanto na infantaria como na cavalaria, seja onde for, o seu futuro está garantido, isso prometo-lhe eu — disse Chinchine, batendo-lhe nas costas e erguendo-se da otomana, Berg sorriu com um ar feliz. O conde, e com ele os seus hóspedes, penetraram no salão. Estava-se naquele momento que antecede os jantares de cerimónia em que os convidados, à espera da hora dos zakusski, não se embrenham em grandes conversas, sentindo-se obrigados a agitar-se e a não estarem calados, para assim darem a impressão de não terem pressa de ir para a mesa. Os donos da casa lançavam, de vez em quando, o seu olhar para a porta, e entreolhavam-se depois.Por sua vez, os convidados procuravam discernir nesses olhares quem se aguardava e o que ainda se aguardava: seria alguma importante pessoa de família retardatária ou alguma iguaria que ainda não estivesse pronta? Pedro chegara um pouco antes de começar o jantar e, desajeitado, foi sentar- se, no meio do salão, na primeira cadeira que se lhe deparou, embaraçando o caminho a toda a gente. A condessa quis obrigá-lo a falar, mas ele lançou um olhar ingénuo em tomo de si por detrás das lentes, como se procurasse alguém, e não respondeu às suas investidas senão por monossílabos. Era incomodativo e só ele não compreendia que o estava a ser. A maior parte dos convidados, que tinha sabido da sua história com o urso, observava, curiosamente, aquele rapagão, corpulento e pacífico, perguntando cada um a si mesmo como é que um simplório daqueles, gordo e modesto, podia ter sido o autor da proeza em que um polícia se vira envolvido. — Só agora chegou? — inquiriu a condessa. — Sim, minha senhora — respondeu ele, distraidamente. — Não viu ainda meu marido? — Não, minha senhora. — Pôs— se a rir sem saber porquê. — Ouvi dizer que esteve há pouco tempo em Paris? É interessante, não é? — Muito interessante. A condessa trocou um olhar com Ana Mikailovna, que percebeu aquela pedir- lhe que tomasse conta do rapaz. Sentando-se junto dele, pôs-se a falar-lhe do pai. Mas ele, como acontecera com a condessa, apenas lhe respondia por monossílabos. Os convidados estavam muito ocupados. Ouviam-se fragmentos de frases: «Os Razumovski...», «Foi encantador...», «É muita bondade da sua parte...», «A condessa Apraksine». A condessa levantou-se e entrou no grande salão. — Maria Dmitrievna? — ouviu-se perguntar. — É, é ela mesma — respondeu uma grossa voz de mulher, e nesse mesmo momento Maria Dmitrievna entrava na sala. Todas as raparigas, e até as senhoras, à excepção das mais idosas, se levantaram. Maria Dmitrievna deteve-se no limiar da porta. Grande e maciça, a cabeça erguida, onde os caracóis brancos mostravam bem rondar ela a casa dos cinquenta, envolveu num olhar toda a assembleia, e, como se quisesse arregaçá- las, arranjou, sem pressa, as largas mangas do seu vestido. Maria Dmitrievna exprimia-se sempre em russo.— As minhas felicitações à festejada e aos seus filhos — disse na sua voz alta e grave, que dominava todos os demais ruídos. E tu, velho pecador — acrescentou, dirigindo-se ao conde, que lhe beijava a mão. — Hem! Aborreces-te em Moscovo? Não se pode arranjar aqui uma boa caçada? Nada a fazer, meu velho, enquanto estes pintainhos não crescerem... — E apontava para as filhas do conde. — Quer queiras quer não, tens de lhes arranjar casamento. — Então, meti cossaco! (Chamava sempre a Natacha meu cossaco.) — Acariciou com a mão Natacha, que se aproximou, para lha beijar com um ar desembaraçado e alegre.— Bem sei que és uma peste, mas eu gosto de ti. Retirou de uma enorme saca uns brincos de âmbar, em forma de pêra, e, dando-os a Natacha, radiante com o seu aniversário e rubra de satisfação, voltou- lhe instantaneamente as costas para dirigir-se a Pedro. — Eh, eh!, meu caro amigo!, vem cá — disse ela numa voz que procurava tornar suave e delicada.— Vem cá, meu caro... E arregaçou ainda mais as mangas do vestido num ar terrível. Pedro aproximou-se, olhando-a com candura através das lentes das suas lunetas. — Aproxima-te, aproxima-te, meu caro! Mesmo a teu pai só eu era capaz de lhe dizer— a verdade, quando ele estava disposto a ouvi-la, e Deus queira que tu, tu também a entendas, Calou-se. Todos se calaram igualmente; aguardavam o que ia acontecer, sentindo que aquilo não passava de preâmbulo. — Um lindo menino, não há dúvida! Um lindo menino!... O pai no seu leito de agonia, e ele a fazer loucuras, a obrigar um polícia a andar a cavalo num urso. É uma vergonha, meu filho, uma vergonha! Farias bem melhor se fosses para a guerra. Voltou-lhe as costas e deu a mão ao conde, que mal podia suster o riso. — Bom, suponho que são horas de irmos para a mesa — concluiu Maria Dmitrievna. O conde e Maria Dmitrievna abriram a marcha atrás deles seguia a condessa, acompanhada do coronel de hússares, pessoa de acarinhar, porque era na sua companhia que Nicolau regressava ao seu regimento. Ana Mikailovna ia pelo braço de Chinchine. Berg ofereceu o dele a Vera. Júlia Karaguine, toda sorridente, acompanhava Nicolau. Os outros pares vinham depois, estendendo-se pelo salão além, e atrás de todos, um pouco à parte, as crianças, os preceptores e asgovernantas. Os lacaios deram-se pressa, houve um rumor de cadeiras e uma orquestra principiou a tocar no momento em que os convivas se sentavam. As notas da orquestra particular do conde misturavam-se ao tilintar das facas e dos garfos, ao ruído das conversas, às idas e vindas discretas dos criados. À cabeceira da mesa sentava-se a condessa, dando a direita a Maria Dmitrievna, e a esquerda a Ana Mikailovna e às demais senhoras. Na outra cabeceira estava o conde, que tinha à sua esquerda o coronel de hússares e à direita Chinchine e outros convidados masculinos. De um dos lados da grande mesa ficava a mocidade já crescida: Verá, ao lado de Berg. Pedro, com Bóris; do outro lado, as crianças, os preceptores, as governantas. O conde via a mulher, com a sua touca alta, de fitas azuis, através dos cristais das garrafas e das taças cheias de fruta, e ia enchendo os copos dos vizinhos, sem esquecer o seu próprio. A condessa, igualmente oculta por detrás dos ananases, sem descuidar dos seus deveres de dona de casa, trocava a sua piscadela de olhos com o marido, cujas calvície e, face rubicunda lhe pareciam particularmente vermelhas em contraste com o cabelo branco. No lado das senhoras havia uma vozearia bem ritmada; nos dos homens, as vozes iam-se tornando cada vez mais ruidosas, principalmente a do coronel de hússares, que, cada vez mais corado, tanto comia e tão bem que o conde o exibia como exemplo aos demais convidados. Berg, com um enternecido sorriso, falava a Vera do amor, esse sentimento não deste mundo, mas do céu. Bóris ia dizendo ao seu novo amigo Pedro o nome dos convivas, enquanto trocava olhares com Natacha, sentada diante dele. Pedro falava pouco, examinando todas estas caras novas, e comia abundantemente. Desde as duas qualidades de sopa, de que ele preferiu a de tartaruga, e dos kulebiaks (Espécie de tartaruga cozida. (N, dos T), até às galinholas, de todos os pratos e de todos os vinhos que o chefe de mesa, com a garrafa envolta num guardanapo, parecia extrair misteriosamente do ombro do seu vizinho de mesa, murmurando: «Madeira seco», «Húngaro» ou «Vinho do Reno», de tudo se serviu. Pedro pegava no primeiro dos copos que lhe vinham à mão, de entre os quatro ornados com o monograma do conde, em fila diante de cada talher, e despejava-o, gulosamente, aumentando, de momento a momento, de afectuosidade para com os seus vizinhos de mesa. Diante dele. Natacha olhava para Bóris como as garotas de treze anos costumam olhar para os rapazes que acabam de as beijar e de quem elas se julgam apaixonadas. Por vezes até o próprio Pedro recebia dela um olhar desse género, e esse olhar de raparigarisonha e animada dava-lhe a ele vontade de rir sem que soubesse porquê. Nicolau estava longe de Sónia, junto de Júlia Karaguine, e com ela se entretinha a conversar com o mesmo sorriso constrangido. Sónia sorria para todos, mas a verdade era estar visivelmente consumida de ciúme: ora empalidecia, ora corava, fazendo o possível para conseguir perceber o que Nicolau e Júlia estavam dizendo. A preceptora lançava em tomo de si olhares inquietos, pronta a cair a fundo sobre o primeiro que se lembrasse de se meter com as crianças. O preceptor alemão procurava gravar na memória toda a espécie de pratos, de sobremesas e de vinhos que iam sendo servidos para depois poder falar em tudo isso pormenorizadamente na carta que enviaria para a Alemanha. Sentia- se mortificado quando o chefe de mesa, com a, garrafa envolta no guardanapo, passava por ele sem o servir. Franzia as sobrancelhas, fingindo não querer vinho, mas a verdade é que se sentia ofendido por ninguém compreender que o vinho lhe era necessário, não para o desalterar ou para lhe satisfazer a gula, mas apenas pelo desejo bem mais sério de se instruir. [XIX] No sector dos homens a conversa ia-se animando cada vez mais. O coronel contava que o manifesto da declaração de guerra já era conhecido em Petersburgo e que um exemplar, que ele próprio vira, fora expedido pelo correio ao comandante-chefe. — E por que diabo é que nós havemos de declarar guerra a Bonaparte? — disse Chinchine.— Ele já abateu as fumaças à Áustria. Receio que tenha chegado agora a nossa vez. O coronel era um alemão sólido, de grande estatura, aspecto sanguíneo, sem dúvida bom militar e bom patriota. As palavras de Chinchine magoaram-no. — Porquê, meu caro senhor? — tornou ele, com o seu sotaque estrangeiro — Porquê? Aí está o que o imperador sabe muitíssimo bem. No seu manifesto, lá diz que não pode continuar indiferente aos perigos que ameaçam a Rússia e que a segurança do império, a sua dignidade e a santidade das alianças... Acentuou particularmente esta última palavra, como se nela estivesse a chavedo problema. E com a sua impecável memória de personalidade oficial repetiu as palavras do princípio do manifesto: «E o desejo do imperador, o seu único e invariável objectivo — que é o restabelecimento da paz na Europa assente em bases sólidas —, decidiram-no a dar ordens a uma parte do exército para atravessar a fronteira e a realizar esta nova aliança para dar cumprimento aos seus objectivos.» — E aqui tem porquê, meu caro senhor! — concluiu ele, levando o copo à boca cheio de compunção, enquanto com os olhos pedia a aprovação do conde. — Conhece o provérbio: «Erema. Erema, melhor era que ficasses em casa a fiar a lã»? (Provérbio russo, que quer dizer que o melhor é não nos metermos na vida alheia, (N, dos T.) — disse Chinchine, franzindo as sobrancelhas e sorrindo. — Isso calha mesmo bem. Suvorov já foi apanhado e batido em toda a linha. E onde estão os nossos Suvorovs hoje em dia? Dê-me licença que lhe pergunte.— Chinchine estava sempre a transitar do russo para o francês. — Temos de nos bater até à última gota de sangue — disse o coronel, deixando cair a mão em cima da mesa — e morrer pelo nosso imperador. E assim deve ser. Mas nada de raciocínios, raciocinar o menos possível. — Engrossou a voz, especialmente ao pronunciar a palavra menos, e voltando-se de novo para o conde.— É assim que nós, velhos hússares, encaramos as coisas em última instância. E o senhor, que pensa o senhor disto, jovem hússar? — prosseguiu, dirigindo-se a Nicolau, que, ao perceber que se falava da guerra, esquecera a interlocutora, todo ouvidos. — Penso exactamente da mesma maneira — replicou Nicolau, que se entusiasmou e se pôs a mexer no prato e a deslocar os copos de forma tão brusca e incoerente que dir-se-ia correr naquele momento um grande perigo... Estou convencido de que os Russos só têm duas soluções: vencer ou morrer — continuou com o sentimento, em que todos os outros comungavam, de que aquilo mesmo, que já fora dito, ele o estava a exprimir por palavras demasiado enfáticas e pomposas, e isso lhe causava uma espécie de embaraço. — É muito bonito o que acaba de dizer — observou Júlia, que estava sentada a seu lado. Sónia pôs-se a tremer e corou até às orelhas. Até mesmo a nuca e os ombros se lhe ruborizaram ao ouvir Nicolau falar assim. Pedro prestara atenção às considerações do coronel, e aprovava-as com a cabeça.— Ora aí está uma coisa acertada — observou. — É verdade, um autêntico hússar, meu rapaz — exclamou ainda o coronel, batendo de novo na mesa. — Que barulho é esse que vocês para aí estão a fazer? — perguntou, do outro lado da mesa, a voz grave de Maria Dmitrievna. — Que estás tu a bater na mesa? — disse ela ao hússar. Contra quem é que estás tão exaltado? Até parece que tens diante de ti os Franceses. — O que eu estou a dizer é o que é — retrucou o coronel, sorrindo. — É verdade, um autêntico hússar, meu rapaz! — exclamou ainda — Tenho um filho que vai para a guerra. Maria Dmitrievna; sim, vai para a guerra. — E eu, que tenho quatro filhos no exército, não estou a chorar por isso. Deus é grande. Podemos morrer tranquilamente na nossa cama e nada nos acontecer no campo de batalha — disse Maria Dmitrievna, elevando a sua grossa voz, que chegava, sem esforço, de extremo a extremo da mesa. — E é verdade. E a conversa lá continuou, a das senhoras a um lado, a dos homens a outro. — Aposto que não és capaz de perguntar — disse a Natacha o irmãozito. — Aposto! — Vais ver — respondeu Natacha. O rosto animou-se-lhe, repentinamente de uma audácia rebelde e resoluta. Levantou-se, fez um sinal com os olhos a Pedro, que estava diante dela, convidando-o a escutar, e dirigiu-se à mãe: — Mãe! — lançou ela, à toa, na sua clara voz infantil. — Que aconteceu? — perguntou a condessa assustada. Mas, ao ver no rosto da filha que se tratava de uma brincadeira, ameaçou-a severamente com a mão, enquanto lhe mostrava uma expressão descontente. As conversas interromperam-se. — Mãe! Que doce vamos ter? — interrogou a vozita de Natacha, irreflectidamente e num tom ainda mais decidido. A condessa quis franzir as sobrancelhas, mas debalde. Maria Dmitrievna ameaçou-a com o seu dedo grosso. — Eh, cossaco! — gritou-lhe. A maior parte dos convidados observava os pais de Natacha para ver como eles iam encarar aquela aventura.— Espera — disse a condessa. — Mãe! Que doce vamos ter? — voltou Natacha, atrevidamente e no tom de uma criança caprichosa, certa de antemão de que a sua audácia não teria consequências. Sónia e o gordo Pedro riam perdidamente. — Como vês, perguntei — dizia ela, baixo, ao irmãozito e a Pedro, a quem voltou a lançar uma olhadela. — Há gelado, mas tu não comes — disse Maria Dmitrievna. Natacha viu que nada tinha a recear e, de resto, a própria Maria Dmitrievna não lhe metia medo algum. — Maria Dmitrievna! Gelado de quê? Não gosto de gelados, de nata. — É de cenoura. — Não é verdade. De quê? Maria Dmitrievna, de quê? — quase gritou. — Quero saber que gelado é! Maria Dmitrievna e a condessa romperam a rir e, à imitação deles, todos os demais. Riam-se não da resposta de Maria Dmitrievna, mas da audaciosa obstinação e da presença de espírito daquela garota que sabia defrontá-la e ousava fazê-lo. Natacha apenas se submeteu quando lhe disseram que, o gelado era de ananás. Antes do gelado foi servido o champanhe. A música ressoou de novo, o conde trocou um beijo com a sua condessinha e os convidados ergueram-se para felicitá-la. Os copos tocaram-se, ao longo da mesa, com o do conde, com o das crianças e entre si. Os criados de novo principiaram a agitar-se, ouviu-se o rumor das cadeiras e na mesma ordem de entrada, apenas com as faces mais vermelhas, os convidados voltaram a dar entrada no salão e no gabinete do conde. [XX] Prepararam-se as mesas de jogo, organizaram-se os parceiros para o boston e toda a gente se espalhou pelos dois salões, a sala do divã e a biblioteca. O conde, com as suas cartas em leque, a custo se mantinha, resistindo à tentação de dormir, como de costume, depois do jantar, e sorria a toda a gente. Amocidade, arrastada pela condessa, reunia-se em volta do cravo e da harpa. Júlia foi a primeira, instada por todos, a tocar umas variações na harpa, e ela e as demais raparigas pediram a Natacha e a Nicolau, de quem todos gabavam o talento musical, que cantassem qualquer coisa. Natacha, a quem tratavam como uma pessoa crescida, sentia-se, claro está, muito orgulhosa com isso, mas, ao mesmo tempo, tomava-a uma grande timidez. — Que havemos nós de cantar? — perguntou. — A Fonte — replicou Nicolau. — Então, depressa, andem. Bóris, vem cá. Onde está a Sónia? Natacha olhou à sua roda, e, ao ver que a amiga não estava presente, correu a buscá-la. Tendo-a procurado no seu próprio quarto e não a encontrando aí. Natacha foi ver se ela estaria no quarto das crianças e também ali a não encontrou. Pensou então que devia estar no corredor, sentada na arca. A arca do corredor era o local onde se derramavam as dores de toda a jovem geração feminina da casa Rostov. E, efectivamente. Sónia lá estava, com o seu vestidinho cor-de-rosa vaporoso, que amarrotava entre os dedos, estendida na arca, o rosto escondido no sujo edredão listado da ama, e a cara nas mãos, chorando, sacudida por grandes soluços que lhe faziam estremecer os ombrozinhos decotados. Natacha, que durante todo o dia tinha andado com uma expressão festiva, mudou, repentinamente, de parecer: os olhos tornaram-se-lhe fixos, um frémito lhe percorreu o colo, os cantos da boca descaíram-lhe. — Sónia! Que tens tu?... Ah! Ah!, que te aconteceu?... E Natacha, fazendo um momo com a sua grande boca, que logo a tomou feia, pôs-se a soluçar, sem razão, apenas por ver que Sónia chorava. Sónia queria levantar a cabeça, queria responder-lhe, mas não pôde e ainda escondeu mais profundamente o rosto. Envolvendo a amiga nos seus braços, sentada sobre o edredão azul. Natacha chorava, continuava a chorar. Por fim, tendo Sónia serenado um pouco, ergueu-se, pôs-se a enxugar as lágrimas e abriu-se em confidências. — O Nicolau vai partir dentro de oito dias.., foi chamado por um papel.., ele é que me disse... E mesmo assim eu não choraria... — Mostrou um bilhete que tinha apertado na mão e em que estavam escritos versos de Nicolau. — Não choraria; mas tu não podes imaginar, ninguém pode imaginar.., o bom coração que ele tem.E de novo se pôs a chorar pensando no bom coração de Nicolau. — Tu, tu és feliz — Não tenho ciúmes... Gosto muito de ti, e Bóris também — continuou ela, ganhando coragem pouco a pouco. — Que gentil que ele é.., e para vocês não há obstáculos. Mas o Nicolau é meu primo... É preciso que o próprio metropolita.., e mesmo assim não pode ser. E depois, se disserem alguma coisa à mãe... — Sónia considerava a condessa sua mãe e como tal a tratava-.., ela vai dizer que eu prejudico a carreira do Nicolau, que não tenho coração, que sou uma ingrata, e, no entanto, tão certo como Deus estar nos Céus... — Persignou-se. Eu gosto tanto dele, dele e de todos vocês também... Só a Vera... E porquê? Que lhe fiz eu? Estou-vos tão reconhecida que daria de bom grado tudo, e a verdade é que não tenho nada para dar. Sónia não pôde dizer mais, e de novo escondeu a cabeça nas mãos e no edredão. Natacha pôs-se a consolá-la, mas via-se, pela sua atitude, que ela compreendia a gravidade do sofrimento da sua amiga. — Sónia! — exclamou ela, de repente, como se adivinhasse a verdadeira razão do sofrimento da prima — É verdade? A Vera falou contigo depois do jantar? É verdade? — Estes versos foi o Nicolau quem os escreveu; eu copiei outros. Ela encontrou- os em cima da, minha mesa e disse que havia de os mostrar à mãe, e disse também que eu era uma ingrata, que a mãe nunca o deixaria casar comigo e que ele havia de casar com a Júlia. Não viste como ele esteve ao lado dela todo e dia... Natacha? Porque é que há-de ser assim? E de novo chorou mais amargamente do que nunca. Natacha obrigou-a a levantar-se, abraçou-se a ela, e sorrindo por entre as lágrimas procurou consolá-la, — Não acredites. Sónia, minha, querida, não acredites no que ela diz. Lembras- te do que nós dizíamos, o Nicolau e nós as duas, na sala do divã? Lembras-te, depois do jantar? Como sabes, combinámos como tudo se havia de passar. Já me não lembro dos pormenores, mas deves lembrar-te como tudo se arranjava, como tudo era fácil. O irmão do tio Chinchine, por exemplo, casou com a prima em primeiro grau, e nós somos apenas segundos primos. E o Bóris dizia que era muito fácil. Tu bem sabes que eu lhe contei tudo. E ele é tão inteligente e tão gentil! Deixa-te disso. Sónia, não chores mais, minha queridinha, minha Sóniazinha. — E pôs-se a abraçá-la muito risonha — A Vera é má, não queiras saber dela. Tudo se há-de arranjar, e ela não vai dizer nada à mãe. O Nicolau te há-de dizer que nãopensa na Júlia. E beijou-a na testa. Sónia parecia outra, a gatinha que ela era reanimou-se, os olhos faiscararn-lhe, dir-se-ia pronta a dar ao rabo, a saltar sobre as suas patinhas elásticas, a correr atrás do novelo de lã, coisas próprias da sua natureza. — Achas que sim? Realmente! Juras? — disse ela, recompondo com vivacidade o vestido e os cabelos. — Podes estar certa! — respondeu Natacha, ao mesmo tempo que lhe ajeitava na, trança uma mecha de cabelos rebeldes. Ambas desataram a rir. — E agora vamos cantar A Fonte. — Vamos. — Viste aquele rapaz gordo, o Pedro, que estava sentado diante de mim? Que patusco que ele é! — disse Natacha, de súbito, detendo-se. — O que eu me diverti! E Natacha despediu, numa carreira, corredor além. A Sónia, depois de sacudir as penas do edredão que lhe tinham ficado agarradas ao vestido e de esconder no colo magricela os versos do jovem Nicolau, reanimou-se-lhe a expressão, e lá foi correndo também ligeira e jovial, atrás de Natacha, na direcção da sala do divã. A pedido dos seus convidados, a gente nova cantou o quarteto de A Fonte, que foi recebido com muito entusiasmo. Depois Nicolau entoou uma romança que aprendera havia pouco: Por uma linda noite, à luz do luar, Que ventura poder dizer-te a ti somente Que ainda há alguém cá neste mundo Que não pensa nem sonha senão contigo! Que os seus dedos tão bonitos, Errantes por sobre as cordas da harpa de oiro, Em apaixonadas ondas de harmonia Te chame, te chame ainda! Ainda um dia, mais dois dias, e o Paraíso abrir-se-à... Mas, ai de nós, a tua amiga, já lá não a encontrarás... Ainda as últimas palavras da canção não tinham findado, já a juventude se preparava para o baile e a orquestra lançava as primeiras notas no meio do ruídode pés e de tossezinhas. Pedro estava no salão, onde Chinchine se lançara numa discussão política com aquele rapaz chegado havia pouco do estrangeiro, discussão essa que enfadava imenso o próprio Pedro, e em que tomavam parte muitos outros convidados. Quando a música principiou. Natacha entrou na sala e, dirigindo-se imediatamente a Pedro, disse-lhe, rindo e corando ao mesmo tempo: — A mãe disse-me que o convidasse para dançar. — Tenho medo de fazer confusão com os passos — murmurou Pedro —, mas se quiser ter a bondade de ser minha professora... E, inclinando-se profundamente, deu a larga mão à esbelta rapariguinha. Enquanto os pares se organizavam e os músicos afinavam os seus instrumentos. Pedro conservou-se sentado ao lado da sua pequena dama. Natacha sentia-se inteiramente feliz: ia dançar com uma pessoa importante, que voltava de o estrangeiro. E ela lá estava, exibindo-se diante de toda a gente, pronta a conversar, como se fosse uma pessoa crescida, e exactamente como ele. Tinha um leque que lhe havia emprestado urna amiga. E tornando a pose mais conforme ao código mundano — e só Deus sabe onde e quando ela tinha aprendido tudo aquilo —, abanava-se e sorria, com um ar rebelde, enquanto conversava com o companheiro. — Que rapariga! Olhe para ela — disse a velha condessa, atravessando o grande salão e apontando para Natacha. Natacha corou e pôs-se a rir. — Porquê, mãe? Porque é que se está a rir? Que tem isso de extraordinário? No meio da terceira escocesa, ouviu-se um rumor de cadeiras no salão onde o conde e Maria Dmitrievna estavam a jogar, e a maior parte dos convidados importantes e das pessoas de idade, para estenderem as pernas, meteram na algibeira carteiras e bolsinhas de dinheiro e vieram postar-se à porta do grande salão. A frente estavam Maria Dmitrievna e o conde, ambos muito bem dispostos. O conde, mimando uma cortesia joco-séria, à imitação do que é de uso nos bailes, ofereceu a mão, recurvando o braço, à, sua dama. Depois, soergueu o busto e o rosto iluminou-se-lhe com um sorriso agarotado e amável, e, assim que findaram as últimas marcas da escocesa, bateu as palmas e gritou para a orquestra, dirigindo-se ao primeiro violino: — Semione! Sabes tocar o Danilo Cooper? Era a dança favorita do conde, que ele dançara na juventude. Danilo Cooperera especialmente uma marca da inglesa. — Olhem para o pai! — gritou Natacha no meio da sala. Tinha-se esquecido por completo de que estava num baile como uma pessoa crescida. Dobrou-se em duas, a cabecinha coberta de caracóis junto aos joelhos, e rompeu a rir tão cristalinamente que toda a casa ficou cheia do seu riso alegre. E com efeito toda a gente olhava, divertida, aquele velho jovial que ao lado da sua venerável dama, a quem ele dava pelo ombro, arqueava os braços para marear o compasso, descaía os ombros, encurvava as pernas, sapateava ligeiramente, e, com um sorriso cada vez mais franco no seu rosto cheio, mais não fazia que preparar os espectadores para o que ia passar-se. Assim que ressoaram os compassos alegres e excitantes do Danilo Cooper, muito parecidos com os do ultra-jovial trepak russo, todas as portas da sala se encheram de criados risonhos — os homens a um lado, as mulheres a outro— que acorriam para ver dançar o amo. — Ah! O nosso paizinho! Que águia que ele é! — exclamou a ama, em voz alta, a uma das portas. O conde dançava muito bem e sabia o que estava a fazer, mas a sua dama, essa, não percebia nada e recusava-se a dançar correctamente. A sua corpulenta figura ali estava toda direita, os grandes braços bamboleando, já sem bolsinha, que confiara à condessa. Apenas o seu belo e severo rosto tomava parte na dança. Todo o movimento que animava a redonda silhueta do conde se lhe concentrava a ela na fisionomia, cada vez mais risonha, e no narizinho arrebitado. Se o conde, cada vez mais excitado, era a surpresa de todos, graças à ligeireza e à agilidade nas piruetas e nos rodopios a que se atreviam as suas pernas já pouco firmes. Maria Dmitrievna, por menos que a isso se desse, mercê dos movimentos dos ombros ou dos braços no curso das suas reviravoltas ou no sapateado, não produzia menos efeito sobre os assistentes, que muito apreciavam naquela mulher o contraste entre a sua desenvoltura e a sua habitual severidade. A dança cada vez estava mais animada. Os pares frente a frente não conseguiam chamar para eles as atenções ou nem sequer com isso se importavam. Toda a gente seguia com o olhar o conde e Maria Dmitrievna. Natacha puxava pela manga a toda a gente, embora ninguém tirasse os olhos dos dois dançarinos, pedindo que olhassem para o pai. Nos intervalos, o conde, enquanto tomava fôlego, acenava aos músicos e pedia-lhes que acelerassem o ritmo. Quando mais rápido era o compasso, maisdepressa girava o conde em tomo do par, ora nos bicos dos pés ora nos calcanhares, e por fim, no momento em que ia reconduzi-lo, esboçou um último passo: levantou a perna cheia à retaguarda, inclinou, com um ar radiante, a cabeça perlada de suor, descrevendo, por fim, com a mão direita um largo círculo no meio de uma tempestade de aplausos e de gargalhadas, especialmente de Natacha. Os dois dançarinos detiveram-se, anelantes, enxugando o suor com seus lenços de cambraia. — Ora aqui tens como se dançava no nosso tempo, minha querida! — exclamou o conde. — Bravo! Danilo Cooper! — replicou Maria Dmitrievna, respirando estrepitosamente e arregaçando as mangas do vestido. [XXI] Quando em casa dos Rostov se dançava a sexta inglesa ao som de uma orquestra, que já desafinava, tal a fadiga dos músicos, e os criados e cozinheiros, igualmente extenuados, se azafamavam nos preparativos da ceia, era o conde Bezukov acometido do seu sexto ataque. Os médicos tinham declarado não haver esperanças de salvação. Confessaram o doente, já em coma, ministraram-lhe a comunhão, fizeram os preparativos para a extrema-unção e a casa assumiu o aspecto habitual em tais circunstâncias, com idas e vindas em todos os sentidos. Cá fora, ao portão, juntavam-se, escondendo-se à chegada das carruagens, os agentes das casas funerárias, na esperança de bom negócio. O governador militar da praça de Moscovo, que a cada momento enviava os seus ajudantes-de-campo a saber novas do estado de saúde do doente, veio pessoalmente, nessa noite, despedir-se daquela famosa personagem do tempo de Catarina: o conde Bezukov. A sumptuosa sala de visitas estava cheia. Toda a gente se levantou respeitosamente quando o governador militar, que se demorara quase meia hora à cabeceira do doente, saiu do quarto e atravessou a dependência, muito apressado, retribuindo, negligentemente, os cumprimentos, sempre seguido pelos olhos dos médicos, dos sacerdotes e da parentela do conde. O príncipe Vassili, que naqueles últimos dias tinha empalidecido e afilara, acompanhava o governadormilitar, segredando-lhe, por vezes, qualquer coisa. Quando voltou de o acompanhar, foi sentar-se sozinho no salão, de pernas cruzadas, cotovelos sobre os joelhos e cabeça nas mãos. Alguns instantes depois levantou-se, e a passo rápido, contrariamente aos seus hábitos, olhando em tomo de si como que assustado, seguiu ao longo do grande corredor que conduzia às dependências da retaguarda, direito aos aposentos da mais velha das princesas. As pessoas que se encontravam numa sala quase às escuras falavam entre si, de longe em longe, em voz muito baixa, calavam-se a cada momento, e dirigiam olhares interrogativos e de quem espera qualquer coisa para a porta que conduzia ao quarto do moribundo, a qual rangia ligeiramente sempre que alguém entrava ou saía. — Todo o homem tem os seus dias contados, e ninguém pode fugir daí — dizia um eclesiástico velhinho à senhora que parecia não ter a tal respeito qualquer ideia precisa. — Não será já tarde de mais para a extrema-unção? — observou, acrescentando a estas palavras um título eclesiástico, a senhora que parecia não ter a tal respeito qualquer ideia precisa. — É um grande sacramento, minha senhora — replicou o sacerdote, passando a mão pela cabeça calva, onde só havia já algumas, poucas, farripas de cabelos grisalhos cuidadosamente penteadas. — Quem é? É o próprio governador militar? — perguntava-se a outro canto da sala. — Que novo que ele é!... — Quem há-de dizer que tem perto de setenta anos! Mas parece que o conde já não conhece as pessoas. Dizem que lhe vão dar a extrema-unção. — Uma pessoa conheci eu a quem ministraram sete vezes a extrema-unção, A segunda das jovens princesas, que acabava de sair do quarto do doente, os olhos cheios de lágrimas, foi sentar-se ao lado do Dr. Lorrain, que se colocara numa posição que lhe ficava bem, debaixo do retrato de Catarina, encostado a uma mesa. — Muito bonito — dizia ele, referindo-se ao tempo —, muito bonito, princesa, e depois, em Moscovo, é como se estivéssemos no campo. — Não é verdade? — respondeu a princesa, suspirando. Acha então que se lhe pode dar de beber? Pareceu reflectir.— Tomou o remédio? — Tomou. O médico consultou o seu livro de notas. — Tome um copo de água fervida e deite-lhe dentro uma pitada — e com os dedos finos fingiu o gesto — de cremortartari. — Não se conhece nenhum caso — dizia um médico alemão a um ajudante-de- campo — em que se fique vivo depois do terceiro ataque. — Mas que boa saúde ele tinha! — disse o oficial. — E quem será o herdeiro de todas estas riquezas? — acrescentou, em voz muito baixa. — Não hão-de faltar pretendentes — retorquiu o alemão sorrindo. Todos os olhares voltaram a fixar-se na porta. A porta rangeu, e a jovem princesa, que tinha preparado o remédio prescrito por Lorrain, foi levá-lo ao doente. O médico alemão aproximou-se do médico francês. — Acha que ele se vai aguentar até amanhã de manhã? — perguntou em francês, com um pronunciado sotaque. Lorrain, de lábios apertados, fez com o dedo polegar um gesto negativo diante do nariz. — Esta noite, o mais tardar — murmurou ele, em voz baixa, sorrindo com prudência, orgulhoso de tão claramente ter diagnosticado o estado do doente. E afastou-se. Enquanto isto se passava, o príncipe Vassili abria a porta do quarto da princesa. Era quase noite lá dentro; apenas as duas lamparinas em frente dos ícones o iluminavam. Cheirava bem a incenso e a flores. O mobiliário do quarto era todo em miniatura: pequeninos armários, pequeninas estantes e pequeninas mesas. Um biombo ocultava as cobertas brancas de uma cama alta de penas. Um cãozinho pôs-se a ladrar. — Ah, é o senhor, meu primo? A princesa levantou-se, alisando os cabelos, que usava sempre, e até naquele momento, excessivamente repuxados, como se formassem uma peça única com o casco da cabeça e andassem envernizados. — Que foi? Que aconteceu? — perguntou ela. — Assustou-me. — Não aconteceu nada. Sempre a mesma coisa. Vim apenas procurar-te para falarmos de negócios. Katicha — disse o príncipe, sentando-se, com um ar lasso, na cadeira queela acabava de deixar devoluta.— Que quente que aqui está! Anda cá, senta-te. Temos de conversar. — Julguei que tinha acontecido alguma coisa — disse a princesa, e, com o seu ar fechado e severo, sentou-se diante do príncipe, disposta a ouvi-lo. — Quis ver se dormia um bocado, meu primo, mas não foi possível. — Então, minha querida? — disse o príncipe, pegando-lhe na mão e puxando-a para si, como era seu costume. Era evidente que estas breves palavras significavam coisas que eles dois compreendiam perfeitamente sem as dizer. A princesa, do alto do seu busto seco e estreito, alto de mais para as suas curtas pernas, olhava fixamente o príncipe sem qualquer aparente emoção, os olhos cinzentos à flor da pele. Sacudiu a cabeça e lançou um olhar, acompanhado de um suspiro, às imagens sagradas. O seu gesto tanto podia exprimir mágoa e espírito de sacrifício como fadiga e a necessidade de descanso. O príncipe Vassili interpretou-o como um sinal de cansaço. — E supões tu — disse ele — que eu também não estou cansado? Estou esfalfado como um cavalo de posta. Apesar disso, é absolutamente necessário que eu tenha uma conversa contigo. Katicha, uma conversa muito importante. O príncipe Vassili calou-se, e as suas duas faces, sucessivamente, foram tomadas de um movimento nervoso que lhe dava um aspecto desagradável, aspecto esse que ele nunca tinha quando conversava em sociedade. Também os olhos não eram os seus olhos habituais: havia neles ora uma expressão escarninha e cínica, ora uma expressão aterrorizada. A princesa segurava com os braços secos e magros o cãozito que tinha nos joelhos, enquanto fixava o príncipe atentamente. Via-se que ela estava disposta a não ser a primeira a falar, ainda que tivesse de ficar calada até ao dia seguinte. — Como vê, cara princesa e minha prima. Katerina Semionovna — prosseguiu ele, não sem uma evidente luta interior, pensando no que ia dizer. — Em momentos como este é preciso pensar em tudo. É preciso pensar no futuro, em si. Quero-vos a todas como se vocês fossem minhas filhas, bem sabes. A princesa continuava a fitá-lo, impassível e impenetrável. — Numa palavra, eu também tenho de pensar ria minha família — continuou, repelindo, de mau humor, a mesinha e sem olhar para ela.— Como sabes. Katicha, vocês as três, as irmãs Mamontov, e minha mulher são as únicas herdeirasdirectas do conde. Bem sei, bem sei que te é penoso pensar nestas coisas e falar nelas. A mim também me custa. Mas, minha amiga, estou quase com sessenta anos e tenho de estar preparado para tudo. Sabes que mandei chamar o Pedro, e que o próprio conde, apontando para o retrato dele, quis que lho trouxessem? O príncipe Vassili interrogava-a com os olhos, mas não conseguia perceber se ela estava a pensar no que ele acabava de dizer-lhe ou se apenas olhava para ele. — Há só uma coisa que eu estou sempre a pedir a Deus, meu primo — replicou ela — é que Deus o proteja e que faça com que a sua bela alma deixe em paz este... — Pois claro — prosseguiu o príncipe com impaciência, afagando a calvície e puxando a si, colericamente, a mesinha que começara por repelir. — Mas o que é certo.., o que é certo, o facto é que, como tu sabes, o conde, no Inverno passado, redigiu um testamento pelo qual, em prejuízo dos seus herdeiros directos e de todos nós, lega toda a sua fortuna ao Pedro. — Sim, ele já fez vários testamentos — disse serenamente a princesa — Mas o Pedro não pode herdar: é um filho ilegítimo. — Minha querida — disse bruscamente o príncipe Vassili, puxando para si a mesinha e falando com animação e volubilidade.— E se houvesse uma petição ao imperador para a legitimação do Pedro? É evidente que em face dos serviços prestados, o apelo do conde seria atendido... A princesa teve um sorriso em que se deixava perceber que sabia muito mais sobre o assunto que o seu interlocutor. — Digo-te mais — continuou Vassili, pegando-lhe na mão — O apelo está feito, embora não tenha sido enviado, e o imperador teve conhecimento do facto. Só resta saber se esse apelo foi ou não anulado. Se o não foi, assim que tudo tenha acabado — e soltou um suspiro, para deixar perceber o que queria dizer com aquelas palavras— logo que os papéis do conde sejam conhecidos, tanto o testamento como a carta serão transmitidos ao imperador, e o seu apelo será sem dúvida alguma satisfeito. Pedro, na sua qualidade de filho legítimo, será o único herdeiro. — E a nossa parte? — disse a princesa, num tom irónico, como se tudo pudesse acontecer menos isso. — Mas, minha pobre Katicha, é claro como a luz do dia. Nessa altura será ele o único herdeiro legítimo de toda a fortuna e vocês nada receberão. É preciso que tuprocures saber, minha querida, se o testamento e o apelo existem ou se foram destruídos. E se por qualquer motivo foram esquecidos, é preciso que saibas onde estão e descobri-los, pois... — Ah! Isso agora é novidade! — interrompeu a princesa com um sorriso sardónico e sem que a sua expressão se alterasse.— Eu sou mulher; na sua opinião, todas as mulheres são estúpidas; mas o que eu muito bem sei é que um filho ilegítimo não pode herdar... Um bastardo — acrescentou, pensando com esta palavra demonstrar definitivamente ao príncipe que ele não tinha razão. — Não há maneira de compreenderes. Katicha! Mas tu és inteligente. Como é que tu não compreendes que se o conde pediu ao imperador que o autorizasse a reconhecer o filho como legítimo. Pedro, nesse caso, deixa de ser o Pedro e passa a ser o conde Bezukov, e pelo testamento é ele quem tem direito a tudo? Se o testamento e a carta não foram destruídos, nada mais te restará além, da consolação de teres sido virtuosa e tudo o que daí se entende. É certo e sabido, — Sei perfeitamente que ele fez um testamento, mas também sei que esse testamento não tem valor. Pelo que vejo, julga-me pateta, meu primo — disse a princesa com esse ar que tomam as mulheres quando supõem ter dito qualquer coisa de espirituoso ou de ofensivo. — Minha querida princesa Katerina Semionovna — exclamou com impaciência o príncipe Vassili —, eu não vim procurar-te para um duelo de palavras, mas na intenção com que se visita uma parente, uma boa, excelente, uma verdadeira parente, a fim de lhe falar dos seus interesses. Repito-te pela décima vez que se a carta ao imperador e o testamento a favor de Pedro se encontram entre os papéis do conde, nem tu nem as tuas irmãs, minha querida filha, herdarão seja o que for. Se me não acreditas, acredita ao menos nas pessoas competentes. Acabo de falar com Dmitri Onufreitch — o advogado da família — e ele disse-me a mesma coisa. Houve, claramente, um mudança rápida na maneira de pensar da princesa. Se a expressão dos olhos se lhe não alterou, os seus finos lábios empalideceram e quando começou a falar a voz Passou-lhe por transições que nem ela própria esperava. — Pois muito bem — disse. — Nunca pretendi nada, e nada, pretendo, Enxotou o cão do regaço e ajeitou as pregas do vestido. — É assim que as pessoas reconhecem, é assim que testemunham a sua gratidão àqueles que tudo sacrificaram por elas! — exclamou. — Muito bem!Excelente! Não preciso de nada, príncipe! — Sim, mas tu não és a única. E as tuas irmãs? — volveu ele. A princesa não o ouvia. — Sim há muito tempo que eu sei isso, mas tinha-me esquecido que nesta casa, não podia esperar outra coisa senão baixeza, duplicidade, inveja, intriga, ingratidão, a mais negra ingratidão. — Sabes ou não sabes onde está o testamento? — perguntou o príncipe Vassili com o tremor das faces ainda mais acentuado. — Sim, tenho sido uma parva, tenho tido confiança nas pessoas, gostei delas e sacrifiquei-me por elas. Mas só triunfam os cobardes e os maus. Bem sei donde vêm estas intrigas. A princesa fez um movimento para se erguer, mas o príncipe reteve-a. Ela dava a impressão de uma pessoa que perdeu subitamente todas as ilusões sobre os outros seres. Lançou um olhar mau ao interlocutor. — Ainda, estamos a tempo, minha amiga. Lembra-te. Katicha, de que tudo isto foi feito de improviso, num momento de cólera, ou então doente, e que depois tudo esqueceu. O nosso dever, minha querida, é reparar esta falta, suavizar-lhe os últimos momentos, não permitindo que ele leve a cabo esta injustiça, de o não deixar morrer com a ideia de que tomou alguém infeliz... — Alguém que tudo sacrificou por ele — voltou a princesa, impaciente por se levantar: mas o príncipe deteve-a. E isso é que ele nunca soube apreciar. Não, meu primo — acrescentou, suspirando — isto leva-me, a pensar que neste triste mundo ninguém pode esperar recompensa, que neste triste mundo não há honra nem equidade. Neste mundo só a maldade e a mentira triunfam. — Bom, vejamos, sossega. Eu conheço o teu excelente coração. — Não, eu tenho mau coração. — Eu conheço o teu coração — repetiu ele —, aprecio a tua amizade e gostaria que tu tivesses a mesma opinião a meu respeito. Sossega, e sejamos razoáveis enquanto é tempo: talvez vinte e quatro horas, uma hora talvez. Conta-me tudo quanto sabes do testamento e principalmente diz-me se sabes onde ele está: tu deves saber. Pegaremos nele imediatamente e leva-lo-emos ao conde. Ele com certeza se esqueceu dele, e quererá destruí-lo. Tu sabes que o meu único desejo é cumprir religiosamente a sua vontade; não é para outra coisa que estou aqui. Eu não estou aqui senão para vos auxiliar, a vós e a ele.— Agora já sei tudo. Já sei donde partem as intrigas. Veio-o claramente — disse a princesa. — Não é disso que se trata, minha querida. — A alma de tudo isto é a sua protegida, a sua querida princesa Drubetskaia. Ana Mikailovna, que eu nem para criada de quarto quereria, essa horrível, essa ignóbil mulher. — Não percamos tempo. — Oh, não me diga nada! No Inverno passado introduziu-se aqui em casa e contou tantas coisas horríveis ao conde, tantas vilanias a nosso respeito, e principalmente sobre a Sofia — não as posso repetir —, que ele ficou doente e durante quinze dias não nos quis ver. Foi nessa altura, tenho a certeza, que o tio redigiu esse sujo, esse infame papel. Mas eu supunha que não tinha importância. — Ora aí está. Porque é que me não falaste logo nisso? — Está na pasta de couro que tem debaixo da almofada. Agora compreendo — disse ela, sem responder à pergunta do príncipe. — E se eu tenho qualquer pecado na consciência, um grande pecado, é o ódio que essa miserável me inspira — gritou, e tomou-se quase irreconhecível, — Que apareça outra vez por aí! Ajustarei contas com ela. É uma questão de tempo. [XXII] Enquanto decorriam todas estas conversas na sala de visitas e nos aposentos da princesa, uma carruagem com Pedro, enviada para o trazer, e Ana Mikailovna, que entendera por bem acompanhá-lo, penetrava rio pátio da residência do conde Bezukov. No momento em que o carro deslizava maciamente por cima da palha estendida debaixo das janelas. Ana Mikailovna, que procurava consolar o companheiro, verificou que ele adormecer,—, encolhido no seu canto e acordou-o. Pedro, tendo voltado a si, apeou-se atrás de Ana Mikailovna, e só então se lembrou da entrevista que ia ter com o pai moribundo. Tinha notado que a, carruagem parara não junto da escadaria nobre, mas em frente da escada das traseiras. No momento em que punha os pés no chão, dois homens com aspecto de comerciantes acolheram-se apressadamente à sombra da parede.Enquanto se deteve. Pedro pôde ver na sombra, de cada lado da entrada, outros homens do mesmo género. Mas nem Ana Mikailovna, o trintanário, ou o cocheiro, que não podiam ter deixado de dar por eles, lhes prestaram a mais pequena atenção, «Naturalmente, tem de ser assim», decidiu de si para consigo, e lá foi na peugada da sua condutora. Ana Mikailovna, em passinhos rápidos, subia a estreita escada de pedra, fracamente iluminada, chamando Pedro, que ficava para trás: embora este não compreendesse porque lhe era absolutamente indispensável apresentar-se junto do conde, e muito menos ainda porque tinha de subir pela escada de serviço, a segurança e a pressa de Ana Mikailovna persuadiram-no da urgência do que ia fazer. A certa altura ia sendo derrubado por um grupo de homens, carregados com uns baldes, cujas grossas botas ressoavam no chão. Mas eles encostaram-se à parede para dar passagem aos visitantes sem mostrar qualquer surpresa. — É este o caminho para os aposentos das princesas? — perguntou Ana Mikailovna a um deles. — É — replicou um dos lacaios, numa grossa voz atrevida, como se naquela altura tudo fosse permitido — a porta à esquerda, minha senhora. «Talvez que o conde não me tenha mandado chamar», pensou Pedro na altura do patamar. «Era bem melhor eu ir para o meu quarto.» Ana Mikailovna deteve-se, para que Pedro a pudesse alcançar. — Ah!, meu amigo! — exclamou ela, pegando-lhe num braço, como tinha feito ao filho nessa mesma manhã, — Pode crer que sofro tanto como o Pedro, mas precisa de ser homem. — Realmente, era melhor eu não ir — disse Pedro, olhando para ela através das lentes das lunetas, com um ar afectuoso. — Ah!, meu amigo, esqueça-se das injustiças que lhe fizeram, lembre-se que seu pai.., está talvez na agonia. — Soltou um suspiro.— Gostei logo de si como se fosse meu filho. Confie em mim. Pedro. Não me esquecerei dos seus interesses. Pedro não compreendia nada; o mais claro para ele era pensar que as coisas deviam ser assim, e seguiu docilmente Ana Mikailovna, que já abria a porta. A porta dava para o vestíbulo dos aposentos das traseiras. O velho criado das princesas estava sentado a um canto a fazer meia. Pedro nunca entrara naquela parte da casa, ignorava mesmo a existência de tais dependências. Ana Mikailovna perguntou pela saúde das princesas a uma rapariga que trazia uma garrafa emcima de uma bandeja, e que se tinha juntado a elos, chamando-lhe «minha cara» e «minha boa rapariga», e em seguida conduziu Pedro ao longo de um corredor lajeado. A primeira porta à esquerda que abria para esse corredor levava aos aposentos das princesas. De tão apressada que ia — em circunstâncias daquelas tudo se fazia apressadamente— a criada de quarto que levava a bandeja com a garrafa não fechou a porta, e tanto Pedro como Ana Mikailovna, ao passarem, olharam involuntariamente para o quarto onde a princesa mais velha e o príncipe Vassili conversavam muito animadamente. Ao vê-los, este teve um movimento de impaciência e recuou; a princesa deu um pulo e fechou a porta com um gesto violento. Esta atitude condizia tão pouco com a habitual serenidade da princesa, e o pânico que se pintou no rosto do príncipe Vassili era tão imprevisto na sua grave compostura, que Pedro parou, lançando, através das lentes das suas lunetas, um olhar inquiridor à sua condutora. Ana Mikailovna, sem trair qualquer surpresa, contentou-se em sorrir vagamente, suspirando, como se tudo aquilo para ela fosse coisa natural. — Mostre-se homem, meu amigo, eu zelarei pelos seus interesses — disse ela, ao mesmo tempo que apressava o passo ao longo do corredor. Pedro não percebia do que se tratava e muito menos compreendia o que queria dizer: zelar pelos seus interesses, mas de si para consigo pensava que assim mesmo devia ser. O corredor conduziu-os a uma dependência mal iluminada que dava para a sala de visitas do conde. Era um dos compartimentos frios e luxuosos que Pedro conhecia muitíssimo bem, mas onde nunca entrava senão pela escada nobre. No centro desta sala via-se uma banheira vazia e havia água entornada no tapete. Aí cruzaram com um criado e um sacristão com um turíbulo, que caminhavam em bicos de pés, os quais nem neles sequer repararam. Depois penetraram na sala de visitas, que Pedro conhecia muito bem, com as suas duas janelas à italiana e a sua porta para o jardim de Inverno, onde havia um grande busto de Catarina e, um retrato em corpo inteiro da mesma soberana. Eram as mesmas pessoas, por assim dizer nas mesmas atitudes, que ainda ali estavam conversando em voz baixa. Todos se calaram e fitaram Ana Mikailovna, que entrava, com o seu rosto pálido e como sulcado de lágrimas, e aquele grande e corpulento rapaz, que, de cabeça baixa, a seguia com toda a docilidade.Podia ler-se nos traços de Ana Mikailovna que ela tinha a certeza de que se aproximava o momento decisivo. Com a segurança de uma petersburguesa a tudo habituada, entrou na sala, bem agarrada a Pedro, com um ar ainda mais ousado que o dessa manhã. Tinha a certeza de que se trouxesse consigo a pessoa a quem o moribundo queria ver, logo, seria recebida. Lançou um rápido olhar às pessoas ali presentes, e, ao ver o confessor do conde, aproximou-se dele em passinhos miúdos, sem propriamente se inclinar, mas tornando-se como que mais pequena, e dois eclesiásticos presentes lançaram-lhe a bênção. — Graças a Deus que chegámos a tempo — disse ela aos sacerdotes — todos nós, que somos da família, estávamos com tanto medo! Este rapaz é filho do conde — acrescentou em voz baixa. — Que instantes medonhos! Ao dizer estas palavras, aproximou-se do médico. — Caro doutor — principiou — este rapaz é o filho do conde.. Ainda há esperanças? O médico, sem dizer palavra, ergueu os olhos e encolheu os ombros, num ar de dúvida. Ana Mikailovna copiou exactamente a sua mímica, teve um suspiro quase que fechando os olhos e voltou-se para o lado onde estava Pedro. Parecia testemunhar-lhe, urna atenção particularmente respeitosa e uma ternura contristada. — Tende confiança na divina misericórdia! — exclamou ela indicando-lhe um divã onde pudesse esperar, enquanto ela se dirigia, sem fazer barulho, para a porta cm que estavam fitos todos os olhares. Depois de a abrir silenciosamente, desapareceu. Pedro, disposto a obedecer em tudo ao seu guia, encaminhou-se para o divã indicado. Assim que Ana Mikailovna desapareceu, afigurou-se-lhe que todos os olhares se dirigiam para ele com algo mais que curiosidade e simpatia. Viu que toda aquela gente cochichava entre si, apontando-o com os olhos, numa espécie de medo servil. Tiveram para com ele atenções que anteriormente nunca haviam tido. A senhora, para ele desconhecida, que conversava com o sacerdote levantou- se e ofereceu-lhe o seu lugar. O ajudante-de-campo baixou-se para lhe apanhar a luva que tinha caído. Quando ele passou, os médicos calaram-se respeitosamente e abriram alas para o deixar passar. Pedro tinha pensado, primeiro, em sentar-se em qualquer parte, para não incomodar a senhora, pensara em apanhar a luva e evitar os médicos, que aliás lhe não impediam a passagem; mas, de súbito,compreendeu que naquela noite se tornara uma personagem com a obrigação de cumprir uma espécie de rito terrível, aguardado por toda a gente, e por conseguinte devia aceitar as solicitudes de todos. Recebeu em silêncio a luva que lhe estendia o oficial, sentou-se no lugar da senhora desconhecida, apoiando as grandes mãos nos joelhos, simetricamente colocadas numa posição ingénua de estátua egípcia, e de si para consigo decidiu que tudo aquilo se devia justamente passar assim e que naquela noite, para não perder a cabeça e não fazer disparates, não deveria agir como era sua vontade, mas confiando-se em absoluto a vontade daqueles que o guiavam. Ainda se não tinham passado dois minutos, já o príncipe Vassili, com o seu cafetã decorado com três estrelas, o ar majestoso, a cabeça erguida, entrava na sala. Dir-se-ia ter emagrecido desde essa manhã; os seus olhos pareceram crescer quando viu Pedro e percorreu a sala com o olhar. Aproximou-se dele, apertou-lhe a mão, coisa que até aí nunca fizera, e sacudiu-lha energicamente, como se quisesse experimentar-lhe a resistência. — Coragem, coragem, meu amigo. Ele disse que o queria ver. Está certo. E quis afastar-se. Mas Pedro julgou necessário perguntar-lhe: — Como está...? Hesitou, sem saber como seria conveniente referir-se ao conde, o moribundo; teve vergonha de dizer: «meu pai». — Ainda há meia hora teve um ataque. Coragem, meu amigo. Pedro estava num tal estado de semiconsciência que a palavra ataque lhe deu a ideia imediata de que alguém o tinha atacado. Olhou perplexo para o príncipe Vassili, e só depois lhe ocorreu que aquela palavra podia significar uma doença. O príncipe Vassili, ao passar, disse umas palavras a Lorrain e encaminhou-se para a porta em bicos de pés. Não se pode dizer que fosse muito destro em caminhar dessa maneira; todo o seu corpo oscilava desajeitadamente. Atrás dele passou a mais velha das princesas, depois os padres e os sacristães; seguiram-se alguns criados do conde. Atrás da porta ouviu-se um burburinho e Ana Mikailovna, sempre muito pálida, mas decidida no cumprimento do seu dever, apareceu, correndo, e tocando tio braço de Pedro murmurou: — A bondade divina e inesgotável. Vai começar a cerimónia da extrema-unção. Venha.Pedro penetrou no quarto, enterrando os pés no tapete fofo, e verificou que o ajudante-de-campo, a senhora desconhecida e alguns criados também o seguiam, como se já não fosse preciso pedir licença para se entrar naquele aposento. [XXIII] Pedro conhecia muito bem aquela grande dependência cortada por uni, arco e algumas colunas e forrada de tapetes persas. A, parte que ficava por detrás das colunas, de um lado tinha uma grande cama de mogno com cortinados de seda, e do outro um oratório com as suas imagens, o qual, todo iluminado, era como uma igreja preparada, para os ofícios da noite. Debaixo do enquadramento dos ícones iluminados estava uma grande cadeira de doente, com o espaldar coberto de almofadas brancas como neve, ainda não amarrotadas, e que acabavam de ser mudadas. Nessa cadeira perfilava-se a majestosa figura, do pai, o conde Bezukov, muito sua conhecida, coberto até à cintura por uma manta verde-clara e os cabelos brancos, em que havia qualquer coisa de leonino, a coroar-lhe a testa ampla e as características linhas daquele rosto amarelento sulcado de pequenas rugas. Estava estendido mesmo por debaixo das imagens, com as grossas mãos espessas emergindo da coberta, e sobre ela pousadas. Na mão direita, espalmada, entre o polegar e o indicador, erguia-se urna vela que um velho criado amparava debruçado sobre a cabeceira. Em tomo, os padres, de pé, revestidos com os seus magníficos paramentos, muito brilhantes, os longos cabelos soltos, e de velas acesas, oficiavam com uma, lentidão solene. Um pouco mais atrás viam-se as duas princesas mais novas, de lenço nos olhos, e, diante delas. Katicha, a mais velha, com uma expressão má e resoluta, os olhos fixos nos ícones, o que queria dizer que não poderia responder por si caso viesse a olhar para outro lado. Junto à porta. Ana Mikailovna, com o seu ar de resignada tristeza e imploração, bem como a senhora desconhecida. O príncipe Vassili, do outro lado desta mesma porta, mais perto da cadeira, por detrás de um cadeirão de talha guarnecido de veludo, cujo espaldar voltara para si, apoiando nele a sua mão esquerda, em que segurava uma vela, enquanto com a direita se benzia e erguia os olhos ao céu, de cada vez que tocava na testa.Na sua máscara havia uma devoção tranquila e submissão à vontade divina, «Se Tu não compreendes estes sentimentos, tanto pior para Ti», parecia dizer a sua expressão. Atrás dele encontravam-se o ajudante-de-campo, os médicos e o pessoal masculino: como na igreja, havia separação de sexos. Toda a gente estava calada, persignando-se. Apenas se ouviam as orações litúrgicas, um canto baixo, profundo e contínuo, e nos momentos de silêncio movimento de pés e suspiros. Ana Mikailovna, com aquele ar significativo com que mostrava saber o que estava fazendo, atravessou o quarto para entregar uma vela a Pedro. Este acendeu-a, e, entretido com as observações que fazia sobre os assistentes, pôs-se a persignar-se com a mesma mão com que segurava o círio. A jovem, princesa Sofia, a da pele rosada, ar trocista e um sinalzinho, olhava para ele. Depois sorriu, escondeu o rosto no lenço, e assim esteve muito tempo; daí a pouco, voltando a olhar para ele, pôs-se a rir. Evidentemente que ela se não sentia capaz de o olhar sem rir, mas como, ao mesmo tempo, não podia deixar de o olhar, para não ter essa tentação foi postar-se, sem ruído, atrás de uma coluna. A meio da cerimónia, as vozes dos sacerdotes calaram-se, repentinamente, e os padres puseram-se a dizer qualquer coisa ao ouvido uns dos outros; o velho criado que segurava a vela do conde ergueu-se e voltou-se para o lado das senhoras. Ana Mikailovna avançou e, debruçando-se para o doente, tomou entre as suas mãos brancas e finas a mão livre pousada sobre a coberta verde, e, virada de lado, pôs- se a tomar-lhe o pulso com um ar recolhido. Deram de beber ao doente; foi uma agitação em volta dele; depois cada um retomou o seu lugar e a cerimónia prosseguiu. Durante esta pausa. Pedro notou que o príncipe Vassili tinha saído de trás do cadeirão e com o ar de quem sabe muito bem o que anda a fazer, e lhe é completamente indiferente a presença dos outros, em vez de se aproximar do moribundo, passara ao lado dele, encaminhando-se para onde estava a mais velha das princesas, juntamente com quem se dirigira para o fundo do quarto, em que estava o leito alto com cortinados de seda. Tanto um como outro, depois, tinham desaparecido por uma porta no extremo do aposento, e só no fim da cerimónia haviam reaparecido, um por cada vez, retomando os seus lugares. Pedro não prestou mais atenção a este pormenor que a qualquer outro, persuadido como estava de que tudo quanto se passasse naquela noite diante dos seus olhos assim tinha de ser e nunca de outra maneira.Os cantos litúrgicos cessaram e ouviu-se então a voz de um dos sacerdotes felicitando o doente por haver recebido o sacramento. O moribundo continuava estendido sem dar sinais de vida e sem fazer o mais pequeno movimento. Toda a gente se aproximou dele. Ressoaram passos, e ouviu-se o ciciar das vozes, entre as quais se distinguia a de Ana Mikailovna. Pedro ouviu-a dizer: — É indispensável levá-lo outra vez para a cama. Aqui é impossível. O moribundo estava de tal modo rodeado pelos médicos, pelas princesas, pelos criados, que Pedro já lhe não via a cabeça vermelho-amarelada com a coroa de cabelos brancos que não perdera de vista durante toda a cerimónia, apesar da presença de toda aquela gente. Pelo movimento prudente das pessoas que o cercavam percebeu que o estavam a soerguer para o transportar. — Firma-te no meu braço, vais deixá-lo cair — dizia a voz abafada de um dos criados.— Mais baixo... Outro aqui... — murmuravam as vozes. O resfolgar das respirações opressas e o andar arrastado pareciam mostrar que o peso que transportavam era superior às forças dos que o conduziam. Toda aquela gente, de que fazia parte Ana Mikailovna, passou diante do jovem, que durante alguns segundos, através das nucas e das costas, pôde ver os grossos e fortes peitorais nus e os ombros vigorosos do moribundo soerguidos pelas pessoas que lhe pegavam pelas axilas, e a cabeça branca, crespa, leonina. A cabeça, com a sua fronte extraordinariamente espaçosa e a face musculada, a bela boca sensual, o olhar frio, ainda majestoso, não estavam desfigurados pela morte. Era a mesma pessoa que ele tinha conhecido três meses antes, quando o conde o mandara para Petersburgo. Mas esta cabeça balouçava, inerte, a cada passada dos que transportavam o moribundo e o seu olhar frio, insensível, não sabia onde fixar-se. Durante alguns minutos houve agitação em volta da cama, depois as pessoas que tinham transportado o conde afastaram-se. Ana Mikailovna tocou no braço de Pedro e disse-lhe: — Venha daí. — Pedro, sempre junto dela, aproximou-se da cama em que tinham estendido o doente, numa postura solene, de acordo com o sacramento que acabava de receber. Uma pilha de almofadas soerguia-lhe o busto. As mãos estavam dispostas simetricarnente sobre a coberta de seda verde, com as palmas para baixo. Quando Pedro se aproximou, o conde olhou-o fixamente, mas com um olhar de que ninguém seria capaz de discernir o significado e a intenção.Ou esse olhar não queria dizer absolutamente nada além de significar que enquanto os nossos olhos estão abertos para algures têm de olhar, ou então muito queriam dizer. Pedro ficou imóvel sem saber o que fazer, interrogando com o olhar a sua cicerone. Esta teve um rápido movimento de olhos, indicando-lhe a mão do moribundo, e com a boca mimou um beijo. Pedro, inclinando a cabeça com precaução, para não se embaraçar na coberta, seguiu o conselho dela e aplicou os lábios sobre a mão carnuda e de grandes ossos. Nem a mão nem nenhum dos músculos do rosto do conde deram sinal de vida. Pedro continuou a olhar Ana Mikailovna interrogativamente, para lhe perguntar o que tinha a fazer. Esta indicou-lhe com a vista a cadeira ao lado da cama. Pedro aí se instalou, com toda a docilidade, continuando a perguntar-lhe, por acenos, se estava a proceder bem. Ana Mikailovna disse-lhe «sim» com um aceno de cabeça. Pedro retomou a sua pose ingénua da estátua egípcia, visivelmente incomodado por ver a sua desastrada pessoa ocupar tão largo espaço, e recorrendo a todos os estratagemas de espírito para parecer o mais pequeno possível. Olhou para o conde. Este tinha os olhos pousados no lugar onde se encontrava a figura de Pedro antes de se sentar. Ana Mikailovna, pela sua atitude, traduzia a importância tocante que atribuía a estes derradeiros momentos de despedida entre pai e filho. Isto prolongou-se por dois ou três minutos, que a Pedro se lhe afiguraram horas. Subitamente, um estremecimento perpassou pelas rugas da máscara do conde. O estremecimento acentuou-se, a boca, de contomos regulares, deformou-se. Só então Pedro compreendeu quão perto da morte estava seu pai. A boca toda contorcida soltou um estertor rouco e indistinto. Ana Mikailovna fixara o moribundo atentamente, na esperança de adivinhar o que ele queria, e mostrava- lhe ora Pedro, ora a poção, ora lhe mencionava em voz baixa o nome do príncipe Vassili, ora lhe indicava a coberta. O olhar e a fisionomia do moribundo traduziam impaciência. Fazia esforços para fixar o criado constantemente à cabeceira da cama, — Quer que o virem para o outro lado — murmurou este, que se levantou para voltar para o lado da parede o pesado corpo doente. Pedro ergueu-se para ajudar o criado. Enquanto o mudavam de posição, um dos braços do conde ficou inerte para trás, fazendo ele baldados esforços para o trazer ao seu lugar. O conde ou viu o olhar aflito que Pedro teve para o braço sem vida, ou outro qualquer pensamentoperpassou nesse instante pela cabeça do moribundo: olhou para o seu próprio braço, que, já lhe não obedecia, depois para a expressão aflitiva de Pedro, em seguida de novo para o braço e pelo seu rosto passou um débil e doloroso sorriso, que, destoava na sua máscara, parecendo, por isso mesmo, escarnecer da sua própria impotência. Ao deparar-se-lhe este sorriso. Pedro sentiu uma súbita crispação no peito, um formigueiro nas narinas e as lágrimas vieram turvar-lhe a vista. Tinham colocado o moribundo voltado para a parede. Ouviu-se que suspirava. — Adormeceu — disse Ana Mikailovna, ao ver uma das princesas que vinha substituí-la.— Vamo-nos. Pedro saiu. [XXIV] Na sala de visitas não estava já mais ninguém senão o príncipe Vassili e a mais velha das princesas, conversando animadamente debaixo do retrato de Catarina. Assim que viram chegar Pedro e a sua companheira, calaram-se. A princesa dissimulou qualquer coisa, pelo menos foi isso que Pedro pareceu distinguir, e murmurou: — Não posso ver esta mulher. — Katicha mandou servir o chá na salinha — disse o príncipe a Ana Mikailovna. — Vá, minha pobre Ana Mikailovna, tome qualquer coisa, caso contrário não aguentará. Nada disse a Pedro, limitando-se a apertar-lhe o braço com emoção. Pedro e Ana Mikailovna dirigiram-se para a salinha. — Não há nada melhor para levantar as forças que uma xícara deste excelente chá russo depois de uma noite em claro! — exclamou Lorrain com uma vivacidade refreada, enquanto bebia, em pequenos goles, por uma chávena da China, sem asa, de pé, na salinha redonda, diante de uma mesa onde estavam alguns pratos frios e um serviço de chá. Em volta da mesa tinham-se juntado, para recuperar forças, todos quantos haviam passado a noite em casa do conde Bezukov. Pedro lembrava-se muitíssimo bem daquela salinha circular com os seus espelhos e osseus guéridons. Aquando dos bailes que havia lá em casa, ele, que não sabia dançar, gostava de vir sentar-se naquela pequenina saleta, donde ficava a ver as senhoras de vestido de noite e os ombros nus cobertos de pérolas e diamantes, as quais, ao atravessar aquela dependência, se miravam vivamente nos espelhos iluminados em que as imagens se multiplicavam indefinidamente. Naquele momento a saleta estava apenas iluminada por duas velas, e na obscuridade, em cima de um guéridon, havia, pousados desordenadamente, pratos e chávenas de chá, enquanto pessoas da mais variada natureza, em trajes comuns, falando entre si em voz baixa, se sentavam, exprimindo, em todos os seus movimentos e em todas as suas palavras, a ideia de que não esqueciam um só momento o que estava a passar-se naquela noite e o que devia passar-se ainda no quarto de dormir. Pedro nada comeu, embora muito lhe apetecesse fazê-lo. Ia interrogar com os olhos a sua condutora, mas viu que ela tornava a entrar, na ponta dos pés, na sala de visitas, em que ficara o príncipe Vassili e a mais velha das princesas. Pedro pensou mais uma vez que assim tinha de ser, e, depois de hesitar alguns instantes, seguiu atrás dela. Ana Mikailovna estava de pé junto da princesa e ambas falavam ao mesmo tempo, em voz baixa, com animação. — Perdão, minha senhora, eu julgo saber o que se deve fazer e o que se não deve fazer — dizia a princesa, certamente na mesma agitação em que se encontrava no momento em que tinha fechado violentamente a porta do quarto, — Mas, minha querida princesa — volveu Ana Mikailovna, num tom modesto e insinuante, vedando à princesa o caminho para o quarto de dormir —, não seria penoso para o seu pobre tio, num momento destes, em que tanto necessita de repouso? Falar-lhe numa hora destas das coisas deste miserável mundo, quando a sua alma está já preparada... O príncipe Vassili estava sentado numa cadeira, as pernas cruzadas uma em cima da outra, numa das suas posições habituais. No seu rosto havia movimentos convulsivos, e as faces moles pareciam, na parte inferior, mais largas do que de costume; e fingia estar pouco atento à conversa das duas senhoras. — Então, minha boa Ana Mikailovna, deixe proceder Katicha. Bem sabe quanto o conde a estima. — Não sei o que há aqui dentro — disse a princesa, dirigindo-se ao príncipe Vassili, e apontando para a pasta de couro que tinha na mão. — O que eu sei é que o verdadeiro testamento está no escritório dele e que só se encontra aquipapelada esquecida... Quis passar, contornando Ana Mikailovna, mas esta fez um movimento rápido e de novo se lhe atravessou no caminho. — Bem sei, minha boa, minha querida princesa — disse, apoderando-se da pasta, e segurando-a com tanta forca que se via não estar disposta a largá-la de mão tão depressa— Minha querida princesa, peço-lhe, suplico-lhe, poupe o doente. Imploro-lhe... A princesa não deu resposta. Apenas se ouvia o ruído da luta que se travava para a conquista da pasta. Era evidente que se ela falasse não seria para dizer coisas amáveis a Ana Mikailovna. Mas esta resistia energicamente, embora a sua voz conservasse um tom suave e carinhoso. — Pedro, venha cá, meu amigo. Suponho que não será a mais rio conselho de família. Não é isto verdade, príncipe? — Porque é que não diz alguma coisa, primo? — gritou, subitamente, a princesa, e tão alto que em toda a sala se lhe ouviu a voz. — Fica calado quando uma pessoa estranha se atreve a intervir nos nossos assuntos e fazer uma cena no limiar do quarto de um moribundo? Intriguista! — exclamou ela com ódio, puxando pela pasta, com todas as suas forças. Para não ser obrigada a abandonar a presa, e sob a violência do puxão. Ana Mikailovna viu-se forçada a dar alguns passos avante, e pegou-lhe no braço. — Oh! — exclamou Vassili com espanto e num tom de censura — É ridículo — prosseguiu ele, erguendo-se— Vejamos, largue, faça favor. A jovem princesa abriu as mãos. — Largue — repetiu-lhe. — Eu encarrego-me de tudo. Vou já falar com ele. Sim, eu... Deixe isso comigo. — Mas, meu príncipe — disse Ana Mikailovna —, depois de um sacramento tão solene, deixe-o descansar um momento. Pedro, vá, dê a sua opinião — prosseguiu ela, dirigindo-se ao jovem, o qual, tendo-se aproximado, observava, espantado, a figura da princesa conturbada pela cólera e os movimentos nervosos do rosto do príncipe. — Lembre-se de que será responsável por tudo o que vier a acontecer — disse o príncipe Vassili com severidade. — O senhor não sabe o que faz. — Mulher infame! — gritou a princesa, lançando-se sobre ela, repentinamente, e arrancando-lhe a pasta das mãos.O príncipe Vassili, baixando a cabeça, deixou cair os braços para mostrar que nada podia fazer. Neste momento, a porta, aquela porta horrível em que os olhos de Pedro se haviam fixado durante tanto tempo e que antes se tinha aberto tão suavemente, escancarou-se, de súbito, com fragor e veio bater de encontro à parede, enquanto a segunda das princesas se lançava na sala torcendo as mãos. — Que estão aqui a fazer? — disse ela, num desespero — Ele vai-se embora e todos me deixam só. A princesa mais idosa deixou cair a pasta. Ana Mikailovna baixou-se, lépida, e, pegando no corpo de delito, desapareceu no quarto de dormir. A princesa e o príncipe Vassili, recuperando a serenidade, foram-lhe no encalço. Daí a pouco, a mais velha das princesas voltou a aparecer na sala de visitas, o rosto pálido e seco, mordendo o lábio inferior. Ao ver Pedro, veio-lhe um ataque de cólera, que deixou expandir livremente, — Agora pode estar satisfeito! -exclamou,— Ai tem o que esperava. E rompendo a soluçar, escondeu o rosto no lenço, desaparecendo da sala. O príncipe Vassili foi quem veio depois. Aproximou-se cambaleando do divã em que Pedro estava sentado e deixou-se cair com a cara entre as mãos. Pedro viu que ele estava pálido e que o queixo lhe tremia convulsivamente, como se tivesse febre. — Ah, meu amigo! — exclamou, pegando no braço de Pedro, e a sua voz exprimia uma sinceridade e uma doçura que este nunca lhe tinha notado — Os pecados que nós cometemos, tanto equívoco, e tudo isso para quê? Estou quase com sessenta anos, meu amigo... E eu... A morte é o fim de tudo. Ah, que coisa terrível é a morte!... — E principiou a soluçar. Ana Mikailovna foi a última a sair do quarto. Aproximou-se de ^Pedro em passos lentos e sem fazer ruído. — Pedro! — exclamou ela. Pedro interrogou-a com os olhos. A princesa beijou o rapaz na testa, cobrindo-o de lágrimas. Esteve calada alguns momentos. — — Acabou... Pedro olhou para ela através das suas lunetas. — Vamos, eu acompanho-o. Procure chorar. Não há nada como as lágrimas para aliviar. Levou-o para uma sala escura e Pedro sentiu-se contente por ninguém poder ver-lhe a expressão. Ana Mikailovna afastou-se, e quando voltou a entrar na salaencontrou-o, de cabeça encostada ao braço, dormindo profundamente. No dia seguinte disse-lhe: — Sim, meu caro, é uma grande perda para todos nós. Não falo de si. Mas Deus o ajudará, é novo e ei-lo à frente de uma imensa fortuna, assim o espero. O testamento ainda não foi aberto. Conheço-o muito bem para saber que isso não lhe dará volta à cabeça, mas impõe-lhe deveres, e é preciso ser homem. Pedro ficou calado. — Talvez mais tarde lhe conte, meu caro, que se eu ali não estivesse, só Deus sabe o que poderia ter acontecido. Ainda antes de ontem meu tio me prometia não se esquecer de Bóris. Mas não teve tempo. Espero, meu caro, que saiba cumprir os desejos de seu pai. Pedro não percebia nada, contentando-se em olhar para Ana Mikailovna sem dizer palavra e corando com um ar embaraçado. Esta, depois da sua conversa com Pedro, voltou para casa dos Rostov e deitou-se. No dia seguinte pela manhã contou aos Rostov e aos seus demais conhecimentos os pormenores da morte do conde Bezukov. Segundo dizia, o conde tinha morrido como ela própria desejaria morrer, e que o seu passamento fora não só emocionante, mas até mesmo edificante; a última entrevista entre pai e filho, então, tinha sido de tal modo comovente que ela não podia lembrar-se dessa cena sem ch5rar, e lhe era impossível dizer qual dos dois se portara melhor naqueles terríveis momentos: se o pai, que nos últimos instantes se tinha referido a todos os acontecimentos importantes, recordando-se de toda a gente e dizendo coisas tão comovedoras ao filho; se Pedro, que metia dó, de tal modo estava comovido, não obstante ter feito tudo para esconder a sua dor, para que o moribundo se não impressionasse. «É penoso, mas faz bem; eleva a alma ver homens como o velho conde e o seu digno filho.» Ana Mikailovna aludiu também à atitude da princesa e do príncipe Vassili num tom de censura, mas pedindo muito segredo e falando ao ouvido das pessoas. [XXV] Em Lissia Gori, domínio do príncipe Nicolau Andreivitch Bolkonski, aguardava- se, de dia para dia, a chegada do jovem príncipe André e de sua mulher. Mas estaexpectativa não alterava a ordem admirável que pautava a existência, no solar do velho príncipe. O general-chefe príncipe Nicolau Andreivitch, aquele a quem a gente da sociedade tinha apelidado do «rei da Prússia», desde que, no reinado de Paulo I, se recolhera às suas terras, nunca mais deixara a sua Lissia Gorí, onde vivia com sua filha Maria e a dama de companhia desta. Mademoiselle Bourienne. E quando viera o novo reinado, embora lhe tivesse sido permitido regressar à capital, ali continuara a viver, sem nunca mais de lá sair, dizendo que se alguém precisasse dele era natural que se dispusesse a percorrer as cento e cinquenta verstas que separavam Moscovo do seu domínio, pois, quanto a ele, a verdade é que não precisava de nada nem de ninguém. Era sua opinião não haver senão duas fontes do vício humano: a ociosidade e a superstição, e senão duas virtudes: a actividade e a inteligência. Ele próprio se encarregava pessoalmente da educação da filha, e para desenvolver nela estas virtudes cardinais, a partir dos vinte anos dava-lhe lições de álgebra e de geometria, não permitindo que ela estivesse desocupada o mais breve instante da sua vida. Quanto a ele, passava todo o seu tempo, quer a escrever as suas memórias, quer a resolver problemas de alta matemática, quer a tornear caixas de rapé num tomo mecânico, quer a trabalhar de jardineiro e a vigiar as construções que andava sempre a fazer no seu domínio. Partindo do princípio de que a ordem é a primeira condição de toda a actividade, na sua vida a ordem era levada ao extremo. As pessoas sentavam-se à mesa segundo ritmos inalteráveis e sempre iguais, e não somente sempre à mesma hora, mas, até mesmo, no mesmo minuto. Para com as pessoas que o cercavam, quer fosse a filha, quer os criados, era rígida e invariavelmente exigente. Esta a razão por que, não sendo propriamente violento, inspirava um terror e um respeito em que lhe não levavam a palma os homens mais brutais. Embora ele se encontrasse na inactividade e nenhuma influência tivesse já nos negócios públicos, não havia governador de província onde dispusesse de propriedades que se não sentisse na obrigação de se apresentar em sua casa, sujeitando-se, à semelhança do arquitecto, do jardineiro ou da própria princesa Maria a aguardar o momento em que o príncipe comparecia na sua vasta sala de visitas. E o certo é que todos naquela sala sentiam o mesmo receio e o mesmo respeito quando se abriam as altas portas maciças do gabinete e surgia a pequena figura do príncipe, com a sua cabeleira empoada, as suas mãozinhas secas e as suas sobrancelhas brancas, proeminentes, as quais, por vezes, quando ele as franzia, lhe velavam ofulgor do olhar brilhante, inteligente e sempre jovem. No dia da chegada do casal, pela manhã, segundo o costume, a princesa Maria. à hora habitual, entrou na sala de visitas para apresentar os seus cumprimentos matinais, benzendo-se, medrosa, enquanto orava, em voz baixa. Todos os dias entrava naquela sala e nem uma só vez deixava de rezar, pedindo a Deus que fizesse correr bem a entrevista que ia ter com o pai. O velho criado de cabeleira branca que estava na sala levantou-se sen) fazer ruído e disse em voz baixa: — Faça o favor de entrar. Atrás da porta ouvia-se o monótono rolar do tomo. A princesa empurrou timidamente o batente e a porta abriu-se sem esforço, deixando-a parada no limiar. O príncipe, que trabalhava ao tomo, depois de ter voltado a cabeça para trás prosseguiu na sua tarefa. O enorme gabinete transbordava de objectos que, evidentemente, estavam a todo o momento a ser precisos. A grande mesa coberta de livros e plantas, as altas estantes da biblioteca, com as chaves nas respectivas fechaduras, a secretária alta para se escrever de pé, sobre a qual estava aberto um caderno, o tomo, com as ferramentas espalhadas e as aparas de madeira pelo chão, tudo denunciava uma actividade constante, variada e metódica. Os movimentos das curtas pernas do príncipe, que calçava botas tártaxas pregueadas de prata, e a pressão enérgica das suas mãos magras e nervosas proclamavam a força tenaz e bem mantida de uma velhice vigorosa. Depois de ter feito girar ainda algumas vezes a roda do tomo, levantou o pé do pedal, limpou a goiva, guardando-a depois numa bolsa de couro pendente daquele e aproximando-se da mesa, chamou a princesa. Nunca abençoava os filhos, e estendendo à filha a cara eriçada de pêlos e ainda por barbear disse-lhe severamente, embora com um olhar meigo e cuidadoso: — Como vai isso?... Bom, então senta-te! Pegou num caderno de exercícios de geometria, escrito com a sua própria caligrafia, e puxou a cadeira com o pé. — Para amanhã! — exclamou, procurando rapidamente a página e marcando corri a unha robusta os períodos que era preciso estudar. A princesa debruçou-se para o caderno. — Espera.., uma carta para ti — disse de repente o velho, tirando de um sacosuspenso da mesa um sobrescrito com letra feminina e pousando-o em cima do tampo da mesa. Assim que a princesa viu a carta, toda ela se ruborizou. Pegou-lhe, pressurosa, fazendo urna grande vénia. — É da tua «Heloísa»? (Alusão a Júlia da Nova Heloísa. (N, dos T.) — perguntou o príncipe, mostrando, num frio sorriso, os dentes amarelados, mas ainda sólidos. — É, é da Júlia — replicou a princesa, com um olhar tímido e um sorriso receoso. — Ainda vou deixar passar mais duas cartas, mas a terceira hei-de lê-la — disse o pai severamente.— Tenho cá os meus receios de que vocês escrevam muita tolice. A terceira leio-a. — Pode ler esta, meu pai — respondeu a rapariga, corando ainda mais e apresentando-lhe a carta. — A terceira, eu disse a terceira — interrompeu o príncipe, repelindo a carta; e apoiando o cotovelo à mesa, puxou para si o caderno de geometria. — Como vê, menina — principiou o velho, debruçando-se muito para a filha por cima do caderno e apoiando-se corri uma das mãos nas costas da cadeira onde se sentava a princesa, que se sentiu envolta numa onda de cheiro a tabaco e desse aroma especial das pessoas idosas, muito do seu conhecimento. — Como vê, menina, estes triângulo são iguais: olhe, o ângulo A-B-C... A jovem princesa fitava, assustada, os olhos brilhantes do pai muito perto da sua cara. As maçãs do rosto cobriram-se-lhe de manchas vermelhas. Via-se perfeitamente que não compreendia e que estava cheia de medo: isso era o bastante para não poder apreender as longas explicações do pai, por mais claras que fossem. Ou por culpa do professor ou da aluna, o certo é que todos os dias acontecia o mesmo. Os olhos da jovem turvavam-se, não via, não ouvia mais nada, para ela nada mais existia além daquele rosto seco e severo muito perto do seu, daquele hálito e daquele aroma, e o seu único desejo seria fugir o mais depressa possível do gabinete para, sozinha, resolver com tranquilidade o problema que o pai lhe propunha. O velho exaltava-se, afastava e aproximava com estrépido a cadeira em que estava sentado, procurando não se deixar encolerizar, mas não raramente acabava a ferro e fogo, no meio de injúrias e até, por vezes, atirando fora o caderno. A princesa enganou-se na resposta que deu.— Que estúpida que tu me saíste! — gritou-lhe o pai, empurrando o caderno e voltando-se bruscamente. De chofre, ergueu-se, deu alguns passos de um lado para o outro, pousou a mão na cabeça da filha e tomou a sentar-se. Aproximando a cadeira, continuou a explicar. — Assim não fazemos nada, princesa, assim no fazemos nada — disse quando a filha fechava o caderno, depois da lição, disposta a partir— Mas a verdade é que as matemáticas são uma coisa importante, menina. E o que eu não quero é que tu fiques como todas as nossas estúpidas senhoras. Com tempo e paciência hás-de acabar por gostar da matemática. — Bateu-lhe na cara— Hei-de tirar-te da cabeça toda a estupidez que lá tens dentro. Ela quis abalar mas ele deteve-a com um gesto, e tirou de cima da secretária um livro novo com as folhas ainda por abrir. — Aqui tens um livro que te manda a tua «Heloísa», um tal A Chave do Mistério. É um livro religioso. Eu não gosto de interferir nas crenças religiosas de ninguém... Passei a vista pelo livro. Toma lá. E agora vai-te, vai-te embora. Bateu-lhe no ombro e foi ele próprio quem fechou a porta depois de ela sair. A princesa Maria voltou para o seu quarto, com aquele seu ar triste e receoso que raramente a abandonava e que ainda mais feios tornava os seus traços doentios e pouco regulares; sentou-se à sua mesa de trabalho, coberta de retratos, miniaturas, cadernos e livros. O sentimento da ordem que a ela lhe faltava tinha-o o pai em excesso. Pousou o caderno de geometria e abriu a carta com impaciência. Era da sua mais íntima amiga de infância: precisamente essa tal Júlia Karaguine, que estivera na festa em casa dos Rostov. Júlia escrevia, em francês: Querida e excelente amiga: Que coisa terrível e pavorosa é a ausência! Por mais que eu me diga a mim própria que a metade da minha existência e da minha felicidade está contigo, que, apesar da distância que nos separa, os nossos corações estão unidos por laços indissolúveis, o meu coração revolta-se contra o destino e é-me impossível, não obstante os prazeres e as distracções que me cercam, vencer uma certa tristeza oculta que sinto no fundo do coração, desde quenos separámos. Porque não estamos nós juntas como no Verão passado no teu gabinete, sentadas no teu canapé, o canapé das confidências? Porque é que eu não posso, como há três meses, colher novas forças morais no teu olhar, tão meigo, tão calmo e tão penetrante, olhar de que eu tanto gostava e que julgo ainda ver diante de mim enquanto te vou escrevendo! Ao chegar a este ponto da carta, a princesa Maria soltou um suspiro e lançou um olhar para o espelho que estava à sua direita. O cristal devolveu-lhe uma desajeitada e enfezada figura. Os seus olhos, sempre tristes, fixavam o espelho com uma expressão particularmente desencantada. «Tudo para me lisonjear», pensou, e afastou os olhos do espelho, prosseguindo na leitura da carta. Realmente. Júlia não lisonjeava a amiga: esta tinha, com efeito, uns olhos grandes, tão profundos e tão luminosos que dir-se-ia irradiarem, de vez em quando, quentes raios de luz, olhos tão belos que a cada momento, apesar da fealdade dos traços do seu rosto, lhe emprestavam mais atractivos que se ela fosse, de facto, bonita. A princesa nunca seria, porém, capaz de descobrir esta bela expressão do seu olhar, essa expressão que lhe vinha aos olhos quando ela menos sonhava. Acontecia consigo o que tantas vezes se dá com outras pessoas: sempre que olhava para o espelho, vinha-lhe à cara um ar afectado e pouco natural que a tornava feia. Continuou a ler: Em Moscovo não se fala noutra coisa senão em guerra. Um dos meus dois irmãos já seguiu para o estrangeiro, o outro está na Guarda, que vai partir para a fronteira. O nosso querido imperador saiu de Petersburgo e segundo consta está disposto a expor a sua preciosa existência aos perigos da guerra. Deus queira que o monstro corso que acabou com a tranquilidade na Europa venha a ser esmagado pelo anjo que o Todo— Poderoso, na Sua infinita misericórdia, nos deu por soberano. Sem falar nos meus irmãos, esta guerra privou-me de um dos conhecidos mais queridos do meu coração. Refiro-me ao jovem NicolauRostov, que no seu entusiasmo não pôde resignar-se a manter-se inactivo e abandonou a Universidade para se alistar no exército. Pois bem, querida Maria, devo confessar-te que, apesar de muito novo, a sua partida para a guerra foi para mim motivo de grande desgosto. Este rapaz, de quem te falei no Verão passado, tem tanta nobreza e tanta juventude que é difícil encontrar-se alguém como ele, no tempo em que vivemos, entre os nossos velhos de vinte anos. É sobretudo tão franco e tão bom de coração! E tão puro e tão poético que as minhas relações com ele, embora fossem passageiras, as considero das mais doces alegrias do meu coração, que tanto já tem sofrido. Hei-de contar-te um dia as nossas despedidas e o que dissemos no momento em que nos separámos. Por agora tudo isto ainda está muito fresco. Que feliz és, querida amiga, visto não conheceres alegrias tão grandes e dores tão pungentes! És feliz, porque estas são geralmente mais fortes do que aquelas. Bem sei que o conde Nicolau é muito novo para poder vir a ser para mim mais que um amigo, mas esta afectuosa amizade, estas nossas reacções, tão poéticas e tão puras, o meu coração estava a pedi-las. Não falemos, porém, mais nisso. A grande nova do momento, assunto de toda Moscovo, é a morte do conde Bezitkov e a história da sua herança. Imagina que as três princesas não vieram, a receber quase nada, o príncipe Vassili nada recebeu, e quem tudo herdou foi Monsieur Pierre, que, ainda, por cima, foi reconhecido filho legítimo, herdando, portanto, também o título de conde Rezukov, e é hoje possuidor da maior fortuna de toda a Rússia. Dizem que o príncipe Vassili desempenhou um, feio papel em, toda, esta história da herança do conde e que regressou a Petersburgo de orelha murcha. Devo confessar-te que muito pouco percebo destas histórias de legados e de testamentos; o que te sei dizer éque desde que o rapa;, por todos nós conhecido por Monsieur Pierre se tomou conde de Bezukov e passou a dispor de uma das maiores fortunas da Rússia muito me divirto a observar a mudança no tom, e nas maneiras das mães com várias filhas para casar e até no tom e nas maneiras das próprias meninas em relação a este indivíduo, o qual, aqui para nós, sempre me pareceu um zé- ninguém. Como, de há dois anos a esta parte, toda esta gente se entretém a arranjar-me noivos que na maior parte dos casos eu nem sequer conheço, a crónica nupcial de Moscovo neste momento faz de mim condessa Bezukov. Mas deves compreender que nada faço Para vir a gozar dessa honra. A propósito de casamentos.— queres saber? Há dias, a tia de toda a gente. Ana Mikailotna, contou-me, pedindo-me o maior segredo, que se preparava aqui um casamento para ti. Trata-se, nem mais nem menos, do filho do príncipe Vassili, o Anatole, rapaz que o pai gostaria de arrumar, casando-o com uma menina rica e distinta. Foi em ti que recaiu a escolha dos pais. Não sei como encararás tu a história, mas sinto-me na obrigação de te avisar. Dizem que é bonito rapaz e muito má pessoa; é tudo quanto pude apurar a seu respeitou. Mas basta de tagarelices. Estou no fim da minha segunda folha de papel, e minha — mãe mandou-me chamar para irmos jantar a casa dos Apraksine. Lê o livro místico que junto te envio, e que neste momento esta aqui a fazer furor. Embora neste livro haja coisas difíceis de compreender para o fraco entendimento humano, é um livro admirável, cuja leitura serena eleva a alma. Adeus. Os meus respeitos ao senhor teu pai e cumprimentos a Mademoiselle Bourienite. Um abraço amigo, Júlia. P. S. — Manda-me notícias de teu irmão e da suaencantadora mulher. A princesa reflectiu, sorriu pensativamente, e, iluminada pelos seus brilhantes olhos, toda a sua expressão se lhe transformou naquele instante. Levantou-se de chofre, aproximou-se da mesa no seu passo moroso. Pegou numa folha de papel e a mão deslizou-lhe, rápida. Eis a resposta à carta de Júlia: Querida e excelente amiga: A tua carta de 13 deu-me muita alegria. Ainda gostas então de mim, minha poética Júlia? Quer dizer que a ausência de que tanto mal dizes não teve sobre ti a sua habitual influência. Queixas-te da ausência! Que diria eu, se tivesse coragem para me lamentar, eu, que me vejo privada de todos aqueles que me são queridos! Se não fosse a religião, nosso consolo, que triste seria a nossa vida. Porque julgas ver em mim olhar severo quando me falas do teu afecto pelo rapaz? Neste capítulo só para mim sou dura. Compreendo muito bem esses sentimentos nas outras pessoas e, se me não é permitido aprová-los, por nunca ter passado por eles, a verdade é que os não condeno. Parece-me apenas que o amor cristão, o amor do próximo, o amor pelos nossos inimigos é mais meritório, mais suave e mais belo que os sentimentos inspirados pelos lindos olhos de um jovem a uma rapariga poética e amorável como tu. A notícia da morte do conde Bezukov já aqui tinha chegado antes da tua carta, e meu pai sentiu-a muito. Segundo ele, era o último representante do grande século, e agora só falto chegar a sua vez, embora esteja disposto — diz — a fazer quanto puder para que esse momento chegue o mais tarde possível. Que Deus nos proteja contra tamanha desgraça! Não sou da tua opinião a respeito do Pedro, pessoa que eu conheci em criança. Pareceu-me sempre ter um bom coração, e esta é a qualidade que eumais prezo nas pessoas. Quanto à herança e ao papel que nela desempenhou o príncipe Vassili acho isso muito triste para os dois. Ah, querida amiga, as palavras do nosso Divino Salvador — é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino dos Céus — estas palavras são tremendamente verdadeiras; lastimo o primo Vassili e ainda lamento mais o Pedro. Tão novo e ia esmagado ao peso de tamanha fortuna, que grandes não irão ser para ele as tentações deste Se me perguntassem o que eu desejo mais nesta vida, diria que quereria ser mais pobre que o mais pobre dos indigentes. Muito e muito obrigada, querida amiga, pelo livro que me mandaste e que tanto êxito tem tido aí. No entanto, visto dizeres-me que no meio de muitas coisas boas outras há que o fraco entendimento humano não pode atingir, parece-me inútil perdermos tempo com uma leitura ininteligível, que por isso mesmo se tornará infrutífera. Nunca pude compreender a paixão que têm certas pessoas em perturbar o espírito consagrando-se a leitura de livros místicos que apenas servem para levantar dúvidas nas suas almas, exaltando a imaginação e dando-lhes um temperamento exagerado, em tudo contrario à simplicidade cristã. É bom lermos os Apóstolos e o Evangelho. Não procuremos compreender o que neles há de misterioso, pois, como ousaríamos nós, miseráveis pecadores que somos, iniciar-nos nos terríveis segredos da Providência enquanto estivermos ligados a este despojo carnal que levanta entre nós e o Eterno um impenetrável véu? Limitemo-nos, pois, a estudar os princípios sublimes que o nosso Divino Salvador nos confiou para nosso governo na Terra; procuremos conformar-nos com eles e segui-los; persuadamo-nos de que quanto mais asas dermos ao nosso fraco espírito humano mais isso agrada a Deus, que rejeita toda a sabedoria que d’Ele não vem; e quequanto menos procurarmos aprofundar aquilo que Ele houve por bem esconder do nosso entendimento, tanto mais depressa Ele no-lo revelará graças ao Seu divino espírito. Meu pai não me falou em qualquer pretendente; disse- me apenas que tinha recebido uma carta e que aguardava a visita do príncipe Vassili. Quanto ao projecto de casamento em que falas, dir-te-ei, querida e excelente amiga, que o casamento, na minha opinião, é uma instituição divina a que nós nos devemos suspeitar. Por mais penso que isso seja para mim, se Deus Todo-Poderoso algum dia vier a impor-me os deveres de esposa e de mãe, fica certa de que procurarei cumpri-los tão fielmente quanto puder, sem me preocupar com o exame dos meus sentimentos em relação àquele que Ele me destinar para marido. Recebi uma carta de meu irmão anunciando-me a sua chegada a Lissia Gori na companhia da mulher. Será breve a minha alegria, pois que ele seque daqui a tomar parte nesta guerra infeliz, para que nós somos arrastados só Deus sabe como e porquê. Não é só aí, turbilhão dos negócios e centro do mundo, que se não fala senão em guerra, mas até aqui, no meio dos trabalhos agrícolas e da paz da natureza, que é assim que o homem das cidades era geral vê o campo, se fazem sentir os boatos de guerra. Meu pai só fala em, marchas e contramarchas, coisas de que nada compreendo: e aqueles de ontem, no decurso do meu passeio habitual pelas ruas da aldeia, assisti a uma cena dilacerante... Passava um comboio de— recrutas, alistados nestas terras, que seguiam para os quartéis... Era de ver o estado das mães, das mulheres e dos filhos daqueles que partiam, e de ouvir os soluços de uns e outros! Dir-se-à que a humanidade esqueceu as leis do seu Divino Salvador, que não fez outra coisa senão pregar oamor e o perdão das ofensas, para não pensar senão na arte de nos matarmos uns aos outros. Adeus, querida e boa amiga, que o nosso Divino Salvador e a Sua Santa Mãe vos tenham na Sua santa e poderosa guarda. Maria. — Ali, estava a expedir o seu correio, princesa; eu já expedi o meu. Escrevi à minha pobre mãe — disse, sorrindo. Mademoiselle Bourienne, com a sua voz cheia e agradável, em que qualquer coisa arranhava. Na atmosfera triste e sombria em que a princesa vivia a presença de Mademoiselle Bourienne era uma nota de alegre frivolidade e de auto-satisfação. — Princesa, preciso de a prevenir — acrescentou ela, baixando a voz.— O príncipe teve uma altercação.— E o seu defeito de pronúncia acentuou-se especialmente ao pronunciar a palavra «altercação». Dir-se-ia que se estava a ouvir a si mesma.— Uma altercação com Michel Ivanoff. Está muito mal disposto, muito zangado. Seja prudente, sim? — Ah!, querida amiga — replicou a princesa —, já lhe pedi que nunca me falasse no estado de espírito de meu pai. Não me atrevo a julgá-lo e não gosto que os outros o façam. A princesa olhou para o relógio, e, ao ver que já passavam cinco minutos da hora fixada para o seu cravo, precipitou-se no salão, diligentíssima. Entre o meio- dia e as duas horas, de acordo com o horário estabelecido, o príncipe dormia a sesta e ela devia estudar cravo. [XXVI] O velho criado cabeceava, sentado na sala de espera, ouvindo o ressonar do príncipe no seu imenso gabinete de trabalho. Do outro extremo da casa, através das portas fechadas, chegavam até ali, pela vigésima vez, os compassos difíceis da sonata de Dusseck. Nesse momento parava diante da escadaria principal uma carruagem e umpequeno carro. Da carruagem apeou-se o príncipe André, que ajudou a sua mulherzinha a descer, deixando-a subir a escada diante de si. O velho Tikon, com a sua cabeleira postiça, espreitou pela porta da sala de espera e disse, em voz baixa, que o príncipe estava a descansar, dando-se pressa em fechar a porta. Tíkon sabia muitíssimo bem que nada, absolutamente nada, nem mesmo a chegada do filho ou qualquer outro acontecimento imprevisto, deveria perturbar a rotina do seu amo. O príncipe André, claro está, sabia isso tão bem como o próprio Tikon. Consultou o relógio, para verificar se os hábitos do pai não tinham sido alterados desde que o não via, e, persuadido de que tudo estava na mesma, disse para a mulher: — Dentro de vinte minutos estará de pé. Vamos ver a princesa Maria. A princesinha engordara um pouco, mas os seus olhos e o seu lábio sorridente, que um ligeiro buço sombreava, continuavam a ter o ar alegre e gentil sempre que falava. — Mas é um palácio — disse para o marido, olhando em roda, no mesmo tom em que se felicita o organizador de um baile.— Vamos, depressa, depressa! Falando, ia sorrindo para toda a gente, para Tikon, para o marido, para o criado que a conduzia. — É a Maria que está a estudar? Não façamos barulho, quero surpreendê-la. O príncipe André seguiu-a com o seu ar cortês e triste. — Estás mais velho. Tikon — disse ele, de passagem, ao velho, que lhe beijava a mão. Antes de terem chegado à dependência onde se ouvia o cravo, viram sair de uma porta lateral uma bonita francesinha loura. Mademoiselle Bourienne parecia louca de contentamento. — Ah!, que alegria para a princesa! — disse ela. — Enfim, preciso de a prevenir. — Não, não, por favor... é Mademoiselle Bourienne, já a conheço pela amizade que a minha cunhada lhe tem — disse a mulher de André, beijando-a — Ela não nos espera! Aproximaram-se da porta da saleta, donde continuavam a sair sempre os mesmos compassos indefinidamente repetidos. André parou, franzindo as sobrancelhas, como se sentisse uma penosa impressão. A princesa sua mulher entrou, o motivo da sonata foi interrompido no meio; ouviu-se um grito, os passos pesados de Maria e beijos ressoaram. Quando Andréentrou, por sua vez, viu as duas cunhadas, que pouco se tinham conhecido na altura do casamento, abraçadas uma à outra, beijando-se mutuamente, sem escolher onde. Mademoiselle Bourienne ali estava, com a mão no coração, sorrindo cheia de beatitude, e tão pronta a rir como a chorar. André encolheu os ombros e franziu as sobrancelhas, como costumam fazer os amadores de música quando um instrumento desafina. Por fim, as duas mulheres separaram-se, e, em seguida, para recuperarem o tempo perdido, recomeçaram a estreitar-se nos braços uma da outra, a beijarem-se mutuamente, rompendo em soluços, com grande surpresa do príncipe, e abraçando-se de novo. Mademoiselle Bourienne pôs-se também a soluçar. O príncipe André deu sinal de uma certa impaciência; mas elas achavam tão natural chorar assim que lhes não era possível imaginarem o seu mútuo encontro de outra maneira. — Ah!, minha querida!... Ah!. Maria!... — disseram, de repente, transitando das lágrimas para o riso. — Sonhei esta noite... — Não nos esperava... Ah! Maria, emagreceu... E a minha amiga recuperou... — Conheci logo a senhora princesa — interveio Mademoiselle Bourienne. — E eu que não desconfiava de nada!... — exclamou a princesa Maria. — Ah!. André, não o via. André apertou a irmã contra si e disse-lhe que ela ainda não deixara de ser a mesma choramingas. Maria olhou para o irmão, e no meio das suas lágrimas deteve nele o quente e suave olhar cheio de enternecimento dos seus grandes olhos luminosos, lindíssimos naquele momento. A princesa Lisa falava sem descanso. O seu làbiozinho superior não fazia outra coisa senão agitar-se continuamente, de cima para baixo, sobre o lábio inferior, e um perpétuo sorriso lhe iluminava os dentes e os olhos. Historiava um incidente que lhe tinha acontecido na muda de Spass, o qual poderia ter sido perigoso para ela no estado em que estava, e imediatamente se pôs a dizer que deixara todos os seus vestidos em Petersburgo e que não iria ter nada que vestir, que André tinha mudado muito, que Kitti Odintsova casara com um velho, e que ela arranjara para Maria um noivo a sério, mas que disso haviam de conversar mais tarde. A princesa Marm, calada, não deixara de fitar o irmão, e os seus lindos olhos estavam plenos de afectuosidade e tristeza. Via-se bera que os seus pensamentos tomavam um caminho muito diverso dos da sua cunhada. Enquanto esta falava da última festa a que assistira em Petersburgo, a princesa Maria voltou-se para o irmão.— Está então resolvido a ir para a guerra. André? — interrogou ela, no meio de um suspiro. Lisa estremeceu também. — Sim, e amanhã mesmo — replicou ele. — Abandonou-me aqui, e só Deus sabe porquê, quando ele podia ser promovido... A princesa Maria não a deixou acabar e, seguindo o curso dos seus pensamentos, disse para a cunhada, indicando afectuosamente com os olhos o volume do seu ventre. — É realmente verdade? — perguntou. Lisa mudou de expressão. Teve um suspiro. — Sim, é verdade — volveu ela.— Ah, é assustador... Os lábios contraíram-se-lhe. Aproximou a cara do rosto da cunhada e subitamente principiou a chorar. — Precisa de descansar — disse o príncipe André franzindo as sobrancelhas. — Não é verdade. Lisa? Leva-a contigo, que eu vou ver o pai. Como vai ele? Sempre na mesma? — Sim, está sempre na mesma; não sei como tu o vais achar — respondeu Maria com jovialidade. — Sempre as mesmas horas e os passeios pelas avenidas? E o tomo? — perguntou André, com um sorriso imperceptível que queria dizer que, apesar de todo o seu amor e o seu respeito filiais, conhecia as fraquezas do pai. — Sim, sempre as mesmas horas, e o tomo e, ainda por cima, as matemáticas e as minhas lições de geometria — replicou jovialmente a princesa Maria, como se estas lições de geometria fossem uma das maiores alegrias da sua vida. Passados que foram os vinte minutos necessários para o descanso do velho. Tikon veio buscar o príncipe para o conduzir junto do pai. O velho dispensara-se de cumprir o seu programa em honra do filho: mandara-o entrar para os seus aposentos enquanto se vestia para o jantar. Conservava os velhos costumes: o cafetã e o pó. E quando André apareceu, já não com o aspecto e as maneiras entediadas que costumava aparentar nos salões, mas com o ar animado que mostrava em suas conversas com o Pedro, o velho estava no seu gabinete de toilette, enterrado numa poltrona de marroquim, de penteador, confiando a cabeça aos cuidados de Tikon. — Eh, o guerreiro! Então queres-te bater com o Bonaparte? — exclamou,abanando a cabeça empoada tanto quanto lho consentia Tikon, que estava a entrançar-lhe o rabicho. — Trata de te portares à altura, ou então não tarda muito que também nós estejamos a fazer parte do número dos seus súbditos. Como vai isso? — acrescentou, oferecendo-lhe a face, O velho estava de óptima disposição, depois do sono que costumava fazer antes de jantar. Tinha por hábito dizer que a sesta depois de jantar era prata e antes de jantar ouro. Por debaixo das suas espessas sobrancelhas ia lançando ao filho olhadelas matreiras. O príncipe André aproximou-se e beijou o pai no sítio designado. Não respondeu ao tema favorito da conversa paterna, aos seus gracejos sobre os militares do tempo e especialmente sobre Bonaparte. — Sim, viemos vê-lo, meu pai; minha mulher, que está no seu estado interessante, e eu — disse, observando, com o seu vivo olhar, nem por isso menos respeitoso, todos os movimentos da fisionomia paterna.— Como tem passado de saúde? — Só estão doentes, meu rapaz, os imbecis e os estroinas, e tu conheces-me. Estou sempre ocupado, da manhã à noite, e sou pessoa sóbria; por conseguinte, tenho saúde. — Louvado seja Deus! — exclamou o filho, sorrindo. — Deus não é para aqui chamado. Então conta-me cá — prosseguiu, voltando à sua cisma familiar — como é que os Alemães vos ensinaram a combater o Bonaparte segundo a vossa nova ciência, a chamada estratégia? O príncipe André sorriu. — Deixe-me tomar fôlego, meu pai — dizendo o que, não deixava de mostrar, pela sua expressão, que as manias do pai o não impediam de o adorar e de o venerar. — Nem sei ainda onde é que nos vai instalar. — Tolice, tolice — exclamou o ancião, sacudindo o rabicho, para ver se estava a seu gosto, e dando o braço ao filho. — Os aposentos da tua mulher estão preparados. A Maria se encarregará de a conduzir até lá, e ela lhos mostrará, e hão-de ter .muito que dizer. Isso é lá com elas. Estou muito contente que ela tenha vindo. Senta-te, senta-te e conta-me. O exército de Mikelson, sim, bem sei, e o de Tolstoi também... Operações simultâneas.., e o exército do Sul, o que vai fazer? A Prússia, a neutralidade, sim, bem sei. E a Áustria? Enquanto falava, tinha-se levantado da poltrona e andava de um lado para ooutro, seguido por Tikon, que lhe ia apresentando as diversas peças de vestuário. — E a Suécia? Como é que vamos atravessar a Pomerânia? O príncipe André, perante a insistência do pai, primeiro contrariado, depois numa animação crescente, e deixando de falar russo, para falar francês, como era seu costume, principiou a expor o plano da futura campanha. Aludiu à forma como um exército de oitenta mil homens deveria ameaçar a Prússia, para obrigá-la a abandonar a neutralidade e arrastá-la para a guerra, a maneira como uma parte deste exército viria juntar-se ao sueco, em Stralsund, como duzentos e vinte mil austríacos, reunidos a cem mil russos, deviam agir em Itália e sobre o Reno, como cinquenta mil russos e o mesmo número de ingleses viriam a desembarcar em Nápoles e como no seu total um exército de quinhentos mil homens deveria atacar os Franceses em diversas frentes. O príncipe não mostrava o mais pequeno interesse por esta exposição e nem parecia mesmo ouvi-la, continuando a vestir-se enquanto andava de um lado para o outro. Por três vezes interrompeu o filho de maneira assaz inesperada. A primeira foi para gritar: — O branco!, o branco! Com isto queria dizer que Tikon não estava a dar-lhe o colete que ele queria. A segunda, deteve-se, para perguntar: — E é para breve o parto? — Depois abanou a cabeça reprovadoramente.— É mau! Continua, continua. A terceira vez foi quando o príncipe André chegava ao cabo da sua exposição. Pôs-se então a cantarolar, numa voz de velho em falsete: Malbroug vai para a guerra. Sabe Deus quando voltará. O filho contentou-se em sorrir. — Não posso dizer que estou de acordo com este plano — disse ele — Limito- me a expor-lho tal como ele é. Napoleão também já tem o seu, que é tão bom como este. — Bom, não me disseste nada de novo. — E, pensativamente, o velho príncipe repetiu, resmungando entre dentes: — Sabe Deus quando voltará. E agora para a mesa. [XXVII] A hora precisa, o príncipe, empoado e barbeado, deu entrada na sala de jantar, onde o aguardavam a nora, a princesa Maria. Mademoiselle Bourienne e o arquitecto, que, por estranha fantasia, se sentava com o príncipe à mesa, embora esse homem, insignificante pessoa, que era, no ponto de vista social, não contasse com tanta deferência. O príncipe, que era muito respeitador da etiqueta e das diferenças de classe e só muito raramente sentava à sua mesa os mais importantes funcionários da província, quando menos se esperava, quisera mostrar, na pessoa do arquitecto. Mikail Ivanovitch, o qual tinha por hábito assoar-se, disfarçadamente, a um grande tabaqueiro, que os homens para ele eram todos iguais. Várias vezes explicara à filha que Mikail Ivanovitch em nada era inferior a qualquer deles. À mesa era muito vulgar o príncipe dirigir a palavra ao pouco falador Mikail Ivanovitch. Na sala de jantar, imensa como todas as dependências da casa, as pessoas de família e os criados aguardavam a chegada do príncipe, de pé, atrás de cada cadeira; o chefe, de guardanapo no braço, vigiava a mesa, piscando o olho aos lacaios, enquanto ia e vinha, no seu passo tranquilo, entre o grande relógio e a porta por onde o príncipe devia entrar. André contemplava um grande quadro de moldura dourada, novo para ele, com a árvore genealógica dos príncipes Bolkonski, simétrico com outro quadro, do mesmo tamanho, que representava muito mal — obra, claro está, de qualquer pintor criado no solar— um príncipe soberano, com a coroa, provavelmente um descendente de Rurik e antepassado da família dos Bolkonski. O príncipe André observava esta árvore genealógica, abanando a cabeça. A certa altura principiou a rir, como quando se olha para uma caricatura. — Ora aqui está ele! — exclamou para a princesa Maria, que se aproximara. Maria encarou com o irmão sem esconder estar surpreendida. Não percebia porque ele estava a rir. Tudo quanto o pai fazia era para ela motivo de veneração, e não admitia críticas. — Cada um lá tem o seu calcanhar-de-aquiles — prosseguiu André — Um homem tão inteligente e prestar-se a uma coisa tão ridícula! A princesa não podia admitir a audácia destas observações, e preparava-se para responder quando se ouviram os passos, que todos esperavam, vindos do gabinete de trabalho do príncipe. O velho militar entrou na sala de jantar com o seu passo rápido e vivo, como se quisesse opor-se, com aqueles seus modosanimados, à ordem severa que reinava na casa. Na mesma altura o grande relógio deu duas horas, e outro, retinindo fracamente, respondeu-lhe, lá de dentro, do salão. O príncipe deteve-se. Por sobre as suas espessas sobrancelhas proeminentes as suas pupilas severas, vivas e brilhantes, observaram todas as pessoas presentes, fixando-se na mulher do príncipe André. Esta sentiu nesse momento a impressão que costumam sentir os cortesãos no acto da chegada do soberano, um sentimento misto de temor e de respeito, que o príncipe inspirava a todos quantos dele se aproximavam. Depois passou a mão pelos cabelos da jovem princesa e deu- lhe umas pancadinhas na nuca um pouco atabalhoadamente. — Estou muito contente, estou muito contente de a ver — disse, olhando-a fixamente uma vez mais, e, de chofre, voltou-se para sentar-se à mesa. — Tomem os seus lugares, tomem os seus lugares! Mikail Ivanovitch, sente-se. O velho príncipe indicou à nora um lugar a seu lado. Um criado ajudou-a a sentar. — Sim, senhor, sim, senhor! — exclamou, ao ver as amplas formas da princesa. — Chama-se a isto não perder tempo! Hem, que marota! E rompeu num riso seco, frio e desagradável, o riso que tinha sempre, um riso só da boca, não dos olhos. — É preciso andar, andar o mais possível, o mais possível acrescentou. A princesinha não ouvia ou não queria ouvir o que ele dizia. Estava calada e parecia preocupada. Só quando o príncipe lhe perguntou pelo pai, principiou a falar e a sorrir. 1nterrogou-a acerca das pessoas que ambos conheciam. Então ela sentiu-se à vontade e pôs-se a tagarelar, transmitindo-lhe os cumprimentos de alguns conhecidos, contando-lhe casos de má-língua da cidade. — A condessa Apraksine, coitada, perdeu o marido e está farta de chorar — dizia ela, cada vez mais animada. A medida que se entusiasmava, o príncipe ia-a olhando cada vez mais severamente, e, de súbito, como se a tivesse estudado o suficiente e acabasse por fazer dela um ideia exacta, desviou para outro lado a sua atenção, dizendo a Mikail Ivanovitch: — Pois é verdade. Mikail Ivanovitch, as coisas não vão correr bem para o nosso Bonaparte. Como me contou o príncipe André — falava sempre de André na terceira pessoa —, estão a juntar-se forças contra ele. E nós que sempre o considerámos uma, nulidade.Mikail Ivanovitch, que desconhecia por completo o momento em que ambos tinham falado de Bonaparte, mas que percebia que se estavam a servir dele para abordar a conversa do costume, lançou um olhar surpreso ao moço príncipe, sem saber o que ia passar-se. — Sim, é um grande estratego — disse o príncipe ao filho, apontando-lhe o arquitecto. E a conversa de novo incidiu sobre a guerra, sobre Bonaparte, os generais e os estadistas do tempo. O facto é que o velho príncipe estava realmente convencido não só de que todos os grandes homens do momento eram criançolas, ignorando, inclusivamente, o bê-á-bá da guerra e da política, mas também, que Bonaparte não passava de um insignificante francês, que triunfara apenas por não haver para se lhe opor um. Potemkine ou um Suvorov. Estava mesmo convencido de que não haveria na Europa dificuldades políticas nem realmente haveria guerra. Estava-se apenas a representar uma comédia de fantoches, em que os homens da época fingiam desempenhar um papel muito sério. O príncipe André acolhia com grandes gargalhadas estas trocas, e, é claro, divertia-se a excitar o pai e a ouvi-lo. — Tudo o que é de outros tempos lhe parece excelente — disse ele —, mas não é verdade que o próprio Suvorov caiu na armadilha que lhe preparou Moreau e não foi capaz de se ver livre dela? — Quem te disse isso? Quem te disse isso? — interrogou o príncipe. — Suvorov! — E afastou de diante de si o prato, que Tikon pressurosamente levantou. — Suvorov!... Pensa um pouco, príncipe André. Eram dois homens: Frederico e Suvorov... Moreau!... Mas este Moreau teria ficado prisioneiro se Suvorov tivesse as mãos livres, e as suas mãos estavam ligadas pelo Hofskriegswurstsehnappsrath. Nem o Diabo teria sido capaz de se ver livre dele. Ora, ainda os hás-de ver, esses Hofskriegsivurstschnappsrath! Se Suvorov não pôde levar a melhor, como é que Mikail Kutuzov o conseguirá? Sim, meu amigo – prosseguiu —, com os generais que temos nada podemos contra Bonaparte. O que nós precisávamos era de franceses — ladrão para roubar outro ladrão. Lá mandaram o alemão Pahiem a Nova Iorque, à América, para apanhar o francês Moreau para o exército russo. Lindo serviço!... Eram, porventura, alemães os Potemkines, os Suvorovs ou os Orlovs? Não, meu rapaz, ou vocês, lá para osvossos lados, perderam a cabeça, ou então sou eu quem está a ficar maluco. Deus vos acuda, mas cá estamos para ver. E dizem eles que Bonaparte é um grande general! Hum! Hum!... — Não tenho a pretensão de pensar que todas as medidas tomadas sejam de primeira ordem — replicou o príncipe André —, mas não posso compreender que o pai tenha uma tal, opinião acerca, de Bonaparte. Pode rir-se à, vontade. O que não lia duvida é que Bonaparte é um grande general! — Mikail Ivanovitch! — exclamou o velho príncipe, dirigindo-se ao arquitecto, o qual, todo absorvido a comer o assado, teria preferido que o esquecessem — Eu disse-lhe que Bonaparte era um grande estratego? Aqui está um da, mesma opinião. — Mas com certeza. Excelência — replicou o arquitecto. E o príncipe riu de novo com o seu frio riso. — Bonaparte nasceu num sino. Tem soldados. E principiou por se atirar aos Alemães. Desde que o mundo é mundo que toda a gente venceu os Alemães. E eles nunca venceram ninguém, a não ser quando se batem uns contra os outros. Foi combatendo contra eles que Napoleão se tomou glorioso. E o príncipe pôs-se a expor todos os erros que, segundo ele, tinham sido cometidos por Bonaparte em todas as suas campanhas, e até, inclusivamente, nos negócios públicos O filho não o contrariava, mas era claro que, apesar de toda, aquela argumentação, ele, tal como o velho pai, nunca mudaria de opinião. André ouvia, procurando dominar-se, para não fazer qualquer objecção, surpreendido, no entanto, que aquele velho, há tantos anos para ali isolado no meio das suas terras, fosse capaz de julgar e de conhecer, em todos os seus pormenores e com tanta finura, a situação militar e política da Europa dos últimos anos. — Julgas que um velho como eu nada percebe dos problemas actuais? — concluiu ele, — Que queres tu então que eu faça? De noite não durmo. Vamos lá a saber onde é que esse teu grande general já demonstrou que o era de facto? — Isso levaria tempo — replicou o filho. — Que tenhas muita saúde mais o teu Bonaparte. Mademoiselle Sourienne, aqui tem mais um admirador do grosseiro do seu imperador! — exclamou ele num francês excelente. — Sabe que eu não sou bonapartista, meu príncipe. — Sabe Deus quando voltará... — cantarolou o príncipe, na sua voz de falsete,e, foi a rir, num riso igualmente em falsete, que se levantou da mesa. A princesinha estivera calada durante toda a discussão e até ao fim do jantar, olhando, alarmada, primeiro a princesa Maria e depois o sogro. Quando se levantaram da mesa, travou do braço da cunhada e levou-a consigo para a sala contígua. — Como o seu pai é um homem inteligente! — observou ela. — É por isso, talvez, que me mete medo. — Oh, é tão bom! — replicou a cunhada. [XXVIII] O príncipe André devia partir no dia seguinte à tarde. O velho príncipe, sem alterar os seus hábitos, retirou-se depois do jantar. A princesinha estava nos aposentos da cunhada. André vestiu uma farda de viagem, sem dragonas, e pôs-se a fazer as malas, com o auxilio do criado de quarto, no aposento que lhe fora reservado. Após haver examinado ele próprio a carruagem em que ia partir e a instalação das bagagens, deu ordem para atrelarem. No quarto apenas conservava os objectos que levaria consigo: um pequeno cofre, um estojo de toilette de viagem, de prata, duas pistolas turcas e um sabre, presente do pai, que este lhe trouxera de Otchakov. Todos estes objectos estavam em perfeito estado: tudo como novo e limpo, cada coisa no seu estojo de pano cautelosamente afivelado. No momento em que um homem parte para uma viagem, ou se prepara para mudar de vida são muitos os pensamentos que o assaltam, desde que seja pessoa capaz de reflexão. Todo o passado lhe ocorre e faz projectos sobre o futuro. André parecia preocupado e comovido. Com as mãos atrás das costas, ia e vinha, em passo rápido, de um extremo ao outro do quarto, o olhar fixo e abanando a cabeça. Quer sentisse medo de partir para a guerra, quer sofresse por ter de deixar a mulher, e talvez as duas coisas o preocupassem, era natural que não quisesse que o vissem naquele estado, pois, ao ouvir passos no vestíbulo, mudou rapidamente de atitude, deteve-se diante da mesa, como para afivelar a cobertura da mala, e de novo no seu rosto transpareceu a expressão séria e impenetrável de sempre.Eram os pesados passos da princesa Maria. — Disseram-me que tinhas mandado atrelar — articulou ela, arquejante (via- se que viera a correr). — E eu que tanto queria conversar contigo a sós. Só Deus sabe quanto tempo vamos estar separados! Não estás zangado por eu ter vindo? É, que mudaste tanto. Andriucha — acrescentou, como para justificar a sua pergunta. A princesa Maria sorriu ao tratá-lo por Andríucha. Via-se que achava estranho aquele belo homem de aspecto severo ser o mesmo Andriucha, esse garoto magricela e travesso seu companheiro de infância. — E a Lisa onde está? — perguntou ele, que apenas lhe respondera com um sorriso. — Estava tão cansada que adormeceu no meu quarto num divã. Ah! André! Que tesouro que é a sua mulher! — exclamou sentando-se num canapé, diante do irmão. — É uma verdadeira criança, tão gentil, tão alegre! Gosto tanto dela. O príncipe André irada disse, mas a irmã viu a expressão irónica e um pouco desdenhosa que lhe invadiu o rosto. — Temos de ser indulgentes para com as suas pequenas loucuras. Quem as não têm? André, não te esqueças de que foi criada e educada na sociedade. E a verdade é que a sua situação está longe de ser cor-de-rosa. Ternos de nos colocar na posição dos outros. Tudo compreender é tudo perdoar. Pensa na sorte que a espera, coitadinha. Depois da vida que tem feito, ficar para aqui, no campo, separada do marido, e sozinha, sobretudo no estado em que está. É penoso! André sorria, olhando para a irmã, como costumamos sorrir ao ouvir alguém em que julgamos ler como num livro aberto. — Mas tu também vives no campo e não achas que a vida aqui seja assim uma coisa tão terrível! — observou ele. — Comigo é outra coisa. Para que havemos de falar de mim? Não quero outra vida, e não posso desejar vida diferente, porque não conheço senão esta. Mas pensa. André, o que representa para uma senhora de sociedade enterrar-se numa aldeia, nos melhores anos da sua vida, e só, pois o pai está sempre ocupado, e eu.., tu bem sabes como eu sou pobre de recursos aos olhos de uma mulher habituada à melhor sociedade. Só Mademoiselle Bourienne... — Não posso com a vossa Bourienne — replicou André. — Não digas isso! É uma rapariga gentil e boa, e ainda por cima tão infeliz! Jánão tem ninguém no mundo, absolutamente ninguém. Para dizer a verdade, não só já me não é precisa, como até me incomoda. Tu bem sabes que fui sempre um pouco selvagem, e agora ainda mais. Aprecio estar só... O meu pai gosta muito dela. Tanto ela como o Mikail Ivanovitch são as duas pessoas para quem ele tem sido sempre amável e bom. É para eles um verdadeiro benfeitor. Como diz Sterne, «nós gostamos das pessoas menos pelo bem que elas nos fizeram que pelo bem que lhe fizemos a elas». O meu pai tomou conta desta, rapariga, órfã sem casa. Tem muito bom coração. E o meu pai adora a maneira como ela lê. É ela quem lhe faz a leitura em voz alta, todas as tardes. Lê muito bem. — Confessa. Maria, tu deves passar o teu mau bocado, penso eu, por causa do feitio do pai — disse, de súbito. André. Maria principiou por mostrar-se surpreendida e depois sentiu-se assustada com a pergunta. — Eu? Eu? Passar um mau bocado — tartamudeou. — Ele foi sempre irascível, mas agora ainda se tomou mais difícil, creio eu — e exprimia-se tão à vontade sobre o carácter do pai que só podia ter um fim: irritá-la ou experimentá-la. — Tu és muito bom. André, mas tens um certo orgulho — observou a princesa, seguindo antes o curso dos seus pensamentos que propriamente o fio da conversa — e isso é um grande pecado. Achas que se pode permitir a um filho julgar o seu pai? E, mesmo que se admita uma coisa dessas, achas que um homem como o meu pai possa inspirar outros sentimentos que não sejam de veneração? Sinto-me tão satisfeita e feliz ao pé dele! Só queria uma coisa: que todos vocês fossem tão felizes como eu. O príncipe André abanou a cabeça come, quem não está muito convencido. — A única coisa que me é penosa, vou dizer-te a verdade. André, é a opinião de meu pai em assuntos religiosos. Não compreendo que um homem tão inteligente, não veja o que é claro como a luz do dia e se desoriente até ao ponto a que chegou. Só isto me faz infeliz. Mas nos últimos tempos verifiquei que está um pouco melhor. Ultimamente as suas troças são menos acerbas e até consentiu em receber um, frade e esteve muito tempo a conversar com ele. — Pois bem, minha querida, receio que tu e o teu frade estejam a perder o vosso latim — observou André em tom trocista, mas amável. — Ah!, meu amigo. Não faço outra coisa senão pedir a Deus, e espero que Eleme ouça. André — acrescentou ela, timidamente, depois de uma breve pausa —, tenho de te fazer um grande pedido. — De que é que se trata, minha amiga? — Promete-me, antes de mais nada, que me não recusarás o que te vou pedir. Não é nada que te custe a fazer e nem é coisa indigna de ti. Promete-me. Andriucha — suplicou ela, metendo a mão na bolsinha de trabalho e apalpando fosse o que fosse sem tirar a mão, como se tivesse entre os dedos precisamente o objecto em questão, objecto que ela não podia mostrar senão depois de ter obtido a promessa que pedira. Olhava para o irmão timidamente e com olhos suplicantes. — Ainda mesmo que isso me custasse muito?... — replicou o príncipe André, que parecia desconfiar do que se tratava. — Podes pensar o que quiseres. Sim, eu bem sei, tu és como o meu pai. Podes pensar o que quiseres, mas faz isso por mim. Peço-te. O pai do meu pai, o nosso avô, trouxe-a consigo em todas as campanhas... — E continuava sem tirar da bolsinha o objecto que tinha entre os dedos.— Então, prometes? — Claro! De que se trata? — André, que esta imagem te proteja. Promete-me que não a deixarás mais. Prometes? — Se ela não pesar muito e me não derrancar o pescoço... Já que isso te dá prazer... — disse ele, e, verificando, ao mesmo tempo, que a sua atitude causava uma penosa impressão na irmã, mudou de tom. — Com muito prazer, podes crer, com muito prazer, minha amiga — acrescentou. — Mesmo contra tua vontade. Ele salvar-te-á, conceder-te-á a Sua graça e chamar-te-á para Si, pois é verdade e consolação — murmurou, numa voz trémula, erguendo nas duas mãos, diante do irmão, num gesto solene, uma antiga imagem oval do Salvador, com o rosto negro, numa moldura de prata suspensa de uma cadeia de filigrana do mesmo metal. A princesa Maria benzeu-se, beijou a imagem e entregou-a ao irmão. — Aceita-a. André, aceita-a por mim... Os seus grandes olhos esplendiam de bondade e de doçura. Iluminavam-lhe o rosto magro e doentio, embelezando-o. O irmão quis pegar na imagem, mas ela deteve-o. André compreendeu, benzeu-se também e beijou-a. Havia nele uma expressão ao mesmo tempo enternecida — estava comovido — e trocista.— Obrigada, meu amigo. Beijou-o na testa e voltou a sentar-se no divã. Ficaram calados. — Sim. André, já te disse, sé bom e generoso como sempre foste. Não julgues Lisa com tanta severidade. Ela é gentil e boa e está neste momento numa bem triste situação. — Creio nada te ter dito. Macha, que possa ser interpretado como uma censura a minha mulher ou mostrar-te que esteja descontente com ela. Porque é que me estás sempre a dizer a mesma coisa? A princesa Maria corou, calando-se, como se se sentisse culpada. — Por mim, não te disse nada, mas outras pessoas, sem dúvida, já te falaram no caso. E isso é-me penoso. Manchas vermelhas cobriram a testa e as faces de Maria. Quis dizer qualquer coisa, mas não pôde articular palavra. O irmão adivinhara. A princesinha, depois do jantar, chorara e dissera que receava um parto difícil, que estava cheia de medo e lamentara-se da sua sorte, do sogro, do marido. Depois de chorar, adormecera. O príncipe André teve pena da irmã. — Podes ter a certeza. Macha, não a censurei, nunca a censurei por qualquer coisa e nunca censurei a minha mulher em coisa alguma. E eu próprio nada tenho a censurar-me no meu comportamento para com ela. E sempre assim será, seja qual for a situação em que venha a encontrar-me. Mas queres saber a verdade.., queres saber se eu sou feliz, se ela é feliz? Pois bem, não, não sou, não somos. Porquê? Não sei... Ao dizer estas palavras, levantou-se, aproximou-se da irmã e, inclinando-se para ela, beijou-a na testa. Os seus belos olhos incendiaram-se, e neles brilhou um invulgar lampejo de lucidez e bondade. Não era na irmã que o seu olhar se fixava, mas nas trevas, para além da porta aberta por detrás dela. — Vamos ter com ela. É preciso dizer-lhe adeus. Ou, antes, vai tu sozinha, acorda-a, eu já lá vou ter. Petruchka! — gritou ele, chamando o criado de quarto. — Anda cá, leva estás coisas. Põe isto ao pé do assento, aquilo à direita. A princesa Maria levantou-se e encaminhou-se para a porta. Aí deteve-se. — André, se fosses crente, ter-te-ias dirigido a Deus a pedir-lhe que te desse o amor que tu não sentes, e a tua oração seria ouvida. — Sim, é possível — volveu André. — Vai. Macha, vou já ter convosco. Quando se dirigia aos aposentos da irmã, na galeria, que estabelecia acomunicação entre os dois corpos da casa, o príncipe encontrou Mademoiselle Bourienne, que lhe sorriu graciosamente. Era a terceira vez naquele dia que ele encontrava no seu caminho, e nos lugares mais solitários, o seu sorriso simples e entusiasta. — Ah! Julgava-o nos seus aposentos! — exclamou ela, corando um pouco e baixando os olhos. O príncipe lançou-lhe um olhar severo; tomara repentinamente uma expressão irritada. Não lhe respondeu, e, sem a fixar nos olhos, dirigiu-lhe um olhar tão desdenhoso que a francesa ficou toda corada, retirando-se sem dizer mais nada. Quando o príncipe entrou nos aposentos da irmã, sua mulher já estava acordada e através da porta aberta ouvia-se a sua vozita alegre, que desfiava com volubilidade o rosário das palavras. Dir-se-ia que procurava recuperar o tempo perdido depois de uma longa abstenção. — Não, mas imagine a velha condessa Zuboff, com postiços no cabelo e a boca cheia de dentes postiços, como se quisesse desafiar os anos... Ah!, ah!, ah!. Maria! Era a quinta vez que André ouvia a mulher diante de estranhos pronunciar esta mesma frase sobre a condessa Zuboff, acompanhada do mesmo riso. Entrou sem fazer ruído. A mulher, redondinha e rosada, o trabalhinho na mão, estava sentada numa poltrona e falava ininterruptamente, contando coisas de Petersburgo e repetindo, inclusivamente, verdadeiras frases feitas. André aproximou-se dela, acariciou-lhe os cabelos e perguntou-lhe se se sentia refeita da viagem. Ela respondeu-lhe e continuou a tagarelar. Uma carruagem tirada por seis cavalos estava diante da escada. Lá fora era noite, uma noite sombria de Outono. O cocheiro nem sequer podia ver os varais do carro. Na escada agitavam-se pessoas com lanternas na mão. A imensa casa tinha todas as suas grandes janelas iluminadas. No vestíbulo juntavam-se, acotovelando- se, os criados servos, que todos queriam dizer adeus ao jovem príncipe. Na grande sala estava reunida toda a gente da casa: Mikail Ivanovitch. Mademoiselle Bourienne, a princesa Maria e a jovem esposa de André. Este último tinha sido chamado ao gabinete do pai, que queria despedir-se dele a sós. Todos os estavam aguardando. Quando André — penetrou no gabinete do pai, o velho príncipe, de óculos e roupão branco, traio com que não recebia ninguém, a não ser o filho, estava sentado a sua mesa e escrevia. Voltou-se.— Vais-te embora? — interrogou ele, continuando a escrever. — Vim dizer-lhe adeus. — Dá cá um beijo, aqui. — Indicava-lhe o local. — Obrigado, obrigado. — Porque é que me está a agradecer? — Porque tu não és homem para fazer amanhã o que podes fazer hoje... Não te agarras às saias das mulheres. A tropa antes de tudo. Obrigado! Obrigado! — Continuava a escrever e a pena ia-lhe salpicando o papel. — Se tens seja o que for para me dizeres, fala. Posso fazer as duas coisas ao mesmo tempo. — Queria falar-lhe de minha mulher... Estou bastante apoquentado por ter de a deixar entregue a si, — Que estás tu para aí a dizer? Vamos, de que precisas? — Quando chegar a hora do parto, peço-lhe que mande vir de Moscovo um médico-parteiro... Para que ele esteja presente nesse momento. O velho príncipe pousou a pena, e, como se não compreendesse, fitou no filho um olhar severo. — Bem sei que nada se pode fazer quando a natureza não obra por si mesma — disse André, visivelmente perturbado. — Reconheço que num milhão de casos deste género só um, talvez, não corre bem, mas ela tem lá essa mania, e eu também. Temos de acreditar que a embruxaram. Teve sonhos e tem medo. — Hum! Hum!... — tartamudeou o velho, continuando a escrever. — Está bem, farei o que me pedes. Firmou, com uma larga assinatura, a carta que escrevera e depois voltou-se bruscamente para o filho. Pôs-se a rir. — Espetaste-te, hem?! — Que diz, meu pai? — A tua mulher — respondeu ele, conciso e sem subterfúgios. — Não compreendo — replicou o filho. — E nada a fazer, meu velho. São todas a mesma coisa: não nos podemos descasar. Não tenhas receio; não direi nada a ninguém; mas tu sabes com o que podes contar. Agarrou o filho com a mão ossuda e delgada, abanou-o, olhando-o, fixamente, com as suas pupilas vivas, como se o quisesse atravessar de lado a lado. Depois, de novo soltou uma gargalhada fria. O filho teve um suspiro, e com isso confessava que o pai tinha adivinhado, ovelho continuou a dobrar e a lacrar a carta, manejando o lacre, o sinete e o papel com a sua agilidade habitual. — Nada a fazer! É uma bela mulher! Farei tudo o que for preciso, está descansado — disse ele, continuando a sua tarefa. André calou-se. Estava ao mesmo tempo contente e descontente de que o pai o tivesse compreendido. O velho ergueu-se e entregou a carta ao filho. — Ouve — disse-lhe ele. — Não te preocupes com a tua mulher. O que se puder fazer, far-se-á. E agora ouve. Aqui tens uma carta para Mikail Ilarionovitch. Peço-lhe aqui que te mande para onde for necessário e não te conserve muito tempo no estado-maior: é um lugar detestável. Diz-lhe que me lembro sempre dele e da nossa velha amizade. Depois manda-me dizer como é que ele te recebeu. Agora anda cá. Falava com tanta volubilidade que não acabava, sequer, a maior parte das palavras, mas o filho estava muito habituado a, ouvi-lo. Conduziu-o até junto de uma papeleira, abriu-a, puxou uma gaveta e tirou de lá um caderno verde coberto pelos caracteres da sua caligrafia alongada, cerrada e ágil. — Naturalmente, eu morrerei antes de ti. Quero que saibas que estão aqui os meus apontamentos. É necessário transmiti-los ao imperador depois da minha morte. Aqui está um papel de crédito e uma carta: é um prémio para aquele que escrever a história das campanhas de Suvorov. Manda isto para a Academia. Aqui está o meu diário. Lê-o depois de eu me ir embora, tens que aprender. André não disse ao pai que ainda teria certamente muitos anos para viver. Compreendia que o momento não era para dizer coisas dessas. — Tudo farei, meu pai — disse ele. — E agora adeus! — Deu-lhe a mão a beijar, e apertou-o nos braços.— Lembra- te de uma coisa, príncipe André: se fores morto, eu, velho, como sou, sentirei uma grande dor... — Calou-se bruscamente e continuou em seguida numa voz firme e sonora: — Mas se eu vier a saber que tu não te portas como filho, que és, de Nicolau Bolkonski, isso para mim será.., uma vergonha! — rematou. — Aí está uma coisa que meu pai podia ter evitado dizer-me — observou o filho sorrindo. O velho ficou calado. — Há ainda outra coisa que lhe queria pedir — prosseguiu André. — Se eu for morto e se me nascer um filho, não o afaste de sua casa, e, como ontem lhe disse,deixe-o crescer a seu lado. Peço-lhe, pai. — Não será necessário entregá-lo a tua mulher? — disse o velho, soltando uma gargalhada. Estavam calados em frente um do outro. O pai olhava o filho bem nos olhos e o queixo tremia-lhe, num movimento nervoso. — A despedida acabou.., vai! — disse repentinamente – Vai — repetiu, numa voz forte e colérica, abrindo a porta. — Que foi? O que aconteceu? — perguntaram as duas princesas, ao verem André e a furtiva silhueta do velho, de roupão branco, sem cabeleira, de óculos, com fulgurações de voz irritada. André limitou-se a suspirar, sem responder. — Bom — disse ele, dirigindo-se à mulher. Pôs nesta simples palavra um acento trocista, que parecia dizer: «Chegou agora o momento de tu fazeres as tuas choraminguices.» — Já. André?! — exclamou a princesinha empalidecendo e olhando-o com terror. André tomou-a nos braços. A princesa soltou um grito e caiu-lhe desmaiada no ombro. O príncipe André, com todo o cuidado, afastou-a, examinou o estado da mulher e fê-la assentar, docemente, numa poltrona. — Adeus. Maria — disse para a irmã em voz baixa; beijou-a, pegando-lhe nas mãos, e afastou-se em passos rápidos. A jovem princesa continuava estendida na poltrona; Mademoiselle Bourienne aspergia-lhe a cara. A princesa Maria, enquanto amparava a cunhada, com os seus lindos olhos rasos de lágrimas não deixava de olhar a porta por onde o príncipe André desapareceu, traçando sobre ele o sinal da cruz. Do gabinete vinham, como se fossem tiros de pistola, as explosões furiosas, e muito repetidas, do velho, que se assoava estrepitosamente. Mal André saiu, abriu-se a porta do gabinete e apareceu uma figura severa de roupão branco. — Foi-se embora? Bom, está bem! — disse o velho, lançando um olhar irritado à princesinha, ainda estendida, desmaiada. Depois abanou a cabeça, furioso, e bateu com a porta. SEGUNDA PARTE [I] [II] [III] [IV] [V] [VI] [VII] [VIII] [IX] [X] [XI] [XII] [XIII] [XIV] [XV] [XVI] [XVII] [XVIII] [XIX] [XX] [XXI] [I] Em Outubro de 1805 os exércitos russos ocupavam um certo número de cidades e de aldeias do arquiducado da Áustria, onde estavam chegando constantemente regimentos frescos, vindos da Rússia, grande encargo para a população, indo concentrar-se ao pé da fortaleza de Braunau. Braunau era o quartel-general do comandante-chefe. Kutuzov. A 11 de Outubro de 1805, um dos regimentos de infantaria acabado de chegar estacionava a cerca de meia milha da cidade, aguardando a visita do comandante-chefe. Embora as localidades e a paisagem nada tivessem de russo — eram pomares, muros de pedra, telhados, montanhas ao longe —, e não obstante o carácter estrangeiro da população, que olhava os soldados cheia de curiosidade, o regimento tinha exactamente o aspecto de qualquer outro regimento russo que se estivesse preparando para uma revista fosse onde fosse em plena Rússia. Na véspera à noite, na última etapa, o regimento recebera a comunicação de que o general-chefe viria inspeccioná-lo. Embora as próprias palavras da ordem do dia tivessem parecido pouco claras ao comandante do regimento e delas se não pudesse inferir que as tropas deveriam envergar fardamento de campanha, foi resolvido, em conselho dos comandantes de batalhão, apresentar o regimento de grande uniforme, partindo do princípio de que mais vale tudo do que nada. E foi assim que os soldados, depois de uma marcha de trinta verstas, passaram a noite em claro, arranjando-se e polindo-se, enquanto os oficiais comandantes de companhia contavam os do estado-maior e homens e os repartiam. Pela manhã o regimento deixara de ser uma massa desordenada e em tropel, como na véspera, durante a última etapa, para se transformar numa massa compacta de dois mil homens em que todos sabiam o lugar que lhes competia e o que tinham a fazer e em que cada botão, cada correia, estava onde devia estar, luzindo de asseio. Nem só no exterior reinava a ordem; se o general comandante se lembrasse de espreitar por debaixo das fardas, poderia verificar que cada soldado vestia camisalavada, e em cada uma das mochilas havia os objectos da ordem — «savão e sovela», como diziam os soldados. Apenas um pormenor causava uma certa preocupação. Era o calçado. Mais de metade do regimento tinha as botas rotas. A culpa, no entanto, não era do comandante, pois, apesar das constantes reclamações, a intendência austríaca nada fornecera do que se pedira e o regimento já caminhara mil verstas. O general comandante era um militar já idoso, de pele sanguínea, sobrancelhas e suíças grisalhas, de sólida estatura, largo de peito e de ombros. Envergava um uniforme novo, todo flamante, bem vincado, com grandes dragonas douradas, que em vez de lhe esmagarem os ombros maciços lhos soerguiam. Dava a impressão de alguém contentíssimo de desempenhar um dos actos mais solenes da sua vida. Passeava de cá para lá diante dos cordões de tropa, um pouco trôpego no andar e as costas algo vergadas. Via-se bem que admirava o seu regimento, que estava orgulhoso dele e que lhe dera a própria alma. Apesar disso, o seu andar hesitante parecia querer dizer que além dos interesses militares o preocupavam ideias puramente mundanas, e, que não era estranho o belo sexo. — Bom. Mikafia Mitritch — disse ele para um dos comandantes de batalhão. Este oficial deu um passo em frente sorrindo; via-se bem que ambos estavam de muito boa disposição. — Não tivemos mãos a medir esta noite. Sim, senhor, de qualquer maneira o regimento não é dos piores.., hem! O comandante de batalhão percebeu o gracejo e pôs-se a rir. — Até no campo de manobras do czar faria figura. — Hem?! — exclamou o comandante. Nesta altura, na estrada que vinha da cidade, onde haviam colocado sentinelas, apareceram dois cavaleiros: um ajudante-de-campo seguido de um cossaco. Era o estado-maior que o enviava para esclarecer o general sobre o ponto pouco claro da ordem do dia, a saber, que o general-chefe desejava encontrar o regimento exactamente no mesmo estado em que ele se apresentava durante as marchas, de capote, as armas nas gualdrapas, sem preparativos de qualquer espécie. Kutuzov recebera na véspera um membro do Conselho Superior de Guerra, chegado de Viena, que vinha propor-lhe e pedir-lhe que operasse o mais depressa possível a sua junção com os exércitos do arquiduque Fernando e de Mack, e Kutuzov, que considerava esta junção desvantajosa, entre outrosargumentos favoráveis ao seu ponto de vista tinha a intenção de mostrar ao general austríaco o estado lamentável do exército que chegava da Rússia. Era por isso que ele desejava passar revista ao regimento, e, deste modo, quanto mais deplorável o estado dos homens maior a sua satisfação. Conquanto o ajudante-de- campo não fosse conhecedor de todos estes pormenores, transmitiu ao comandante do regimento o desejo expresso do general-chefe no sentido de encontrar os homens de capote e gualdrapas e acrescentou que, no caso contrário, seria grande o seu descontentamento. Ao ouvir estas palavras, o comandante baixou a cabeça, encolheu os ombros, e deixou cair os braços, num gesto de lassidão. — Fizemo-la bonita! — exclamou. — Era o que eu lhe dizia. Mikalia Mitritch. Estamos em campanha, quer dizer de capotes às costas. Ah, meu Deus!. — acrescentou, avançando com um ar decidido. — Senhores comandantes de companhia! — gritou, na sua voz de comando. — Sargentos!... Sua Excelência demora-se? — prosseguiu, dirigindo-se ao ajudante-de-campo com um acento de respeitosa deferência para com a, pessoa a quem aludia. — Dentro de uma hora, segundo creio. — Teremos tempo de mudar de fardas? — Não sei, meu general... O comandante do regimento, avançando ele próprio pelo meio das fileiras, tratou de mandar envergar os capotes. Os comandantes de companhia começaram a correr, os sargentos mexiam-se. Os capotes não estavam em muito bom estado. Instantaneamente, as fileiras, até então silenciosas e em ordem, principiaram a ondular, a debandar; ouviu-se um burburinho de vozes. Por toda a parte havia soldados que iam e vinham, atarefados, movimentos de ombros que sacudiam as mochilas, sacos que se punham à cabeça, capotes que se extraíam dos sacos ou braços que se levantavam para enfiar as mangas. Meia hora depois tudo voltara ao estado primitivo, e de tal maneira que as fileiras negras estavam cinzentas. O comandante, no seu trôpego andar, apresentou-se diante do regimento e, a distância, percorreu-o com os olhos. — Que vem a ser isto ainda? Que significa isto? — gritou ele, detendo-se. — Comandante da 3ª companhia!... — Ao general o comandante da 3ª companhia! Ao general o comandante da 3ª companhia! — ouviu-se repetir nas fileiras, e um ajudante-de-campo deslocou-separa procurar o oficial, que tardava em aparecer. Quando as vozes prestáveis gritando que o general «perguntava pela 3ª chegaram, a pouco e pouco, ao seu destino, o oficial procurado saiu das fileiras, e, embora fosse já de certa idade e pouco habituado a correr, tomou a marcha acelerada, desajeitadamente, na ponta dos pés, em direcção ao general. Os traços do capitão exprimiam o desassossego do estudante a quem o professor pergunta uma lição que ele não estudou. O nariz vermelhusco, natural consequência de certa intemperança, cobrira-se-lhe de manchas e a boca tremia- lhe. O comandante do regimento olhava-o dos pés à cabeça enquanto ele, meio sufocado, se aproximava, encurtando o passo, pouco a pouco. — Não tarda que mande os seus homens vestir sarafanas! Que quer isto dizer? — gritou o comandante, com o queixo saliente, apontando para as fileiras da 3ª companhia, onde se via um soldado com um capote que não era da cor da ordem, o qual se salientava no meio de todos os outros. — E você, onde é que você estava? Estamos à espera do general-chefe e você abandona o seu posto? Hem?... Eu vou- lhe ensinar a vestir os seus soldados para se apresentarem à revista!... Hem!... O comandante da companhia, sem tirar os olhos do general, apertava cada vez mais os dois dedos contra a pala do quêpi, como se só aquele gesto o pudesse salvar. — Então, o que tem a dizer? Quem é que na sua companhia anda mascarado de húngaro? — prosseguiu o comandante do regimento, em tom ao mesmo tempo severo e gracioso. — Excelência... — O quê. Excelência? Excelência! Excelência! Que quer isso dizer? Excelência. Ninguém sabe o que isso vem a ser. — Excelência, é o Dolokov, que foi degradado... — volveu o oficial, em voz muito baixa. — E então, foi degradado em marechal ou em soldado? Se é soldado deve vestir-se como toda a gente, de acordo com o regulamento. — Excelência! Foi Vossa Excelência quem o autorizou para a marcha... — Autorizei-o? Autorizei-o? Ora aí está, são todos assim, vocês, os rapazes! — exclamou o comandante do regimento, serenando um pouco. — Eu autorizei-o? Dizem-vos uma coisa, e vocês, imediatamente... — Calou-se. — Dizem-vos uma coisa e vocês... — E então? — concluiu, de novo furioso. — Queira mandar vestiros seus homens convenientemente. E o comandante do regimento, depois de lançar um olhar ao ajudante-de- campo, prosseguiu na sua inspecção, caminhando sempre vacilante. Via-se bem que até o próprio furor lhe era agradável e que, percorrendo as fileiras, procurava ainda qualquer outro pretexto para se encolerizar. Tendo passado uma descompostura a um oficial por causa de uma gorjeira mal polida e a outro por virtude de um mau alinhamento, avançou para a 3ª companhia. — Isto é que é posição? Onde tens o teu pé? Onde tens o teu pé? — gritou, em voz furibunda, ainda o separavam cinco homens de Dolokov, vestido com um capote azulado. Dolokov rectificou imediatamente a posição da sua perna, na fileira, e fixou o general com os seus olhos brilhantes e escarninhos. — Porque é que tu estás com um capote azul? Tira isso... Sargento! Dispam- no!... Cana... — Não teve tempo de acabar. — General! Eu devo executar as ordens que me dão, mas não suportar... — disse precipitadamente Dolokov. — Não se fala na forma!... Não se fala, não se fala!... — Não sou obrigado a tolerar injúrias — concluiu Dolokov, em voz alta e inteligível. Os olhos do general e os do soldado encontraram-se. O general não respondeu, contentando-se em repuxar, colérico, a bandoleira muito esticada. — Mude de capote, se faz favor — disse ele, afastando-se. [II] — Aí vem! — gritou nesta altura a sentinela. O comandante do regimento, corando, correu para o seu cavalo; trémulo, pousou o pé no estribo, montou, desembainhou a espada, e, com ar radioso e decidido, abrindo a boca de lado, preparou-se para dar as vozes de comando. O regimento sacudiu-se, como um pássaro que espaneja as asas, e ficou imóvel. — Sentido!...— gritou, numa voz vibrante, onde havia para ele, general, satisfação, para o regimento severidade e para o comandante que chegavadeferência. Uma caleche vienense, alta e azul, tirada por seis cavalos, vinha avançando, com um ligeiro ruído de ferragens, num trote rápido, ao longo da larga estrada desempedrada, que dois renques de árvores ladeavam. Atrás da caleche galopavam os oficiais às ordens e uma escolta croata. Sentado ao lado de Kutuzov vinha um general austríaco, de uniforme branco, que contrastava no meio dos uniformes negros dos oficiais russos. A caleche parou em frente das fileiras do regimento. Kutuzov e o companheiro conversavam em voz baixa, e aquele teve um vago sorriso no momento em que, no seu andar pesado, punha os pés no estribo do carro, dando a impressão de não perceber estarem ali dois mil homens que, de respiração suspensa, fitavam nele os olhos, nele e no comandante do regimento, Uma voz de comando ressoou, o regimento ondulou de novo e apresentou armas. No meio de um silêncio de morte, ouvia-se a voz débil do general-chefe. O regimento soltou um urro: «Saúde para Sua Ex.., celência.., lência.., lência.,.» E de novo tudo ficou silencioso. Kutuzov, de princípio, deixou-se estar parado enquanto o regimento desfilava; depois, ao lado do general de farda branca, a pé e seguido da comitiva, percorreu de um lado para o outro as fileiras dos soldados. Pela maneira como o general comandante do regimento saudava com a sua espada o general-chefe, comendo-o com os olhos, sempre hirto e correcto, e pela forma como ele, inclinando-se para diante, seguia o general na sua marcha através das fileiras de soldados, só com dificuldade dominando o andar claudicante, e ainda pelo modo como se aproximava, a galope, à mínima palavra ou ao mínimo gesto do seu superior, era evidente estar cumprindo as suas obrigações de subordinado com mais satisfação ainda do que cumpria as suas obrigações de comandante. O regimento, graças à severidade e ao zelo do seu general comandante, apresentava-se em muito melhor estado do que os demais regimentos chegados na mesma altura a Braunau. Ao todo havia apenas, entre doentes e retardatários, duzentos e dezassete homens. E tudo estava em perfeito estado, salvo as botas dos soldados. Kutuzov percorreu as fileiras, detendo-se, de tempos a tempos, para dirigir algumas palavras amáveis aos oficiais seus conhecidos da guerra da Turquia, e, por vezes, dirigia-se também aos soldados. Ao inspeccionar as botas, encolheu os ombros por mais de uma vez, apontando-as ao general austríaco, como a dizer que, se a ninguém podia censurar, nem por isso devia deixar de verificar o mauestado em que se encontrava o calçado do regimento. O comandante a todo o momento se precipitava para a frente, com receio de perder qualquer palavra do que se dizia a respeito do seu regimento. Na retaguarda de Kutuzov, a uma distância que permitia ouvir todas as palavras pronunciadas em voz baixa, seguia a comitiva, composta de vinte pessoas, que, falavam umas com as outras e por vezes até se riam. O militar que seguia na primeira fila atrás do general-chefe era um garboso ajudante-de-campo: nem mais nem menos que o príncipe Bolkonski. A seu lado marchava Nesvitski, oficial superior de alta estatura e muito gordo, de belo rosto sorridente e bom, com os olhos sempre húmidos. Nesvitski não podia deixar de se rir dos modos de um oficial de hússares morenaço que marchava ao seu lado. Este, impassível, de ar imperturbável, fitava, muito sério, as costas do comandante do regimento, copiando cada um dos seus movimentos. De cada vez que este vacilava em cima das pernas ou dobrava a espinha, ele imitava-lhe tal qual o gesto e a curvatura. Nesvitski ria e acotovelava os outros, chamando-lhes a atenção para a pantomima. Kutuzov passava lenta e pesadamente por diante daqueles milhares de olhos como que desorbitados no esforço de o não perderem de vista. Ao chegar por alturas da 3.a companhia, o general-chefe parou bruscamente. A comitiva, que não contava com aquela paragem, não pôde evitar de colidir com ele. — Eh. Timokine! — exclamou ele, reconhecendo o comandante do nariz vermelhusco que fora repreendido por causa do capote azul. Teria parecido impossível que alguém pudesse tomar uma posição mais hirta que aquela que Timokine assumira quando das observações que lhe fizera o comandante do regimento, mas a verdade é, que no momento em que o general- chefe o interpelou tal era a sua rigidez na posição de sentido que, se a cena se prolongasse, lhe teria sido impossível conservar essa atitude. Por isso mesmo. Kutuzov, compreendendo a sua posição, e porque lhe não queria senão bem, seguiu adiante com um sorriso imperceptível na sua face inchada e desfigurada pela cicatriz de uma velha ferida. — Mais um camarada de Ismail (Episódio militar russo, muito célebre, de 1790. (N, dos T.) — disse ele — Um valente militar! Estás contente com ele? — perguntou ao comandante do regimento. O comandante do regimento, sem saber que a sua imagem se estava a reflectir no espelho do oficial de hússares que seguia atrás dele, deu um passo em frente,estremeceu e disse: — Contentíssimo. Alta Excelência! — Todos nós temos as nossas fraquezas — observou Kutuzov, sorrindo, e afastando-se. — Aquele tinha a sua predilecção por Baco. O comandante do regimento teve receio de ser censurado por isso e não respondeu. O oficial de hússares neste momento reparou na cara do capitão do nariz vermelhusco e na rigidez com que ele apresentava o ventre na posição de sentido e imitou-o com tal flagrância que Nesvitski não pôde conter o riso. Kutuzov voltou-se. Era evidente que o oficial de hússares tinha uma mobilidade de expressão extraordinária. No mesmo instante em que Kutuzov voltava a cabeça, mimava ele uma máscara apropriada à circunstância e assumia imediatamente o ar mais sério, mais respeitoso e mais inocente deste mundo. A 3ª companhia era a última e Kutuzov ficara pensativo, como que a procurar lembrar-se fosse do que fosse. O príncipe André, saindo da comitiva do general, aproximou-se dele e disse-lhe em francês, em voz baixa: — Permito-me dizer-lhe que me pediu lhe lembrasse o degradado Dolokov, deste regimento. — Onde que está o Dolokov? — perguntou Kutuzov. Dolokov, que tinha enverga4do um capote cinzento de soldado, não esperou que o chamassem. A silhueta bem desenhada de um soldado louro e de olhos azuis saiu das fileiras. Aproximou-se do general-chefe e apresentou armas. — Alguma queixa? — perguntou Kutuzov, franzindo um pouco as sobrancelhas. — É o Dolokov — esclareceu o príncipe André. — Ah! — exclamou Kutuzov. — Espero que a lição te sirva de emenda. Cumpre o teu dever de soldado. O imperador é clemente. E eu não te esquecerei, se o mereceres. Os brilhantes olhos azuis fixaram-se no general-chefe com a mesma arrogância com que se tinham pousado no comandante do regimento, como se Dolokov quisesse desse modo rasgar o véu de convenções que tanto distanciava um general-chefe de um simples soldado. — O único favor que peço. Mui Alta Excelência — disse ele, na sua voz lenta, sonora e firme — é que me seja permitido apagar a minha falta e mostrar a minha dedicação ao imperador e à Rússia. Kutuzov fez meia volta. Houve nos seus olhos um sorriso no género daqueleque por eles perpassara depois da sua entrevista com o capitão Timokine. Franziu as sobrancelhas, como se com isso quisesse significar que tudo quanto Dolokov lhe tinha dito, que tudo quanto ele próprio lhe poderia ter respondido era coisa desde há muito, muito tempo, conhecida, que tudo isso o enfadava grandemente e que não era nada disso que seria preciso dizer. Voltou costas e encaminhou-se para a caleche. O regimento formou por companhias e dirigiu-se para os acantonamentos, não distantes de Braunau, onde devia reabastecer-se de botas e de fardamentos e descansar depois de tão duras jornadas. — Não tem razão de queixa de mim. Prokor Ignatich? — interrogou o comandante do regimento no momento em que se avizinhou da 3ª companhia, que partia para o seu destino, e ao aproximar-se do capitão Timokine, que ia na vanguarda. Depois de uma revista tão bem sucedida, a cara do general transbordava de mal reprimida alegria. — É serviço do czar... Não pode ser de outra maneira... Às vezes, durante as inspecções, uma pessoa está um bocadinho excitada... Eu sou o primeiro a pedir desculpa, conhece-me bem... Os meus agradecimentos! — E estendeu a mão ao capitão. — Desculpe-me, meu general, se eu ouso replicou o capitão, com o seu nariz muito vermelho, sorrindo, e mostrando deste modo que lhe faltavam dois dentes da frente, partidos, com uma coronhada, em Ismail. — E a propósito, comunique ao Dolokov que eu me não esquecerei dele se tiver juízo. E diga-me, se faz favor, que é que ele faz, como é que ele se comporta? E... — É muito pontual no serviço. Excelência.., mas quanto ao carácter... — redarguiu Timokine. — Quê? Que há quanto ao carácter? — inquiriu o general. — Há dias. Excelência... Às vezes é bem educado, bom rapaz, sensível. Outras vezes é uma verdadeira fera. Dizem que matou um judeu na Polónia, como sabe... — Sim, sim, é verdade; mas ainda assim é preciso que a gente seja tolerante para um rapaz que caiu em desgraça. Tem muito boas relações... E também é preciso... — Eu compreendo. Excelência — disse Timokine, com um sorriso em que se lia que compreendera o desejo do superior. — Sim, sim.O comandante do regimento foi em busca de Dolokov, pelo meio das fileiras, e estacou o cavalo. — No primeiro recontro podes ganhar os teus galões — disse-lhe. Dolokov fitou-o sem dizer palavra e sem alterar o seu ar sorridente e trocista. — Bom, agora está tudo em ordem. Um copo de aguardente a cada homem — acrescentou, de maneira a que todos o ouvissem. — A todos obrigado! Louvado seja Deus! — E, ultrapassando a companhia, aproximou-se de outra. — Sim, apesar de tudo, é boa pessoa; é um tipo com quem a gente se entende — disse Timokine a um oficial subalterno que marchava a seu lado. — Numa palavra, um rei de copas! — comentou este rindo. Era a alcunha do comandante do regimento entre os seus homens. A boa disposição dos oficiais depois da revista propagou-se aos soldados. As companhias marchavam alegremente. Havia ditos nas fileiras. — Diziam que Kutuzov era cego de um olho... — E é... Não tem um olho. — Não é verdade.., rapazes, vê melhor do que tu. Viu tudo, até as botas e meias... — Ah, rapazes, quando ele me olhou para as pernas — eu disse cá comigo... — E o outro, o austríaco, que vinha com ele? Parecia que lhe tinham despejado em cima uma lata de cal. Estava todo enfarinhado. Aposto que eles dão lustro na farda, como nós damos às espingardas. — Eh. Fedechu!... Ouviste-o dizer quando principiava a batalha? Estavas tão perto dele. Dizem que o Bonaparte em pessoa esta em Brunov. — Bonaparte? Que tolice! É só isso que tu sabes? Desconheces que os Prussíanos já se revoltaram? Os Austríacos estão a tratar-lhes da saúde. Quando eles acabarem, então é que principia a guerra com o Bonaparte. E aquele a dizer que o Bonaparte está em Brunov! É um imbecil, claro está! Abre-me melhor essas orelhas! — Ah, esses malditos furriéis! A 5ª, como tu estás a ver, já lá está na aldeia. A esta hora já eles estão a fazer o kacha, e nós ainda tão longe. — Não tens um biscoito? — E ontem deste-me tabaco? Está bem, rapaz. Bom, bom. Deus seja contigo! — Se ao menos fizessem alto... Assim, ainda vamos andar mais umas cinco verstas de barriga vazia.— Hem! Era bem melhor que os Alemães nos oferecessem carruagens. Vai ou não vai? Colossal! — Isto por aqui, rapazes, é tudo gente de pé descalço. Ao menos lá para cima eram polacos, súbditos da coroa russa, enquanto agora, rapazes, são tudo alemães. — Os cantores à frente! — gritou o capitão. E na vanguarda do batalhão reuniram-se, vindos de diversos lados, uns vinte homens. O tambor-mor voltou a cabeça para os cantores, e, com um aceno, entoou a lenta canção dos soldados, que começa assim: «Não é a aurora, o Sol que está a nascer...», e termina: «É, é, rapazes, é a glória que nos espera com o tio Kamenski...» Esta canção tinha sido composta na Turquia e actualmente cantavam- na na Áustria, apenas com esta pequena variante: onde estava «tio Kamenski» estava agora «tio Kutuzov». Depois de ter entoado o último verso, com um ar marcial e fazendo um amplo gesto com a mão, o gesto de quem atira qualquer coisa para longe, o tambor, um belo soldado dos seus quarenta anos, grande e seco, envolveu num olhar severo os seus cantores, franzindo as sobrancelhas. Depois, bem certo de que todos os olhos estavam fitos nele, deu a impressão de erguer, com as duas mãos, à altura da cabeça qualquer objecto precioso e invisível, conservou-o aí alguns segundos e, de repente, foi como se o tivesse atirado para longe: «Ai, minha casa, minha casa, Minha casa nova em folha.» Vinte vozes entoaram o refrão e o tocador de ferrinhos, apesar do peso do equipamento, saltou para a frente do batalhão e, de costas, sempre a, andar, agitando os ombros, parecia ameaçar quem quer que fosse com o seu instrumento. Os soldados marcavam o compasso com os braços, cantando, e a sua marcha acompanhava o ritmo da canção. Lá para trás ouviu-se um rolar de rodas, um chiar de molas, um trote de cavalos. Era Kutuzov e a sua comitiva que regressavam à cidade. O general-chefe fizera um sinal indicando que os soldados podiam continuar a marchar livremente, e na sua cara, assim como na dos membros da sua comitiva, lia-se contentamento, o contentamento que lhes causava ouvir aquelas canções, ver o soldado que dançava e o aspecto jovial dos seus camaradas. Na segundafileira, no flanco direito, por onde a caleche ultrapassou o regimento em marcha, chamava a atenção, sem dar por isso, o soldado de olhos azuis. Dolokov, que, marcial e gracioso como poucos, marchava ao ritmo da canção, olhando para toda a gente que passava com o ar de quem tem pena de que não fossem todos com ele, de que não fizessem todos parte da sua companhia. Um oficial de hússares da comitiva de Kutuzov, aquele mesmo que parodiara o comandante do regimento, deixou passar a caleche e aproximou-se de Dolokov. Durante algum tempo, em Petersburgo, este oficial. Jerkov, fizera parte do grupo de boémios de que o Dolokov fora o chefe. Já o tinha encontrado no estrangeiro naquela situação de soldado, mas achara melhor não o conhecer. Agora, depois da conversa de Kutuzov com o ex-oficial, veio para ele com a satisfação de quem encontra um velho amigo. — Meu querido amigo, como vais tu? — lançou, no meio do alarido das vozes, procurando acertar o passo da sua montada com o dos soldados. — Eu? — redarguiu Dolokov friamente. — É como estás vendo. A galharda canção parecia sublinhar a alegre despreocupação das palavras de Jerkov e a deliberada frieza de Dolokov. — Bom, e então, que tal te dás com os teus chefes? — perguntou Jerkov. — Muito bem. É boa gente. E tu, conseguiste meter-te no estado-maior? — Estou em missão. Sou adido. Calaram-se. «Lá vai o falcão, lá vai. Da minha manga direita partiu.» dizia a canção, acordando uma involuntária sensação de coragem e bravura. A conversa dos dois teria sido muito diferente, com certeza, se não decorresse ao som daquela canção. — Sempre é verdade que os Austríacos foram derrotados? — perguntou Dolokov. — Quem diabo o sabe? É o que dizem. — Tanto melhor — replicou Dolokov, seco e breve, ao ritmo da cadência. — Aparece uma destas noites. Jogamos uma partida de faraó — disse Jerkov. — Estás então cheio de dinheiro?— Aparece. — Não posso. Fiz uma promessa. Não bebo nem jogo enquanto me não reintegrarem no meu posto. — Bom, então no primeiro recontro... — É o que vais ver, Calaram-se ambos outra vez. — Se precisares de alguma coisa aparece no estado-maior; estou às tuas ordens... — volveu Jerkov. Dolokov pôs-se a rir. — É melhor não te preocupares comigo. Aquilo de que precisar não o pedirei a ninguém; eu próprio me encarregarei de o obter. — Bom, sim, eu apenas... — Bom, e eu também... — Até à vista. — Adeus. «E bem longe e bem livre Na nossa terra natal.» Jerkov cravou as esporas no seu cavalo; este, excitado, deu duas ou três voltas no mesmo lugar, sem saber como havia de partir. Depois, sacudiu a cabeça e largou a trote, contornando o batalhão, para se aproximar da caleche, seguindo ao ritmo do canto. [III] De regresso da inspecção. Kutuzov, acompanhado do general austríaco, penetrou no seu gabinete, e, chamando um ajudante-de-campo, ordenou-lhe que lhe trouxessem certos papéis relativos ao estado das tropas em campanha e a correspondência emanada do arquiduque Fernando, que comandava a vanguarda. O príncipe André Bolkonski entrou dai a pouco, com os papéis pedidos, no gabinete do general-chefe. Diante de um mapa estendido sobre a mesa sentavam-se Kutuzov e o general austríaco membro do Conselho Superior de Guerra. — Ah!... — exclamou Kutuzov, olhando para Bolkonski, como se lhe quisesse dizer que esperasse, continuando, porém, em francês a conversa principiada, — Só tenho uma coisa a dizer, general — Kutuzov punha na sua linguagem expressões e entoações distintas, destacando nítida e lentamente cada palavra, e via-se bem que tinha prazer em ouvir-se a si próprio. — Só tenho uma coisa a dizer. Se isso não dependesse senão da minha vontade, de há muito que teriam sido satisfeitos os desejos de Sua Majestade o Imperador Francisco. De há muito que eu teria operado já a minha fusão completa com o arquiduque. E, acredite na minha palavra de honra, entregar o alto comando do exército a um general mais competente e mais hábil do que eu, coisa que não falta na Áustria, e ver-me livre de uma responsabilidade tão pesada, eis o que seria um grande alívio para mim. Mas as circunstâncias são mais fortes do que nós, general. Kutuzov sorriu com o ar de quem quer dizer: «Você está no seu pleno direito de não acreditar em mim, e o certo é que isso me não dá o mal, pequeno cuidado, mas o que você não tem é motivo para pretender tal coisa. E aí é que está a questão.» O general austríaco não tinha cara de muito satisfeito, mas via-se obrigado a responder a Kutuzov no mesmo tom. — Pelo contrário — volveu ele, numa voz irritada e desabrida, em perfeita contradição com as palavras lisonjeiras que pronunciava — Pelo contrário, a participação de Vossa Excelência na obra comum é altamente apreciada por Sua Majestade, mas nós somos de opinião de que os adiamentos actuais privam os gloriosos exércitos russos e o seu general-chefe dos louros que eles estão habituados a conquistar nos campos de batalha — Era evidente que esta última frase já a trazia ele preparada. Kutuzov inclinou-se, sem deixar de sorrir. Nesse caso, fundamentando-me, especialmente, na última carta com que me honrou Sua Alteza o Arquiduque Fernando, tenho razão para crer que as tropas austríacas sob o comando de um colaborador tão hábil como o general Mack, obtiveram urna vitória decisiva e já não têm necessidade da nossa ajuda. O general franziu as sobrancelhas. Embora ainda não houvesse notícias seguras de uma derrota austríaca, já havia muitas indicações que confirmavam os boatos desfavoráveis postos a correr; por isso a suposição de Kutuzov de que osAustríacos estavam vitoriosos tinha mais um ar de mofa que outra coisa. Kutuzov continuava a sorrir disfarçadamente, sempre com o mesmo ar de quem diz que havia razões para crer que assim fosse. Efectivamente, a última carta que recebera do exército de Mack falava em vitória e numa situação estratégica a todos os títulos excelente. — Deixe ver essa carta — disse Kutuzov para o príncipe André. — Queira fazer o favor de ouvir. E Kutuzov, com o seu sorriso trocista aos cantos dos lábios, leu em alemão ao general austríaco o passo seguinte da carta do arquiduque Fernando: Todas as nossas forças, cerca de setenta mil homens, estão já concentradas, de sorte que nós podemos atacar e esmagar o inimigo no caso de ele vir a atravessar o Lech. Visto que UIm está em nosso poder, temos a vantagem de conservar as duas margens do Danúbio, e deste modo, em qualquer altura, desde que o inimigo não atravesse o Lech, somos nós quem pode atravessar o Danúbio, lançando-nos sobre as linhas de comunicação, e voltar a atravessar o Danúbio mais abaixo; se o inimigo se lembrasse de lançar todas as suas forças contra os nossos fiéis aliados, nós não o deixaríamos realizar essa operação. Deste modo, aguardaremos, corajosamente, o momento em que o exército imperial russo esteja inteiramente preparado para encontrar, em seguida, muito facilmente, as possibilidades de dar ao inimigo o destino que ele merece. Kutuzov, concluída que foi a leitura de toda esta fraseologia, soltou um suspiro de alívio e fitou com amabilidade e atenção o membro do Conselho Superior de Guerra. — Mas Vossa Excelência sabe muito bem que uma das regras da prudência é prever sempre o pior — observou o general austríaco, que estava morto por acabar com aquela brincadeira e chegar aos factos. Não pôde impedir-se de lançar um olhar ao ajudante-de-campo. — Perdoe-me, general — interrompeu Kutuzov, voltando-se igualmente para o príncipe André.— Ouça, meu amigo, vá pedir ao Kozlovski todos os relatórios dos nossos espiões. Aqui tem duas cartas do conde de Nostitz, aqui tem a carta doarquiduque Fernando e mais isto — acrescentou, entregando-lhe diversos papéis. — Com tudo isto faça-me um memorando, uma nota, bem clara, em francês, mencionando tudo o que sabemos acerca das operações do exército austríaco. Depois, entregue tudo a Sua Excelência. O príncipe André inclinou-se de modo a fazer compreender que tudo compreendera desde as primeiras palavras: não só o que fora dito, como também o que Kutuzov teria desejado dizer-lhe. Pegou nos papéis e, depois de uma continência circular, dirigiu-se para a sala de visitas, pisando silenciosamente o tapete. Embora ainda se não tivesse passado muito tempo depois que André deixara a Rússia, já tinha mudado bastante. Os seus traços fisionómicos, os seus gestos, o seu andar, não conservavam já quase nada daquele ar afectado de outrora, do seu falso ar de fadiga e de indolência. Dava a impressão de um homem que não tem tempo de pensar na opinião que os outros possam ter a seu respeito, ocupado que está a fazer seja o que for que ele considera muito interessante. Parecia mais satisfeito consigo próprio e com os outros que dele se aproximavam. No seu sorriso e no seu olhar havia mais alegria e sedução. Kutuzov, que ele fora encontrar já na Polónia, acolhera-o muito amavelmente, prometera-lhe não o esquecer, distinguira-o entre todos os demais ajudantes-de- campo, trouxera-o consigo a Viena e confiara-lhe missões muito sérias. De Viena escrevera ao seu velho camarada, o pai do príncipe André. «O teu filho promete Vir a ser um oficial fora do vulgar, pelos serviços prestados e pela firmeza da sua pontualidade no serviço. Considero-me feliz por ter ao meu dispor um tal subordinado.» No estado-maior de Kutuzov, entre os seus camaradas e em geral no exército, o príncipe André, tal como acontecia na sociedade de Petersburgo, gozava de duas reputações absolutamente opostas. Uns — a minoria — consideravam-no um ser diferente de todos os demais, esperavam dele grandes coisas, ouviam-no, admiravam-no e imitavam-no: e com estes ele era simples e amável. Os outros — a maioria — não gostavam dele, consideravam-no um indivíduo inchado de orgulho, com um carácter frio e desagradável. Mas de tal modo André se comportava para com eles que estes o estimavam e até mesmo o temiam. Ao penetrar na sala de visitas, depois de ter deixado o gabinete de Kutuzov, o príncipe André, com os papéis na mão, aproximou-se do seu camarada, o ajudante-de-campo de serviço. Kozlovski, que estava a ler um livro ao pé da janela. — Então, príncipe? — perguntou Kozlovski. — Ordem para redigir uma nota explicando a razão pela qual não avançamos. — E porquê? André fez-lhe sinal de que também não sabia. — Não há notícias de Mack?— perguntou Kozlovski. — Não. — Se fosse verdade ele ter sido derrotado já haveria notícias. — Provavelmente — redarguiu André, dirigindo-se para a porta de serviço. Nessa altura entrava, num repente, batendo com a porta, um general austríaco de grande estatura, de capote, um lenço preto amarrado à cabeça, e pendente do pescoço o colar de Maria Teresa: acabava, evidentemente, de chegar. O príncipe André deteve-se. — O general-chefe. Kutuzov? — disse rapidamente o recém-chegado com um duro sotaque alemão, olhando em roda, e dirigindo-se, sem se deter, para a porta do gabinete. — O general-chefe está ocupado — replicou Kozlovski, interceptando os passos do general desconhecido e vedando-lhe o caminho. — Quem devo anunciar? O general desconhecido mediu com um olhar de desdém Kozlovski, que era de pequena estatura, como que surpreendido de o não terem reconhecido. — O general-chefe está ocupado — repetiu tranquilamente Kozlovski. O general franziu as sobrancelhas e os lábios tremeram-lhe de cólera. Puxou de uma agenda, traçou apressadamente algumas palavras a lápis, rasgou a folha, entregou-a, aproximou-se da janela a passos rápidos, deixou-se cair numa cadeira e ficou-se a olhar os circunstantes, como que a dizer: «Com que direito é que me olham assim?» Em seguida ergueu a cabeça, estendeu o pescoço, como se fosse falar, e depois, como se fosse cantarolar qualquer coisa, negligente, emitiu um som estranho, que logo saiu estrangulado. A porta do gabinete abriu-se e no limiar apareceu Kutuzov. O general da cabeça amarrada, com o ar de quem procura evitar um perigo, aproximou-se de Kutuzov em largos passos rápidos das suas magras pernas, fazendo uma vénia ao general russo. — Eis na sua frente o infeliz Mack — articulou, numa voz alterada. Kutuzov, de pé à porta do seu gabinete, conservou durante instantes uma expressão absolutamente impassível. Depois, um vinco, como uma vaga, lheperpassou pela máscara e as rugas da testa desapareceram -lhe; inclinou-se com deferência, fechou os olhos, deixou passar Mack adiante, sem dizer palavra, e em seguida puxou a porta. O boato já então espalhado da derrota dos Austríacos e da rendição do exército inteiro em UIm era exacto. Meia hora depois eram enviados ajudantes-de- campo em todas as direcções anunciando que dentro em pouco também o exército russo, até aí inactivo, se iria defrontar com o inimigo. O príncipe André era um dos raros oficiais do estado-maior a quem interessava, antes de mais nada, a marcha geral das operações militares. Ao ver Mack e tendo conhecido por miúdo os pormenores da sua derrota compreendeu que metade da campanha estava perdida, que os exércitos russos se encontravam numa situação bastante crítica e anteviu com nitidez o destino reservado às tropas e o papel que a ele próprio competiria. Sem querer, experimentou uma alegria violenta ao pensar que a presunçosa Áustria estava humilhada e que dentro de uma semana talvez lhe fosse dado tomar parte num recontro entre Russos e Franceses, o primeiro desde Suvorov para cá. Mas receava o génio de Bonaparte, capaz de vencer a bravura dos exércitos russos, e ao mesmo tempo não podia admitir que o seu herói fosse posto em xeque. Emocionado e transtornado pelos seus pensamentos. André retirou-se para os seus aposentos na intenção de escrever ao pai a sua carta quotidiana. No corredor encontrou-se com o seu camarada Nesvitski e o jocoso Jerkov; como sempre, estavam ambos muito alegres: — Porque é que estás tão macambúzio? — perguntou Nesvitski, ao ver o rosto pálido e os olhos brilhantes do príncipe André. — Não há grande motivo para estarmos contentes — redarguiu Bolkonski. Na mesma altura em que os três camaradas se encontravam, cruzavam-se com eles, vindos do outro lado do corredor, o general austríaco Strauch, adido ao estado-maior de Kutuzov para efeitos de abastecimento das tropas russas, e um membro do Conselho Superior de Guerra, que chegara na véspera. O largo corredor tinha espaço suficiente para que os generais passassem livremente, apesar da presença dos três oficiais, mas Jerkov, acotovelando Nesvitski, segredou-lhe, num frouxo de riso: — Eles aí estão!... Eles aí estão!... Em linha, deixem-nos passar! Façam favor de os deixar passar!Era evidente que os generais queriam passar sem chamar a atenção para honras supérfluas. O burlesco Jerkov assumiu de súbito um ar de estúpida alegria que afectava não poder dominar. — Excelência — disse ele em alemão, dando um passo em frente e dirigindo-se ao general austríaco .— Tenho a honra de o felicitar. Numa vénia e desastradamente, como as crianças quando aprendem a dançar, fez deslizar um pé, depois o outro. O general membro do Conselho Superior de Guerra mediu-o de alto a baixo com um olhar severo; mas ao reparar na gravidade daquele sorriso parvo não pôde recusar-lhe um momento de atenção. Semicerrou w olhos, atento. — Tenho a honra de o felicitar. Chegou o general Mack, em muito bom estado, apenas com uma feridazinha aqui — acrescentou, abrindo-se em sorrisos e apontando para a sua própria testa. O general franziu as sobrancelhas, voltou costas e continuou o seu caminho. — Meu Deus, que ingenuidade! (Em alemão no texto russo. (N, dos T.) — exclamou, furioso, depois de ter dado alguns passos. Nesvitski, rindo, passou o braço por detrás do príncipe André, mas este, empalidecendo ainda mais, sacudiu-o, tomando um ar descontente, e voltou-se para o lado de Jerkov. O nervosismo em que o puseram a presença de Mack e as notícias sobre a situação, além da lembrança do que aguardava o exército russo, fizeram-no explodir perante o gracejo despropositado de Jerkov: — Meu caro senhor — exclamou numa voz incisiva, com um ligeiro tremor no queixo —, se lhe dá prazer fingir de palhaço, não serei eu quem o impeça disso, mas devo adverti-lo de que se torna a ter a audácia de fazer de histrião na minha presença eu lhe ensinarei como deve comportar-se. Nesvitski e Jerkov ficaram tão surpreendidos com estas palavras que fitaram Bolkonski sem dizer palavra, os olhos muito abertos. — Porquê? Limitei-me a apresentar-lhe as minhas felicitações — balbuciou Jerkov. — Eu não estou a brincar consigo, peço-lhe que se cale! — gritou-lhe Bolkonski, e, tomando o braço de Nesvitski, seguiu em frente, deixando Jerkov no meio do corredor, sem saber que responder. — Então, que é isso? — disse Nesvitski para o sossegar. — Quê?! — exclamou o príncipe André, detendo-se, tomado ainda deexaltação. — É preciso que compreendas que nós ou somos oficiais ao serviço do nosso czar e da pátria, que nos regozijamos com os êxitos gerais e deploramos os fracassos, ou então não passamos de simples lacaios, indiferentes à vida dos nossos amos. Quarenta mil homens massacrados e o exército dos nossos aliados dizimado, e acha que é caso para rir — acrescentou, como se esta frase em francês viesse fortalecer o seu raciocínio. Está certo num rapaz insignificante como esse indivíduo que elegeu para seu amigo, mas não em si, não em si. Só os garotos é que se divertem desta maneira— continuou em russo, pronunciando a palavra «garotos» com um sotaque francês, pois receou que Jerkov o pudesse ouvir. Ficou um momento silencioso, como que à espera de ouvir o que o oficial replicaria. Mas este fez meia volta e saiu do corredor. [IV] O regimento dos hússares de Pavlogrado estava acantonado a umas duas milhas de Braunau. O esquadrão de que era junker Nicolau Rostov ocupava a aldeia alemã de Saltzeneck. Na mais confortável casa da povoação fora alojado o comandante do esquadrão, o capitão Denissov, a quem toda a gente conhecia, na divisão de cavalaria, por Vaska Denissov. O junker Rostov, desde que se juntara ao regimento, na Polónia, estava aboletado com o comandante do esquadrão. A 11 de Outubro, no mesmo dia em que a notícia do desastre de Mack pusera o quartel-general em sobressalto, a vida de campanha do esquadrão prosseguia tão tranquilamente como até essa data. Denissov, que perdera a noite, ainda não regressara a casa, quando Rostov, de manhãzinha, voltou a cavalo da distribuição da forragem. No seu uniforme de junker. Rostov aproximou-se dos degraus da porta, impelindo o cavalo, depois passou a perna por cima da garupa, num gesto rápido e juvenil, ficou um momento com o pé no estribo, como se o deixasse com saudades, e por fim saltou para o chão, chamando a ordenança. — Eh! Bondarenko, amigo do meu coração! — exclamou ele para um hússar que se tinha precipitado para o cavalo. — Passeia-o, meu velho! — continuou, com essa ternura fraterna e jovial que os rapazes, quando se sentem felizes, testemunham a toda a gente.— As suas ordens. Excelência — respondeu o pequeno russo, sacudindo alegremente a cabeleira. — Toma atenção, dá-lhe um bom passeio. Outro hússar se tinha igualmente precipitado, mas Bondarenko já tomara conta do bridão. Era evidente que o junker costumava dar boas gorjetas e que valia a pena servi-lo. Rostov passou a mão pela cernelha do cavalo, acariciando-o depois pela garupa e ficou alguns instantes parado nos degraus da entrada. «Esplêndido! Isto é que vai dar um cavalo!», disse de si para consigo, sorrindo, com o sabre suspenso da mão. Depois galgou rapidamente os degraus, fazendo tilintar as esporas. O alemão em casa de quem estava aboletado, de colete de flanela e boné de algodão, empunhando uma forquilha para apanhar estrume, olhava para a cena plantado na soleira da porta do estábulo. Assim que viu Rostov, o rosto iluminou-se-lhe. Sorriu alegremente e piscou-lhe o olho: — Bom dia! Bom dia! (Em alemão no texto russo. (N, dos T.) — repetiu, com visível satisfação por ter oportunidade de saudar o rapaz. — Já a trabalhar! (Em alemão no texto russo. (N, dos T.) — exclamou Rostov com o mesmo ar amistoso e jovial que lhe andava sempre na cara. — Vivam os Austríacos! Vivam os Austríacos! Viva o imperador Alexandre! — acrescentou, dirigindo ao proprietário as próprias palavras que este muita vez tinha repetido. — E viva toda a gente! (Em alemão no texto russo. (N, dos T.). Rostov, imitando o alemão, agitou no ar a barretina e gritou, rindo: — E viva toda a gente! (Em alemão no texto russo. (N, dos T.) — Embora o alemão, que andava a limpar a estrebaria, não tivesse qualquer motivo para estar alegre, o que, aliás, se dava também com Rostov, que fora com o seu pelotão buscar forragens, os dois homens olharam um para o outro cheios de entusiasmo e de fraternal afecto, trocaram sinais amistosos com a cabeça e separaram-se, aquele para regressar à cavalariça, este para entrar na casa onde habitava na companhia de Denissov. - Que é do teu amo? — perguntou Rostov a Lavruchka, o velhaco impedido de Denissov, muito popular no regimento. — Desde ontem à noite que ninguém lhe põe a vista em cima. Está claro que jogou e perdeu — replicou Lavruchka. — Quando ganha, já sei, volta para casa cedo, para se gabar, mas quando não aparece logo pela manhã, isso só quer dizerque está sem cheta. Aparece aí furioso. Devo servir o café? — Está bem, traz, traz. Dez minutos mais tarde. Lavruchka trazia o café. — Lá vem ele — disse o impedido.— Isto vai ser bonito! Rostov olhou para a janela e viu Denissov, que regressava a casa. Denissov era um homenzinho vermelhusco de cara, com uns olhos muito negros e brilhantes, de bigodes e cabelos desgrenhados. Trazia o dólman desabotoado e as pregas das largas calças flutuavam-lhe nas pernas; a barretina, toda amarrotada,’ caía-lhe para a nuca. Macambúzio, de cabeça baixa, aproximou-se da escada. — Lavruchka! — gritou, colérico, escamoteando o r. — Anda cá, tira-me isto, idiota! — Bom, lá vou, sim senhor — disse a voz de Lavruchka. — Ena, já estás levantado! — exclamou Denissov, ao entrar em casa. — Há quanto tempo! — tomou-lhe Rostov. — Já fui à forragem e já vi a Fräulein Matilde. — Caramba! Pois eu, meu rapaz, ontem fiquei limpo! — exclamou Denissov, que não pronunciava os rr. — Que azar! Que azar! Começou logo que te foste embora. Eh! chá! Denissov, de sobrancelhas franzidas, com uma espécie de sorriso que lhe descobria os dentes curtos e sólidos, pôs-se a desgrenhar os cabelos com as duas mãos, metendo os dedos curtos pela espessa floresta das guedelhas pretas. — Foi o Diabo que me levou a casa daquele Rato! (era a alcunha de um dos camaradas de regimento) — disse ele, passando as duas mãos pela testa e pelas faces. — Imagina tu que não tive uma única carta, uma única. Denissov pegou no cachimbo aceso, que o criado lhe entregara, apertou-o na mão, e fê-lo crepitar; depois bateu com ele no sobrado, continuando a gritar. — Vasa simples ganha, paroli perdido: vasa simples ganha, paroli perdido! (Expressão usada no jogo do faraó. (N, dos T.) O tabaco a arder do cachimbo tinha ido todo para o chão; quebrou o cachimbo e atirou-o fora. Depois ficou calado, fitando Rostov alegremente, com os olhos pretos cintilantes. — Ainda se ao menos tivesse havido mulheres... Mas não, além do copo, não havia mais nada que fazer. Ah! Se a gente em breve se pudesse bater! E a valer! Eh! Quem está aí? — Voltara-se para a porta, ao ouvir uns passos pesados, que sedetiveram, um ressoar de botas e de esporas e uma tosse respeitosa. — É o sargento! — disse Lavruchka. Denissov ainda mostrou um ar mais descontente. — Que estopada! — exclamou, atirando com uma bolsa em que havia algumas moedas de ouro. — Conta, meu velho, conta. Rostov, conta o dinheiro que lá está e esconde-me aí a bolsa debaixo da almofada.— Em seguida saiu da sala ao encontro do sargento. Rostov pegou no dinheiro e maquinalmente começou a separar as moedas novas das moedas velhas, em montinhos, pondo-se a contá-las. — Ah! Telianine! Bom dia! Ontem à noite fiquei limpo! — dizia Denissov na sala contígua. — Onde, onde? Em casa do Bikov ou do Rato?... Calculava isso — respondeu outra voz, esta aflautada, e em seguida entrou o tenente Telianine, um oficial de pequena estatura, do mesmo esquadrão. Rostov atirou para debaixo da almofada a bolsa de Denissov e apertou a mão húmida que lhe estendiam. Telianine fora expulso da Guarda, antes da campanha, por um motivo qualquer. Era um oficial bem comportado, mas ninguém gostava dele; Rostov em especial, que não podia vencer nem dissimular a insensata aversão que aquele homem lhe inspirava. — Então, moço cavaleiro, está contente com o meu Gratchik? — perguntou ele. (Gratchik era um cavalo de sela, para passeio, que Telianine vendera a Rostov.) O tenente nunca olhava a direito para o interlocutor; os olhos giravam continuamente de um lado para o outro, — Vi-o passar há bocado... — Oh, é óptimo, é um bom cavalo — retorquiu Rostov, embora o animal que ele comprara por setecentos rublos nem metade valesse. — Mas está a coxear da mão direita... – acrescentou. — Tem o casco fendido. Não tem importância. Hei-de-lhe ensinar como se põe um cravo. — Obrigado — tornou Rostov. — Fica combinado. Não é segredo. Mas ainda há-de vir a agradecer-me o cavalo que lhe vendi. — Então o melhor é mandar buscar o cavalo — disse Rostov, morto por se verlivre do oficial, e saiu da sala para dar ordens nesse sentido. No vestíbulo. Denissov, de cachimbo na boca, acocorado à turca no limiar da porta, ouvia o relatório do sargento. Ao ver Rostov, franziu as sobrancelhas, mostrando-lhe, por cima do ombro, com o dedo polegar. Telianine, que ficara sentado no quarto atrás dele, e abanou a cabeça em sinal de aversão. — Ali está um tipo que eu não tolero! — exclamou sem se importar com a presença do sargento. Rostov teve um gesto de ombros que queria dizer: «Também eu não, mas que havemos de fazer?» e, depois de dar as suas ordens, voltou para o pé de Telianine. Telianine continuava sentado na atitude indolente que mostrara momentos antes, esfregando as pequenas mãos brancas. «Sempre há cada cara neste mundo!», dizia de si para consigo Rostov, ao voltar ao quarto. — Então mandou buscar o cavalo? — inquiriu Telianine, levantando-se e lançando um olhar distraído à sua roda. — Mandei. — Ora vamos lã ver isso. Vim apenas para pedir ao Denissov as ordens de ontem. Tem-nas consigo. Denissov? — Não, ainda não. Eh! Onde é que vai? — Vou ensinar a este rapaz como se ferra um cavalo — disse Telianine. Desceram a escada e dirigiram-se à cavalariça. O tenente ensinou a Rostov como convém pregar os cravos numa ferradura e voltou para casa. Quando Rostov regressou, em cima da mesa havia urna garrafa de aguardente e uma salsicha. Denissov estava sentado e a pena rangia sobre o papel. Olhou para Rostov com uma expressão sombria. — Estou a escrever-lhe — disse. Pôs o cotovelo na mesa, apoiou-se, com a caneta na mão, e, evidentemente contentíssimo por ter oportunidade de dizer de uma só vez tudo o que tinha intenção de escrever, pormenorizou a Rostov o conteúdo da carta entre mãos. — Como vês, meu velho — comentou —, enquanto não gostamos de alguém é como se estivéssemos a dormir. Não somos mais que pó... Mas assim que um homem começa a amar, é como se fosse Deus, sente-se puro, é como nos primeiros dias da Criação... Que temos ainda? Manda-o para o diabo que o carregue! Não tenho tempo — gritou para Lavruchka, que se aproximava, sem se perturbar. — Que quer que eu faça? Foi o senhor quem o mandou. O sargento vem peloseu dinheiro. Denissov franziu as sobrancelhas, quis levantar a voz, mas calou-se. — Ora esta! Que estopada! — disse como para consigo mesmo. — Que dinheiro há ainda na bolsa? — perguntou a Rostov. — Sete moedas novas e três velhas. — Isto é que é uma espiga! Que estás tu aí a fazer, idiota? Vai chamar o sargento — gritou Denissov para Lavruchka. — Se tu quiseres. Denissov, eu empresto-te dinheiro. Eu tenho dinheiro — disse Rostov corando. — Não gosto de pedir dinheiro emprestado aos amigos, não, não gosto — balbuciou Denissov. — Se não aceitares o meu dinheiro, como camarada que és, fico contrariado. Realmente tenho dinheiro – repetiu Rostov. Denissov aproximou-se da cama, para tirar a bolsa de baixo da almofada. — Onde é que puseste a bolsa. Rostov? — Aí sob a almofada. — Não está cá nada. Denissov atirou para o chão as duas almofadas. A bolsa não estava. — É extraordinário! — Espera. Naturalmente não procuraste bem! — interveio Rostov, pegando nas almofadas, uma por uma e sacudindo-as. Levantou igualmente a colcha e sacudiu-a. A bolsa, nada. — Ter-me-ia eu esquecido? Qual quê? Até disse de mim para comigo que tu a punhas debaixo da cabeça, como se fosse um tesouro. Foi aí que eu pus a bolsa. Onde está ela? — acrescentou, dirigindo-se a Lavruchka. — Eu não pus os pés no quarto. Onde a pôs é que ela deve estar. — Mas não esta! — É sempre assim, deixa as coisas em qualquer parte e depois esquece-se delas. Veja nas algibeiras. — Não, se eu não tivesse pensado que era como fosse um tesouro — repetiu Rostov — Lembro-me perfeitamente de que a arrumei. Lavruchka desfez a cama, espreitou por debaixo barras, sob a mesa, revolveu a casa inteira e acabou por parado no meio do quarto. Denissov seguia, sem dizer palavra, todos os movimentos de Lavruchka, e quando o viu, parado no meio doquarto, os braços abertos, declarando que, a bolsa não estava em parte alguma, olhou para Rostov. — Rostov, deixa-te de brincadeiras Rostov sentiu pousado nele o olhar de Denissov, ergueu os olhos e voltou logo a baixá-los. Todo o sangue das veias, que lhe estava parado na garganta, lhe subiu à cara. Não podia respirar. — Aqui não estiveram senão o tenente e os senhores. Tem de estar em qualquer parte — disse Lavruchka. — Pois então, filho de uma velha, mexe-te, procura — subitamente Denissov, corando muito e lançando-se sobre o pedido com um gesto ameaçador. — A bolsa já ou, então, o chicote! Vai tudo corrido a chicote! Rostov, olhando Denissov bem de frente, abotoou o dólman, afivelou o sabre e pós a barretina. — É o que eu te digo, é preciso que a bolsa apareça — gritava Denissov, sacudindo a ordenança pelos ombros e encostando-a à parede. — Basta. Denissov: eu sei quem a levou — disse Rostov, que avançou para a porta, sem erguer os olhos. Denissov soltou Lavruchka, reflectiu um momento e compreendendo, certamente, a quem Rostov aludia, agarrou-o por um braço. — Que imbecilidade! — gritou com tamanha violência que as veias do pescoço e da testa se lhe intumesceram. — É o que eu te digo: estás doido, não te consentirei uma coisa dessas! A bolsa tem de estar aqui! Ainda que eu tenha de arrancar a pele a este miserável, a bolsa há-de aparecer. — Eu sei quem a levou — repetia Rostov, em voz trémula, encaminhando-se para a porta. — E eu repito-te que não te atrevas a fazer uma coisa dessas! — gritou Denissov, lançando-se sobre o junker, para o não deixar partir. Mas Rostov soube evitá-lo, olhando-o fixamente e bem de frente com tamanho rancor que dir-se-ia ser Denissov o seu maior inimigo. — Estás a perceber o que dizes? — articulou, com a voz trémula. — Além de mim mais ninguém havia neste quarto. Por isso, se não foi o outro... Não pode concluir, e desapareceu. — Diabos te levem a ti e a todos os outros! ouviu Rostov, quando se afastava. Rostov dirigiu-se a casa de Telianine.— O meu amo não está, foi ao estado-maior — disse-lhe a ordenança. — Aconteceu alguma coisa? — acrescentou, ao ver os traços descompostos do junker. — Nada. — Por pouco que o apanhava aqui — continuou o impedido. O estado-maior ficava a três verstas de Saltzeneck. Rostov, sem voltar a casa, montou a cavalo e para lá se dirigiu. Na aldeia onde estava instalado o estado- maior havia um albergue frequentado pelos oficiais. Foi para aí que Rostov se encaminhou. A porta estava o cavalo de Telianine. Na segunda sala do albergue encontrou o tenente abancado diante de um prato de salsichas e de uma garrafa de vinho. — Ah!, então por aqui, meu rapaz? — disse ele, sorrindo e erguendo as sobrancelhas. — É verdade — volveu Rostov, como se dizer coisa tão simples lhe custasse muito, e sentou-se a uma mesa vizinha. Ambos ficaram calados. Estavam presentes dois alemães e um oficial russo. Ninguém falava, e apenas se ouvia o tinir das facas de encontro aos pratos e o ruído das maxilas do tenente, que mastigava. Quando Telianine acabou de almoçar, puxou de uma bolsa. Com os dedos delicadamente soerguidos fez deslizar a argola, pegou numa moeda de ouro e, franzindo as sobrancelhas, pagou ao criado. — Depressa, se fazes favor — recomendou. A moeda era nova. Rostov levantou-se e aproximou-se de Telianine. — Deixe-me ver essa bolsa — disse em voz muito baixa, quase ininteligível. Com o olhar esquivo e o ar sempre preocupado. Telianine deu-lhe a bolsa. — É bonita, não é?... É... é... — disse, empalidecendo repentinamente. — Pode vê-la, meu rapaz. Rostov pegou na bolsa, examinou-a, fez o mesmo ao dinheiro que ela continha, e depois fitou Telianine. O tenente, como de costume, deixou errar os olhos, sem o fixar, e de repente pareceu divertir-se. — Se chegarmos a Viena, tenho a impressão de que deixamos lá tudo, mas por agora não há onde gastar o nosso dinheiro senão nestes antros. Dê cá a bolsa, meu rapaz, vou andando. Rostov não disse palavra. — Que é que vai fazer? Vem almoçar? Não se come nada mal aqui — prosseguiu Telianine. — Deixe ver.Estendeu a mão para a bolsa. Rostov deixou que ele a tomasse. Telianine pegou-lhe e enfiou-a na algibeira dos calções de montar, enquanto erguia as sobrancelhas, despreocupadamente, e abria a boca como para dizer. «Pois claro, meto a minha bolsa na algibeira, não há nada mais simples, e ninguém tem nada com isso.» — Então, meu rapaz? — disse, com um suspiro, e por debaixo das sobrancelhas erguidas lançou um olhar a Rostov. Faíscas eléctricas correram e saltaram entre os olhos de ambos, duas, três vezes, num relâmpago. — Venha daí — disse Rostov, pegando-lhe num braço. E conduziu-o quase a força para o pé da janela, — Esse dinheiro é do Denissov. O senhor fez-lhe mão baixa — murmurou-lhe ao ouvido. — O quê?... O quê... Atreve-se?... O quê?... — disse Telianine. Saíra nestas palavras qualquer coisa de desesperado, como a pedir perdão. Ao ouvir esta voz. Rostov sentiu que lhe tiravam como que um grande peso de cima dos ombros. Uma grande alegria o tomou, ao mesmo tempo que sentia piedade pelo infeliz que estava diante dele. Mas era preciso ir até ao fim. — Só Deus sabe o que esta gente vai pensar — balbuciou Telianine, pegando na barretina e dirigindo-se para uma salinha que estava vazia. — Temos de nos explicar. — Eu sei o que digo e posso prová-lo — afirmou Rostov. — Eu... Todos os músculos do rosto assustado e pálido de Telianine estremeceram. O seu olhar continuava fugidio, mas fito no chão, e não ousava levantar os olhos para Rostov; abafou uma espécie de soluço. — Conde!... Não perca um homem... Aqui tem este miserável dinheiro, tome conta dele... — Atirou-o para cima da mesa. — Tenho um pai, que é velho, tenho um mãe!... Rostov pegou no dinheiro, evitando o olhar de Telianine, e, sem dizer palavra, abalou. Mas ao chegar ao limiar da porta, deteve-se e voltou atrás. — Meu Deus! — exclamou com as lágrimas nos olhos. — Como é que pôde? — Conde — disse Telianine, aproximando-se do junker.— Não me toque — tornou Rostov, recuando. — Se está precisado de dinheiro, tome o que aí está. Atirou-lhe com a bolsa e saiu a correr da estalagem. [V] Na noite do mesmo dia, em casa de Denissov, travava-se urna animada conversa entre os oficiais do esquadrão. — E eu, na minha opinião, acho que o Rostov deve apresentar as suas desculpas ao comandante do regimento — dizia para o próprio Rostov, vermelho como uma papoula, e emocionadíssimo, um capitão, muito alto, de cabelos grisalhos, grandes bigodes e um rosto duro, sulcado de rugas. O capitão Kirsten já por duas vezes fora degradado em soldado raso, por questões de honra, e das duas vezes recuperara o seu antigo posto. — Não consinto a ninguém que me chame mentiroso! — exclamou Rostov. — Ele disse-me que eu estava a mentir, e eu retorqui-lhe que quem mentia era ele. E é assim que as coisas ficarão. Está no seu direito, se, quiser, pôr-me de serviço todos os dias e mandar-me deter até. Eu é que lhe não apresentarei desculpas, visto que se ele, como comandante do regimento, entende que lhe não fica bem dar-me satisfações... — Calma, calma, meu rapaz; ouça lá — interrompeu o capitão, na sua voz de baixo, cofiando tranquilamente os longos bigodes. — Disse ao comandante do regimento, na presença de outros oficiais, que um oficial tinha roubado... — Não tenho culpa que a conversa se tivesse passado diante de outros oficiais. Talvez que eu, realmente, não devesse ter falado diante deles; falta-me o jeito diplomático. Se escolhesse os hússares, é porque estava convencido de que aqui ninguém se preocupava com essas finezas; e vai ele e diz que eu estava a mentir... Então é ele quem me deve apresentar desculpas... — Tudo isso está certo, ninguém diz que o senhor é um poltrão. Não é disso que se trata. Pergunte ao Denissov se isso é conveniente, se um junker deve pedir satisfações ao comandante do seu regimento. Denissov, mordiscando o bigode, ouvia a conversa de sobrecenho carregado,sem querer, ao que parecia, intervir na discussão. Quando o capitão formulou a sua pergunta, ele meneou a cabeça negativamente. — O senhor falou nessa vilania ao comandante diante dos oficiais — prosseguiu o capitão. — Bogdanitch (era o nome do comandante do regimento) mandou-o calar. — Não me mandou calar, mas disse-me que eu não falava verdade. — Sim, mas o senhor respondeu-lhe umas tolices, e é preciso pedir-lhe desculpa. — De maneira alguma! — exclamou Rostov. — Não esperava isto de si — disse o capitão num tom ao mesmo tempo sério e severo. — O senhor não quer apresentar desculpas; mas, meu amigo, não há dúvida de que é culpado, não só perante ele, mas perante o regimento inteiro, perante todos nós. Ouça: se ao menos o senhor tivesse pensado dois minutos e se se tivesse aconselhado, mas não, foi logo às do cabo, e diante dos oficiais. Que é que o comandante tinha a fazer? Entregar um oficial à justiça e enlamear todo o regimento? Desonrar o regimento inteiro por causa de um miserável? Era isto que se devia ter feito, na sua opinião? Mas nós não pensamos assim: Bogdanitch teve razão: disse-lhe que o senhor não falava verdade. É desagradável, mas que quer, meu velho, foi o senhor quem assim o quis. E agora, que se pretendem abafar as coisas, o senhor, por amor-próprio, não quer apresentar desculpas e deseja pôr tudo em pratos limpos. Está furioso por o terem posto de serviço permanente, mas que é que lhe custava apresentar desculpas a um oficial velho e honesto? Seja qual for, de resto, a atitude de Bogdanitch neste caso, o certo é que é um velho coronel digno e valente; e o senhor sente-se ofendido, e, quanto a manchar o regimento, isso não o incomoda? — A voz do capitão tremia, comovida. — O senhor não vai ficar aqui muito tempo. Se hoje está neste regimento, amanhã já estará em qualquer outra parte, como ajudante-de-campo. Pouco lhe importa que venha a dizer-se: «Entre os oficiais do Pavlogrado há ladrões!» Mas a nós, a nós, isso não nos é indiferente. Não é verdade. Denissov? Isso a nós não nos é indiferente. Denissov calava-se e não se mexia, fitando Rostov, de tempos a tempos, com os seus olhos pretos muito vivos. — O senhor preza acima de tudo o seu amor-próprio e não quer apresentar desculpas — continuou o capitão —, mas aos velhos, àqueles que têm envelhecidono regimento, e se Deus quiser nele hão-de morrer, a esses, a honra do regimento importa muito, e Bogdanitch sabe-o bem. Queremos-lhe muito! Não está certo! Que o senhor esteja ou não ofendido, eu, por mim, gosto de dizer a verdade. Não está certo! O capitão levantou-se e voltou costas a Rostov. — Ele tem razão, diabos me levem! — exclamou Denissov, erguendo-se de um salto.— Vamos. Rostov, vamos! Rostov, corando e empalidecendo ao mesmo tempo, fitava ora um oficial ora outro. — Não, meus senhores, não... Não devem pensar... Eu compreendo muito bem, fazem mal em pensar que eu seria capaz... Eu.., por mim.., sou pela honra, do regimento... Mas falar nisso para quê?... Hei-de-o mostrar com acções, e para mim a honra da bandeira... Bem, pouco importa, é verdade, sou culpado!... Tinha as lágrimas nos olhos. — Sou culpado, inteiramente culpado!... Que é que querem mais? — Bom, está bem, conde — disse, voltando-se, o capitão, e bateu-lhe no ombro com a sua grande manápula. — Eu tinha-te dito — acrescentou Denissov— que ele era um bom camarada. — Assim está bem, conde — repetiu o capitão, que o tratava pelo título como se isso fosse uma recompensa do seu gesto. — Vá apresentar as suas desculpas. Excelência. Está bem! — Meus senhores, estou pronto a tudo, nunca mais ninguém ouvirá falar deste caso — protestou Rostov, numa voz comovida. — Mas desculpas não, cos diabos, desculpas não. Que querem que eu faça? Que peça desculpa, como um garoto, que implore perdão? Denissov pôs-se a rir. — Tanto pior para si. O Bogdanitch é rancoroso. Há-de-lhe fazer pagar cara a sua obstinação — disse Kirsten. — Com mil diabos, não, não é obstinação! Não lhes posso dizer o que sinto.., não posso. — Bom, faça o que entender! — exclamou o capitão-adjunto. — E esse miserável, onde é que ele se meteu? — perguntou a Denissov. — Deu parte de doente; amanhã a ordem de serviço há-de dá-lo como doente — respondeu este.— A doença; não há outra desculpa — disse o capitão-adjunto. — Doente ou não, que me não caia nas mãos, dou cabo dele! — gritou Denissov, feroz. Jerkov entrou na sala. — O que há? — perguntaram os oficiais imediatamente. — Ordem de marcha, meus senhores. Mack rendeu-se com todo o seu exército. — Não pode ser! — Vi-o com os meus próprios olhos. — Quê? Tu viste o Mack vivo? Em carne e osso? — Para a guerra!, para a guerra! Vamos beber pela boa nova. E tu, que estás aqui a fazer? — Mandaram-me regressar ao meu regimento precisamente por causa desse diabo do Mack. O general austríaco queixou-se de mim; felicitei-o pelo seu regresso... Que é isso. Rostov? Que tens tu? Parece que acabas de sair de um banho quente. — Temos estado metidos num tal sarilho estes últimos dois dias! Um ajudante-de-campo do regimento entrou nesse momento e confirmou a notícia trazida por Jerkov. Havia ordem para se porem em marcha no dia seguinte de manhã. — Para a guerra, meus senhores! — Graças a Deus; estávamos a criar bolor. [VI] Kutuzov tinha retirado para Viena, fazendo saltar as pontes do Inn em Braunau e a do Traun em Lintz. No dia 23 de Outubro, o exército russo atravessava o Enns. As bagagens, a artilharia e as colunas de tropas atravessaram-no em pleno dia, formando colunas dos dois lados da ponte. O tempo estava suave, uma atmosfera de Outono, mas chuvosa. A longa perspectiva que se descobria das eminências ocupadas pelas batarias que defendiam a ponte ora se estendia por detrás das cortinas de musselina formada pela chuva oblíqua, ora se alargava, e na luz brilhante do Sol podiam distinguir-seos objectos a distância como cobertos por uma camada de verniz. Lá em baixo via- se a cidadezinha, com as suas casas brancas de tectos vermelhos, a sua catedral e a sua ponte, em cujos flancos corria, em fileiras apressadas, a onda dos exércitos russos. Na curva que o Danúbio ali formava viam-se barcos, uma ilha e um castelo com um parque cercado pelas águas da confluência do Enns e do Danúbio. Depois via-se a margem esquerda do rio, escarpada e coberta de pinheirais, misteriosos horizontes de cumeadas verdejantes e de desfiladeiros azulados; um pouco mais adiante, as torres de um convento emergindo de um pinheiral selvagem, tão cerrado que parecia uma floresta virgem; na distância, e defronte, na outra margem do Enns, numa eminência, entreviam-se as patrulhas inimigas. A frente da bataria, lá no alto, estava o comando da retaguarda: um general, com um oficial às ordens, que examinava o terreno pelo óculo. Um pouco mais para trás, sentado sobre a carreta de uma peça de artilharia, via-se Nesvitski, enviado à retaguarda pelo general-chefe. O cossaco que o acompanhava apresentava-lhe um saco de provisões e um frasco, e Nesvitski regalava os oficiais com pastéis e kummel autêntico. Estes formavam roda em tomo dele, muito alegres, uns de joelhos, outros escarranchados, à turca, na erva molhada. — Não era qualquer imbecil o príncipe austríaco que mandou ali construir um castelo. Que sítio magnífico! Eh! Então? Os senhores não comem? — dizia Nesvitski. — Obrigado, príncipe — respondeu um dos oficiais, que parecia encantado de se ver assim a conversar com um membro tão importante do estado-maior. — Soberbo local, realmente! Passámos diante do parque e vimos lá dentro dois veados; que magnífica residência! — Olhe, príncipe — disse outro oficial, desejoso de comer mais um pastel, mas sem coragem de o pedir e, por isso mesmo, fingindo examinar a paisagem. — Olhe, a nossa infantaria acabou agora mesmo de lá chegar. Lá diante, ao pé daquele prado, por detrás da aldeia, três soldados estão a puxar qualquer coisa. Vão fazer uma rica limpeza no palácio — acrescentou com evidente aprovação. — Sem dúvida — disse Nesvitski — Não, cá por mim, o que eu gostava — acrescentou, metendo um pastel pela boca abaixo — era de ir até ali. Apontava para o convento torreado que se descobria no alto da colina. Sorriu; os olhos fizeram-se-lhe pequenos e brilhantes. — Não há dúvida, devia ser uma beleza, meus senhores!Os oficiais puseram-se a rir. — Meter um susto às freirinhas. Parece que são italianas, e novas, segundo dizem. Palavra de honra, dava cinco anos de vida para ir até lá. — Tanto mais que elas devem estar aborrecidíssimas — disse, rindo, um oficial mais atrevido do que os outros. Entretanto, o oficial às ordens, de serviço, apontava fosse o que fosse ao general. Este pôs-se a observar pelo óculo. — Sim, senhor, lá estão eles, lá estão eles! — exclamou, encolerizado, afastando o óculo e encolhendo os ombros. — Lá estão eles e vão-nos cair em cima na altura da travessia do rio. Que estarão eles para ali a fazer? Do outro lado do rio via-se o inimigo a olho nu e uma das suas batarias, por cima da qual se elevava um fumozinho leitoso. O fumo foi acompanhado, momentos depois, de uma detonação longínqua e viram-se as tropas russas estugar o passo na passagem do rio. Nesvitski, para se fazer valer, levantou-se e, sorrindo, aproximou-se do general. — Não quer Vossa Excelência comer também um bocadinho? — disse-lhe ele. — A coisa vai mal — declarou o general, sem lhe responder. — Os nossos estão atrasados. — Quer que vá lá. Excelência? — inquiriu Nesvitski. — Vá, sim, faça favor — tornou o general, repetindo-lhe as ordens dadas já em pormenor —, e diga aos hússares que sejam os últimos a atravessar e que queimem a ponte, como eu ordenei, e que voltem a inspeccionar as matérias inflamáveis que lá estão. — Muito bem — respondeu Nesvitski. Chamou o cossaco que lhe segurava o cavalo, disse-lhe que guardasse as provisões e o cantil, e, ligeiro, instalou a sua pesada corpulência em cima do cavalo. — Palavra de honra, que vou fazer uma visita às freiras — disse para os oficiais, que olhavam para ele sorrindo, e pôs-se a descer a colina ao longo de um caminho que serpenteava. — Ouça, capitão, veja até onde isso vai — gritou o general, dirigindo-se ao comandante dos artilheiros. — Vamos, para entreter o tempo, — Serventes, a postos! — comandou o oficial.Momentos depois os artilheiros acorriam alegremente, saindo dos seus bivaques, e punham-se a carregar as peças. — Primeira peça! — exclamou o comandante. A primeira peça deu um salto à retaguarda. Ouviu-se o estampido de um trovão metálico e o projéctil passou, assobiando, por cima da cabeça dos russos, no sopé da colina; muito longe do lugar onde estava o inimigo uma nuvem de fumo veio assinalar o sítio onde o projéctil tinha caído. Soldados e oficiais rejubilaram ao ouvir a detonação. Todos se levantaram e puseram-se a observar, lá no fundo, os movimentos das tropas russas, tão visíveis como se estivessem na palma de uma mão, e mais adiante o movimento do inimigo, que se aproximava. Nessa altura, o sol rompeu as nuvens e aquele belo tiro de canhão isolado fundiu-se com o seu fulgor radioso, criando uma sensação de bravura jovial. [VII] Por cima da ponte já tinham passado dois projécteis inimigos e o tumulto ali era grande. No meio da ponte estava Nesvitski. Tinha-se apeado e ei-lo ali, com a sua corpulenta pessoa, cerrado contra o parapeito. Voltava-se para o cossaco, que, com os dois cavalos pela arreata, ficara alguns metros mais atrás. De cada vez que tentava avançar, os soldados e as viaturas obrigavam-no a retroceder, e comprimiam-no de novo de encontro às guardas da ponte. Nada mais podia fazer do que rir. — Eh, tu, lá de diante — dizia o cossaco para um soldado que conduzia uma grande viatura, forçando a marcha por cima dos próprios pés dos soldados, contra os quais avançavam rodas e cavalos. — Eh, tu, não podes esperar? O general quer passar, O soldado do comboio, sem prestar atenção à palavra general que lhe atiravam, gritava para os soldados que lhe impediam a marcha: «Eh, camaradas, pela esquerda, esperem um bocado!» Mas os camaradas, ombro com ombro, embaraçando-se nas baionetas, avançavam pela ponte fora em massa compacta. Debruçando-se sobre o parapeito, o príncipe Nesvitski via as pequenas vagasrápidas e rumorosas do Enns, que, misturando-se e quebrando-se de encontro aos pegões da ponte, se perseguiam umas às outras. Em cima da ponte também se espraiavam ondas vivas e monótonas de soldados; barretinas, com grandes cordões, envoltas em suas capas, mochilas, baionetas, lanças e, debaixo das barretinas, figuras poderosamente musculadas, de faces cavadas, um ar de fadiga e despreocupação, pernas Que se moviam na lama viscosa colada às pranchas da ponte. De onde em onde, por entre as vagas iguais dos soldados, emergia, tal a espuma branca nas águas do Erms, um oficial com o seu casacão e uma máscara que ressaltava no meio das dos soldados; de quando em quando, como se fosse um feixe de palha levado pelas águas, flutuava, por cima das vagas da infantaria, um hússar a pé, uma ordenança ou um civil; e outras vezes, como uma prancha flutuante, via-se sobrenadar, cercado por todos os lados, um furgão de regimento ou uma viatura de oficial cobertos de couro, carregadíssimos. — Parece que se rompeu um dique — disse o cossaco, detendo-se desesperado. — Ainda faltam muitos? — Metade e outros tantos! — exclamou, piscando o olho, um soldado folgazão que naquele momento passava, de capote esfarrapado; atrás dele surgiu um soldado já velho. — Se ele (ele era o inimigo) se lembrasse agora de nos dar um calor em cima da ponte — murmurou para um camarada, taciturno — não tínhamos tempo de nos coçar. E seguiu adiante. Atrás dele vinha outro a guiar uma carroça. — Onde é que diabo meteram a chave? — gritava uma ordenança, que acompanhava a viatura, espiolhando-lhe as traseiras. Tanto o homem como a carroça afastaram-se. Depois apareceu um grupo de soldados muito alegres e que se via bem estarem embriagados. — É o que te digo, meu velho, quando ele lhe atirou com a coronha da espingarda... — dizia, rindo, um dos militares, que tinha o cabeção do capote levantado e fazia grandes gestos. — Ah, sim, que rico presunto — respondeu outro soldado, escancarando a boca. E foram andando, de modo que Nesvitski não conseguiu perceber quem é que tinha sido agredido nem o que é que queria dizer aquele presunto. — Porque é que se puseram agora a correr? Lá porque ele lhes mandou umbalázio, já pensam que estão todos perdidos — disse um sargento, furioso. — Quando ela passou por mim, a granada — exclamou um soldado muito novo que, a rir, abria uma boca enorme —, julguei ir desta para melhor. Caramba, sempre tive um destes medinhos! — acrescentou, como que orgulhoso de ter tido medo. E também este foi andando para diante. Depois chegou uma viatura que se não parecia com qualquer das que tinham passado. Era uma carroça alemã tirada por dois cavalos, carregada, ao que parecia, com o recheio de uma casa inteira. Atrás da carroça, guiada por um alemão, vinha amarrada uma bela vaca malhada, de grandes tetas. Sobre um colchão de penas ia deitada uma mulher que dava de mamar a uma criança, uma velha c uma rapariga sadia e rubicunda. Via-se perfeitamente que aqueles emigrantes tinham sido autorizados a circular mercê de uma licença especial. Os olhos de todos os soldados seguiam as duas mulheres e, enquanto o comboio ia passando, a passo, todas as observações as tinham por objecto. Em todas as máscaras se notava a expressão agarotada que a presença daquelas mulheres sugeria. — Então, minha salsicha, mudamos de casa? Está à venda a tiazinha? — interrogou outro soldado, acentuando a última sílaba (Matucka (tiazinha). (N, dos T.) e dirigindo-se ao alemão, que caminhava, de cabeça baixa, com grandes passadas e um ar ao mesmo tempo furioso e assustado. — Olha para o vestido dela! Ah! Com mil diabos! — Hem! Agradava-te estares aboletado lá em casa. Fedotov? — Tenho visto muita mulher, meu filho! — Onde é que vais? — perguntou um oficial de infantaria, que comia uma maçã, e que também estava de olhos arregalados, todo sorridente, para a mocetona. O alemão, cerrando os olhos, fazia menção de não perceber. — Queres? — disse o oficial, oferecendo uma maçã à rapariga. A moça sorriu e pegou na maçã. Tanto Nesvitski, como os demais em cima da ponte, não perderam de vista as mulheres enquanto elas não passaram. Atrás delas continuaram a passar os mesmos soldados, dizendo sempre as mesmas coisas, e finalmente houve uma paragem geral. Como costuma acontecer frequentemente à saída das pontes, os cavalos embaraçaram-se nas viaturas do regimento e toda aquela massa de tropa ficou detida.— Que diabo de paragem é esta? Não há ordem? — gritavam os soldados. — Vê lá onde pões os pés! Cos demónios, não sei porque é que esperam! O bom e o bonito seria se ele deitasse fogo à ponte. Olha, lá fica esmagado aquele oficial... — E de todos os lados choviam comentários deste género: cada um olhava para o vizinho e ia fazendo pressão no sentido da saída da ponte. Estando a olhar para as águas do Erms, que corriam por debaixo da ponte. Nesvitski sentiu, de repente, um ruído novo para ele, fosse o que fosse que se aproximava muito depressa.., qualquer coisa muito grande veio cair com estrondo nas águas. — Hem! Boa pontaria! — exclamou, carrancudo, um soldado, ali a dois passos, que se voltara ao ouvir o estampido. — Dá-nos coragem para andarmos mais depressa — disse outro soldado com inquietação. A multidão voltou a mover-se. Nesvitski compreendeu que aquilo fora bala de canhão. — Eh! Cossaco! O cavalo — gritou. — Vamos, rapazes, afastem-se! Mexam-se! Deixem passar! Foi com dificuldade que conseguiu chegar até ao pé da montada. Sem nunca deixar de gritar à multidão, conseguiu avançar. Os soldados cerravam fileiras para lhe dar lugar, mas acabavam por se comprimir contra ele de tal modo que lhe imobilizavam as pernas, sem querer, eles próprios vítimas da compressão dos outros. — Nesvitski! Nesvitski! Eh, malandro! — exclamou, nessa altura, atrás dele uma voz rouca. Nesvitski voltou-se e viu, a uns quinze passos de distância, separado dele pela massa viva da infantaria em marcha, uma criatura muito vermelha, muito negra, a barretina atirada para a nuca, com um dólman garbosamente aos ombros: era Vaska Denissov. — Diz-lhes que nos deixem passar, a esses demónios, a esses filhos do Diabo! — gritava Denissov, visivelmente num dos seus acessos de fúria. Os olhos negros e brilhantes como carvão rolavam-lhe nas órbitas inflamadas. Brandia o sabre, que não tirara da bainha, na pequena mão nua, tão vermelha como a cara. — Ah! Vaska! — volveu-lhe, alegremente. Nesvistski. — Que fazes aqui? — É impossível fazer avançar o esquadrão — gritava Vaska Denissov,mostrando os dentes brancos e esporeando o belo murzelo, um beduíno de puro sangue, que, ao picar-se nas baionetas, eriçava as orelhas, resfolgado, espargindo de espuma tudo à sua volta, escarvava com as patas as tábuas da ponte, pronto a saltar por cima do parapeito se o cavaleiro que o montava consentisse. — O quê? Como carneiros, sim, como autênticos carneiros! Ao largo!... Deixem passar!... Façam alto, viaturas! Com mil diabos! Esperem, que eu lhes digo, vai à espadeirada... — E, com efeito, arrancando o sabre da bainha, pôs-se a agitá-lo no ar. Os soldados, aterrorizados, encolheram-se uns contra os outros, e Denissov pôde aproximar-se de Nesvitski. — Quê, que dizes tu? Ainda hoje não bebeste nada? — exclamou Nesvitski para Denissov, assim que o viu perto dele. — Que queres, eles nem para isso nos dão tempo! — replicou Vaska Denissov — Todo o dia temos andado com o regimento em bolandas, de um lado para o outro. Se é preciso que a gente se bata, vamos a isso. Mas, assim, que é que isto quer dizer? — Que elegante estás hoje! — observou Nesvitski, olhando para o seu dólman novo e para a gualdrapa do seu cavalo. Denissov sorriu-se, tirou o lenço da algibeira, todo perfumado, e levou-o ao nariz de Nesvitski. — Claro que não pode ser de outra maneira, vamos para o campo de batalha! Barbeei-me, lavei os dentes e perfumei-me. A imponente estatura de Nesvitski, acompanhada do seu cossaco, assim como o ar decidido de Denissov, que espadeirava para a direita e para a esquerda, em altos gritos, deram tal resultado que os dois conseguiram esgueirar-se para o outro lado da ponte, detendo os peões. Nesvitski, à saída, foi encontrar o coronel a quem devia entregar a mensagem, e, depois de cumprida a sua missão, voltou para trás. Denissov, que tinha conseguido abrir caminho, deteve-se à entrada da ponte. Segurando, negligentemente, o seu cavalo, que escoicinhava e resfolgava, via passar diante dele o seu esquadrão. Sobre as pranchas da ponte ressoavam ferraduras; eram alguns cavalos que vinham a trote. O esquadrão, com os oficiais à frente, alinhado a quatro, surgiu na ponte e começou a sair do outro lado. Os homens da infantaria, obrigados a parar em cima da lama espezinhada da ponte, olhavam para os hússares, asseados e elegantes, que diante deles iamdesfilando galhardamente, com essa hostilidade especial, misto de inveja e de troça, que em geral se observa entre os vários corpos de um exército. — Isto é que é uma tropa catita! Parece mesmo que vai a caminho da parada de Podnovinskoie! — Para que serve esta gente? Só para vista! — exclamou outro soldado. — Eh!, infantaria! Isso não é poeira? — zombou um hússar, cujo cavalo, caracolando, salpicara de lama um dos peões. — Gostava de te ver depois de duas boas marchas de mochila às costas. Deviam ficar bonitos os teus alamares! — ripostou o soldado de infantaria, limpando a lama da cara com a manga. — Aí empoleirado pareces mais um pássaro do que gente! — E tu. Zikine, devias ficar bem a cavalo. Tens boa figura — dizia, trocista, um cabo a um pobre soldado de infantaria, muito magro, ajoujado ao peso da mochila. — Monta num pau e já terás cavalo — zombou um hússar. [VIII] O resto da infantaria dava-se pressa em atravessar a ponte, comprimida à entrada, como num funil. Por fim, tendo passado todas as viaturas, houve menos precipitação, e o último batalhão penetrou na ponte. Apenas os hússares de Denissov permaneciam na outra, extremidade, frente ao inimigo. Este, que se via perfeitamente ao longe da colina oposta, ainda não era visível do nível da ponte, pois, na ravina por onde corriam as águas do rio o horizonte era limitado pelas cumeadas vizinhas a uma meia versta de distância. Ali defronte ficava um baldio, onde evolucionavam, por aqui e por ali, patrulhas de cossacos. De súbito, nos cabeços em frente da estrada surgiram soldados de túnica azul e artilharia. Eram os Franceses. A patrulha de cossacos, a trote, retirou-se do sopé das colinas. Oficiais e soldados do esquadrão de Denissov, procurando falar sobre outra coisa e olhar para outro lado, não deixavam de pensar no que ali estava, naqueles cabeços, e a todo o momento olhavam as manchas que se iam formando no horizonte, e que sabiam perfeitamente serem soldados inimigos. O tempo, para a tarde, clareara, o Sol dardejava os seus raios sobre as águas do rio e asmontanhas sombrias que o cercavam. Tudo estava sereno; dos montes vizinhos chegavam, de quando em quando, toques de clarins e vozes do inimigo. Entre o esquadrão e os Franceses nada mais havia além de algumas pequenas patrulhas. Um espaço vazio de cerca de trezentas sagenas (Medida russa, equivalente a 2,1336 metros. (N, dos T.) os separava. O inimigo tinha cessado fogo, e isso mesmo ainda tornava mais agudo o sentimento da grave ameaça que representava aquela inacessível e insondável faixa de terreno entre os dois adversários. «Um passo para além daquela linha que lembra a que separa os vivos dos mortos e eis-nos no mundo desconhecido do sofrimento e da morte. E lá adiante que é que está? Lá adiante, para além deste campo e desta árvore e daquele telhado iluminado pelos raios do Sol? Ninguém sabe e ninguém o deseja saber. Toda a gente tem medo de transpor aquela linha e ao mesmo tempo há como que uma tentação de o fazer; e o certo é que todos sabem que mais tarde ou mais cedo haverá que transpô-la e que conhecer o que lá existe, do outro lado da linha, exactamente como é inevitável virmos a saber o que fica do outro lado da morte. E no entanto todos nós nos sentimos fortes, saudáveis, cheios de vida.» Eis o que sente, sem dar por isso, todo o soldado diante do inimigo, e esta sensação, naquele instante, dá um brilho particular, um sentimento de rude alegria ao mais pequeno incidente. Sobre o outeiro ocupado pelo inimigo surgiu o fumo de um tiro de peça e a bala passou, assobiando, por cima da cabeça dos soldados do esquadrão de hússares. Os oficiais, que estavam em grupo, retomaram os seus lugares. Os homens procuraram fazer alinhar as suas montadas. O silêncio reinou. Todos olhavam o inimigo, ao longe, aguardando uma ordem. Passaram uma segunda e uma terceira balas. Era evidente que faziam pontaria sobre os hússares: mas os projécteis, com um assobio monótono, passavam-lhes sobre as cabeças e iam cair, algures, lá para trás deles. Os hússares não se voltavam, mas de cada vez que se ouvia o sibilar da, bala, todo o esquadrão, como a uma voz de comando, todas aquelas feições, tão variadas ria sua uniformidade, retinham a respiração enquanto o projéctil passava, e viam-se os homens fincar-se nos estribos e depois encurvar-se. Os soldados, sem mexer a cabeça, entreolhavam-se de viés, examinando, curiosos, a impressão que sentiam os camaradas. Todos os rostos, desde o de Denissov até ao do clarim, denunciavam, por qualquer coisa, de nervoso nos lábios e no queixo, um desejo de luta, certo enervamento, certaemoção. O sargento franzia as sobrancelhas fitando os soldados, como se os ameaçasse de os castigar. O junker Mironov curvava-se sempre que o projéctil passava. Rostov, no flanco esquerdo, no seu Gratchik, um belo cavalo, apesar do seu casco fendido, tinha o aspecto feliz de um colegial chamado, a prestar provas de exame diante de uma grande assembleia e confiante no seu triunfo. Olhava para todos com os seus olhos claros e luminosos, como se quisesse mostrar a toda a gente a sua perfeita serenidade sob a metralha. Mas o certo é que, sem que desse por isso, também ele, como os demais, mostrava, na expressão, que qualquer coisa de novo e de grave se estava a passar. — Quem é que está a fazer sinais lá em baixo? Junker Mironov! Não está certo! Olhem para mim! — gritou Denissov, que, não podendo sossegar, evolucionava, no seu cavalo, à frente do esquadrão. O rosto de nariz esborrachado e os cabelos negros de Vaska Denissov, a sua minúscula pessoa já bastante trabalhada pela vida, as suas mãos nodosas, de dedos curtos e peludos, empunhando o sabre nu, eram os mesmos de sempre, sobretudo quando à noite já tinha despejado duas ou três garrafas. Apenas parecia um pouco mais corado que de costume. Erguendo a cabeça hirsuta, como as aves quando bebem, e esporeando impiedosamente, com as pernas curtas, o seu bom beduíno, ei-lo que se põe a galopar, o corpo atirado para trás, ao longo do outro flanco do esquadrão, e, numa voz rouca, grita que preparem as pistolas. Aproximou-se de Kirsten. O capitão, sobre a sua égua vasta e majestosa, veio, a passo, ao encontro de Denissov. De grande bigodeira, estava sério, como sempre; só os olhos lhe brilhavam mais que habitualmente. — Então! — exclamou — Parece-me que isto não dá nada. Vais ver, acabamos por bater em retirada. — Não sei que diabo é que eles estão a fazer! – resmungou Denissov. — Ah! Rostov! — gritou para o junker, ao ver o ar jovial. — Ah! Até que enfim, não tiveste que esperar muito! E sorria, como para o encorajar, vendo-se que estava contente por vê-lo. Rostov sentia-se feliz. Nessa altura na ponte o coronel. Denissov dirigiu-se para ele a galope. — Excelência, deixe-me atacar! Dou cabo deles. — É de atacar que se trata, realmente — volveu o coronel numa voz enfadada, franzindo as sobrancelhas, como quem sacode uma mosca importuna. — Que diaboestão vocês aqui a fazer? Bem vê que os flancos já retiraram. Leve o esquadrão. O esquadrão voltou a atravessar a ponte e saiu da zona de fogo sem perder um único homem. Atrás dele seguiu, igualmente o segundo esquadrão, exposto também ao fogo do inimigo, e os últimos cossacos evacuaram a margem. Depois de terem passado a ponte, os dois esquadres de Pavlogrado bateram em retirada, um atrás do outro, para as cumeadas. O comandante do regimento. Karl Bogdanitch Schubert, aproximou-se do esquadrão de Denissov e seguiu a passo não longe de Rostov, sem lhe prestar a mais pequena atenção, embora fosse a primeira vez que o via desde o caso de Telianine. Rostov, consciente do seu papel, na dependência do homem perante o qual agora se sentia culpado, não perdia de vista a estatura atlética, a nuca loura e o pescoço vermelho do comandante do regimento. Ora se convencia de que Bogdanitch se fingia indiferente e que não pensava senão em experimentar a sua bravura de junker, e então empertigava-se e lançava em tomo de si um olhar jovial; ora supunha que Bogdanitch fazia de propósito, conservando-se junto dele, para assim lhe mostrar o quanto era corajoso; ora ainda pensava que o seu inimigo enviava deliberadamente o esquadrão a um ataque duro para o castigar a ele. Rostov, e de si para consigo ia dizendo que depois da refrega iria ter com ele e generosamente lhe estenderia a mão, a ele, ferido, em sinal de reconciliação. Jerkov, cuja alta estatura e largos ombros eram bem conhecidos dos hússares de Pavlogrado, regimento que ele abandonara havia pouco, aproximou-se do coronel. Depois de ter sido expulso do estado-maior, tinha deixado o regimento dizendo que não era tão parvo que fosse condenar-se a trabalhos forçados nas fileiras quando podia ganhar muito mais sem fazer coisa alguma nas ordenanças, e tivera artes de conseguir ser nomeado oficial de ordenança do príncipe Bagration. Era portador de urna ordem para o seu velho coronel da parte do comandante da retaguarda. — Coronel! — exclamou, com um ar sério e sombrio, dirigindo-se ao inimigo de Rostov e trocando um olhar com os camaradas. — Há ordem para voltar para trás e lançar fogo à ponte. — Ordem? E quem a deu? — perguntou o coronel, num tom grosseiro. — Não sei, meu coronel, não sei quem deu a ordem — replicou Jerkov, muito sério. — O príncipe só me disse: «Monta e vai dizer ao coronel que os hússares devem retirar o mais depressa possível e queimar a ponte.»Depois de Jerkov chegou um oficial de ordenança com a mesma ordem. Atrás deste oficial aproximou-se igualmente o corpulento Nesvitski, montado num cavalo de cossaco, que só muito a custo fazia galopar. — Que é isto, coronel?! — exclamou assim que chegou. Eu disse-lhe que queimasse a ponte, e agora diz que não sabe quem deu esta ordem? Está tudo doido, ninguém percebe nada. O coronel, sem pressa, deu ordem ao regimento para fazer alto, e dirigindo-se a Nesvitski: — Falou-me em matérias inflamáveis – disse — Mas, quanto a deitar fogo à ponte, nada me comunicou. — Que me diz, camarada? — exclamou Nesvitski, que tinha refreado o seu cavalo, tirando a barretina e passando a gordurosa mão pelos cabelos ensopados de suor. — Que me diz? Não lhe comuniquei que queimasse a ponte depois de derramar as matérias inflamáveis? — Eu não sou seu «camarada», senhor oficial do estado-maior, e o senhor não me disse que deitasse fogo à ponte! Sei muito bem o que estou a fazer e tenho por hábito cumprir rigorosamente as ordens que me dão. O senhor disse que se queimaria a ponte, mas não quem o faria. Ora eu não poderia sabê-lo por obra do Espírito Santo, — Ah! É sempre a mesma coisa — volveu Nesvitski com um gesto de indiferença. — Que fazes tu aqui? — interrogou, dirigindo-se a Jerkov. — O mesmo que tu. Estás encharcado! Deixa, que eu torço-te a roupa. — O senhor disse, senhor oficial do estado-maior... — continuou o coronel, num tom ofendido. — Coronel — interrompeu o oficial de ordenança —, é preciso agir, de outra maneira o inimigo acaba por colocar a sua artilharia ao alcance da ponte. O coronel olhou sem dizer palavra o oficial de ordenança, o corpulento oficial do estado-maior Jerkov, e franziu as sobrancelhas. — Deitarei fogo à ponte — volveu ele, num tom solene, como se com isso quisesse dizer que, apesar de todas as maçadas que lhe davam, cumpriria o seu dever. Esporeando os flancos do seu cavalo com as suas grandes pernas musculosas, como se o pobre animal fosse o culpado de tudo, o coronel avançou e deu ordens ao segundo esquadrão, aquele, precisamente, a que pertencia Rostov, e estavasob as ordens de Denissov, para voltar à ponte. «Sim, é isto mesmo», pensou Rostov, «quer-me experimentar!» Sentiu um aperto no coração e o sangue subiu-lhe à cara. «Vai ver se eu sou poltrão», pensou. De novo, a máscara jovial dos homens do esquadrão retomou a expressão preocupada que tinha quando sob o fogo das peças de artilharia. Rostov, sem baixar os olhos, olhava para o seu inimigo, o comandante do regimento, tentando descobrir-lhe nos traços a confirmação das suas suspeitas. Mas o coronel nem, uma só vez olhou para ele. Como sempre, no campo de batalha era severo e solene. Uma ordem de comando se ouviu. — Depressa! Depressa! — exclamaram algumas vozes em volta dele. Embainhando os sabres, com grande barulho de esporas, e a toda a pressa, os hússares apeavam-se, sem que eles próprios soubessem o que tinham a fazer. Persignaram-se. Rostov já não se preocupava com o coronel. Não tinha tempo. Nele havia medo, um medo cheio de ansiedade, receoso de ficar para trás dos seus hússares. Tremia-lhe a mão quando entregou o cavalo ao soldado encarregado de tomar conta dele e sentia bater violentamente o coração dentro do peito. Denissov, o corpo atirado para trás, passou, gritando, junto dele. Rostov não via nada além dos hússares a correrem apressados à sua volta, embaraçando-se nas esporas no meio do retinir de sabres. — Uma maca! — gritou uma voz à sua retaguarda. Rostov não percebeu o que é que aquilo queria dizer pedir uma maca; corria, e não pensava senão em chegar primeiro do que outro qualquer. Mas, já perto da ponte, como não via onde punha os pés, enterrou-se num lamaçal mole e espezinhado e, desequilibrando-se, caiu com as mãos para a frente. Os outros continuaram, ultrapassando -o. — Dos dois lados, capitão — dizia a voz do comandante do regimento, que, depois de ter tomado uma certa dianteira, se conservava, a cavalo, a pequena distância da ponte, com um ar alegre e triunfante. Rostov, limpando as mãos cheias de lama ao calção de montar, lançou os olhos ao seu inimigo e quis avançar ainda mais; entendia que quanto mais adiante fosse melhor seria. Mas Bogdanitch, sem olhar para ele, sem o reconhecer sequer, gritou-lhe furioso: — Quem é aquele que vai a correr pelo meio da ponte? A direita! Junker, paratrás!... — Depois, dirigindo-se a Denissov, que para exibição da sua coragem avançava, a cavalo, pelo tabuleiro da ponte: — Para que é que se há-de expor, capitão? Desmonte. — Tem sempre qualquer coisa a dizer — replicou Vaska Denissov, voltando-se no selim. Entretanto. Nesvitski. Jerkov e o oficial da comitiva tinham-se reunido, ao abrigo do tiro do inimigo, e observavam ora este pequeno grupo de homens de barretina amarela, de jaquetas verde-escuras, com alamares e calções azuis de montar, que se agitava perto da ponte, ora, do outro lado, ao longe, as túnicas azuis, que se aproximavam, e grupos à mistura com cavalos, que se via logo serem batarias. «Conseguiremos ou não deitar fogo à ponte? Quem o conseguirá primeiro? Serão eles capazes de chegar a tempo, ou serão os Franceses que conseguirão aproximar-se tanto que os possam alvejar, dizimando-os a todos?» Eis as perguntas que a si próprios formulavam involuntariamente, na maior angústia, todos aqueles homens do exército imobilizado perto do rio, contemplando, à clara luz do Sol, que ia descendo no horizonte, tanto os hússares em cima da ponte como, na outra margem, as baionetas e as peças de artilharia dos túnicas azuis em marcha. — Caramba! Os hússares vão apanhar uma coça! — dizia Nesvitski. — Já não estão longe do alcance da metralha. — Foi um erro mandar tanta gente — observou o oficial do estado-maior. — Efectivamente — comentou Nesvitski —, ali apenas teriam sido precisos dois valentes. — Ah! Excelência! — interveio Jerkov, sem perder de vista os hússares, e sempre com aquele seu ar ingénuo, que levava os outros a perguntar-se a si próprios se ele estava a falar ou não a sério. — Ah! Excelência! Que é que está a dizer? Mandar lá dois homens, e depois, quem é que nos havia de condecorar com a Ordem de Vladimiro? Enquanto que assim, se eles forem dizimados, poderemos citar todo o esquadrão na ordem do dia, propondo-o para a condecoração, e apanhá-la nós também. O nosso Bogdanitch sabe muito bem o que faz. — Olhem! — exclamou o oficial do estado-maior. — Lá começa a metralha. Apontou para as peças de artilharia francesas, que acabavam de serdesatreladas e que apressadamente principiavam a ser distribuídas. Do lado francês, nos grupos onde estavam as peças, apareceu um fumozinho, a seguir outro e quase simultaneamente um terceiro, e quando o estampido do primeiro tiro chegou onde estavam os oficiais russos viu-se um quarto fumo. Houve duas detonações, uma atrás da outra, e por fim uma terceira. — Oh! Oh! — gemeu Nesvitski, como se sentisse urna dor pungente, agarrando no braço do oficial de ordenança. — Olhe, olhe, lá caiu um! — Dois, creio eu! — Se eu fosse o czar, nunca faria guerra — disse Nesvitski, voltando os olhos. Os canhões franceses foram apressadamente carregados de novo. A infantaria de túnica azul avançou para a ponte em passo acelerado. Ainda se viam núcleos de fumo; em diversos pontos crepitava a metralha e rebentava sobre a ponte. Mas desta vez Nesvitski não pôde distinguir o que se passava. Subiu da ponte uma fumarada espessa. Os hússares tinham conseguido lançar-lhe fogo, e as batarias francesas já não disparavam para impedir a operação, mas simplesmente por estarem em linha de fogo e aquele ser um alvo sobre o qual podiam lançar metralha. Antes que os hússares pudessem voltar para junto dos cavalos, ainda os Franceses fizeram três descargas. Duas delas tinham sido mal dirigidas, e haviam- se perdido; a terceira caíra no meio de um grupo de hússares e abatera três. Rostov, sempre absorvido pela ideia de Bogdatnitch, parara no meio da ponte, sem saber que fazer. Sempre se tinha representado a guerra como um acutilar alguém, mas a verdade é que não via ninguém a quem espadeirar; de resto, quanto a cooperar no incêndio da ponte, também o não podia fazer, pois não se havia munido, como os outros, de tições de palha. Continuava de pé na ponte, indeciso, quando, de repente, sentiu crepitar sobre o pavimento como que uma saraivada de nozes, e viu um hússar perto dele cair gemendo sobre o parapeito. Rostov correu para ele, com os outros. Alguém gritou de novo: , dizia de si para consigo. «Toda a gente gosta de mim. Estou disposta a fazer por eles tudo o que quiserem, a gostar do velho, que é seu pai, e dela, que é sua irmã. Não posso compreender porque não hão-de gostar de mim!» Tinham chegado à velha e sombria casa de Voztlvijenka e entraram para o vestíbulo. — Bom, que Deus nos abençoe! — exclamou o conde, meio sério meio a rir. Natacha notou a agitação do pai ao entrar e que fora em voz baixa e tom’ humilde que perguntara se o príncipe e a princesa estavam em casa. Quando se soube quem eram os visitantes, houve grande rebuliço entre a criadagem. O lacaio que fora anunciá-los viu-se detido no salão por um dos seus camaradas e ambos se puseram a segredar qualquer coisa. Também apareceu uma criada de quarto que lhes disse, muito à pressa, algumas palavras sobre a ama. Finalmente surgiu um velho lacaio, de ar severo, que declarou aos Rostov que o príncipe não podia recebê-los, mas que a princesa Maria pedia o favor de entrarem para os seus aposentos. Mademoiselle Bourienne foi a primeira a receber as visitas. Acompanhou-as com extrema cortesia, conduzindo-as junto da princesa. Esta, com o rosto transtornado e em pânico, as faces cobertas de placas vermelhas, veio ao encontro deles no seu andar pesado, tentando debalde aparentar expressão despreocupada e alegre. Natacha não lhe agradou logo ao primeiro golpe de vista. Pareceu-lhe demasiado elegante e de uma alegria frívola e vaidosa de mais. Não se dava conta de que antes de ter posto os olhos na sua futura cunhada já estava mal disposta para com ela graças à inveja involuntária que lhe despertavam a sua beleza, a sua mocidade, a sua felicidade e o amor que lhe tinha o irmão. Além disso, ainda estava perturbadíssima com o incidente que acabava de se dar. O pai, quando lhe anunciaram as visitas, pusera-se a gritar não estar disposto a recebê-las, que Maria o fizesse, se assim queria, mas que era escusado pensarem em conduzi-las à sua presença. A princesa decidira recebê-las, mas receava que, de um momento para o outro, o pai fizesse algum escândalo, tão excitado parecia. — Pois bem, minha querida princesa, aqui lhe trago a minha cantora — disse o conde, numa mesura, enquanto olhava para a direita e para a esquerda, sempre à espera, cheio de medo, de ver surgir o velho príncipe. — Gosto tanto que seconheçam... Que pena, que pena o príncipe continuar adoentado. — Em seguida, após mais alguns lugares-comuns, levantou-se. — Se me dá licença, princesa, enquanto vou aqui ao lado, à Praça dos Cães, a casa de Ana Semionovna, deixo consigo a minha Natacha. É questão de um quarto de hora. Venho já buscá-la. Ilia Andreitch inventara aquele estratagema diplomático, assim o confessou à filha depois, para que as futuras cunhadas falassem com toda a franqueza e também para evitar encontrar-se com o príncipe, a quem tanto receava. Isto não o disse ele a Natacha, mas esta percebeu o terror e a inquietação do pai e não pôde deixar de se sentir melindrada. Corou de vergonha por ele, e o ter corado ainda mais a irritou. O seu olhar ousado e provocante, que dizia não ter medo de pessoa alguma, fixou-se na princesa. Esta entretanto respondera ao conde ter o maior prazer e que só uma coisa lhe pedia, o demorar-se quanto mais melhor. E Ilia Andreitch desapareceu. Mademoiselle Bourienne, apesar dos olhares impacientes com que Maria a dardejava, ansiosa por ficar só com Natacha, não saía da sala e continuava a falar das diversões e dos teatros de Moscovo. Natacha sentia-se magoada ao mesmo tempo pela confusão que presenciara no vestíbulo, pela apreensão do pai e pelo tom forçado da princesa, que dir-se-ia fazer um grande favor em recebê-la. Tudo isto lhe era muito desagradável. Não gostou da princesa Maria. Pareceu-lhe muito feia, afectada e seca. Sentiu de súbito crispar-se-lhe a alma e assumiu sem querer um ar de indiferença que ainda mais contribuiu para afastar de si a interlocutora. Cinco minutos depois de terem encetado uma conversa forçada e penosa ouviram- se os passos rápidos de um homem arrastando chinelos de quarto. A princesa Maria ficou lívida. A porta abriu-se e entrou o príncipe, de roupão e gorro branco. — Oh!, menina – exclamou —, a senhora condessa.., a condessa Rostov, se não estou em erro... Queira desculpar. Mil perdões... Não sabia, menina. Juro por Deus que ignorava que nos tivesse dado a honra de visitar-nos. Era no quarto de minha filha que eu julgava entrar.., vestido desta maneira. Queira desculpar... Juro por Deus que não sabia — repetiu, num tom tão pouco natural, acentuando a palavra «Deus», e tão desagradável, que a princesa Maria permaneceu calada, de olhos baixos, sem ter coragem de olhar o pai nem Natacha. Natacha, que se levantara, e depois voltara a sentar-se, também não sabia que fazer. Só Mademoiselle Bourienne continuava a sorrir. — Queira desculpar, queira desculpar. Juro por Deus, não sabia — roncou ovelho, que, depois de mirar Natacha dos pés à cabeça, abalou dali. Mademoiselle Bourienne foi a primeira a recompor-se após esta aparição, pondo-se a falar da pouca saúde do príncipe. Natacha e Maria olhavam uma para a outra sem dizer palavra e à medida que este exame mútuo se prolongava, sem que qualquer delas quisesse exprimir o que sentia, dir-se-ia ir crescendo a antipatia que experimentavam uma pela outra. Quando o conde voltou. Natacha nada fez para esconder a alegria que sentiu e logo se deu pressa de partir. Naquele momento quase odiava aquela princesa seca e envelhecida que a obrigava àquela situação desagradável, tornando possível passarem juntas meia hora sem dizer uma palavra acerca do príncipe André. «Não podia ser eu a primeira a falar dele, e ainda por cima na presença desta francesa», dizia para si própria. A Maria atormentava-a o mesmo pensamento. Sabia o que devia ter dito a Natacha, mas não o pudera fazer, primeiro por sentir- se embaraçada com a presença de Mademoiselle Bourienne, e depois, sem que soubesse porquê, por lhe ser penoso falar daquele casamento. No momento em que o conde saía. Maria aproximou-se de Natacha e, pegando-lhe resolutamente na mão, disse-lhe num profundo suspiro: — Espere, eu quereria... Sem saber porquê Natacha olhou para ela com ar trocista. — Querida Natália — disse Maria —, não quero deixar de lhe manifestar a alegria que sinto por meu irmão ter encontrado a felicidade... Calou-se, sentindo não dizer a verdade. Natacha notou esta hesitação e adivinhou— ‘lhe a causa. — Parece-me, princesa, que passou já o momento de falar no assunto — volveu Natacha com uma dignidade e uma frieza aparentes, sentindo a voz embargada pelos soluços. «Que disse eu? Que disse eu?», pensou ao transpor a porta da sala. Naquele dia esperaram muito tempo Natacha para jantar. Fechada no seu quarto, soluçava como urna criança, dolorosa— mente sentida. Sónia, de pé, junto dela, beijava-lhe os cabelos. — Natacha, porque choras? — dizia-lhe ela. — Para que hás-de preocupar-te com eles? Tudo passará. Natacha. — Ah, se tu soubesses o que custa... É como se eu...— Não falemos mais nisso. Natacha. Não tens culpa. Então porque te preocupas? Dá cá um beijo, anda — murmurou Sónia. Natacha ergueu a cabeça e beijou a amiga nos lábios, apertando contra o dela o seu rosto, banhado de lágrimas. — Não sei, não sei. Ninguém é culpado — balbuciou Natacha. — Sou eu a culpada. Como tudo isto é horrível! Ai, porque não vem ele?... Quando desceu para jantar tinha os olhos vermelhos. Maria Dmitrievna, que sabia como o príncipe recebera Rostov, fingiu não reparar na mágoa de Natacha, levando o repasto a dizer graças ao conde e aos seus hóspedes na sua voz grossa e potente. [VIII] Nessa noite, os Rostov foram à ópera, para onde Maria Dmitrievna lhes arranjara um camarote. Natacha não queria ir, mas não pôde recusar esta amabilidade de Maria Dmitrievna, que os convidara precisamente por sua causa. Quando, já vestida, penetrou no salão, para aí aguardar o pai, depois de relancear a vista ao grande espelho e verificou estar bonita, e mesmo muito bonita, ainda mais triste se sentiu; à sua tristeza misturava-se uma espécie de amoroso desfalecimento. «Meu Deus, se ele aqui estivesse, não seria como antigamente, não sentiria esta timidez estúpida, abraçar-me-ia a ele, apertar-me-ia contra ele, obrigá-lo-ia a olhar para mim com aquele lampejo de curiosidade interrogadora que tantas vezes lhe vi nos olhos. Depois fá-lo-ia rir como antigamente. Ah!, aqueles olhos, parece que os estou a ver!», murmurava Natacha para si mesma. F depois pensava: «E a mim que me importam o pai e a irmã? É dele de quem gosto, só dele, da sua cara, dos seus olhos, do seu sorriso ao mesmo tempo de homem e de criança... Ah!, o melhor é não pensar nisso, em nada pensar, esquecer, esquecer tudo, pelo menos por algum tempo. Esta ausência mata-me, não posso reter as lágrimas.» Afastou-se do espelho, num grande esforço para conter o pranto. «Como pode Sónia gostar de Nikolenka assim tão serena, tão tranquilamente, e esperar tanto tempo e com tanta paciência?», pensava ainda ao ver entrar aamiga, já vestida também, com o leque na mão. «Sónia é muito diferente de mim. Eu não posso! » Naquele momento tamanha era a ternura refreada que Natacha sentia que lhe não bastava amar e saber-se amada: tomava-a um desejo imperioso de apertar nos seus braços, imediatamente, o homem amado e de lhe dizer e de colher de seus lábios as frases de amor que lhe transbordavam do peito. Durante o percurso, de carruagem, ao lado do pai, olhando, cismadora, perpassar pelos vidros embaciados das portinholas os relâmpagos furtivos dos revérberos, a sua alma ainda estava mais triste e amorosa, e esquecia tudo à sua volta. Tomando lugar na fileira das carruagens, o carro dos Rostov, que arranhava suavemente o, neve, chegou à entrada do teatro. Natacha e Sónia saltaram ligeiras para o chão, erguendo os vestidos. Depois apeou-se o conde, ajudado pelos lacaios, e de roldão com as senhoras e os cavalheiros que entravam e à mistura com os vendedores de programas dirigiram-se, todos três, para o corredor dos camarotes. Através das portas fechadas já se ouviam os acordes da orquestra. — Natália, os teus cabelos... — murmurou Sónia. O empregado, com uma pressurosa cortesia, deslizou por diante das senhoras e abriu a porta do camarote. Ouviu-se mais distintamente a orquestra e do outro lado surgiu a fila dos camarotes iluminados, cheios de senhoras decotadas, e a plateia resplandecente de uniformes de gala. Uma dama que penetrava num camarote vizinho observou Natacha com um olhar cheio de inveja. O pano ainda não subira e tocavam a abertura. Depois de compor o vestido. Natacha entrou com Sónia, sentou-se e pôs-se a olhar a fila dos camarotes do outro lado. De repente apoderou-se dela uma sensação não experimentada há muito: aquelas centenas de olhos fitos nos seus braços e no seu colo nus eram uma coisa ao mesmo tempo agradável e penosa, acordando nela enxames de recordações, de desejos, de inquietações. As duas raparigas, muito belas, acompanhadas do conde Ilia Andreitch, que há muito não era visto em Moscovo, chamaram imediatamente a atenção de toda a assistência. Além disso toda a gente ouvira falar do noivado de Natacha com o príncipe André, e também se sabia que desde então os Rostov viviam no campo. Aquela que ia casar com um dos melhores partidos de toda a Rússia a examinada com a maior curiosidade. Natacha fizera-se mais bonita durante a temporada na aldeia. Essa a opinião de toda a gente, e nessa noite, precisamente, graças à emoção queexperimentava, ainda estava mais linda. Impressionava a sua exuberância de vida, a plenitude das suas formas e também a indiferença por tudo quanto a rodeava. Seus olhos pretos erravam pela multidão sem procurar ninguém e tinha o braço delicado, nu até um pouco acima do cotovelo, pousado no parapeito de veludo do camarote. Maquinalmente abria e fechava a pequenina mão, como a marear o compasso da abertura, enquanto ia vincando o programa. — Olha, as Alenina — dizia Sónia. — A filha e a mãe, parece-me. — Santos Padres! Mikail Kirilitch! Está ainda mais gordo! — exclamava o velho conde. — Olhe para a touca da nossa Ana Mikailovna! — As Karaguine e o Bóris. Estão noivos ele e a Júlia. Vê-se logo. Já a teria pedido? — Pediu, sim, acabam de mo dizer — disse Chinchine, que entrava no camarote dos Rostov. Natacha olhou na direcção que tomavam os olhos do conde e viu Júlia, sentada ao pé da mãe, com um ar feliz; do seu grosso e vermelhusco pescoço, que ela sabia todo empoado, pendia um grosso colar de pérolas. Atrás delas, todo sorridente e debruçando-se para ouvir o que Júlia dizia. Bóris mostrava a linda cabeça muito penteada. Tendo olhado de relance para os Rostov, murmurou qualquer coisa ao ouvido da noiva. «Estão a falar de nós, de mim!», dizia Natacha consigo mesma. «Naturalmente está a dizer-lhe que escusa de ter ciúmes de mim. Não vale a pena! Se soubessem como me são todos indiferentes!» Ana Mikailovna, com a sua touca verde, sempre entregue a Deus e uma expressão de dias de festa, triunfante, sentara-se atrás deles. O camarote parecia banhado nessa atmosfera especial dos noivos que Natacha conhecera e lhe causava inveja. Virou-se e de repente veio-lhe à memória toda a humilhação por que passara durante a visita dessa manhã. «Que direito tem ele de me não querer aceitar na família? Oh, é melhor não pensar nisso, pelo menos enquanto o príncipe André não vier!», disse de si para consigo, e pôs-se a percorrer, uma por uma, as caras conhecidas e desconhecidas da plateia. Na primeira fila, bem ao meio, de costas apoiadas à ribalta, estava Dolokov, com os seus espessos cabelos frisados penteados para diante. Vestia à persa. Pusera-se bem em evidência, sabendo que todo o teatro olhava para ele, etão à vontade como se estivesse em sua própria casa. Toda a juventude elegante de Moscovo fazia roda em tomo dele e via-se perfeitamente ser ele o chefe. O conde Ilia Andreitch acotovelou, rindo. Sónia, muito corada, para lhe mostrar o seu antigo admirador. — Conheceste-o? — disse-lhe ele. — Donde veio ele? — perguntou o conde a Chinchine. — Desaparecera por completo. — É verdade — replicou Chinchine. — Esteve no Cáucaso e desertou. Dizem que foi ministro de um príncipe persa é que matou o irmão do xá. Ora aí tem! Todas as mulheres de Moscovo estão doidas por ele. Dolochoff, o persa, e está tudo dito! Não se fala noutra coisa. Juram invocando o nome dele. E fazem-se convites para o ver, como se se tratasse de comer um esturjão. — E acrescentou: — Dolokov e Anatole Kuraguine deram volta ao miolo de todas as mulheres. Nesse momento penetrou no camarote vizinho uma alta e bela mulher, exibindo uns ombros e um colo cheios e muito brancos, com um colar de duas voltas de grossas pérolas. Levou tempo a instalar-se, exibindo ruidosamente o amplo vestido de seda. Natacha, involuntariamente, contemplou aquele colo, aqueles ombros, aquelas pérolas, aquele penteado, admirando tanto a beleza da mulher como o fulgor das jóias. Quando a observava pela segunda vez, ela voltou-se e, ao encontrar os olhos do conde Ilia Andreitch, fez-lhe um breve aceno de cabeça, sorrindo-lhe. Era a condessa Bezukov, a mulher de Pedro. O conde, que conhecia toda a gente, debruçou-se para ela e principiou a conversar. — Já está aqui há muito tempo, condessa? — disse ele. — Irei sem falta fazer- lhe uma visita. Eu vim tratar de negócios e trouxe comigo as pequenas. Dizem que a Semionovna trabalha maravilhosamente. O conde Piotre Kirilovitch Bezukov não nos esqueceu, com certeza. Está aí? — Sim, tinha intenção de vir — disse Helena, olhando atentamente Natacha. O conde retomou o seu lugar. — É bonita, não é? — perguntou em voz baixa à filha. — Maravilhosa! — replicou Natacha. — Compreendo que os homens gostem dela! Naquele momento ressoaram os últimos acordes da abertura e ouviram-se as três pancadas da batuta do maestro. Os cavalheiros retardatários deram-se pressa em ocupar os seus lugares e o pano subiu.Fez-se então na sala um profundo silêncio. Tanto os velhos como os jovens, de fraque ou de uniforme, as senhoras decotadas e cobertas de jóias, todos, curiosos, voltaram os olhos para a cena. Natacha seguiu-lhes o exemplo. [IX] O centro do cenário era de tábuas uniformes; de cada um dos lados, cartões pintados fingindo árvores e no fundo um pano corrido. Raparigas de blusas vermelhas e saias brancas formavam um grupo ao meio do palco. Uma delas, corpulenta, de vestido de seda branca, estava sentada num banco muito baixo atrás do qual havia um cartão verde colado. Cantavam em coro. Quando acabaram, a vestida de branco deu alguns passos na direcção da caixa do ponto. Então aproximou-se dela um homem de calções de seda, que lhe cingiam as grossas pernas, chapéu emplumado e punhal à cinta, que se pôs a cantar com muitos gestos. O homem dos calções justos cantou sozinho, depois cantou a rapariga de branco. Em seguida calaram-se ambos, ouviu-se a orquestra e o homem pegou na mão da companheira, como para lhe contar os dedos, aguardando o compasso para o dueto. Quando acabaram de cantar, o teatro em peso aplaudiu e os dois artistas que desempenhavam o papel de namorados sorriram, fazendo mesuras e agitando as mãos para um lado e para o outro da plateia. Acabada de chegar da aldeia e na sua disposição de espírito não podia Natacha deixar de encarar o espectáculo como uma coisa grotesca e insólita. Era-lhe impossível acompanhar o desenvolvimento da acção, e nem sequer seguia a música; apenas via panos pintados, homens e mulheres vestidos de estranha maneira, mexendo-se, falando e cantando rodeados de luz intensa. Evidentemente que compreendia a significação do que a cena representava, mas tudo lhe parecia, no seu conjunto, tão convencional e falso, tão pouco natural, que ora tinha vergonha pelos actores ora lhe dava vontade de rir. Olhava em volta de si, procurando descobrir na fisionomia dos espectadores o mesmo estado de espírito, mas verificava que toda a gente seguia com atenção o que estava a passar-se no palco e nos seus rostos havia um entusiasmo que a ela se lhe afigurava falso.«Naturalmente, tem de ser assim», dizia de si para consigo. Tão depressa observava as filas das cabeças da plateia espelhantes de brilhantina como as senhoras decotadas dos camarotes, especialmente Helena, sua vizinha, que, seminua, olhava para o palco, com um sorriso doce e plácido, sem nunca desviar os olhos, toda ela exposta à luz violenta que se derramava na sala e à quente palpitação que emanava da plateia. Pouco a pouco Natacha sentiu-se tomada de uma espécie de embriaguez, disposição que há muito não sentia. Já não sabia o que fazia, onde estava, o que se passava diante dos seus olhos. Olhava sem ver, enquanto os pensamentos mais estranhos e incoerentes lhe atravessavam o cérebro. Ora lhe davam ganas de escalar o proscénio e de cantar a ária que a actriz garganteava, ora lhe vinham desejos de, com a ponta do leque, espevitar o velhinho sentado na plateia, não muito longe dela, ou ainda de se debruçar para Helena e de lhe fazer cócegas nas costas. Numa dessas pausas da orquestra que antecedem os acordes de um novo andamento, a porta da plateia rangeu, lá para os lados do camarote dos Rostov, e ouviram-se passos de alguém que chegava atrasado. «Aí está o Kuraguine!», segredou Chinchine. A condessa Bezukov voltou-se, sorrindo, para quem entrava. Natacha seguiu-lhe o olhar e viu um ajudante-de-campo, de uma beleza extraordinária, dirigindo-se para o seu camarote com um ar ao mesmo tempo seguro de si e cheio de cortesia. Era Anatole Kuraguine, a quem não esquecera desde que o vira no baile de Petersburgo. Vestia o uniforme de gala de ajudante- de-campo, com dragonas e agulhetas. Mantendo em atitude arrogante a perfumada cabeça, avançava, num passo contido, que teria sido ridículo se no seu todo não exprimisse um contentamento tão cordial e tão boa disposição, e se ele próprio não fosse tão belo homem. Embora o espectáculo já tivesse principiado, não se dava pressa, caminhando ao longo da passadeira do corredor com as esporas e o sabre a tilintar ligeiramente. Depois de um olhar a Natacha, aproximou-se da irmã, apoiou a mão, moldada na luva, no parapeito do camarote, acenou-lhe com a cabeça e, debruçando-se para ela, perguntou-lhe qualquer coisa enquanto designava a vizinha. — Mas é encantadora! — exclamou, falando evidentemente de Natacha, que o percebeu mais pelo movimento dos lábios que propriamente por ter ouvido o que diziam. Depois Kuraguine dirigiu-se para a primeira fila de poltronas e sentou-se ao lado de Dolokov, a quem acotovelou distraída e amistosamente, o Dolokov aquem todos os outros tratavam com tanta deferência. Sorriu-lhe, piscando-lhe, jovialmente, o olho, enquanto punha o pé sobre o varão metálico que os separava da ribalta. — Muito se parecem os dois irmãos! — exclamou o conde. — E são ambos bem bonitos! Chinchine, a meia voz, contou-lhe a história de uma aventura de Kuraguine em Moscovo, e Natacha ficou-se a ouvi-lo simplesmente porque ele dissera, referindo- se a ela, que a achava encantadora. O primeiro acto terminou. Toda a gente se levantou, uns saíram, outros começaram a passear de um lado para o outro no vestíbulo da plateia. Bóris veio cumprimentar os Rostov ao seu camarote. Com a maior naturalidade aceitou as felicitações que lhe dirigiam e, depois de assumir um ar preocupado, com um sorriso distraído, convidou Natacha e Sónia, em nome da noiva, para o seu casamento. F saiu. Natacha felicitara aquele mesmo Bóris de quem outrora estivera enamorada, com um sorriso em que havia jovialidade e uma certa coquetterie. No estado de embriaguez em que estava tudo lhe parecia simples e natural. Helena, seminua, sentada muito perto dela, dirigia a todos, indistintamente, o seu perpétuo sorriso, e assim Natacha, do mesmo modo, sorrira para Bóris. Não tardou que o camarote de Helena estivesse cheio e ela rodeada de titulares e homens distintos, que pareciam querer mostrar a toda a gente serem das suas relações. Kuraguine, durante o intervalo, ficou na plateia, ao lado de Dolokov, de olhos fitos no camarote dos Rostov. Natacha, sabendo que ele falava dela, sentia-se lisonjeada. Colocou-se mesmo de maneira que ele a pudesse ver de perfil, posição que a favorecia, segundo pensava. Antes de principiar o segundo acto apareceu Pedro na plateia. Os Rostov ainda o não tinham visto desde que estavam em Moscovo. Parecia triste e ainda engordara mais desde a última vez que Natacha o vira. Caminhou para as primeiras filas da plateia sem olhar para ninguém. Anatole aproximou-se dele e disse-lhe qualquer coisa, enquanto lhe chamava a atenção para o camarote dos Rostov. Ao ver Natacha. Pedro animou-se e, passando apressadamente por entre as filas de cadeiras, aproximou-se do camarote do conde, que era rente à plateia. Apoiou os cotovelos no parapeito e ficou-se a conversar com ela. Enquanto oescutava. Natacha julgou ouvir uma voz de homem no camarote da condessa Bezukov e pensou que seria Kuraguine. Voltou-se e os seus olhos encontraram-se. Com um ligeiro sorriso, ele fitava-a, com um olhar ao mesmo tempo tão caloroso e acariciador que lhe pareceu estranho ver-se tão perto dele e olhá-lo assim tão segura de lhe ter agradado, embora o não conhecesse senão de vista. O cenário do segundo acto representava uns monumentos funerários e tinha um buraco no pano de fundo a fingir a Lua. Haviam retirado o quebra-luz das gambiarras, as trombetas e os contrabaixos tocavam em surdina e da direita e da esquerda surgia muita gente de manto negro. Brandiam qualquer coisa, talvez punhais. Em seguida apareceram outras pessoas que impeliam na sua frente a rapariga que no primeiro acto estava vestida de branco e agora se vestia de azul. Não a levaram logo, mas cantaram muito tempo com ela antes de o fazerem, e então, por três vezes, ouviu-se nos bastidores um ruído metálico, e todos ajoelharam entoando uma oração. Tudo isto foi interrompido várias vezes pelos gritos entusiastas dos espectadores. Durante o espectáculo, sempre que Natacha olhava para a plateia, via Anatole Kuraguine, com o braço passado por trás da poltrona, todo voltado, a olhar para ela. Sentia-se encantada ao vê-lo enamorado dela e não lhe passava pela cabeça que nisso houvesse qualquer mal. Quando terminou o segundo acto, a condessa Bezukov levantou-se, voltando-se para o lado do camarote dos Rostov, que só então puderam ver que ela tinha os seios descobertos. Depois, chamando, com um sinalzinho da sua mão enluvada, o velho conde, sem prestar a mais pequena atenção às pessoas que entravam no seu camarote, pôs-se a conversar com ele, sorrindo graciosamente. — Apresente-me às suas encantadoras filhas — disse-lhe ela. — Toda a gente fala delas em Moscovo e só eu as não conheço. Natacha levantou-se e fez uma reverência à esplêndida condessa. Lisonjeada pelo galanteio daquela beleza célebre, sentiu-se corar. — Agora também quero tornar-me moscovita — prosseguiu Helena. — Não se envergonha de ter pérolas dessas escondidas na aldeia? Merecia, realmente, a fama de feiticeira de que gozava. Tinha o dom de dizer o que não pensava e especialmente de manejar a arma da lisonja com a maior naturalidade. — Querido conde, tem de consentir que eu me ocupe de suas filhas. Emboranão vá demorar-me aqui muito tempo, como, de resto, todos nós, quero que elas se divirtam. Ouvi falar muito de si em Petersburgo e há muito que desejava conhecê-la — acrescentou, dirigindo-se a Natacha e dedicando-lhe o seu amável sorriso. — Falaram-me muito de si, em primeiro lugar o meu pajem. Drubetskoi — sabe que vai casar? — e depois o grande amigo de meu marido, o príncipe André Bolkonski. — Frisou particularmente este nome, para dar a entender não ignorar as relações que havia entre eles. Para melhor se relacionarem, pediu ao conde consentisse que uma das suas filhas viesse para o seu camarote. E Natacha passou para junto da condessa. No terceiro acto, a cena representava um salão todo iluminado, com as paredes cobertas de retratos de cavaleiros barbados. No centro do palco estavam duas personagens, naturalmente o rei e a rainha. Aquele fez um gesto com a mão direita e, visivelmente intimidado, cantou uma ária bastante mal, indo depois sentar-se num tronco cor de amaranto. A rapariga que aparecera primeiro vestida de branco, depois de azul, agora nada mais tinha em cima de si além de uma camisa, e, de cabelos caídos, estava ao lado do trono. Pôs-se a cantar o seu desespero, dirigindo-se à rainha, mas o rei fez com a mão um gesto severo e, vindos dos lados, apareceram homens e mulheres, todos de fato de malha, que cantaram em coro. Em seguida os violinos tocaram uma ária ligeira e jovial. Uma das mulheres, com as suas planturosas coxas moldadas pela malha e uns braços magricelas, depois de se separar das companheiras, entrou nos bastidores, para arranjar o corpete, voltando para o meio do palco, onde desatou aos pulos enquanto batia com os pés um no outro, muito enérgica. Toda a plateia rompeu em aplausos, gritando: «Bravo!» Em seguida um homem foi colocar-se a um canto. Na orquestra os címbalos e as trompetas ressoaram mais alto e, sozinho, um homem de fato de malha pôs-se a dar saltos muito altos, batendo com os pés um no outro. Esse homem era Duport, o qual, só por fazer aqueles exercícios, ganhava sessenta mil rublos anuais. Todos os espectadores, tanto na plateia, como nos camarotes e no galinheiro, romperam em aplausos e a chamá-lo com toda a força dos pulmões, e o bailarino deteve-se e a sorrir veio agradecer, voltando-se para todos os lados do teatro. Outras pessoas vieram dançar também, homens e mulheres, e o rei, acompanhado pela orquestra, gritou umas palavras e todos, como uma só voz, entoaram um coro. De súbito desencadeou-se uma tempestade, a orquestra executou escalas cromáticas e acordes da sétima menor; todosacorreram, arrastando consigo, de novo, para os bastidores um dos artistas, depois do que caiu o pano. Os espectadores principiaram então a vociferar e todos gritavam com o maior entusiasmo: «Duport! Duport! Duport!» Natacha já nada achava estranho. Olhava para o que ia à sua volta com satisfação e sorrindo. — Não acha o Duport admirável? — perguntou-lhe Helena. — Acho, sim — replicou Natacha. [X] Durante o intervalo abriu-se a porta e uma corrente de ar frio filtrou-se no camarote de Helena. Anatole entrou, inclinando-se, para não tropeçar em ninguém. — Dá licença que lhe apresente meu irmão? — disse Helena, mirando ora um ora outro, um pouco preocupada. Natacha voltou a sua linda cabeça para aquele belo moço e sorriu-lhe por cima do ombro nu. Anatole, que era bonito rapaz tanto de perto como de longe, sentou- se a seu lado, dizendo-lhe que havia muito desejava ser-lhe apresentado, desde que tivera o prazer, inesquecível para ele, de a ver no baile dos Narichkine. Kuraguine era muito mais simples e inteligente ao pé das mulheres do que com os homens. Falava resolutamente e com simplicidade e foi com prazer que Natacha verificou nada encontrar de assustador naquele homem de quem se dizia tanta coisa, e em quem, antes pelo contrário, via um sorriso simples, alegre e cordial. Perguntou-lhe Anatole se gostara do espectáculo e contou-lhe que na representação antecedente Semionovna caíra em cena. — Sabe, condessa — acrescentou, tratando-a, de chofre, como se ela fosse uma velha conhecida sua —, estamos a organizar um baile de máscaras. Não pode faltar. Vai ser muito divertido. Reunimo-nos em casa das Karaguine. Peço-lhe, não deixe de aparecer. Enquanto falava não deixava de fitar, com os seus risonhos olhos, o rosto, o colo e os braços nus de Natacha. Agora ela tinha a certeza de que ele a admirava. E isto era-lhe agradável, embora, sem que soubesse porquê, a presença dele, aomesmo tempo que a perturbava, lhe fosse penosa. Quando apartava dele a vista sentia nos ombros o peso dos seus olhares e inconscientemente desejaria poder interceptar esses olhares, para que ele a fitasse antes no rosto. Porém, quando o olhava de frente percebia não existirem já entre os dois essas barreiras que o pudor, naturalmente, costumava levantar entre ela e os outros homens. Sem se dar conta, em menos de cinco minutos, sentiu-se extremamente próxima daquele homem. Quando voltava a cara, receava vê-lo pegar-lhe na mão nua ou surpreendê-lo a beijar-lhe os ombros. Falavam das coisas mais insignificantes, mas Natacha, de si para consigo, dizia serem íntimos e haver entre eles uma familiaridade como nunca existira entre ela e qualquer outro homem. Interrogava Helena e o pai com os olhos, como se quisesse perguntar-lhes a significação de tudo aquilo, mas a condessa estava entretida a conversar com um general e não lhe respondeu e o pai dizia-lhe o mesmo de sempre: «Divertes-te? Ainda bem, gosto muito disso.» Para romper um silêncio embaraçoso, em que Anatole a olhava, tranquila e obstinadamente, com os seus olhos à flor da pele. Natacha perguntou-lhe se gostava de Moscovo. Mal lhe fizera esta pergunta logo se sentiu corar: afigurava- se-lhe, a todo o momento, estar fazendo qualquer coisa de inconveniente quando falava com ele. Anatole sorriu como a encorajá-la. — De princípio Moscovo não me entusiasmou por aí além, O que faz uma cidade agradável são as mulheres bonitas, não é verdade? Mas agora agrada-me muito — acrescentou, fitando-a de maneira significativa. — Vai ao baile, condessa? Vá — E avançando a mão para as flores que Natacha trazia consigo, e baixando a voz: — Será a mais bonita. Prometa que vai, querida condessa, e para selar a promessa dê-me esta flor. Natacha não pôde compreender por completo o sentido oculto que ele punha naquelas palavras, mas nem por isso deixou de sentir que eram inconvenientes. Sem saber que responder, desviou a cara, fingindo não ter ouvido. Mas nesse mesmo, instante a ideia de que ele estava ali, atrás dela, e tão perto, de novo a tomou. «Que estará ele a fazer?», perguntava a si própria. «Terá ficado atrapalhado? Estará zangado comigo? É preciso arranjar as coisas!» E não resistiu: voltou a cabeça para trás. Os olhos dela foram pousar directamente nos dele e a sua presença tão próxima, a sua confiança, a sua simpática cordialidade conquistaram-na. Sorriu com ele, olhando-o bem de frente. E de novo pensou, assustada, que entre eles não havia barreiras. O pano voltou a subir. Anatole saiu do camarote, feliz e sereno. Natacha voltou para junto do pai, completamente subjugada pelo novo mundo que acabava de entrever. Tudo o que passava à sua roda se lhe afigurava agora o que havia de mais natural e nem por um instante sequer lhe vieram à mente as suas antigas preocupações com o noivo, com a princesa Maria, com a vida na aldeia: era como se tudo isso fizesse parte de um passado longínquo. No quarto acto apareceu no palco, gesticulando, uma espécie de demónio, que se pôs a cantar até que um alçapão se entreabriu e ele desapareceu pelo chão abaixo. Eis tudo quanto Natacha viu. Sentia-se inquieta e perturbada, e Kuraguine, a quem ela não deixava de seguir com os olhos, mesmo sem querer, era o responsável daquela agitação. Ã saída aproximou-se, mandou avançar a sua própria carruagem e instalou-os a todos lá dentro. Ao ajudar Natacha a subir para o carro apertou-lhe o braço um ponto acima do cotovelo. Muito corada e confusa, ela ergueu para ele as pupilas. Anatole fitou-a com seus olhos brilhantes e sorriu-se. Só ao chegar a casa Natacha pôde medir com clareza o que se passara, e de súbito, ao lembrar-se do príncipe André, um grande medo a tomou, soltou um grito e saiu da sala onde todos tomavam chá, corada até às orelhas. «Meu Deus! Estou perdida!», exclamou de si para consigo. «Como pude eu permitir-lhe?» Longo tempo assim ficou, o rosto, muito afogueado, escondido nas mãos, tentando dar-se conta exacta do que se passara no teatro, embora sem conseguir perceber nem o que sentira nem o que estava experimentando. Tudo lhe parecia obscuro, indistinto e terrível. Lá, naquela sala toda iluminada, onde, sobre o palco, acompanhado pela orquestra. Duport dava pulos, de fato de malha e coberto de lantejoulas, e em que raparigas, velhos. Helena, toda decotada, sorrindo sempre serena e orgulhosa, gritavam entusiásticos bravos, ali, à sombra daquela Helena, tudo era claro e simples, mas agora, ao ver-se sozinha, entregue a si mesma, nada compreendia. «Que quer isto dizer? Que significam o terror que senti diante dele e estes remorsos que me esmagam?», murmurava. Só na cama, à noite, à velha condessa teria podido confiar aqueles pensamentos. Sónia, por de mais o sabia, com os seus severos e rígidos princípios,ou nada teria percebido ou ter-se-ia sentido aterrada com tal confissão. Entregue a si própria, sozinha. Natacha procurava descobrir a causa das suas angústias. «Estarei ou não perdida para o amor de André?», perguntava-se a si própria, e a si mesma respondia, trocista: «Que parva sou com estas perguntas! Que aconteceu? Nada. Nada fiz, não tenho culpa alguma do que sucedeu. Ninguém saberá nada e eu não o voltarei a ver.» E pensava ainda: «Está claro que nada se passou, que não tenho que me arrepender seja do que for. O príncipe André pode continuar a gostar de mim como sou. Mas que serei eu, realmente? Ah! Meu Deus, meu Deus! Porque não o tenho aqui a meu lado?» Natacha por instantes ficara sossegada, mas daí a pouco um instinto secreto lhe dizia de novo que, embora tudo aquilo fosse verdade e nada tivesse acontecido, a antiga pureza do seu amor por André fora-se de uma vez para sempre. E em imaginação ia recordando a conversa com Kuraguine e tornava a ver o rosto, os gestos, o terno sorriso daquele homem audacioso e belo no momento em que lhe apertara o braço. [XI] Anatole Kuraguine vivia em Moscovo porque o pai o mandara sair de Petersburgo, onde gastava mais de vinte mil rublos por ano e contraía dívidas de igual importância, que o príncipe se via obrigado a satisfazer. O pai fizera compreender ao filho ser a última vez que lhe pagava metade das dívidas, mas com a condição de ele ir para Moscovo como ajudante-de-campo do general-chefe, cargo que ele próprio lhe conseguira, e de casar, finalmente, com uma rica herdeira. A princesa Maria e Júlia Karaguine eram as visadas. Anatole acedeu e foi para Moscovo, hospedando-se em casa de Pedro. Este principiou por recebê-lo de má vontade, mas acabou por se habituar à sua presença. Às vezes participavam das mesmas orgias e a título de empréstimo adiantava-lhe dinheiro. Anatole, como dizia acertadamente Chinchine, fizera perder a cabeça a todas as mulheres desde que chegara a Moscovo, precisamente porque não lhes ligava importância, desdenhando-as pelas belas ciganas e as francesas, especialmente por uma tal Mademoiselle Georges, com quem, segundo constava, mantinha relações íntimas. Não faltava a qualquer orgia em casa de Danilov e de outros boémios de Moscovo, bebia como uma esponja noites inteiras e assistia a todas as soirées e a todos os bailes da alta sociedade. Contavam-se dele vários escândalos com senhoras de Moscovo e nos bailes cortejava algumas delas. Mas com as raparigas nada queria, especialmente com as casadouras, as quais, pela maior parte, não tinham graça alguma, e pela excelente razão, que todos desconheciam, salvo os amigos íntimos, de estar casado havia já dois anos, Dois anos antes, efectivamente, durante o tempo em que estivera com o regimento na Polónia, um fidalgo polaco, não muito rico, obrigara-o a casar com uma filha. Anatole abandonou a mulher, e a troco de dinheiro, que prometera enviar ao sogro, comprara o direito de passar por celibatário. Anatole estava sempre contente com a vida, consigo e com os outros. Instintivamente, parecia convencido de que não podia viver de outra maneira e de que nunca procedera mal. Não era capaz de compreender que os seus actos podiam prejudicar as outras pessoas. Estava persuadido de que pela mesma razão que o pato fora feito para viver na água ele fora criado por Deus para viver com trinta mil rublos de rendimento e para ocupar um lugar preponderante nasociedade. E tão persuadido estava disso que os outros, ao vê-lo, igualmente se convenciam de que ele tinha razão, não lhe recusando nem a posição preponderante na sociedade nem o dinheiro que ele pedia emprestado ao primeiro que lhe aparecia, evidentemente sem a mais leve intenção de pagar. Não jogava, ou, pelo menos, não jogava para ganhar. Não tinha amor-próprio. Era-lhe absolutamente indiferente o que os outros pensassem dele. Tão-pouco podia ser considerado ambicioso. Mais de uma vez fizera perder a cabeça ao pai comprometendo a sua própria carreira, e menosprezava todas as honrarias. Não era avaro e nunca negava o que lhe pediam. Acima de tudo amava o prazer e as mulheres, e, como em sua opinião não havia nisso qualquer sentimento vil, não lhe passava pela cabeça que pudesse prejudicar os outros a satisfação, que buscava, dos seus prazeres, considerando-se sinceramente irrepreensível, desprezando com a mesma sinceridade os patifes e os covardes, erguendo bem alto a cabeça, sinal de uma consciência tranquila. Todos os estróinas, tanto os homens— Madalenas como as Madalenas — mulheres, vivem com a secreta e ingénua convicção de serem perfeitamente inocentes, persuadidos de que toda a gente está disposta a perdoar-lhes. «Muito lhe será perdoado pelo muito que amou; muito lhe será perdoado pelo muito que se divertiu.» Dolokov, que reaparecera naquele ano em Moscovo depois do seu exílio e das suas aventuras na Pérsia, e que vivia ali no luxo e na devassidão, voltara a relacionar-se com Kuraguine, seu antigo camarada de Petersburgo, e dele se utilizava por interesse próprio. Anatole apreciava sinceramente a inteligência e a coragem do amigo. Dolokov, que precisava do nome, da notoriedade e das relações de Anatole Kuraguine para atrair e depenar ao jogo os rapazes ricos, tirava partido dele, sem lho dar a entender, e com isso se divertia. Além dos seus cálculos interesseiros, o simples facto de dirigir a seu talante a vontade de outrem era para ele um hábito e uma necessidade. Natacha impressionara vivamente Kuraguine. Durante a ceia, depois do espectáculo, descreveu pormenorizadamente, perito, que era, na presença de Dolokov, a beleza dos braços, dos ombros, dos minúsculos pés e dos cabelos da filha do conde Ilia Andreitch, confessando-se na disposição de lhe fazer uma corte sem tréguas. Quanto ao que daí podia resultar, pouco importava a Anatole, pelasimples razão de que nunca o preocupavam as consequências de qualquer dos seus actos. — Sim, é bonita, meu velho, mas não é para a nossa boca — volveu-lhe Dolokov. — Vou dizer a minha irmã que a convide para jantar — tornou Anatole. — Que achas? — É melhor esperares que esteja casada... — Sabes? — declarou Anatole — Adoro as rapariguinhas: perdem logo a cabeça. — Já uma vez foste apanhado por uma dessas rapariguinhas... — comentou Dolokov, que sabia da história do casamento. — Tem cuidado! — Não se é apanhado duas vezes! Que achas? — replicou Anatole, numa gargalhada. [XII] No dia seguinte ao do espectáculo ninguém saiu em casa dos Rostov e nenhuma visita apareceu. Maria Dmitrievna, às escondidas de Natacha, teve uma conversa com o pai. Natacha percebeu que haviam falado do velho príncipe e que tinham combinado pôr em prática um projecto qualquer, o que a deixou inquieta e irritada. Aguardava de um momento para o outro o príncipe André e por duas vezes nesse dia mandou o porteiro a Vozdvijenka saber se ele teria realmente chegado. Mas o príncipe não viera. Sentia-se ainda mais acabrunhada do que nos primeiros dias após a sua chegada. Agora, à impaciência e ao desgosto por ele ocasionados vinham acrescentar-se a penosa lembrança do seu encontro com a princesa Maria e o velho príncipe e um terror e uma inquietação cuja causa não sabia explicar. Afigurava-se-lhe que ele nunca mais viria ou que antes da sua chegada qualquer coisa fatal para ela aconteceria. Era-lhe impossível agora pensar nele, como outrora, serena e amorosamente, a sós consigo mesma. Assim que se dava a pensar em André, vinha misturar-se aos seus pensamentos a lembrança do velho príncipe, da princesa Maria, da noite no teatro e de Kuraguine. E de novo surgia nela a pergunta que a si própria fazia: não seria culpada? Não teriaatraiçoado a sua fidelidade ao príncipe André?, obrigando-se a recapitular, nos seus mínimos pormenores, cada palavra, cada gesto, cada expressão fisionómica daquele homem que soubera despertar nela um sentimento tanto mais para recear quanto era certo lhe ser incompreensível. Aos olhos das pessoas de família. Natacha parecia mais animada do que de costume, mas a verdade é que estava longe de se encontrar tão serena e feliz como antigamente. No domingo, pela manhã. Maria Dmitrievna propôs aos seus hóspedes ouvirem missa na paróquia da Assunção de Moguilts. — Não gosto das igrejas à moda — dissera, jactando-se da sua largueza de espírito. — Deus é o mesmo em toda a parte. Temos ali um pope muito bom, diz lindamente os ofícios e mesmo até com nobreza, e o diácono também. Não consigo perceber como os concertos no coro tornam mais santos os templos. Não gosto, são divertimentos como outros quaisquer. — Maria Dmitrievna apreciava muito os domingos e sabia festejá-los. No sábado era a casa cuidadosamente lavada e espanejada; ao domingo tanto ela como o seu pessoal se abstinham de trabalhos manuais, vestiam-se com trajos festivos e iam todos à missa. O jantar dos amos era acrescentado com pratos suplementares e a criadagem tinha uma dose de vodka, pato assado ou leitão. Mas em nenhum outro rosto, por toda a casa, se espelhava mais festivo ar que na larga e severa cara de Maria Dmitrievna, que por essa altura assumia a expressão imutável dos dias solenes. Quando, depois da missa, tomado já o café no salão, donde se haviam retirado as capas que cobriam os móveis, vieram anunciar a Maria Dmitrievna que a sua carruagem a esperava, ela, com o seu ar severo, embrulhada no seu xale de cerimónia, levantou-se e declarou que ia a casa do príncipe Nicolau Andreievitch Bolkonski, para com ele ter uma explicação a respeito de Natacha. Assim que ela saiu, chegou uma costureira da parte de Madame Chalmet, e Natacha, a quem esta diversão muito agradava, fechou a porta do quarto contíguo ao salão e preparou-se para provar o seu novo fato. Vestia ela um corpinho apenas alinhavado e ainda sem mangas e de cabeça descaída para trás observava no espelho o seu cair nas costas quando ouviu no salão a voz animada do pai e de qualquer outra pessoa, o que a fez corar imediatamente. Era a voz de Helena. Ainda não tivera tempo de despir o corpinho que provara e já a porta se abria e a condessa Bezukov entrava, radiosa no seu bom e afectuoso sorriso, vestida de veludo lilás-carregado e gola alta.— Ah, minha deliciosa pequena! — exclamou para Natacha, que corara muito. — Não, isto é impossível, meu querido conde — acrescentou, dirigindo-se a Ilia Andreitch, que a seguia. — Viver em Moscovo e não ir a parte alguma! Sim, já os não largo. Esta noite recebo em minha casa. Vamos ouvir Mademoiselle Georges recitar, haverá apenas algumas pessoas íntimas. Se não me traz as suas lindas filhas, que valem bem mais do que ela, corto relações convosco. O meu marido não está, foi para Tvier, caso contrário pedir-lhe-ia que as viesse buscar. Venham, sem falta, sem falta, às nove horas. Saudou com um movimento de cabeça a costureira sua conhecida, que lhe fez uma respeitosa reverência, e sentou-se numa poltrona junto do toucador, ajeitando graciosamente as pregas do vestido de veludo. Num tom jovial e cheio de cordialidade, continuou a tagarelar, a cada momento extasiada perante a beleza de Natacha. Viu uma por urna as toilettes da jovem condessa, elogiou-as muito, pondo em relevo, igualmente, a sua própria, novinha, de gaze metálica, acabada de chegar de Paris, aconselhando Natacha a que mandasse fazer uma igual. — De resto, a si, minha linda, tudo lhe fica bem — acrescentou. O rosto de Natacha resplandecia de satisfação. Sentia-se feliz, e toda ela era vida ouvindo os elogios daquela amável condessa Bezukov, que de princípio se lhe afigurara tão altiva e inabordável e que a tratava agora com tanta simpatia. Contentíssima, ei-la pronta a adorar aquela mulher tão bela e tão boa. Helena, por seu lado, era sincera na admiração que mostrava por Natacha e no desejo que tinha de a distrair. Anatole pedira-lhe que os aproximasse e por essa razão viera a casa dos Rostov. A ideia de aproximar o irmão daquela jovem antolhava-se-lhe divertida. Embora tivesse sentido outrora um certo despeito por Natacha lhe haver roubado. Bóris, já se não lembrava disso e queria-lhe bem, do coração, à sua maneira. Antes de retirar-se, chamou de parte a sua protegida. — Ontem meu irmão jantou em minha casa, íamos morrendo a rir... Não come e passa a vida a suspirar por si, feiticeira! Está louco, mas louco de amor por si, minha querida. Ao ouvir isto. Natacha ficou toda corada. — Ai que corada, que corada, minha deliciosa pequena! Então não falte. Se ama alguém, minha deliciosa pequena, não é razão para fazer vida de monja. Atémesmo se estiver prometida, tenho a certeza de que o seu prometido preferiria sabê-la a fazer vida de sociedade do que a definhar de tédio. «Então, ela sabe que eu estou comprometida; naturalmente falaram disso, ela e o marido, com Pedro, esse homem que é a rectidão em pessoa» dizia de si para consigo Natacha. «E riram-se desta aventura. Portanto, é coisa sem importância... » E subitamente, sob a influência de Helena, o que ainda há pouco lhe parecia horrível afigurou-se-lhe tudo que havia de mais simples e natural. «E ela, essa grande senhora, tão gentil, e que com certeza gosta muito de mim! Realmente, porque me não hei-de distrair?», concluía, pousando em Helena os seus grandes olhos inocentes muito abertos. Maria Dmitrievna voltou para casa à hora do jantar. Pelo seu ar taciturno e pensativo via-se que sofrera uma decepção em casa do velho príncipe. Ainda estava demasiado impressionada para poder contar serenamente o que se passara. A pergunta do conde respondeu que tudo corria bem e que no dia seguinte falariam do caso. Ao saber da visita da condessa Bezukov e do seu convite, declarou: — Não gosto da companhia de Madame Bezukov e não vos aconselho a que vão a sua casa, mas, se lhe prometeste, então vai. É uma distracção para ti — acrescentou dirigindo-se a Natacha. [XIII] O conde Ilia Andreich levou as meninas a casa da condessa Bezukov. Havia muita gente nos salões, mas quase todos os convidados eram desconhecidos de Natacha. O pai verificou, pouco satisfeito, que a maior parte eram homens e senhoras conhecidas pela sua liberdade de costumes. Mademoiselle Georges, rodeada de uma corte de rapazes, estava num dos recantos do salão. Havia alguns franceses, entre os quais Métivier, que se tornara íntimo da casa desde que Helena chegara. O conde Ilia Andreitch resolveu não jogar para não se afastar das filhas e retirar-se assim que a artista houvesse recitado. Anatole estava à porta procurando não perder a chegada de Natacha. Depois de cumprimentar o conde, aproximou-se dela e seguiu-a de perto. Esta mal o viralogo sentira, como no teatro, esse estranho sentimento misto de vaidade, por perceber que lhe agradava, e de temor, por verificar que os não separavam quaisquer barreiras morais. Helena acolheu alegremente Natacha e extasiou-se em voz alta elogiando-lhe a beleza e o vestido. Pouco depois. Mademoiselle Georges desaparecia do salão para mudar de toilette. Principiaram a dispor as poltronas e a mandar sentar os convidados. Anatole trouxe uma cadeira a Natacha e quis sentar-se a seu lado, mas o conde, que não perdia a filha de vista, ocupou o lugar e Anatole sentou-se atrás dela. Mademoiselle Georges, com os seus fortes braços desnudados, um xale encarnado atirado para o ombro, avançou pelo espaço livre reservado entre as cadeiras e ficou imóvel, numa atitude afectada. Pela sala perpassou um sussurro de admiração. Depois de percorrer a assistência com um olhar profundo e sombrio. Mademoiselle Georges principiou a declamar uns versos franceses em que se falava da criminosa paixão de uma mulher pelo próprio filho. Em certos passos elevava a voz, noutros falava baixo, empertigando a cabeça soberbamente, e noutros ainda calava-se, suspirando e rolando as pupilas. «Adorável, divino, delicioso!», ouvia-se dizer por todos os lados. Natacha, de olhos fitos na planturosa Georges, nada percebia, nada via, nada compreendia do que se passava à sua roda. De novo e definitivamente se sentia arrastada para esse mundo louco e estranho, tão diferente daquele em que sempre vivera, um mundo onde se não podia distinguir o bem do mal, o razoável do insensato. Atrás dela estava Anatole e, sentindo-o tão próximo de si, esperava, numa angústia. Findo que foi o monólogo todos se levantaram, rodeando Mademoiselle Georges, a quem manifestavam o seu entusiasmo. — É tão bonita! — exclamou Natacha para o pai, que também se erguera e se dirigia para a actriz levado pela assistência. — Não acho quando olho para si — murmurou Anatole, que a seguia, aproveitando uma oportunidade em que só ela o poderia ouvir. — É encantadora... Desde o momento em que a vi nunca mais deixei... — Vamos, vamos. Natacha — disse o conde, voltando ao encontro da filha. — Que linda!Natacha, sem dizer palavra, aproximou-se do pai, interrogando-o, assustada, com os olhos. Depois de declamar ainda algumas cenas. Mademoiselle Georges retirou-se e a condessa Bezukov pediu aos seus convidados que passassem para a sala. O conde dispôs-se a partir, mas Helena implorou-lhe que não lhe estragasse o prazer que tinha naquele baile improvisado. E os Rostov ficaram. Anatole convidou Natacha para dançar a valsa, e enquanto dançava com ela, apertando-lhe a cintura e as mãos, repetia-lhe que a achava encantadora e que a amava. Durante a escocesa, que também dançaram juntos, no momento em que ficaram sós. Anatole limitou-se a olhá-la sem lhe dirigir palavra. E Natacha perguntou-se então a si mesma se não teria ,sonhado com o que ele lhe dissera enquanto dançavam a valsa. No fim da primeira marca, de novo ele lhe apertou a mão. Natacha ergueu para ele uns olhos assustados, mas o olhar terno e o sorriso de Anatole tinham tanta segurança e doçura que ela não pôde deixar de lhe dizer o que entendia ser obrigação sua. Baixou as pálpebras. — Não me diga essas coisas — pronunciou, rapidamente.— Estou noiva e amo outra pessoa.— E então olhou para ele. Anatole não parecia nem perturbado nem ofendido com o que ela dissera. — Não me fale disso. Que me importa? Já lhe disse que estou louco, apaixonado loucamente por si. Que culpa tenho eu de que seja encantadora? Somos nós que temos de principiar. Natacha, animada e inquieta, olhava sem ver com os olhos assustados, muito abertos, e parecia mais alegre do que de costume. Não dava pelo que se passava à sua volta. Dançaram a escocesa, e depois o grossvater (Espécie de cotilion. (N, dos T.). O pai quis levá-la, mas ela pediu-lhe que ficassem mais algum tempo. Onde quer que fosse, conversasse com quem conversasse, sentia sobre ela aquele olhar. Depois recordava-se de ter dito ao pai que ia ao toucador arranjar o vestido, e de que Helena a seguira, lhe falara, rindo, do amor do irmão e de que se encontrara com Anatole num pequeno gabinete e de que Helena desaparecera e de que os dois haviam ficado sós e de que Anatole, pegando-lhe nas mãos, lhe dissera numa voz cheia de ternura: — Não posso visitá-la em sua casa, mas será possível que a não torne a ver? Amo-a loucamente. Será possível que nunca?... E, cortando-lhe o caminho, aproximou o seu do rosto dela.Dois grandes olhos faiscantes estavam tão próximos dos dela que para Natacha tudo o mais deixou de existir. — Natália! — murmurou a sua voz, e Natacha sentiu as suas mãos muito apertadas. — Natália! «Nada sei, nada tenho que lhe dizer», parecia replicar o seu olhar atónito. Uns lábios ardentes premiram os seus e no mesmo instante sentiu-se subitamente livre. Ouviu uns passos e o ruge-ruge do vestido de Helena. Natacha voltou-se, depois olhou para Anatole com uns olhos onde havia angústia e pavor e encaminhou-se para a porta. — Uma palavra, uma palavra, por amor de Deus! — prosseguiu Anatole. Natacha parou. Precisava de que ele pronunciasse a palavra que lhe explicaria o que acontecera, e a que ela responderia. — Natália, uma palavra, uma palavra apenas — repetia ele, não sabendo, evidentemente, o que havia de dizer, e não deixou de pronunciar estas palavras enquanto Helena se aproximava deles. Helena e Natacha regressaram ao salão. Os Rostov retiraram-se antes da ceia. De regresso a casa. Natacha não dormiu. Não deixava de a atormentar um problema insolúvel: a quem amava ela, a Anatole ou ao príncipe André? Amava André, com certeza, não esquecera quão viva se mantinha a sua afeição por ele. Mas também gostava de Anatole, era incontestável. «Se assim não fosse, como poderia ter acontecido o que aconteceu?», dizia ela. «Se eu pude, depois, ao despedir-me, responder com um sorriso ao sorriso dele, se pude chegar até aí, não quererá isto dizer que desde o primeiro momento gostei dele? Não quererá dizer que ele é bom, nobre e excelente, e que era impossível não o amar?» E não achava resposta para estas angustiosas interrogações. [XIV] Chegou a manhã com as suas ocupações e os seus quefazeres quotidianos. Todos se levantaram, se agitaram, tagarelaram. De novo apareceram as modistas. Depois Maria Dmitrievna e todos se reuniram para tomar chá. Natacha, cujos olhos a insónia ainda tornara maiores, como se quisesse impedir que a olhassemfundo nas pupilas, mirava toda a gente com inquietação, esforçando-se por parecer igual à Natacha de todos os dias. Depois do almoço. Maria Dmitrievna — e era esse o seu grande momento — sentou-se na sua poltrona e chamou para junto de si Natacha e o velho conde. — Ora aqui têm, meus amigos: pensei muito em tudo isto, e o meu conselho é este — principiou ela. — Ontem, como sabeis, fui a casa do príncipe Nicolau. E falei com ele... Deu-lhe para gritar. E eu ainda gritei mais. Despejei ali todo o meu saco! — E ele, que disse? — inquiriu o conde. — Ele é doido.., nada quer ouvir. Para que serve tornar a falar no caso? Já atormentámos bastante esta pobre pequena. A minha opinião é esta: trate o conde de resolver as suas coisas e voltem para casa, para Otradnoie.., e esperem ali... — Não! Não! — gritou Natacha. — Sim, sim, é preciso voltar para casa — insistiu Maria Dmitrievna — e esperar lá. Se o noivo agora aqui aparecesse, era certa uma discussão; mas uma vez só com o velho, saberá levar a água ao seu moinho e depois lá irá ter convosco. — Ilia Andreitch aprovou a proposta de Maria Dmitrievna, assimilando imediatamente a prudência da medida. Se o velho se humanizasse, era sempre tempo de regressarem a Moscovo ou de o procurarem em Lissia Geri. Caso contrário, não seria possível casarem sem o seu consentimento senão em Otradnoie. — Tem toda a razão — corroborou ele. — Sinto ter ido a sua casa e ter levado comigo minha filha. — Não tem que se arrepender. Estando em Moscovo, não podia deixar de lhe dar essa prova de cortesia. Mas se ele não quer, que se avenha! — acrescentou Maria Dmitrievna, enquanto procurava fosse o que fosse na algibeira. — E, visto que o enxoval está pronto, não têm que esperar mais tempo. O que faltar eu me encarrego de o expedir. Tenho pena de que se vão embora, mas acho melhor. Ide e fazei boa viagem. Tendo encontrado na algibeira o que procurava, entregou-o a Natacha. Era uma carta da princesa Maria. — Escreveu-te. Muito sofre ela, coitada! Tem medo de que possas pensar que não gosta de ti.— E é verdade, não gosta de mim — disse Natacha. — Tolice, não digas isso— exclamou Maria Dmitrievna. — Em nada acredito do que me digam; sei muito bem que ela não gosta de mim — insistiu Natacha com decisão, pegando na carta. No seu rosto pintava-se uma resolução fria e maldosa, que levou Maria Dmitrievna a fitá-la com atenção, franzindo o sobrolho. — Não digas isso, minha santa — censurou ela. — O que te estou a dizer é a verdade. Deves responder-lhe. Natacha, sem dar réplica, retirou-se para o seu quarto, disposta a ler a carta. A princesa Maria dizia-lhe que o mal-entendido que se estabelecera a deixara num grande desespero. Fossem quais fossem os sentimentos do pai, pedia a Natacha que acreditasse não querer negar o seu afecto àquela que fora escolhida por seu irmão, e que estava pronta a tudo sacrificar pela felicidade dela. «De resto», prosseguia, «não pense que meu pai tem qualquer má vontade para consigo. É um velho e um doente, a quem é preciso perdoar; mas no fundo é bom, magnânimo, e acabará por estimar aquela que fizer a felicidade do filho.» Maria pedia-lhe depois que lhe marcasse um dia para a tornar a ver. Natacha, finda que foi a leitura da carta, sentou-se à mesa disposta a responder. «Querida princesa», escreveu, rápida e maquinalmente. Em seguida deteve-se. Que havia ela de dizer depois do que se passara na véspera? «Sim, sim, não é a mesma coisa, agora tudo é diferente», disse de si para consigo, diante da carta principiada. «É preciso acabar com isto. Mas será preciso? É horrível!...» E para fugir àquelas medonhas ideias foi ter com Sónia e ambas se puseram a ver riscos de bordados. Depois do jantar. Natacha retirou-se para o quarto e continuou a carta. «Será possível que tudo tenha terminado já?», pensou. «Como é que tudo sucedeu tão depressa e tão depressa fez esquecer o passado?» Lembrou-se do seu amor pelo príncipe André então em plena força e percebeu ser Kuraguine a quem amava. Pôs-se a imaginar-se casada com André e a imaginação pintou-lhe diante dos olhos o quadro, tantas vezes evocado, da felicidade que a aguardava junto dele, mas no mesmo instante sentiu que toda a sua alma se incendiava à lembrança do encontro a sós, na véspera, com Anatole. «Porque não poderei eu amar os dois ao mesmo tempo?», interrogava-se, por vezes, numa perfeita obnubilação de espírito. «Só então me sentiriacompletamente feliz; mas agora tenho de escolher, e privada de um deles nunca mais poderei ser feliz. Confessar a André o que se passou ou ocultar-lho é por igual impossível. Afinal nada aconteceu de irremediável. Serei eu obrigada a renunciar para sempre ao amor de André, esse amor que por tanto tempo foi toda a minha felicidade?» — Menina — murmurou uma criada, em voz muito baixa e com um ar misterioso, entrando-lhe no quarto! — Olhe o que um homem me deu para lhe entregar. — E a moça passou-lhe uma carta para as mãos.— Mas, por Deus... — prosseguiu a criada. Natacha, porém, sem lhe responder, arrancou maquinalmente o lacre e leu a carta. Não percebeu uma só palavra. Apenas sabia que aquela carta era dele, do homem a quem amava. Sim, amava-o. Se o não amasse, poder-se-ia dar o que estava a suceder? Poderia ela ter entre as suas mãos aquela carta apaixonada que ele lhe endereçara? Nas suas mãos trémulas tinha Natacha a carta inflamada de paixão que Dolokov redigira para Anatole e, lendo-a, era como se encontrasse nela íntimas correspondências com os sentimentos que julgava transbordar-lhe do coração. «Desde ontem à note que o meu destino está decidido: ou o seu amor ou a morte. Não tenho outro caminho!» Assim principiava a carta. Depois dizia saber que os pais dela nunca consentiriam em dar-lhe , sua mão, que para isso havia razões secretas que só a ela podia revelar, mas se em verdade ela o amava bastava dizer que sim e não havia forças humanas capazes de se oporem à sua felicidade. O amor vence todos os obstáculos. Raptá-la-ia para a levar consigo para o fim do mundo. «Sim, sim, amo-o!», exclamava Natacha para si mesma, lendo pela vigésima vez aquela carta e deixando-se trespassar por cada uma das suas palavras, como se nelas houvesse um sentido profundo. Nessa noite Maria Dmitrievna foi a casa dos Arkarov e propôs às meninas que a acompanhassem. Natacha, sob o pretexto de que lhe doía a cabeça, ficou em casa. [XV] Já tarde, ao regressar a casa. Sónia entrou no quarto de Natacha e com grande surpresa sua foi encontrá-la a dormir num canapé, toda vestida. Na mesa, a seu lado, estava a carta aberta de Anatole. Sónia pegou nela pôs-se a ler. Enquanto a lia ia olhando para Natacha adormecida, como que a procurar no seu rosto a explicação do que lia e sem conseguir encontrá-la. O rosto dela respirava serenidade, felicidade e doçura. Levando as mãos ao peito para não sufocar. Sónia, pálida e trémula de emoção e receio, deixou-se cair numa cadeira, rompendo em soluços. «E eu não dei por coisa alguma. Como puderam as coisas chegar a este ponto? Teria ela deixado de gostar do príncipe André? E como pôde consentir isto a Kuraguine? Não há dúvida de que é um impostor e um miserável. Que dirá Nicolau, o nobre, o gentil Nicolau, quando vier a saber? Agora já compreendo o que queria dizer aquele rosto transtornado, decidido a tudo, nada natural, que ela tinha nestes últimos dias», dizia Sónia de si para consigo. «Mas não, não o pode amar. Naturalmente abriu a carta sem saber de quem vinha. É impossível que se não tivesse sentido ofendida. Não pode fazer uma coisa destas!» Sónia enxugou as lágrimas e aproximou-se de Natacha, examinando-a mais uma vez. — Natacha — chamou muito baixo. Natacha acordou e viu Sónia. — Já voltaste? E, num destes acessos de ternura que se costumam ter ao acordar, lançou-se nos braços da amiga. Ao ver, porém, a emoção que se pintava no rosto de Sónia. Natacha perturbou-se também e mostrou-se desconfiada. — Sónia, tu leste a carta? — perguntou ela. — Li — murmurou Sónia. Natacha sorriu vitoriosa. — Oh! Sónia, não posso, não posso mais esconder-te... Sabes? Amamo-nos!... Sónia querida, escreve-me... Sónia... Sónia, como se não percebesse o que ouvia, olhou para ela com os olhos muito abertos. — E Bolkonski? — interrogou. — Oh!. Sónia, oh!, se tu pudesses saber como sou feliz! — exclamou Natacha. — Mas se tu não sabes o que é o amor...— Mas, então, Natacha, tudo acabou com o outro? Natacha olhava para ela, com os olhos muito abertos, como se não compreendesse. — Então rompeste com o príncipe André? — Oh!, nada percebes. Não digas tolices. Ouve... — respondeu Natacha, com impaciência. — Não, não posso acreditar — repetiu Sónia. — Confesso que não compreendo. Quer dizer, tu, durante um ano inteiro, gostaste de um homem, e de repente... Um homem que tu mal viste por duas ou três vezes. Natacha, não acredito, tu estás a brincar. Em três dias esqueceres tudo e... — Três dias... — exclamou Natacha. — Tenho a impressão de que o amo há cem anos. Parece-me que nunca amei alguém antes dele. Não podes compreender... Sónia, vem cá, senta-te ao pé de mim. — E estreitou-a nos braços, depondo-lho um beijo na cara. — Tinha ouvido dizer que estas — coisas acontecem, e com certeza também ouviste dizer o mesmo, mas só agora me foi dado sentir um amor assim. Oh!, é muito diferente do outro. Assim que o vi, senti ser aquele o meu senhor e eu a sua escrava, senti que não podia deixar de o amar. Sim, sou a sua escrava! Pode mandar o que quiser, que estou pronta a obedecer. Não podes compreender. Mas, diz-me, que posso eu fazer, que posso eu fazer. Sónia? — acrescentou com uma expressão de felicidade a que se misturava qualquer coisa de receoso. — Pensa no que fazes — tornou Sónia. — Eu não posso deixar as coisas assim. Estas cartas recebidas a ocultas... Como pudeste consentir? — continuou com um horror e uma repulsa impossíveis de dissimular. — Já te disse — replicou Natacha. — Deixei de ter vontade. Pois não compreendes? Amo-o! — Não consentirei, vou contar tudo! — exclamou Sónia, rompendo em soluços. — Oh, meu Deus!, que estás a dizer?... Se contares alguma coisa considero-te minha inimiga. É que me queres mal, é que queres que nos separem... Ao ver o pânico de que Natacha fora tomada. Sónia chorou lágrimas de vergonha e compaixão pela amiga. — Que houve então entre vocês? — perguntou. — Que te disse ele? Porque não vem ele a nossa casa? Natacha não respondeu à pergunta.— Por amor de Deus. Sónia, nada digas a ninguém, não me faças sofrer — implorou ela. — Lembra-te de que ninguém se deve meter nestas coisas. Confessei- te... — Porquê todo esse mistério? Porque não vem ele a nossa casa? Porque não pede ele directamente a tua mão? Realmente, e príncipe André deu-te plena liberdade para decidires, caso esta oportunidade surgisse. Mas numa coisa eu não posso acreditar. Já pensaste. Natacha, no que podem ser essas «razões secretas»? Natacha fitou em Sónia uns olhos assombrados. Era, evidentemente, a primeira vez que esta pergunta lhe vinha ao espírito, e na verdade não sabia responder-lhe. — Não sei que razões serão essas. Mas devemos crer que as haja! Sónia suspirou e abanou a cabeça com desconfiança. — Se há razões... — principiou ela. Natacha, adivinhando as dúvidas da amiga, interrompeu-a, assustada. — Sónia, não devemos duvidar dele! Não devemos, não devemos, compreendes? — exclamou. — Gosta de ti? — Se gosta de mim? — redarguiu Natacha com um sorriso de comiseração. — Não leste a carta dele, não a leste? — E se ele não fosse um homem digno? — Ele? Um homem indigno? Se tu o conhecesses! — Se é um homem digno — voltou Sónia com energia —, deve dizer quais as suas intenções ou então deixar de te ver. E se tu não lho quiseres dizer, eu me encarregarei disso. Escrever-lhe-ei e contarei tudo ao pai. — Não posso viver sem ele! — exclamou Natacha. — Natacha, não te compreendo. Que estás a dizer? Lembra-te de teu pai, do Nicolau. — De ninguém preciso, não quero saber de mais ninguém senão dele. Atreves- te a dizer que ele não é um homem digno? Não sabes que o amo? Sónia, vai-te embora! Não me quero zangar contigo. Vai-te, vai-te, por amor de Deus! Vai-te! Não vês que me fazes sofrer! — Natacha falava com ira e numa voz cheia de desespero. Sónia, não podendo suster as lágrimas, retirou-se. Natacha sentou-se à sua mesa e sem um momento de reflexão escreveu à princesa Maria a carta que não fora capaz de redigir durante a manhã inteira. Empoucas palavras dizia-lhe que o mal-entendido entre elas acabara, que o príncipe André, ao partir, lhe dera plena liberdade e que ela aproveitava a sua generosidade. Pedia-lhe esquecesse o que se passara e lhe perdoasse se em alguma coisa a magoara, declarando-lhe que não podia ser mulher de seu irmão. Naquele momento tudo lhe parecia fácil, simples e claro. Na sexta-feira deviam os Rostov regressar à aldeia, e na quarta-feira o conde dirigiu-se à sua propriedade nas imediações de Moscovo na companhia de um comprador. No dia da partida do conde. Sónia e Natacha estavam convidadas para um jantar em casa das Karaguine, e foi Maria Dmitrievna quem as acompanhou. Natacha voltou a encontrar-se com Anatole, e Sónia pôde ver que ela lhe falava de maneira a não ser ouvida por mais alguém e que durante o jantar ainda lhe pareceu mais agitada do que antes. No regresso a casa. Natacha foi a primeira a dar a explicação que Sónia esperava da amiga. — Vês. Sónia, eu bem dizia que só tinhas dito tolices a respeito dele — principiou ela, nesse tom insinuante habitual nas crianças quando querem que as elogiem. — Tivemos uma explicação. — E então? Que te disse ele? Ainda bem que não estás zangada comigo. Natacha. Conta-me toda a verdade. Que te disse? Natacha ficou um momento pensativa. — Oh. Sónia, se tu o conhecesses como eu o conheço! Disse-me... Perguntou-me em que pé estava o meu noivado com Bolkonski. Ficou tão contente quando soube que de mim dependia acabar com tudo... Sónia soltou um profundo suspiro. — Mas não acabaste com o Bolkonski — disse ela. — E se eu realmente tivesse acabado? Se, efectivamente, tudo tivesse acabado com ele? Porque pensas tu tão mal de mim? — Não penso mal de ti. Mas não percebo... — Espera. Sónia, já vais compreender tudo. Já vais ver como ele é. Não penses mal nem dele nem de mim. — Não penso mal de ninguém. Gosto de toda a gente e tenho piedade de todos. Mas que hei-de eu fazer? Sónia não se deixava levar pelas meigas palavras de Natacha. Quanto maismimados e insinuantes os modos a amiga, mais sério e grave era o seu rosto. — Natacha — disse ela —, pediste-me que te não falasse nisso, de nada te falei e és tu a primeira a referires-te ao caso. Natacha, eu não tenho confiança nele. Que significa este mistério? — Outra vez! Outra vez! — É que tenho medo por ti. Natacha. — De que tens medo? — Tenho medo de que te percas — disse Sónia, num tom enérgico, como se ela própria se sentisse assustada com o que estava a dizer. O rosto de Natacha de novo assumiu uma expressão de ira. — Pois bem, perder-me-ei, perder-me-ei, e quanto antes! Nada tens com isso. O mal será para mim e não para vós. Deixa-me. Deixa-me. Odeio-te! — Natacha! — exclamou Sónia, assustada. — Odeio-te! Odeio-te! És minha inimiga para sempre! E Natacha saiu a correr do quarto. Não voltou a falar mais com Sónia e evitou tornar a encontrá-la. Natacha vagueava pela casa com o seu ar perturbado e a sua expressão de pessoa culpada, ora fazendo isto, ora aquilo e sem acabar coisa alguma. Embora isso lhe fosse penoso. Sónia não perdia de vista Natacha. Na véspera do dia em que o conde devia regressar notou que ela estivera toda a manhã à janela do salão como se aguardasse fosse o que fosse e viu-a fazer sinais a um militar que passava pela rua e lhe pareceu Anatole. Então pôs-se a observá-la com mais atenção e reparou que durante o jantar e à noite Natacha tinha uma atitude estranha e pouco natural: respondia às perguntas a trouxe-mouxe, principiava frases que não acabava e ria a propósito de tudo. Depois do chá viu uma criada muito atrapalhada esperando à porta do quarto de Natacha. Aguardou que ela entrasse, e, escutando à porta, veio a saber que uma nova carta chegara. E de súbito Sónia compreendeu que Natacha ocultava um projecto inconfessável para aquela mesma noite. Bateu à porta, mas não a deixaram entrar. «Vai fugir com ele», disse Sónia para si mesma. «Capaz disso é ela! Pareceu-me hoje especialmente triste, mas decidida. Ao despedir-se do pai chorou. Sim, estouconvencida de que vai fugir com ele; que hei-de eu fazer?», interrogou-se a si própria, recordando todos os pormenores que podiam revelar o terrível projecto de Natacha. «O conde não está. Que hei-de fazer? Escrever uma carta a Kuraguine a pedir-lhe uma explicação? Quem o obrigaria a responder-me? Escrever ao Pedro, como me recomendou o príncipe André se viesse a dar-se alguma desgraça...? Mas não acabou ela com Bolkonski? Efectivamente, foi ontem à noite que ela respondeu à princesa Maria. E o meu tio não está em casa... » Dirigir-se a Maria Dmitrievna, que tinha tanta confiança em Natacha, parecia-lhe horrível. «Seja como for», dizia ela, de si para consigo, no corredor sombrio, «chegou agora o momento de mostrar que não esqueço o bem que eles me têm feito e que gosto de Nicolau. Ainda que tenha de passar três noites sem dormir, deste corredor é que eu não arredo pé, e hei-de evitar que ela saia daqui, nem que seja à força. Não consinto que tal vergonha cubra esta família!» [XVI] Ultimamente Anatole fora viver para casa de Dolokov. O plano de rapto de Mademoiselle Rostov fora combinado e preparado por este havia vários dias e devia ser posto em execução na noite em que Sónia, escutando atrás da porta de Natacha, decidira não a perder de vista. Natacha prometera ir ter com Kuraguine às dez horas da noite, saindo pela escada de serviço. Anatole metê-la-ia numa troika preparada de antemão e conduzi-la-ia a umas sessenta verstas de Moscovo, ao povoado de Kamenka, onde um pope interdito os devia consorciar. Em Kamenka estaria preparada uma muda, que os levaria para mais longe, pela estrada de Varsóvia, donde, na mala-posta, seguiriam para o estrangeiro. Anatole arranjara um passaporte, um livre-trânsito, dez mil rublos, que a irmã lhe havia emprestado, e mais outros dez mil, que conseguira por intermédio de Dolokov. As testemunhas. Kvostikov, um antigo amanuense que Dolokov utilizava nas suas operações de jogador, e Makarine, hússar na reserva, homem franco e ingénuo, de uma ilimitada dedicação por Kuraguine, estavam sentadas na sala de espera tomando chá.No amplo gabinete de Dolokov, revestido de alto a baixo de tapetes persas, peles de urso e armas, o dono da casa, de bechemé de viagem e botas altas, estava sentado diante da secretária aberta, onde havia contas e maços de notas. Anatole, com o uniforme desabotoado, andava de um lado para o outro, entre a sala onde estavam as testemunhas, atravessando o gabinete e um quarto das traseiras, onde o seu criado francês, ajudado por outros, preparava as bagagens. Dolokov contava o dinheiro e anotava as somas. — Bom, então é preciso dar dois mil rublos ao Kvostikov. — Pois dá-lhos — replicava Anatole. — Makarka — assim tratava Makarine — de nada precisa. Era capaz de se deitar a afogar por ti. Bom, as contas estão prontas — disse Dolokov, mostrando- lhe a nota. Está bem? — Com certeza — replicou Anatole, que evidentemente nada ouvira e olhava vago na sua frente, sempre com o mesmo sorriso. Dolokov fechou a secretária e dirigiu-se em tom zombeteiro a Anatole: — Sabes o que te digo? Ainda estás a tempo, deixa-te disso! — Imbecil! — exclamou Anatole. — Não digas tolices. Se soubesses... Só o Diabo sabe o que isto é! — Falo sério; deixa-te disso — insistiu Dolokov. — Estou a falar-te a sério. Estarás convencido de que se trata de uma brincadeira? — Lá estás tu outra vez. Vai para o diabo que te carregue! — exclamou Anatole, franzindo o sobrolho.— Palavra, não estou com disposição de te ouvir dizer tolices. — E fez menção de sair do gabinete. Dolokov sorriu, ao mesmo tempo formalizado e condescendente. — Escuta, peço-te pela última vez. Para que havia eu de estar a brincar contigo? Porventura te levantei algum obstáculo? Quem preparou tudo, te arranjou um pope, te obteve um passaporte, te conseguiu dinheiro? Eu. — Pois bem, e estou-te agradecido. Julgas talvez que te não estou reconhecido? — E Anatole, suspirando, abraçou Dolokov. — Ajudei-te, mas, no entanto, devo dizer-te a verdade: a aventura é perigosa, e, se nos pomos a pensar nela, é mesmo estúpida. Bom, tu rapta-la, está bem. Mas julgas que vão deixar as coisas assim? Hão-de acabar por saber que és casado. Serás chamado aos tribunais... — Tolices, tolices — contraveio Anatole, contrariado. — Pois não te expliqueieu já, hem? — E Anatole, com a obstinação própria das pessoas pouco inteligentes sempre que tomam uma resolução, repetiu o raciocínio que lhe expusera já centos Ge vezes. — Já te expliquei. Aqui tens o que eu resolvi. — E, contando pelos dedos: — primeiro, se este casamento não é válido, não tenho qualquer responsabilidade; segundo, se é válido, estou-me nas tintas: ninguém saberá disso no estrangeiro. Não é assim? E nem mais uma palavra, nem mais uma palavra, nem mais uma palavra! — Ouve o que te digo: deixa-te disso! Vais enterrar-te... — Vai para o Diabo! — vociferou Anatole, e com as mãos na cabeça saiu do gabinete, para voltar em seguida a sentar-se, escarranchado numa poltrona, mesmo diante do amigo. — Só o Diabo sabe o que isto é! Olha, repara como — ele bate — pegou-lhe na mão e pousou-a sobre o coração — Ah, que pés, meu caro, que olhar! Uma deusa! Dolokov, sorrindo friamente, olhava para ele com os seus belos olhos insolentes e brilhantes, divertido, evidentemente, à custa do amigo. — Acaba-se o dinheiro, e depois? — Depois? — repetiu Anatole, repentinamente embaraçado diante de tal perspectiva. — Depois? Sei lá! E depois, deixa-te de tolices. São horas! — acrescentou, consultando o relógio. Entrou no quarto das traseiras. — Então, esta pronto? Que estão para aí a fazer? — gritou para os criados. Dolokov guardou o dinheiro, chamou um dos criados, para que ele lhes trouxesse qualquer coisa para comer antes da abalada, e entrou na sala onde estavam Kvostikov e Malcarine. Anatole, estiraçado no divã do gabinete, sorria, pensativo, enquanto sua bela boca ia balbuciando palavras ternas. — Vem comer qualquer coisa! — gritou-lhe Dolokov da outra sala. — Não tenho fome — replicou Anatole, sem deixar de sorrir. — Anda, já aí está o Bálaga. Anatole levantou-se do divã e entrou na sala de jantar. Bálaga era um afamado postilhão de troika, que havia cinco ou seis anos servia os dois amigos; recorriam frequentes vezes aos seus serviços. Mais de uma vez, quando o regimento de Anatole estava em Tvier, o trouxera de noite daquela cidade: chegava a Moscovo de madrugada e voltava a levá-lo na noite no dia seguinte.Por várias vezes conseguira livrar Dolokov dos apuros que o perseguiam. Passeara os dois pela cidade na companhia de ciganos e «senhoritas», como costumava dizer. E até, ao bater as ruas com eles, atropelara pessoas e sempre aqueles «senhores», como ele dizia, o tinham livrado de complicações. Que de cavalos ele rebentara já ao seu serviço! Muitas vezes o tinham emborrachado, enfrascando-o de champanhe e madeira, o seu vinho predilecto, e a verdade era estar no segredo de aventuras que a outros, que não a eles, de há muito os teriam atirado para a Sibéria. Convidavam frequentes vezes Bálaga para as suas orgias, obrigavam-no a dançar e a beber em casa dos ciganos e já lhe tinham passado pelas mãos muitos milhares de rublos. Arriscava a vida e a pele mais de vinte vezes por ano para lhes ser agradável e já rebentara cavalos que o dinheiro que eles lho haviam dado, a ganhar não pagava de modo algum. Mas gostava deles à sua maneira; morria por aquelas corridas loucas, a dezoito verstas à hora, adorava fazer os cocheiros de praça virarem os pés por cima da cabeça e esmagar os peões nas ruas de Moscovo, lançando-se depois à desfilada. Gostava de ouvir vozes avinhadas gritar-lhe, frenéticas: «Mais depressa! Mais depressa!», quando já lhe não era possível ir mais veloz. O que ele gostava de chicotear a nuca dos camponeses que, mais mortos do que vivos, se não voltavam a tempo! «São uns senhores às direitas», dizia de si para consigo. Por seu lado, tanto Dolokov como Anatole tinham Bálaga em alta conta, grande mão de rédea, que era, e em matéria de gosto afinavam uns pelos outros. Quando se tratava de outras pessoas, fazia os seus preços, pedia vinte e cinco rublos por uma corrida de duas horas, sendo raro também ser ele a conduzir quando eram outros os fregueses, e nesse caso mandava um dos seus moços. Com «aqueles senhores», porém, como costumava dizer, era ele quem aparecia em carne e osso e nunca pedia fosse o que fosse. Quando sabia pelos criados que eles tinham dinheiro, coisa que acontecia urna vez de dois em dois ou de três em três meses, aparecia pela manhã, sem ter bebido, e pedia-lhes que o livrassem de apuros. Então «aqueles senhores» mandavam-no sempre sentar. «Acuda-me, meu paizinho Fiodor Ivanovitch», ou então: «Excelências, estou sem cavalos. Tenho de ir à feira: emprestem-me o dinheiro que puderem.» Anatole e Dolokov, quando abonados, davam-lhe sempre mil ou dois mil rublos. Bálaga era um camponês dos seus vinte e seis anos, louro, corado, de pescoçovermelho e cheio, membrudo, de nariz arregaçado, olhos vivos e uma barbicha curta. Usava cafetã azul com forro de seda por cima da peliça, Benzeu-se ao passar pelo recanto dos ícones e aproximou-se de Dolokov, estendendo-lhe a mão negra. — Boas noites. Fiodor Ivanovitch! — disse, inclinando-se. — Boas noites, irmão! Ora aqui está ele! — Boas noites. Excelência — repetiu, para Anatole, que acabava de entrar, estendendo-lhe igualmente a mão. — Ouve. Bálaga — disse-lhe Anatole, batendo-lhe no ombro. És realmente meu amigo? Então, presta-me um serviço... Que cavalos tens tu? Hem? — Aqueles que me mandou trazer, os seus, os fogosos. — Então, ouve. Bálaga! Arrebenta a tua troika, mas quero que me ponhas lá em três horas, hem! — Se arrebento os cavalos, como havemos de lá chegar? — observou Bálaga, malicioso. — Deixa-te de graças ou apanhas dois estalos! — gritou Anatole, subitamente, com os olhos fora das órbitas. — Porque não hei-de brincar? — volveu o cocheiro, sorrindo. — Já alguma vez disse que não a estes senhores? Enquanto os cavalos puderem, está visto. — Bom! — exclamou Anatole — Vamos, senta-te. — Senta-te, não ouves? — insistiu Dolokov. — Estou bem de pé, Fiodor Ivanovitch. — Tolice! Senta-te e bebe — voltou Anatole, enchendo-lhe um copázio de madeira. Ao ver o vinho os olhos do cocheiro coriscaram. Primeiro recusou, por cortesia, e depois bebeu de um trago, limpando os beiços com um tabaqueiro de seda vermelha que trazia no fundo do boné. — Então quando abalamos, Excelência? — Pois — imediatamente — disse Anatole, consultando o relógio. — E toma tento. Bálaga, hem! É preciso chegar a horas. — Depende da partida. Se estivermos com sorte... E porque não havemos nós de chegar a horas? — tomou Bálaga. — Pois não viemos uma vez de Tvier em sete horas? Lembras-te. Excelência? — Sim, é verdade, uma vez, pelo Natal, viemos de Tvicr — disse Anatolesorrindo. Lembrava-se muito bem. E, voltando-se para Makarine, que o olhava cheio de devoção, de olhos muito abertos. — Não calculas. Makarka, até nos cortava a respiração, tão depressa vínhamos. A certa altura deparou-se-nos um comboio de carros: passámos por cima de duas galeras. Que te parece? — Também aquilo é que eram cavalos! — prosseguiu Bálaga, e, dirigindo-se a Dolokov: — Tinha atrelado dois animais novos ao meu alazão claro. Acredita. Fiodor Ivanovitch, aqueles diabos fizeram de uma tirada sessenta verstas. Não havia quem os segurasse. Tinha as mãos dormentes. Gelava que era um louvar a Deus! Acabei por abandonar as rédeas. Pegue nelas. Excelência. Não podia mais e deixei-me cair no fundo do trenó. Não só não era preciso tocá-los, como custava a ter mão neles. Aqueles diabos fizeram o percurso em três horas! Só o da esquerda se foi abaixo. [XVII] Anatole desapareceu, voltando daí a pouco com uma peliça cingida à cintura por uma correia com fivela de prata, um gorro de zibelina posto gaiatamente à banda e que muito bem lhe ficava ao rosto. Depois de passar os olhos pelo espelho e na postura em que se mirara postou-se diante de Dolokov e bebeu de um trago um copo de vinho. — Bom. Fédia, adeus! Obrigado por tudo. Adeus! — exclamou. — Camaradas, amigos da minha mocidade, vamos — acrescentou, pensativo, dirigindo-se a Makarine e aos outros— Adeus! Embora todos o acompanhassem. Anatole queria dar um tom solene e comovido àquela despedida. Falava alto e devagar, enchendo o peito e abanando uma perna. — Vamos beber todos, tu também. Bálaga. Camaradas, amigos da minha mocidade, passámos juntos muitos anos e muita loucura fizemos. Quando nos tornaremos a ver? Vou para o estrangeiro. Adeus, rapazes! Levámo-la direita! A vossa saúde! Bebeu de um trago e jogou o copo ao chão. — A sua saúde! — disse Bálaga, virando também o seu copo e limpando a boca com o tabaqueiro.Makarine, os olhos rasos de lágrimas, abraçou-se a Anatole. — Oh, príncipe! Custa-me tanto separar de ti — murmurou. — Vamos! A caminho! — comandou Anatole. Bálaga ia sair. — Espera! Um momento! — interrompeu Anatole. — Fecha a porta, sentemo- nos todos. Ali, assim. Fecharam a porta e toda a gente se sentou. — E agora, a caminho, rapazes! — exclamou Anatole, erguendo-se. Joseph, o criado, entregou-lhe uma maleta e o sabre e todos saíram para o vestíbulo. — Onde está a peliça? — perguntou Dolokov. — Eh! Ignatka! Vai num rufo pedir a peliça a Matriona Matvievna, uma rica zibelina. Sim, eu sei como estas coisas se fazem, os raptos — acrescentou, piscando o olho— A pequena vai sair de casa, mais morta do que viva, tal como está. Basta um pequeno atraso e lá vêm as lágrimas, o papá e a mamã e ela toda a tremer de frio e a querer voltar para casa... Mas tu embrulha-la logo ali na peliça e mete-la no trenó. Um lacaio veio com um casaco de mulher de pele de raposa. — Imbecil! Eu não te disse que era de zibelina? Eh. Matrioshka! A capa de zibelina! — gritou numa voz tão forte que ressoou por toda a casa. Uma linda cigana, magra e pálida, de olhos pretos, muito brilhantes, e caracóis negros cheios de reflexos, como a asa de um corvo, um xale vermelho pelas costas, apareceu com a capa de zibelina. — Julgas que tenho pena dela? Toma-a, leva-a — disse, visivelmente intimidada diante do amo e cheia de pena pela perda da peliça. Dolokov, sem lhe responder, pegou na capa, assentou-a nas costas de Matrioshka, e embrulhou-a nela. — Assim, e depois assim — disse, levantando a gola de sorte que só lhe ficava de fora parte da cara. — E depois assim, vês? — E obrigou Anatole a espreitar pela abertura através da qual se via brilhar o sorriso da cigana. — Bom, adeus. Matrioshka — disse Anatole, beijando-a. Acabaram-se todas as minhas loucuras aqui! Diz adeus por mim a Stiochka. Vamos, adeus, adeus. Matrioshka. Deseja-me sorte! — Que Deus lhe dê todas as venturas, príncipe! — murmurou Matrioshka, com o seu sotaque cigano.A porta estavam duas troikas com dois postilhões a postos. Bálaga subiu para a primeira e, erguendo os cotovelos, apanhou as rédeas sem pressas. Anatole e Dolokov sentaram-se na sua troika. Makarine. Kvostikov e os criados tomaram lugar na outra. — Tudo pronto? — perguntou Bálaga. — Avante! — gritou enrolando as rédeas em volta do braço, e o trenó despediu a galope pela Avenida Nikitski. — Oh! Oh!... Avante!... Oh! Oh!... — gritavam Bálaga e o rapaz sentado a seu lado. Na Praça Arbatskaia a troika abalroou outro carro. Ouviu-se um estampido, depois um grito e ela aí vai direita ao seu destino. Depois de ter percorrido de ponta a ponta Podnovinski. Bálaga refreou os cavalos e, voltando para trás, foi parar na encruzilhada da Rua Staraia Koniushina. O moço saltou do assento para pegar no bridão dos cavalos. Anatole e Dolokov meteram pelo passeio. Ao chegar junto do portão. Dolokov assobiou. Respondeu- lhe outro assobio e à porta apareceu uma criada. — Entre para o pátio. Aqui podem vê-lo. A menina já aí vem — disse ela. Dolokov ficou junto do portão. Anatole seguiu a criada, contornou o recanto do pátio e galgou os degraus da escada. Gavrila, um homenzarrão que tratava dos cavalos de Maria Dmitrievna, saiu ao encontro de Anatole. — A senhora quer falar consigo, faça favor — disse, numa voz de baixo, cortando-lhe o caminho. — Que senhora? Quem és tu? — perguntou Anatole, numa voz entrecortada. — Faça favor, tenho ordens para isso. — Kuraguine! Para trás! — gritou Dolokov. — Fomos traídos! Raspa-te! Dolokov, que ficara no portão, lutava com o porteiro, que tentava fechar a porta para não deixar sair Anatole. Apelando para todas as suas forças, conseguiu empurrar o porteiro. Depois, agarrando um braço de Anatole, que aparecera, correndo, puxou-o para a rua e ambos deram às de vila-diogo em direcção à troika que os esperava. [XVIII] Maria Dmitrievna encontrara Sónia a chorar no corredor e obrigara-a a contar-lhe tudo. Depois de apanhar a carta de Natacha e de a ter lido, apresentou- se no quarto dela com o papel na mão. — Miserável! Desavergonhada! — gritou-lhe. — Não quero ouvir nem uma palavra. Empurrando Natacha, que, assustada, olhava para ela com os olhos enxutos, fechou-a à chave, e depois de ter dado ordens ao porteiro para deixar entrar as pessoas que aparecessem naquela noite, não as deixando, porém, sair, disse ao criado que lhas trouxesse à sua presença e sentou-se no salão à espera dos raptores. Quando Gavrila lhe veio anunciar que eles tinham fugido, levantou-se; de sobrolho carregado e de mãos atrás das costas pôs-se a passear na sala, reflectindo sobre o que devia fazer. À meia-noite, apalpando a chave na algibeira, apresentou-se no quarto de Natacha. Sónia estava no corredor, a soluçar. — Maria Dmitrievna, deixe-me entrar consigo, peço-lhe! — suplicou. Maria Dmitrievna abriu a porta sem lhe responder e entrou. «Que vergonha!... Que porcaria!... Debaixo do meu tecto... Miserável! Má filha!... Só tenho pena do pai! », dizia de si para consigo, procurando refrear a cólera que a tomava. «Embora não seja fácil, farei com que todos se calem e o conde nada há- de saber.» Entrou no quarto de Natacha num passo decidido. Esta, estiraçada no divã, com a cabeça nas mãos, sem se mexer, continuava na posição em que Maria Dmitrievna a deixara. — Muito bem, muito bonito! — exclamou ela. — Na minha casa, receber amantes na minha casa! Escusas de esconder! Ouve quando te falam! — Maria Dmitrievna tocou-lhe no braço. Ouve quando te falam. Portaste-te como uma desavergonhada! Eu bem sei o que devia fazer.., mas tenho pena de teu pai. Nada lhe direi. Natacha não se mexeu, mas todo o seu corpo estremeceu. Soluços secos e convulsivos a sufocavam. Maria Dmitrievna trocou um olhar com Sónia e veio sentar-se ao lado dela. — Ele teve sorte em escapar. Mas hei-de apanhá-lo — disse ela, na sua voz rude. — Ouves o que estou a dizer-te?Passou a grande mão pelo queixo de Natacha e obrigou-a a virar-se para ela. Maria Dmitrivena e Sónia ficaram aterradas com a expressão que lhe viram. Seus olhos estavam brilhantes e sem uma lágrima, os seus lábios cerrados, as suas faces cavadas. — Deixem-me... Quero lá saber... Vou morrer... — murmurou, libertando-se, com um sacão, de Maria Dmitrievna e retomando a sua primeira postura. — Natália!... — disse Maria Dmitrievna — Só quero o teu bem. Deixa-te estar deitada, deixa-te estar assim, não te tocarei, mas ouve... Não preciso de te dizer da culpabilidade que te cabe. Tu bem sabes. Mas o teu pai chega amanhã. Que lhe hei-de dizer? Hem! De novo estremeceu, abalada pelos soluços. — Há-de sabê-lo, sim, e teu irmão, e teu noivo também! — Já não tenho noivo, acabei — gritou Natacha bruscamente. — Tanto faz — prosseguiu Maria Dmitrievna.— Seja como for, hão-de saber tudo. Julgas que deixarão as coisas assim? E o teu pai, conheço-o muito bem... E se o desafiar para um duelo, vai ser bonito, hem? — Oh, deixe-me. Porque estragou tudo? Porquê? Quem lhe pediu? — gritou Natacha, soerguendo-se e olhando para Maria Dmitrievna com uns olhos irados. — E tu, que querias tu fazer? — exclamou a pobre senhora, exaltando-se. — Tínhamos-te fechada, porventura? Quem o impedia de vir a nossa casa? Porque havia ele de te raptar como se fosses uma boémia? E se te tivesse raptado, julgas que o não encontrariam? Ou o teu pai, ou o teu irmão, ou o teu noivo... Um desavergonhado, um valdevinos, é o que ele é! — Vale mais que todos vós! — gritou Natacha, empertigando-se. — Se me não tivessem impedido... Oh, meu Deus! Porquê? Porquê? Sónia, porquê? Deixem-me! E rompeu a chorar com tanto desespero como só choram aqueles que se sentem a causa das suas próprias infelicidades. Maria Dmitrievna quis ainda dizer qualquer coisa, mas Natacha pôs-se a gritar: — Vão-se embora! Vão-se embora! Todos me odeiam, todos me detestam! — E voltou a deixar-se cair sobre o divã. Maria Dmitrievna ainda esteve algum tempo a exortá-la, dizendo-lhe ser preciso ocultar tudo do conde e que ninguém saberia coisa alguma desde que Natacha prometesse esquecer e evitasse que qualquer coisa chegasse aos ouvidos fosse de quem fosse. Natacha não respondeu. Deixara de chorar, mas agora arrepios de febre a faziam estremecer. Maria Dmitrievna pôs-lhe uma almofadadebaixo da cabeça, cobriu-a com dois cobertores e trouxe-lhe uma chávena de tília. Natacha, porém, continuava calada. — Bom, deixemo-la dormir! — disse Maria Dmitrievna, retirando-se, persuadida de que Natacha adormecera. Natacha não dormia porém, e os seus olhos, muito abertos, no rosto pálido, olhavam fixamente diante de si. Toda a noite esteve sem dormir, sem chorar, sem dizer nada a Sónia, que várias vezes se levantou para vigiá-la. No dia seguinte, à hora do almoço, como prometera, chegou o conde Ilia Andreitch, de regresso das suas propriedades nas imediações de Moscovo. Vinha muito contente. Tudo ficara resolvido com o comprador e já nada o retinha em Moscovo e longe da condessa, de quem se sentia muito saudoso. Maria Dmitrievna foi ao seu encontro e contou-lhe que a filha estivera muito doente na véspera, que mandara chamar o médico, mas que estava agora muito melhor. Natacha nessa manhã ficou no quarto. De lábios fechados e a tremer de frio, os olhos secos e fixos, permaneceu à janela, observando ansiosamente o vaivém dos transeuntes, e voltando-se, de súbito, sempre que alguém entrava no seu quarto. Aguardava, evidentemente, notícias de Anatole, esperava que ele se apresentasse pessoalmente ou lhe escrevesse. Quando o conde entrou. Natacha estremeceu ao ouvir passos de homem, mas assim que o reconheceu a expressão tomou-se--lhe fria e teve mesmo um movimento de irritação. Nem sequer se levantou. — Que tens, meu anjo, estás doente? — perguntou-lhe o pai. Natacha ficou calada. — Sim, estou doente — acabou por dizer. Inquieto, o conde quis saber porque estava ela tão abatida e se acontecera alguma coisa entre ela e o noivo. Natacha garantira-lhe que nada acontecera, pedindo-lhe que se não atormentasse, e Maria Dmitrievna confirmou junto do conde as palavras de Natacha. Apesar de tudo, o conde, diante da doença simulada de Natacha e da expressão embaraçada de Sónia e Maria Dmitrievna, percebeu que alguma coisa de grave ocorrera durante a sua ausência. A verdade, porém, é que a, ideia de que poderia ter acontecido alguma coisa capaz de afectar a dignidade da sua filha preferida o assustava de tal modo, e tão amigo era da sua tranquilidade, que tratou de não fazer perguntas, persuadindo-se de que nada de anormal tinha ocorrido e limitando-se a lastimar que a doença de Natacha viesseretardar o seu regresso à aldeia. [XIX] Pedro, desde que a mulher chegara a Moscovo, passava a vida a arranjar pretextos para sair de casa, a fim de não se ver obrigado a encontrar-se com ela. A impressão que lhe fizera Natacha, aquando da sua viagem, ainda mais concorrera para acelerar a realização dos seus propósitos. Dirigiu-se a Tvier, a casa da viúva de Osip Alexeievitch, que há muito lhe prometera confiar-lhe os papéis de seu defunto marido. De regresso a Moscovo, entregaram-lhe uma carta de Maria Dmitrievna, que lhe pedia viesse a sua casa por causa de um assunto muito importante que dizia respeito a André Bolkonski e à noiva. Pedro procurava não ver Natacha. Para si mesmo dizia que ela lhe inspirava um sentimento mais vivo do que aquele que seria razoável na sua qualidade de homem casado e amigo do noivo. No entanto, o destino parecia comprazer-se em reuni-los a cada passo. «Que terá acontecido? E que tenho eu a ver com isso?», cogitava ele enquanto se preparava para dirigir-se a casa de Maria Dmitrievna. «O que é preciso é que o André venha quanto mais depressa melhor e que eles tratem de se casar», pensou, já a caminho. Ao passar pela Avenida de Tvier, alguém chamou-o. — Pedro, já chegaste há muito tempo? — gritou-lhe uma voz conhecida. Levantou a cabeça. Num trenó tirado por dois cavalos cinzentos que levantavam nuvens de neve passaram junto dele Anatole e o seu inseparável camarada. Makarine. Anatole aprumava-se no assento, na clássica postura dos militares elegantes, o mento enterrado na gola de castor, a cabeça ligeiramente inclinada. Tinha a pele rosada e fresca, e o chapéu, com uma pluma branca, posto ao lado, deixava ver os cabelos frisados e cheios de brilhantina, salpicados de uma poeira de neve muito fina. «Ora ali está um homem com juízo!», exclamou Pedro. «Não tem olhos para ver mais longe que o prazer do momento. Nada o preocupa e por isso passa a vida alegre, contente e tranquilo!» E olhou-o com inveja. «Que não daria eu para meparecer com ele?» No vestíbulo de Madame Akrosiuova, o criado, enquanto o ajudava a despir a peliça, disse-lhe que Maria Dmitrievna lhe pedia que subisse ao seu quarto. Ao abrir a porta do salão viu Natacha sentada à, janela, de rosto afilado e pálido, com uma expressão dura e má. Olhou para ele, franzindo as sobrancelhas, e desapareceu, afectando uma reserva fria. — Que aconteceu? — perguntou Pedro, ao entrar no quarto de Maria Dmitrievna. — Lindas coisas! — exclamou ela. — Há cinquenta e oito anos que ando cá por este mundo e nunca tive ocasião de presenciar uma vergonha assim. E depois de ter exigido de Pedro a sua palavra de honra de que não abriria a boca acerca do que ela lhe diria, contou-lhe que Natacha desfizera o casamento sem nada dizer à família e que a culpa era de Anatole Kuraguine, que a mulher de Pedro lhe apresentara e com quem Natacha pensava fugir, na ausência do pai, para com ele casar secretamente. Pedro, de ombros encolhidos e a boca aberta, ouvia toda aquela história sem poder acreditar nos seus ouvidos. Pois quê, a noiva bem-amada do príncipe André, a encantadora Natacha Rostov, preferia a Bolkonski o imbecil do Anatole, homem casado aliás (Pedro estava a par do seu casamento secreto), e a tal ponto gostava dele que consentia que a raptasse? Eis o que Pedro não podia compreender nem admitir. Não lhe era possível consentir que no seu espírito se associasse a simpática e encantadora figura de Natacha, que ele conhecia desde pequena, a tanta baixeza, a tanta estupidez, a tanta crueldade. Lembrou-se da sua própria mulher. «São todas iguais», dizia de si para consigo, pensando que, no fim de contas, nem só a ele cabia o triste privilégio de estar ligado a uma mulher desprezível. E no entanto vieram-lhe as lágrimas aos olhos ao lembrar-se do príncipe André, sofrendo pelo seu ferido orgulho. E quanto mais lastimava o amigo maior era o seu desprezo pela Natacha que havia momentos passara por ele afectando um ar de fria dignidade. Mal sabia ele que a alma de Natacha transbordava então de desespero, de vergonha, de humilhação, não sendo culpada de trazer afivelada aquela máscara fria e severa. — Quê? Casar? — balbuciou Pedro. — Ele não pode casar-se, já é casado. — Era o que faltava — suspirou Maria Dmitrievna. — É fresco, o menino! Quecanalha! E aí está ela à espera, há dois dias que espera. Que ao menos deixe de esperar. É preciso que saiba. Depois de tomar conhecimento dos pormenores do casamento de Anatole. Maria Dmitrievna aliviou a sua cólera, soltando violentas injúrias, e explicou a Pedro porque mandara chamá-lo. Receava que o conde ou mesmo Bolkonski, capaz de chegar de um momento para o outro, viessem a saber do caso, que ela, pela sua parte, estava disposta a esconder-lhes, e desafiassem Kuraguine para um duelo. Eis porque lhe rogava que pedisse em seu nome ao cunhado que saísse de Moscovo e que nunca mais ali aparecesse. Pedro prometeu-lhe que o faria, e só então se apercebeu do perigo que ameaçava ao mesmo tempo o velho conde. Nicolau e o príncipe André. Expôs-lhe, pois, em poucas palavras e com clareza o que queria dele e acompanhou-o ao salão. — Cuidado, o conde de nada sabe. Finja nada saber — pediu-lhe ela. — Por mim, vou dizer a Natacha que escusa de esperar. E fica para jantar, se te apetece — acrescentou na sua grossa voz. Pedro dirigiu-se ao velho conde, que parecia profundamente perturbado. Nessa mesma manhã Natacha dissera-lhe que desfizera o noivado com Bolkonski. — Que desgraça, que desgraça, meu caro! — exclamou ele —, quando lhes falta a mãe. Não calcula a pena que tenho de ter feito esta viagem. Vou ser franco consigo. Pois não sabe? Despediu o noivo sem dizer coisa alguma a ninguém. Realmente nunca me entusiasmou muito este casamento. Sim, bem sei, é um homem às direitas, mas, pois não é verdade?, uma pessoa não pode ser feliz quando age contra a vontade de seu pai, e a Natacha não faltam pretendentes. Mas o que é certo é que isto já durava há muito, e dar semelhante passo sem consultar nem o pai nem a mãe!... E para aí está doente, só Deus sabe com quê! Ah, conde, tudo corre mal, tudo corre mal quando falta a mãe a uma filha... Pedro, ao ver o conde tão comovido, procurou mudar de assunto, mas ele voltava sempre à sua preocupação. — Natacha não passa bem de saúde. Está nos seus aposentos e queria falar consigo. Maria Dmitrievna está ao pé dela e também lhe queria falar. É verdade, como é amigo de Bolkonski, naturalmente quererá mandar-lhe algum recado — acrescentou o conde. — Meu Deus, meu Deus, e ia tudo tão bem! E, levando as mãos aos escassos cabelos que tinha ainda na cabeça, saiu do salão.Maria Dmitrievna dissera a Natacha que Anatole já era casado. Esta não quisera acreditar em tal e pedira a Pedro que viesse junto dela confirmar o facto. Eis o que Sónia explicou a Pedro enquanto o acompanhava ao quarto de Natacha. Natacha, pálida e de severa expressão, ao lado de Maria Dmitrievna, assim que o viu surgir no limiar da porta pousou nele uns olhos interrogativos em que se sentia brilhar a febre. Não teve um sorriso nem um movimento de cabeça. Limitou- se a fita-lo obstinadamente e no seu olhar apenas se lia uma pergunta: estava diante de um amigo ou de um inimigo, como todos os outros, no que dizia respeito a Anatole? Era evidente que Pedro, em si próprio, naquele momento, não existia para ela. — Pedro sabe tudo — disse Maria Dmitrievna, apontando para ele. — Ele que diga se faltei à verdade. Natacha, tal um animal perseguido, e já ferido, que vê aproximar cães e caçadores, olhava com uns olhos vagos e errantes. — Natália Ilinitchna — principiou Pedro, baixando os, olhos, tomado de uma profunda piedade por ela e de um invencível desgosto pelo que se via obrigado a dizer. — Verdade ou mentira, isso deve-lhe ser indiferente, porque... — Então não é verdade que está casado? — Sim, é verdade. — Está casado, e há muito tempo? — insistiu ela. — Palavra de honra? Pedro deu-lhe a sua palavra de honra. — Ainda cá está? — perguntou Natacha vivamente. — Está. Acabo de o encontrar. Natacha não teve forças para dizer mais e fez com a mão um gesto a suplicar que a deixassem. [XX] Pedro não ficou para jantar; depois disto saiu do aposento e abalou. Andou por toda a cidade à procura de Anatole Kuraguine. Só pensar nele lhe fazia afluir o sangue ao coração e o deixava sem fôlego. Não estava nas montanhas, nem com os ciganos, nem em casa de Coraneno. Dirigiu-se ao clube. Ali tudo na mesma: ossócios que vinham jantar formavam vários grupos. Cumprimentaram Pedro e puseram-se a falar dos casos do dia. Um criado, familiarizado com os hábitos de Bezukov, depois de lhe ter feito uma vénia, disse-lhe que a sua mesa estava reservada na salinha de jantar, que o príncipe Fulano se encontrava na biblioteca e que Sicrano ainda não chegara. Um dos seus conhecidos, entre outras coisas triviais, perguntou-lhe se ouvira dizer que Mademoiselle Rostov fora raptada por Kuraguine, caso de que muito se falava em Moscovo, e se era verdade. Pedro replicou-lhe, rindo, ser um absurdo, pois acabava de sair de casa dos Rostov. A toda a gente perguntou por Anatole. Alguém disse-lhe que ele ainda não chegara, e houve também quem o informasse de que viria jantar com toda a certeza. Pedro observava com um estranho sentimento aquele agregado de pessoas tranquilas e indiferentes completamente alheias ao que se estava a passar na sua alma. Andou a vaguear pelos salões, aguardando que toda a gente chegasse, e, vendo que Anatole não aparecia, decidiu não jantar e voltar para casa. Anatole naquele dia jantara em casa de Dolokov e conferenciara com ele acerca da maneira de reparar o que falhara. Parecia-lhe indispensável tornar a ver Mademoiselle Rostov. A noite dirigiu-se a casa da irmã para lhe falar na maneira de conseguir um encontro com Natacha. Quando Pedro, depois de ter percorrido debalde toda a cidade, voltou para casa, soube pelo criado que o príncipe Anatole Vassilievitch se encontrava com a condessa. O salão de Helena estava cheio. Sem cumprimentar a mulher, a quem não via desde que voltara a Moscovo — mais do que nunca a odiava naquele momento —, Pedro penetrou no salão da condessa, viu Anatole e foi direito a ele. — Ah. Pedro!... — exclamou a condessa, aproximando-se. Não imaginas o estado em que está Anatole... Calou-se ao ver na atitude do marido, na sua cabeça baixa, nos seus olhos brilhantes, no seu passo enérgico, aqueles terríveis sinais de ira e violência que ela tão bem conhecia e cujos efeitos experimentara aquando do duelo com Dolokov. — Onde a senhora estiver só há depravação e maldade — pronunciou Pedro. — Anatole, venha cá, preciso de lhe falar — acrescentou em francês. Anatole olhou a irmã e levantou-se docilmente, disposto a seguir Pedro. Este, pegando-lhe por um braço, arrastou-o consigo para fora do salão.— Como se atreve, na minha sala... — ia a dizer Helena, em voz baixa, mas Pedro saiu da sala sem lhe responder. Anatole seguiu o cunhado com a sua arrogância habitual, embora houvesse inquietação nos traços do seu rosto. Assim que entrou no gabinete. Pedro fechou a porta e dirigiu-se a Anatole sem olhar para ele. — É verdade que prometeu casar com a condessa Rostov e que a quis raptar? — Mon cher — replicou Anatole em francês (foi em francês, de resto, que se travou todo o diálogo) — não me julgo obrigado a responder a perguntas formuladas nesse tom. O rosto de Pedro, pálido até então, surgiu descomposto pelo furor. Agarrando Anatole, com as suas grossas mãos, pela gola do uniforme, pôs-se a sacudi-lo de um lado para o outro de tal maneira que um indizível terror se pintou na cara do rapaz. — Se eu lhe disse que precisava de falar consigo... — repetia Pedro. — Que é isto? Está doido! — exclamou Anatole, apalpando a gola, em que o botão arrancado pendia juntamente com um pedaço de pano. — O senhor é um canalha, um bandido, não sei porque lhe não rebento a cabeça com isto — exclamou Pedro, exprimindo-se um pouco artificiosamente, pois falava em francês. Pegara num bojudo pesa-papéis, erguera-o num gesto de ameaça e voltara a depô-lo sobre a mesa. — Prometeu casar com ela? — Eu, eu, acho que não. De resto, não lhe prometi coisa alguma, visto que... Pedro cortou-lhe a palavra: — Tem cartas dela? Tem cartas dela? — repetiu, aproximando-se dele. Anatole fitou-o, e imediatamente, metendo a mão ao bolso, tirou a carteira. Pedro pegou na carta que Anatole lhe estendia e, afastando a mesa, que o estorvava, deixou-se cair no divã. — Não serei violento, por isso não tem nada a recear — disse, em resposta a um gesto receoso de Anatole. — Primeiro as cartas... — continuou como se repetisse de cor uma lição. — Depois... — acrescentou, após uma pausa, em seguida à qual se ergueu e se pôs a andar de um lado para o outro. — Em segundo lugar amanhã vai sair de Moscovo.— Mas como hei-de poder... — Em terceiro lugar — continuou Pedro sem lhe dar ouvidos —, a ninguém deve dizer uma palavra acerca do que se passou entre o senhor e a condessa. Bem sei que não o posso proibir, mas se ainda lhe resta um vislumbre de consciência... Pedro continuou, em silêncio, a sua caminhada. Anatole estava sentado à mesa, de sobrancelhas carregadas e mordendo os lábios. — É impossível que o senhor não compreenda que independentemente dos seus prazeres pessoais há a felicidade e a tranquilidade das outras pessoas; é impossível que não compreenda que deita a perder uma vida inteira apenas porque lhe apetece divertir-se. Se isso lhe agrada, divirta-se com mulheres no género da minha, tem direito a isso: essas sabem perfeitamente o que o senhor pretende delas. Estão armadas contra o senhor pela mesma experiência da devassidão. Mas prometer casamento a uma donzela.., enganá-la.., raptá-la... Será possível que não compreenda que é vilania tão grande como bater num velho ou numa criança?! Pedro calou-se e fitou Anatole, já não com ira, mas interrogativamente. — Não sei — disse Anatole, ganhando audácia à medida que Pedro dominava a sua cólera. — Não sei nem quero saber — prosseguiu, olhando-o e com um nervoso movimento do queixo —, mas o senhor disse-me coisas.., o senhor pronunciou a palavra covarde e ainda outras, palavras que eu, como um homem de honra, a ninguém posso admitir. Pedro olhou-o com espanto, sem perceber onde ele queria chegar. — Embora isto se tenha passado só entre nós — prosseguiu eu não posso... — Quê? Está a exigir de mim uma reparação? — murmurou Pedro, em tom sarcástico. — Pelo menos podia retirar as suas expressões! Se quer que cumpra as suas condições, hem? — Retiro-as, retiro-as — disse Pedro — e peço-lhe desculpa — acrescentou, lançando um olhar ao botão arrancado de Anatole. — E se tiver necessidade de dinheiro para a viagem... Anatole sorriu. Este sorriso tímido e covarde, que Pedro conhecia por tê-lo visto na mulher, exasperou-o. — Oh, raça vil e sem coração! — exclamou, saindo do gabinete.No dia seguinte Anatole partia para Petersburgo. [XXI] Pedro dirigiu-se a casa de Maria Dmitrievna para lhe comunicar que o seu desejo fora satisfeito, que Kuraguine saíra de Moscovo. Toda a gente lá em casa estava consternada e abatida. Natacha adoecera gravemente e Maria Dmitrievna contou em segredo a Pedro que naquela noite, quando ela soubera que Anatole era casado, tomara arsénico, que conseguira arranjar às escondidas. Depois de ter ingerido uma pequena dose, tão assustada ficou que foi acordar Sónia, a quem revelou o que fizera. Como haviam empregado a tempo os meios mais enérgicos, estava livre de perigo, mas tão fraca que era impossível pensar em levá-la para a aldeia e que tinham mandado vir a condessa. Pedro foi encontrar o conde compungido e Sónia desfeita em lágrimas, mas não pôde ver Natacha. Nesse dia jantou no clube. Por toda a parte se falava na tentativa de rapto de Mademoiselle Rostov, empenhando-se ele opiniosamente em refutar essa atoarda, garantindo a toda a gente que nada mais houvera além de um pedido de casamento da parte de seu cunhado, pedido que fora mal sucedido. Pedro pensava ser obrigação sua esconder a verdade, salvando, assim, a reputação de Natacha. Esperava aterrorizado o regresso do príncipe André e todos os dias ia saber dele a casa do velho príncipe. O príncipe Nicolau Andreievitch fora informado por Mademoiselle Bourienne do que se dizia na cidade e lera a carta que Natacha escrevera à princesa Maria considerando o noivo desobrigado da palavra dada. Parecia mais alegre do que habitualmente e aguardava, impaciente, a chegada do filho. Alguns dias depois da partida de Anatole. Pedro recebeu um bilhete do príncipe André comunicando-lhe que regressara a Moscovo e pedindo-lhe que passasse por sua casa. Assim que chegara fora o príncipe André informado pelo pai do teor da carta de Natacha à irmã, carta esta furtada à princesa Maria por Mademoiselle Bourienne e por ela entregue ao príncipe. Além disso o pai tivera o cuidado de lhe contar, consideravelmente ampliado, o que se dizia sobre o rapto de Natacha.Pedro foi a casa do príncipe André na manhã seguinte ao dia da sua chegada. Julgando encontrá-lo num estado semelhante ao de Natacha, grande foi o seu espanto ao ouvir, no momento em que entrava no salão, a bem timbrada voz de André, que no seu gabinete contava, animado, uma intriga recente de Petersburgo. O velho príncipe e uma pessoa desconhecida interrompiam-no de quando em quando. Ao encontro de Pedro veio a princesa Maria. Num suspiro, apontou-lhe com os olhos a porta do quarto do irmão, procurando deste modo mostrar quanto sentia o desgosto de André, mas Pedro viu claramente na sua expressão que ela estava satisfeita com o que acontecera e com a maneira como ele recebera a notícia da traição da noiva. — Disse que já contava com isso — observou ela. — Compreendo que o orgulho lhe não deixe exprimir o que sente, mas a verdade é que recebeu a notícia melhor do que eu esperava. Evidentemente que assim tinha de ser... — Será possível que tudo tenha acabado? — perguntou Pedro. A princesa Maria olhou-o surpreendida. Nem sequer compreendia que se pusesse o problema. Pedro penetrou no gabinete. O príncipe André, à paisana, muito mudado, e naturalmente com melhor aspecto, mas com uma nova ruga entre as sobrancelhas, estava de pé diante do pai e do príncipe Mechtcherski e discutia acaloradamente, gesticulando com energia. Falava-se de Speianski, da notícia do seu repentino exílio e da sua pretensa traição, que acabava de se espalhar em Moscovo. — Agora, todos os que há um mês se entusiasmavam com ele estão prontos a acusá-lo e a condená-lo — dizia o príncipe André —, gente incapaz de compreender o alcance das suas medidas. É muito fácil julgar um homem quando cai em desgraça e atribuir-lhe então todos os erros alheios. Pois bem, na minha opinião, entendo que se alguma coisa de bom se fez no actual reinado a ele e só a ele se deve. Calou-se ao ver entrar Pedro. Um estremecimento nervoso lhe perpassou pelo rosto, denotando de súbito uma violenta irritação. — A posteridade se encarregará de lhe fazer justiça — concluiu. E depois, voltando-se para Pedro: — Ah!, és tu? Continuas a engordar — disse com vivacidade, enquanto se lhe cavava mais funda a nova ruga da testa. — Sim, isto vai melhor! — replicou ele, sorrindo, em resposta a uma pergunta de Pedro acerca da sua saúde.Este sorriso queria dizer, e assim o compreendeu Pedro: «Sim, bem sei, mas ninguém precisa de saber se estou bom de saúde.» Depois de ter trocado algumas palavras com Pedro sobre o medonho estado das estradas entre a fronteira da Polónia e Moscovo, de lhe ter falado de umas pessoas que encontrara na Suíça, e que eram das relações do amigo, e de ter aludido a Monsieur Dessalles, que consigo trouxera do estrangeiro para dirigir a educação do filho. André enfronhou-se de novo com entusiasmo na discussão sobre Speranski, que prosseguia entre os dois velhos. — Se houvesse traição e se existissem provas da sua conivência secreta com Napoleão, já a esta hora seriam conhecidas — disse ele com uma apaixonada vivacidade — Pessoalmente não gosto de Speranski, mas sou pela equidade. Pedro via que o amigo sentia a necessidade — necessidade que tão bem lhe conhecia — de entusiasmar-se e discutir qualquer assunto estranho para assim mais facilmente esquecer pensamentos íntimos demasiado penosos. Quando o príncipe Mechtcherski se retirou. André travou do braço de Pedro e conduziu-o ao quarto expressamente preparado para si. Estava ali uma cama armada e no chão havia malas e baús abertos. O príncipe André aproximou-se de um deles e pegou numa caixa. Dentro estava um pacote embrulhado em papel. Tudo isto ele fez muito depressa e sem dizer palavra. Depois soergueu-se, tossicando. A expressão era taciturna e tinha os lábios cerrados. — Desculpa se te incomodo... Pedro compreendeu que ele lhe queria falar de Natacha e no seu cheio rosto pintaram-se-lhe compaixão e simpatia. A irritação de André foi maior ainda. Prosseguiu, num tom cortante e resoluto, mas que soava a falso: — A condessa Rostov repudiou-me e ouvi falar de um pedido de casamento do teu cunhado ou de qualquer coisa no mesmo género. É verdade? — É verdade e não é — principiou Pedro, mas André interrompeu-o: — Aqui tens as cartas dela e o seu retrato — articulou. Pegou no maço de papéis e entregou-o a Pedro. — Entrega isto à condessa.., quando a vires. — Está muito doente — disse Pedro. — Ah! Ainda está em Moscovo? E o príncipe Kuraguine? — perguntou, precipitadamente.— Abalou há dias. Ela esteve à morte... — Tenho muita pena — replicou, sorrindo com uma expressão fria, má, desagradável, muito parecida com a do pai. — Pelo que veio, o Sr. Kuraguine não se dignou conceder a sua mão à condessa Rostov? — disse ele. Por várias vezes pareceu fungar. — Não podia casar com ela; já é casado — observou Pedro. O príncipe André pôs-se a rir, exactamente como o pai. — E onde está ele neste momento, o teu cunhado, pode saber-se? — Foi para Peters... Isto é, não tenho a certeza. — Sim, pouco importa — comentou André. — Peço que digas, da minha parte, à condessa Rostov que ela sempre foi e continua a ser completamente livre e que lhe desejo muitas felicidades. Pedro pegou no maço das cartas. O príncipe André, como se a si próprio perguntasse se não estaria a esquecer-se ainda de qualquer coisa ou como se aguardasse que Pedro dissesse fosse o que fosse, interrogou-o com os olhos. — Escute; lembra-se da nossa discussão em Petersburgo? — murmurou Pedro. — Lembra-se... — Lembro-me — apressou-se André a responder — Dizia-te que era preciso perdoar à mulher que cai, mas eu não disse que lhe podia perdoar. Eu não posso. — Podem comparar-se as duas situações? — observou Pedro. André interrompeu-o. Em tom sarcástico exclamou: — Sim, pedir de novo a sua mão, ser magnânimo e outras coisas do mesmo teor?... Sim, é muito nobre, mas não me sinto capaz de ficar reduzido a apanhar- lhe as migalhas. Se queres que eu continue a ser teu amigo nunca mais me fales no caso. Bom, então adeus! Está combinado, tu entregas-lhe... Pedro foi dali aos aposentos do velho príncipe e da princesa Maria. O velho parecia mais animado do que de costume. Maria continuava a mesma, mas Pedro via claramente que na compaixão que ela mostrava pela infelicidade de André se traía a alegria que lhe causava o desmanchar daquele casamento. Observando-os, pôde compreender o desdém e a inimizade que ambos nutriam pelos Rostov, e percebeu que não seria possível sequer pronunciar na sua presença o nome daquela que fora capaz de trocar o príncipe André por um homem qualquer.A mesa falou-se da guerra, que parecia iminente. O príncipe André não parava de falar e de discutir, ora com o pai ora com Dessalles, o preceptor suíço, e mais do que nunca dir-se-ia dominado por uma excitação cuja causa Pedro conhecia muitíssimo bem. [XXII] Nessa mesma noite. Pedro foi ter com os Rostov a fim de dar cumprimento à sua missão. Natacha estava de cama, o conde fora para o clube e Pedro, depois de entregar as cartas a Sónia, procurou Maria Dmitrievna, ansiosa por saber como o príncipe André acolhera o caso. Passados uns dez minutos. Sónia apareceu também nos aposentos de Maria Dmitrievna. — Natacha quer ver sem falta o conde Pedro Kirillovitch — disse ela. — Como assim? Há-de ir ao quarto dela, onde está tudo desarrumado? — disse Maria Dmitrievna. — Arranjou-se e espera por ele no salão — voltou Sónia. Maria Dmitrievna limitou-se a encolher os ombros. — Quando chegará a condessa? Já não posso mais. Tem cuidado não lhe digas tudo — recomendou a Pedro. — Não há coragem para a censurar: é tão infeliz, tão infeliz! Natacha, magra, pálida e com uma expressão severa, mas sem de modo nenhum denunciar a mais pequena humildade, como Pedro esperava, recebeu-o de pé no meio do salão. Ao vê-lo aparecer no limiar da porta teve um movimento de hesitação, como que indecisa, sem saber se devia aproximar-se ou aguardar que ele viesse para ela. Pedro apressou o passo. Julgou que ela lhe ia estender a mão como de costume, mas, ao aproximar-se viu-a imóvel, a respiração opressa e os braços caídos, numa atitude exactamente igual à que costumava tomar outrora quando cantava, embora fosse muito diferente a sua expressão. — Pedro Kirillovitch — principiou ela numa voz precipitada —, o príncipe Bolkonski era seu amigo; é seu amigo — rectificou. Dir-se-ia que para ela nada havia do que existira e que tudo era diferente agora. — Disse-me então que medirigisse a si... Pedro fitava calado, a respiração opressa. Até àquele momento não fizera outra coisa senão censurá-la no fundo do seu coração, esforçando-se por desprezá- la. Naquele momento, porém, tamanha era a piedade que ela lhe inspirava que não lhe passava pela cabeça dirigir-lhe qualquer censura. — Ele está cá... Diga-lhe.., que me per.., que me perdoe. Natacha calou-se, o peito a arfar, mas sem uma lágrima. — Sim.., dir-lhe-ei — replicou Pedro —, mas... Não sabia que dizer. Natacha, assustada com a ideia que poderia ter acorrido a Pedro, disse-lhe vivamente: — Não, sei muito bem que tudo acabou. Nunca mais poderá recompor-se. A única coisa que me atormenta é o mal que lhe causei. Mas diga-lhe que lhe peço me perdoe, me perdoe, me perdoe... Um estremecimento nervoso lhe percorreu todo o corpo. Sentou-se numa cadeira. Um sentimento de piedade como nunca experimentara até então inundou a alma de Pedro. — Dir-lhe-ei, dir-lhe-ei tudo.., mas desejaria saber uma coisa... «Saber o quê?», perguntavam os olhos de Natacha. — Desejaria saber se amou...— Pedro perguntou-se a si mesmo se devia pronunciar o nome de Anatole, e este pensamento fê-lo corar... — se amou esse malvado? — Não lhe chame malvado — disse Natacha. — Não sei, já nada sei... Rompeu a chorar. Um sentimento de piedade, de ternura e de amor mais veemente ainda inundou a alma de Pedro. Sentia as lágrimas a escorrerem pelos vidros das lunetas e desejava que ela se não apercebesse disso. — Não falemos mais nisso, minha amiga — disse ele. Esta voz doce, terna, em que vibrava uma nota profunda, surpreendeu Natacha. — Deixemos isso minha amiga, dir-lhe-ei tudo, mas só uma coisa lhe peço; é que de hoje para o futuro me considere seu amigo. Se precisar de auxílio, de conselho, se algum dia sentir a necessidade de abrir o seu coração a alguém, agora não, quando puder olhar com clareza para dentro de si mesma, lembre-se de mim.— Pegou-lhe na mão e beijou-a. — Sentir-me-ei muito feliz, se for capaz... Pedro perturbou-se. — Não me fale assim, eu não o mereço! — exclamou Natacha, fazendo menção de retirar-se. Pedro, contudo, reteve-a. Sabia haver ainda qualquer coisa para lhe dizer. Pronunciadas que foram porém as suas palavras, ele próprio se surpreendeu. — Não, não, não diga isso: tem a vida toda diante de si murmurou ele. — Eu? Não, para mim tudo acabou — replicou ela num sentimento em que havia vergonha e humildade. — Tudo acabou! — repetiu ele.— Se eu não fosse quem sou, se fosse o mais belo e o mais inteligente dos homens sobre a Terra, e se fosse livre, pedir-lhe-ia, neste mesmo momento, de joelhos, a sua mão e o seu amor. Natacha, pela primeira vez de há muito tempo para cá, foi acometida de um ataque de choro, choro de reconhecimento e de emoção, abandonando a sala com um olhar de agradecimento. Pedro saiu logo atrás dela, refugiando-se, por assim dizer, no vestíbulo, enquanto sufocava as lágrimas de felicidade que lhe haviam subido aos olhos. E, enfiando a peliça ao acaso, subiu para o trenó que o aguardava. — Aonde vamos agora? — perguntou o cocheiro. «Aonde vamos?», repetiu Pedro de si para consigo. «Aonde poderemos ir agora? Ao clube ou fazer visitas?» Tudo se lhe afigurava tão miserável, tão pobre, em comparação com os sentimentos de amor e doçura que o tinham invadido com aquele olhar comovido e cheio de reconhecimento, velado de lágrimas, que Natacha pousara nele. — Para casa — gritou Pedro, que, apesar de dez graus abaixo de zero, abrira a peliça de urso e deixava dilatar de felicidade o seu largo peito. Nevava, mas o tempo estava muito claro. Ao alto das ruas sujas e quase em trevas, por cima dos telhados negros, alastrava um céu escuro salpicado de estrelas. Só a contemplação dessas altas esferas permitia a Pedro evadir-se do aflitivo contraste entre a baixeza do que é humano e os nobres sentimentos que lhe enchiam a alma. Ao chegar à Praça de Arbate, viu, por cima da cabeça, uma vasta toalha de céu estrelado. Quase no centro deste horizonte, ao alto da Avenida Pretchistenski, cercado de estrelas por todos os lados, mas avultando no meio de todas elas, muito mais próximo, com a sua branca luminosidade e a sua longa cabeleira arqueada na ponta, surgia o brilhante e enorme cometa de 1812,esse mesmo cometa, dizia-se, presságio de grandes desgraças e do fim do mundo. A verdade, porém, é que esta luminosa estrela, com a sua longa cabeleira cintilante, não despertou o mais pequeno terror em Pedro. Muito pelo contrário: olhava-a com os olhos cheios de lágrimas. Dir-se-ia que depois de haver percorrido, a uma velocidade incalculável, espaços incomensuráveis, seguindo uma curva parabólica, se imobilizara, de súbito, como uma flecha que se crava na terra, no ponto que escolhera naquele negro céu e ali estava plantada, a cabeleira hirsuta, espelhando as cintilações da sua branca claridade no meio de um sem-número de outras cintilantes estrelas. Pedro sentia que aquele astro vinha acordar na sua alma, toda aberta, uma vida nova, comovida e reconfortada. LIVRO TERCEIRO PRIMEIRA PARTE [I] [II] [III] [IV] [V] [VI] [VII] [VIII] [IX] [X] [XI] [XII] [XIII] [XIV] [XV] [XVI] [XVII] [XVIII] [XIX] [XX] [XXI] [XXII] [XXIII] [I] Em fins de 1811 principiaram os armamentos intensivos e a concentração das forças da Europa ocidental e, em 1812, estas forças, ou seja, milhões de homens, no número das quais se contava transportes e abastecimentos, puseram-se em marcha do ocidente para o oriente, em direcção às fronteiras da Rússia, para onde se encaminhavam, igualmente, a partir de 1811, os exércitos russos. No dia 12 de Junho, os exércitos da Europa ocidental atravessaram a fronteira e a guerra principiou, isto é, produziu-se então um acontecimento em desacordo completo com a razão e a própria natureza do homem. Estes milhões de homens praticaram, em relação uns aos outros, tão grande número de abominações, de fraudes, de traições, de roubos, de falsificações de moeda, de pilhagens, de incêndios e de morticínios como não há exemplo nos arquivos dos tribunais do mundo inteiro, funcionando há séculos, e sem que, no entanto, durante todo este período, aqueles que cometeram tais crimes fossem considerados, realmente, criminosos. Que produziu tão monstruoso acontecimento? Quais as suas causas? Os historiadores, com uma segurança ingénua, foram buscá-las ao insulto de que foi vítima o duque de Oldemburgo, não observância do bloqueio continental, à ambição de Napoleão, à resistência de Alexandre, aos erros da diplomacia, etc. Por conseguinte, teria bastado que Metternich, Rumiantsov ou Talleyrand, entre uma recepção na corte e uma reunião política, conviessem em redigir com arte uma nota bem cozinhada ou que Napoleão pegasse na pena para escrever a Alexandre: «Senhor meu irmão, consinto em devolver o ducado ao duque de Oldemburgo», para que não tivesse havido guerra. É natural que fosse este o ponto de vista dos contemporâneos. Concebe-se que Napoleão tivesse atribuído a guerra às intrigas da Inglaterra, como declarou na ilha de Santa Helena. Admite-se que os membros do Parlamento inglês pensassem que deveriam ir buscar-se-lhe as causas à ambição de Napoleão; que o duque de Oldemburgo as tivesse visto na violência de que fora vítima; o comércio nobloqueio que arruinava a Europa; que os velhos militares e os generais tenham dado como pretexto do conflito a necessidade de ocupar os seus homens; os legitimistas da época a urgência em restabelecer os bons princípios, enquanto os diplomatas pensavam que tudo provinha de a aliança da Prússia com a Áustria em 1809 não ter sido habilmente escondida de Napoleão e de o memorando nº 178 haver sido mal redigido. Compreende-se que os contemporâneos tenham invocado estas e ainda outras razões, tantas ou tão poucas que o número delas pode variar consoante os numerosos pontos de vista. Para nós, a posteridade, que contemplamos em toda a sua amplitude este acontecimento considerável e que penetramos o seu sentido simples e terrível, todas elas são, evidentemente, insuficientes. Não podemos conceber como milhões de cristãos puderam matar-se uns aos outros e torturar-se mutuamente só porque Napoleão era ambicioso, Alexandre firme, a política da Inglaterra tortuosa e o duque de Oldemburgo se sentia ofendido. Não é possível compreender a ligação que existe entre todas estas circunstâncias e as violências e os morticínios propriamente ditos. Para nós, a posteridade, nós, que não somos historiadores, nem nos deixamos levar pelo entusiasmo das investigações, e examinamos, por conseguinte, com um bom senso imperturbável os acontecimentos, as causas aparecem-nos em número incalculável. Quanto mais nos enfronhamos na investigação dessas causas mais numerosas elas se nos revelam e cada uma em si ou uma série delas se nos afiguram igualmente justas, embora falsas também, dada a sua insignificância quando comparadas com a imensidade do acontecimento, e igualmente falsas pela sua insuficiência, independentemente de todas as demais causas concordantes poderem ter produzido o resultado encarado, Uma delas, por exemplo, o facto de Napoleão se ter recusado a retirar as suas tropas para o outro lado do Vístula e restituir o ducado de Oldemburgo, parece-nos valer tanto como a recusa de um primeiro-cabo francês a realistar-se, pois a verdade é que, se este não tivesse querido voltar à actividade e o seu exemplo houvesse sido seguido por milhares de soldados, teria havido muito menos homens no exército de Napoleão e este ver-se- ia impossibilitado de declarar a guerra. Se Bonaparte se não houvesse sentido ofendido ao receber a comunicação em que se lhe pedia que se retirasse para a outra margem do Vístula e não tivesse dado às suas tropas ordem de marcha, não teria havido guerra. Mas se todos osseus sargentos se houvessem recusado a realistar-se também a agressão não se daria. Fosse como fosse, não se teria dado se não tivesse havido intrigas da Inglaterra, se não existisse o príncipe de O1demburgo, se Alexandre não fosse tão susceptível, se a Rússia não tivesse um governo autocrático, se não tivesse havido a Revolução Francesa e assim por diante. Sem qualquer destas causas nada teria acontecido. É muito possível que para que o acontecimento se produzisse tivesse sido preciso o encontro de todas estas causas, de milhares de causas, o que só quer dizer não haver causas exclusivas e que as coisas acontecem porque têm de acontecer. Milhões de homens, repudiando todo o sentimento humano e toda a espécie de razões, tinham de marchar do Ocidente para o Oriente dispostos a matar os seus semelhantes, tal qual, séculos antes, massas de homens tinham marchado do Oriente para o Ocidente matando igualmente o seu semelhante. Os actos de Napoleão e de Alexandre, cuja palavra, na aparência, só por si podia impedir ou desencadear os acontecimentos, eram tão pouco livres e arbitrários como os do simples soldado destinado pela sorte ou o recrutamento a tomar parte na campanha. As coisas não podiam passar-se de outra maneira, pois, para que fosse cumprida a vontade de Napoleão ou de Alexandre, na aparência senhores omnipotentes, era absolutamente necessária a concordância de numerosas circunstâncias, e bastava faltar uma só que fosse para nada vir a produzir-se. Era necessário que milhões de homens entre cujas mãos se encontrava a força actuante — soldados para disparar e transportar abastecimento,, e canhões— estivessem de acordo para cumprir a vontade daqueles dois fracos indivíduos, se isolados, e que a tal fossem conduzidos por um número infinito de razões, tão complicadas quão diversas. A intervenção do fatalismo na história é inevitável para explicar estas manifestações desprovidas de sentido, ou, antes, cujo sentido nos não é dado compreender. Quanto mais procuramos explicá-las logicamente tanto mais desarrazoadas e incompreensíveis se nos apresentam. O homem vive para si mesmo, goza de liberdade para alcançar os seus objectivos particulares; todo o seu ser lhe diz que pode realizar ou não imediatamente este ou aquele acto; mas assim que age, realizado que seja o seu acto em tal ou qual momento da continuidade temporal, ei-lo que passa a serirrevogável e a pertencer daí para o futuro à história, perdendo o seu carácter de acto livre para ocupar um lugar que lhe é previamente designado. A vida do homem tem duas faces. Há, em primeiro lugar, a vida individual, tanto mais livre quanto mais gerais os seus interesses, quanto mais abstractos; e depois a vida como um elemento social, a vida do cortiço humano, em que o homem tem inevitavelmente de se submeter às leis que lhe são prescritas. O homem vive conscientemente a sua vida individual, servindo de instrumento inconsciente à realização dos fins históricos da humanidade inteira. O acto realizado torna-se irrevogável, e, graças à sua concordância com os milhões de outros actos realizados ao mesmo tempo, assume valor histórico. Quanto mais alto o homem está colocado na escala da humanidade, quanto mais importantes as personagens com quem entra em contacto, tanto maior, igualmente, o seu poder sobre os outros homens e mais evidente o carácter de predestinação e de fatalidade de cada um dos seus actos. «O coração dos reis está na mão de Deus.» «O rei é escravo da história.» A história, quer dizer, a vida inconsciente, geral, elementar, da humanidade serve-se de todos os minutos da vida dos reis para alcançar os seus objectivos. Embora então, em 1812, Bonaparte estivesse mais do que nunca convencido de que não dependia senão dele «fazer ou não verter o sangue dos povos», como dizia Alexandre na última carta que lhe escreveu, a verdade era mais do que nunca encontrar-se sujeito a essas leis fatais que, enquanto lhe davam a ilusão de agir por si, segundo o seu próprio capricho, o compeliam o, colaborar na obra comum, a história, realizando o que necessariamente tinha de realizar-se. Os homens do Ocidente puseram-se a caminho do Oriente para se chacinarem uns aos outros. E, segundo a coincidência das causas, colaboraram neste acontecimento e encontraram-se em correlação com ele milhares de pequenas causas desse movimento e dessa guerra, entre as quais a violação do bloqueio continental, a ofensa ao duque de Oldemburgo, os deslocamentos de tropas na Prússia, realizados, segundo pensava Napoleão, com o único fim de se conseguir uma paz armada; o amor da guerra do imperador dos Franceses e o hábito em que estava de a fazer, de acordo com as disposições particulares do seu povo; o entusiasmo a que levavam os preparativos grandiosos; as despesas que estes preparativos determinaram; a necessidade de conseguir vantagens que compensassem tais despesas; as honrarias inebriantes que recebera em Dresde; asconversações diplomáticas que, de acordo com a opinião dos contemporâneos, haviam sido realizadas com o sincero desejo de alcançar a paz e que no fim de contas só serviram para irritar o amor-próprio de parte a parte; milhões de milhões de outras causas, enfim, que concorreram para a realização do acontecimento ou que coincidiram com ele. Uma maçã cai quando está madura. Porquê? É o peso que a faz cair? Ou porque se lhe seca o pé, porque o sol a queima, porque se tornou pesada de mais, porque o vento a sacudiu ou, muito simplesmente, porque um garoto junto da árvore morria por comê-la? Nenhuma destas causas é a válida. Não há mais que uma concordância de condições favoráveis na realização de qualquer dos acontecimentos elementares da vida orgânica. O botânico que descobre que a maçã cai como consequência da decomposição do tecido celular ou qualquer coisa semelhante não tem mais razão que o garoto dizendo que a maçã caiu porque ele a desejava comer e nesse intuito rezou a Deus. Igual razão ou sem-razão terá aquele que vier dizer que Napoleão entrou em Moscovo por ser esse o seu desejo e que aí se perdeu por ser essa a decisão de Alexandre. Igualmente estará em erro e terá razão aquele que disser que uma montanha de milhões de puds que acabou por se desmoronar minada na base caiu graças ao último golpe de picareta do último dos sapadores. Nos factos históricos, esses a quem se dá o nome de grandes homens não passam, no fundo, de etiquetas para designar o acontecimento. Aqueles têm tão pouca relação com tais factos como as próprias etiquetas que lhes põem. Nenhum dos seus actos que a eles se lhes afigurem produto do livre arbítrio podem considerar-se em verdade voluntários no sentido histórico da palavra, pois estão relacionados com a marcha geral da história, onde o seu lugar se encontra assinalado para toda a etcrnidade. [II] No dia 29 de Maio, Napoleão abandonou Dresde, onde passara três semanas, rodeado por uma corte de príncipes, de duques, de reis e até por um imperador. Antes da sua partida, agradecera aos príncipes, aos reis e ao imperador quemereceram os seus elogios, dera uma lição aos reis e aos príncipes de quem tinha razões para estar descontente, presenteara com pérolas e diamantes do seu próprio escrínio, isto é, roubados a outros reis, a imperatriz da Áustria, e, depois de estreitar amorosamente nos braços Maria Luísa, deixara-a, assim dizia um historiador, profundamente dorida com uma despedida que, ao que parece, esta Maria Luísa muito sentia, considerando-se já esposa de Bonaparte apesar da outra esposa que ficara em Paris. Não obstante a confiança dos diplomatas na manutenção da paz, para que trabalhavam com afinco, não obstante a carta autógrafa de Napoleão a Alexandre, em que o tratava por Senhor meu irmão e lhe dava a sincera garantia de não querer a guerra e de nunca vir a deixar de lhe consagrar estima e amizade, não obstante tudo isso, pôs-se em marcha, em seguimento do exército, dando as suas ordens, em cada muda, para se activar o movimento das tropas para oriente. Numa sege de viagem tirada por seis cavalos, rodeado de pajens, de ajudantes-de- campo e seguido de uma escolta, ei-lo que toma a estrada de Posen Thorn, Danzigue e Conisberga. Milhares de pessoas vieram ao seu encontro em cada uma destas cidades movidas por um entusiasmo a que se misturava algum terror. O exército deslocava-se para oriente e após ele o levava aquela sege tirada por seis cavalos mudados em cada nova posta. A 1O de Junho alcançou o exército e passou a noite em plena floresta de Wilkowyski, na propriedade de um conde polaco, onde lhe haviam reservado aposentos. No dia seguinte ultrapassou o exército, seguindo de sege até às margens do Niémen, e, disposto a estudar um local propício à passagem das suas tropas, envergou um uniforme polaco e apeou-se do cavalo para examinar o rio. Ao ver os cossacos na outra margem, as estepes perdendo-se na distância, no meio das quais estava Moscovo, a cidade santa, a capital desse mesmo império dos Citas por onde passara Alexandre da Macedónia, Napoleão, com espanto de todos, e contrariamente a todas as considerações, quer estratégicas quer diplomáticas, deu ordem para avançar, e no dia seguinte as suas tropas atravessaram o Niémen. A 12, de madrugada, saiu da tenda armada sobre uma eminência da margem esquerda e pôs-se a observar com o óculo a vaga das tropas que saíam da floresta de Wilkowyski e enfiavam pelas três pontes que mandara lançar sobre o rio. Os soldados, sabendo que o imperador estava presente, procuravam-no com os olhos,e quando o descobriram sobre a escarpa, diante da tenda, afastado do resto da comitiva, de redingote e chapéu, lançaram ao ar as barretinas de pêlo, gritando: «Viva o imperador!» E, inesgotável, lá continuava a correr, da enorme floresta em que se ocultava, aquela torrente de homens que, dividindo-se pelas três pontes, inundava a margem oposta. «Desta é que vamos longe. Quando ele próprio intervém no assunto a coisa aquece... Com mil demónios!... Ei-lo!... Viva o imperador!... São estas, pois, as estepes da Ásia! De qualquer modo, uma terra feia. Adeus, Beauché; reservo-te o mais belo palácio de Moscovo. — Adeus, boa sorte.— Viste o imperador? Viva o imperador... rador...! — Se me nomearem governador das índias, Gérard, faço-te ministro de Caxemira, fica combinado. — Viva o imperador! Viva! Viva! Viva! — É ver como eles fogem, esses marotos dos cossacos. Viva o imperador! Ei-lo! Viste- o? Vi-o duas vezes tal como te estou a ver a ti. O pequeno cabo... Vi-o dar a cruz a um dos velhos... Viva o imperador!...» Eis o que diziam velhos e novos, homens de todos os feitios e posições sociais. Em todos os rostos se reflectia a mesma alegria por verem iniciada uma campanha tão ardentemente esperada e o mesmo entusiasmo e a mesma dedicação pelo homem do redingote cinzento que lá estava em cima naquela eminência. A 13 de Junho trouxeram a Napoleão um cavalinho árabe, puro-sangue, que ele montou, e a galope despediu em direcção a uma das pontes de Niémen, sempre no meio do mesmo clamor, clamor que ele apenas tolerava, via-se bem, por não ser possível impedir os seus soldados de assim exprimirem o amor que lhe tinham. Esses gritos que o perseguiam por toda a parte fatigavam-no e distraíam- no das preocupações militares que o assoberbavam desde que se juntara ao exército. Atravessou uma das oscilantes pontes de barcas e, embrenhando-se na outra margem, meteu à esquerda, e a galope seguiu na direcção de Kovno, precedido pelos caçadores da Guarda, que, loucos de alegria, lhe abriam caminho por entre os soldados. Quando chegou junto do curso do grande Vístula, parou ao pé de um regimento de ulanos polacos que estacionava ali. «Viva!», gritavam os polacos com não menor entusiasmo que os próprios franceses, rompendo fileiras e acotovelando-se para melhor o verem. Napoleão examinou o rio, desmontou e foi sentar-se num tronco de árvore junto das águas. A um seu gesto, trouxeram-lhe o óculo, que ele apoiou no ombro de um pajem, contentíssimo, que logo aparecera, e pôs-se a olhar para a margemoposta. De— pois enfronhou-se no estudo do mapa aberto sobre o tronco da árvore. Sem erguer a cabeça, pronunciou duas ou três palavras e imediatamente dois dos seus ajudantes-de-campo despediram a galope em direcção aos ulanos polacos. «Que foi? Que disse ele?», ouvia-se nas fileiras, à medida que se aproximava o ajudante-de-campo. Fora dada ordem para se procurar um vau por onde passar à margem oposta. O coronel dos ulanos, homem idoso, mas de bela presença, corando e com a língua entaramelada pela emoção, perguntou ao oficial se lhes seria permitido, a ele e aos seus homens, atravessarem o no a nado, sem se darem ao trabalho de procurar um vau. Receoso que lhe recusassem o que pedia, como um garoto que pede para montar a cavalo, solicitou autorização para atravessar o no na presença do imperador, o ajudante-de-campo replicou ser muito natural que este excesso de zelo não deixasse de ser agradável ao imperador. Ao ouvir estas palavras, o velho oficial de grande bigodeira, felicidade no rosto e os olhos cintilantes, puxou do sabre, gritando: «Viva!» Depois, dando ordem aos seus ulanos para que o seguissem, esporeou o cavalo e meteu-se ao rio. Fustigando, colérico, o animal, que vacilava, entrou na água, dirigindo-se para um local profundo onde a corrente era impetuosa. Atrás dele iam centenas de homens. Lá para o meio do rio, o frio principiou a apoquentá-los. Os soldados tropeçavam uns nos outros e caíam das montadas. Houve cavalos que se afogaram e alguns soldados também, enquanto outros procuravam nadar, agarrando-se às selas ou às crinas dos animais. Embora a meia versta apenas houvesse um vau, eles, procurando alcançar a outra margem, mostravam-se orgulhosos de nadar e morrer afogados à vista daquele homem sentado num tronco de árvore que nem sequer olhava para eles. Quando o ajudante-de-campo voltou para junto do imperador e, aproveitando um momento favorável, se permitiu chamar-lhe a atenção para a prova de lealdade dos polacos, o homenzinho do redingote cinzento levantou-se, chamou Berthier e pôs-se a passear com ele de um lado para o outro, ao longo da margem, dando-lhe ordens e lançando de tempos a tempos um olhar descontente para aqueles homens que se afogavam, distraindo-lhe a atenção. Não era a primeira vez que podia convencer-se de que bastava a sua presença, em qualquer parte do mundo, da África às estepes da Moscóvia, para despertarnos homens como que a loucura do sacrifício. Mandou que lhe trouxessem o cavalo e regressou ao acantonamento. Quarenta ulanos se afogaram, apesar das barcaças que foram socorrê-los. A maior parte dos corpos foi arrastada para a cidade que acabavam de deixar. O coronel e alguns soldados atravessaram o no e com grande dificuldade conseguiram escalar a margem. Assim que lá chegaram, com os uniformes a pingar, gritaram: «Viva!», procurando com os olhos o local onde se devia encontrar Napoleão, que já lá não estava, e nesse momento sentiram-se plenamente felizes. Pela noite, após ter tomado duas decisões, a primeira no sentido de apressar o envio de notas de banco eslavas falsificadas com destino à Rússia e a segunda de se executar um saxão em poder do qual se haviam encontrado informes relativos à situação do exército francês, ainda tomou uma terceira, mandando que fosse condecorado com a Legião de Honra, de que era chefe supremo, o coronel polaco que, sem necessidade, se precipitara no rio. Quos vult perdere dementat... [III] Entretanto havia mais de um mês que o imperador da Rússia se encontrava em Vilna, onde passava revista às tropas e assistia às manobras. Nada estava disposto para a guerra que toda a gente esperava e para a preparação da qual o imperador deixara Petersburgo. Não havia qualquer plano geral para as operações. As dúvidas e hesitações sobre o plano a seguir ainda eram maiores um mês depois de o imperador se achar no quartel-general. Cada um dos três corpos de exército tinha um general-chefe, mas não havia generalíssimo e o imperador não queria assumir semelhantes funções. À medida que o tempo ia passando em Vilna mais atrasados estavam os preparativos. Toda a gente se sentia cansada de esperar. Dir-se-ia que a maior preocupação do séquito de Sua Majestade era fazer que ele passasse agradavelmente o seu tempo e esquecesse a guerra iminente. Depois de muitos bailes e festas oferecidos pelos magnates polacos,personagens da corte e pelo próprio imperador, um dos generais polacos ajudante- de-campo teve a ideia de organizar um jantar e um baile oferecidos pelos seus colegas. Esta ideia obteve o mais jovial acolhimento. O próprio imperador lhe deu o seu apoio. Os generais ajudantes-de-campo abriram uma subscrição. A senhora que gozava de maior prestígio junto do imperador aceitou desempenhar o papel de anfitrião. O conde de Bennigsen, proprietário na província de Vilna, pôs o seu castelo de Zakreta, nos arredores da cidade, à disposição dos organizadores da festa, e 13 de Junho foi a data marcada para o festival, que se compunha de banquete, baile, passeio no rio e fogo de artifício. No mesmo dia em que Napoleão dera ordem para se atravessar o Niémen e em que as guardas avançadas do seu exército, repelindo os cossacos, atravessavam a fronteira da Rússia, encontrava-se Alexandre no festival promovido pelos seus ajudantes-de-campo na propriedade de Bennigsen. A festa foi alegre e brilhante; os entendidos opinaram que raramente se tinha visto um conjunto de tão lindas mulheres. A condessa Bezukov, que, na companhia de outras senhoras russas, seguira o imperador até Vilna, assistiu à festa eclipsando com a sua beleza tipicamente russa, um pouco pesada, a das mais airosas polacas. Chamou as atenções e o imperador concedeu-lhe a honra de a ir buscar para dançar. Bóris Drubetskoi, de novo solteiro, como ele dizia, deixara a mulher em Moscovo, e também assistiu ao baile. Embora não fosse ajudante-general, contribuíra com uma bonita soma para a colecta. Agora era o que se chama um homem rico, dado ao culto de honrarias de toda a espécie, sem precisar já de protecções e tratando de igual para igual as mais altas personalidades do tempo. Encontrou-se com Helena em Vilna; não a via há muito e não lhe lembrou o passado, mas, como ela estava nas graças de uma personalidade muito importante, desde logo passaram a ser velhos amigos. A meia-noite ainda se dançava. Helena, que não via à sua volta par digno de si, propôs a Bóris que a fosse buscar para a mazurca. Bóris,, indiferente aos resplandecentes ombros nus de Helena, que emergiam de um corpinho de gaze escura bordado a ouro, falava de pessoas conhecidas sem deixar de seguir com os olhos, como que inconscientemente, o imperador, que se encontrava no mesmo salão. Este não dançava; estava de pé junto de uma porta e ora detinha este ora aquele, dirigindo a cada um a sua palavra amável como só ele sabia fazer.No princípio da mazurca Bóris notou que o general ajudante-de-campo Balachov, um dos íntimos do imperador, se aproximou do monarca e esperava a seu lado, numa atitude inteiramente contrária ao protocolo, enquanto este conversava com uma senhora polaca. Quando a conversa acabou, o imperador interrogou-o com a vista e, compreendendo que Balachov não teria procedido daquela maneira se não fosse por qualquer grave motivo, fez uma mesura à senhora e voltou-se para o general. Poucas palavras ele dissera ainda e já no rosto do imperador se pintava um profundo espanto. Travou do braço de Balachov e atravessou com ele a sala, sem prestar a mais pequena atenção às pessoas presentes, que abriram largas alas para o deixar passar. Bóris reparou que Araktcheiev, ao ver o imperador com Balachov, mostrara certa perturbação. O ministro, olhando para o monarca com olhos baixos e resfolgando pelo afogueado nariz, destacara-se da multidão, como que à espera que o imperador lhe dirigisse a palavra. Bóris percebeu que Araktcheiev sentia ciúmes de Balachov e estava contrariado com o facto de uma notícia, sem dúvida importante, não ser transmitida por ele. No entanto, o imperador e Balachov atravessaram o salão sem o ver e penetraram no jardim iluminado. Araktcheiev, com mão na bainha da espada e olhares coléricos, seguiu-os a uns vinte passos de distância. Enquanto durou a marcação da mazurca, Bóris deu voltas à imaginação para descobrir o que teria dito Balachov ao imperador e a maneira de o vir a saber antes de mais ninguém. Como naquele momento lhe competia escolher outro par, murmurou ao ouvido de Helena que ia tirar a condessa Potochka, o qual, segundo pensava, saíra para a escada. Deslizando pelo parquet, precipitou-se para a porta que dava para o jardim e ao ver o imperador e Balachov entrarem no terraço deteve-se. Ambos se encaminhavam para a porta. Bóris, pressuroso, como se não tivesse tido tempo de se afastar, colou-se, respeitosamente, contra o alizar, numa grande vénia. O imperador, com a expressão de um homem pessoalmente ofendido, pronunciava estas palavras: — Entrar na Rússia sem declaração de guerra! Só assinarei a paz no dia em que não houver sobre o meu território um único inimigo armado. Afigurou-se-lhe, a Bóris, que Alexandre punha uma espécie de satisfação em exprimir-se daquela maneira: a forma que dera ao pensamento agradava-lhe. Noentanto, pouco satisfeito se mostrou pensando ter sido ouvido. — É preciso que ninguém saiba! — acrescentou, franzindo o sobrolho. Bóris percebeu que aquela advertência lhe dizia respeito e, baixando os olhos, vergou a cabeça. O imperador voltou ao salão e permaneceu no baile ainda cerca de meia hora. Foi assim que Bóris veio a saber antes de mais ninguém que os Franceses haviam atravessado o Niémen e deste modo lhe foi possível mostrar a algumas altas personalidades que tinha conhecimento do que os outros ignoravam. E isto tornou-o aos seus olhos maior ainda. A notícia de que os Franceses haviam atravessado o Niémen caía de improviso no meio do baile depois de um mês de expectativa! O imperador, no primeiro momento de indignação e de cólera, encontrara a fórmula, mais tarde célebre, que a ele próprio agradara, e que em verdade exprimia plenamente os seus sentimentos. No regresso do baile, às duas horas da madrugada, mandou chamar o seu secretário, Chichkov, a quem ditou uma ordem do dia dirigida às tropas e um rescrito com vista ao príncipe Soltikov. Teve o cuidado de transcrever a frase célebre em que declarava só assinar a paz no dia em que não houvesse um único francês armado sobre a terra russa. No dia imediato dirigiu a Napoleão a carta que se segue: «Senhor meu irmão. Soube ontem que, apesar da lealdade com que mantive os meus compromissos para com Vossa Majestade, as suas tropas atravessaram as fronteiras da Rússia, e acabo de receber de Petersburgo uma nota em que o conde Lauriston, por causa dessa agressão, anuncia que Vossa Majestade se considerou em estado de guerra para comigo desde o momento em que o príncipe Kurakine fez o pedido dos seus passaportes. Os motivos em que o duque de Bassano fundamentava a recusa de lhos passar nunca me fariam supor que essa diligência viria alguma vez a servir de pretexto para a agressão. Com efeito, o embaixador não fora a tal autorizado, como ele próprio o declarou, e logo que fui disso informado comuniquei-lhe quanto desaprovava essa deslocação, dando-lhe a ordem dese manter no seu posto. Se Vossa Majestade não tem a intenção de fazer verter o sangue das nossas gentes por um mal-entendido desta espécie e se consentir em retirar as suas tropas do território russo, encararei o que se passou como se nada fosse, e será possível as coisas comporem-se entre nós. No caso contrário, Vossa Majestade, ver-me-ei forçado a repelir um ataque que nós não provocámos. Depende ainda de Vossa Majestade evitar à humanidade as calamidades de uma nova guerra. Sou, de Vossa Majestade, etc. ALEXANDRE» [IV] No dia 13 de Junho, às duas horas da madrugada, o imperador mandou chamar Balachov, leu-lhe a carta que acabara de escrever a Napoleão, dando-lhe ordem para que a fosse entregar pessoalmente ao imperador dos Franceses. Ao despedir- se dele repetiu as palavras que pronunciara no baile, ordenando-lhe que as repetisse fielmente a Napoleão. Não as transcrevera na sua carta, pois sentia, com o seu tacto habitual, que seriam ali deslocadas, visto tratar-se de uma última tentativa de conciliação. No entanto, ordenou a Balachov que lhas repetisse textualmente. Tendo partido na noite de 13 para 14, Balachov, acompanhado de um trombeta e de dois cossacos, chegou de madrugada à aldeia de Rykonty, guarda- avançada dos Franceses nessa margem do Niémen. As sentinelas da cavalaria francesa detiveram-no. Um sargento de hússares, de uniforme amaranto e barretina de pêlo, gritou- lhe que parasse. Balachov não obedeceu imediatamente e prosseguiu a passo. De sobrancelhas franzidas e soltando palavrões, o sargento atravessou-se na estrada com o seu cavalo, fazendo parar o general russo. Depois desembainhou o sabre e perguntou-lhe grosseiramente se era surdo, pois não parecia entender oque ele dizia. Balachov declinou a sua identidade. O francês deu ordens a um soldado para que fosse chamar um oficial. Indiferente ao enviado russo, o hússar pôs-se a conversar com os seus camaradas sobre assuntos que lhes diziam respeito, sem se dignar pousar nele os olhos. Estranha impressão causou isto a Balachov. Ele, que estava em comunicação contínua com o poder supremo e as autoridades, ele que, algumas horas antes, falava com o imperador, ele, que no desempenho das suas funções estava habituado a ser tratado com todas as honras, via-se agora, em terra russa, tratado como um inimigo e, pior ainda, sem qualquer respeito, por semelhantes representantes da força bruta. O sol principiava a romper as nuvens; o ar era fresco e repassado de humidade. Um rebanho ia da aldeia a caminho dos montes. As andorinhas, umas após outras, como bolhas que rompem à superfície de água, saíam das sebes, soltando trinados. Balachov olhava à sua roda enquanto aguardava o oficial que haviam ido buscar à aldeia. Os cossacos e o trombeta, em silêncio, de tempos a tempos, trocavam olhares com os hússares franceses. O coronel dos hússares, que naturalmente acabara de saltar da cama, apareceu montado num belo cavalo cinzento, bem tratado, escoltado por dois dos seus homens. O oficial, os soldados, os seus próprios cavalos, respiravam contentamento e abastança. Estava-se no princípio da guerra, nesse momento em que as tropas, de ponto em branco, parecem preparadas para uma parada do tempo da paz, apenas com qualquer coisa de mais bélico no equipamento e esse matiz de jovialidade e animação, traço característico de um exército quando principia uma nova campanha. Só muito a custo o coronel francês reprimiu o bocejar, mas mostrou-se polido e percebeu, evidentemente, a importância da missão de que Balachov vinha incumbido. Fê-lo atravessar as linhas e garantiu-lhe que o desejo manifestado de ir à presença do imperador seria imediatamente satisfeito, visto o quartel-general, assim o supunha pelo menos, estar situado ali perto. Atravessaram a aldeia de Rykonty pelo meio dos piquetes de hússares, de sentinelas e de soldados que faziam continência ao seu coronel e olhavam curiosos para o uniforme russo, e assim atingiram a outra extremidade da povoação.Segundo dizia o coronel, a dois quilómetros dali estava o comandante da divisão, que receberia Balachov e o conduziria ao seu destino. O Sol surgira no horizonte e brilhava alegremente sobre os campos muito verdes. Mal ultrapassaram a estrada do monte viram surgir diante de si, descendo a encosta, um grupo de cavaleiros, à frente dos quais, montado num cavalo preto, cujos arreios brilhavam ao sol, cavalgava um homem de grande estatura, de chapéu emplumado, com os negros cabelos encaracolados caindo-lhe pelas costas, embrulhado numa capa vermelha e as pernas estendidas para a frente, característica maneira de montar dos Franceses. Este homem galopava ao encontro de Balachov, e a sua pluma, as suas pedras preciosas, os seus galões dourados ondulavam e brilhavam ao ardente sol de Junho. Estava Balachov a menos de dois cavalos daquele cavaleiro em atitude solene e teatral, coberto de cordões, de plumas, de colares e de galões dourados, quando Ulner, o coronel francês, lhe segredou ao ouvido respeitosamente: «O Rei de Nápoles.» Era, efectivamente, Murat, a quem chamavam então rei de Nápoles. Embora fosse absolutamente impossível saber porquê, o certo é que era rei de Nápoles, assim lhe chamavam, e ele próprio disso estava convencido, circunstância que lhe dava um aspecto mais imponente e solene. Tão persuadido estava da situação que na véspera da sua partida de Nápoles, andando a passear com a mulher nas ruas da cidade e ouvindo alguns italianos aclamá-lo, gritando «Viva il re!», se voltou para a mulher com um triste sorriso e disse: «Desgraçados! Ignoram que os deixo amanhã!» Apesar da sua íntima convicção de ser realmente rei de Nápoles e de que os seus súbditos suspiravam por ele, naqueles últimos tempos, depois de receber ordem para regressar ao serviço do exército, principalmente após a sua entrevista com Napoleão em Danzigue, quando ouviu o seu augusto cunhado dizer-lhe: «Eu tornei-o rei para que reinasse à minha maneira, não à sua», confiou-se alegremente ao seu mister familiar e como um cavalo bem tratado e sem gorduras em excesso, que, sentindo-se atrelado, brinca entre os varais, arreado com as cores mais vistosas e as mais preciosas jóias, ei-lo que vai caracolear, sem que ele próprio saiba muito bem aonde nem porquê, pelas estradas da Polónia. Ao ver o general russo, atirou majestosamente para trás, numa atitude verdadeiramente real, a sua cabeça ornada de compridos cabelos encaracolados, einterrogou com os olhos o coronel francês. Este informou respeitosamente Sua Majestade da identidade de Balachov, cujo nome não conseguia pronunciar. — De Bal-Machève! — articulou o rei, superando com decisão a dificuldade que o coronel não soubera vencer — muito prazer em conhecê-lo, general — acrescentou com um gesto de condescendência verdadeiramente augusto. Assim que ergueu a voz e principiou a falar depressa, toda a, sua dignidade real desapareceu como por encanto e, em vez dela, surgiu, sem que ele próprio desse por isso, um tom de bonomia familiar. Passou a mão pela crina do cavalo de Balachov. — Pois bem, general, estamos então em guerra, ao que parece — disse, como se lamentasse uma circunstância de que se não sentia responsável. — Sire — replicou Balachov — o imperador, meu senhor, não deseja a guerra, como Vossa Majestade pode verificar. — Para o que desse e viesse, Balachov resolvera tratar Murat por Majestade, evidente despropósito, visto que se dirigia a alguém para quem esse título constituía uma novidade. O rosto do rei de Nápoles todo se abriu numa estúpida satisfação enquanto lhe dirigia a palavra Monsieur de Balachoff. Mas, realeza obriga, teve de reconhecer ser indispensável abordar negócios de Estado com o enviado de Alexandre, uma vez que era rei e aliado. Desmontando, pegou no braço de Balachov, afastou-se alguns passos da comitiva, que aguardava numa atitude respeitosa, e pôs-se a passear com ele de um lado para o outro, procurando imprimir autoridade às mais pequenas palavras que pronunciava. Lembrou que o imperador Napoleão ficara ofendido com o pedido que lhe fora dirigido no sentido de retirar as suas tropas da Prússia, sobretudo porque essa intimação fora divulgada por toda a parte, ferindo assim a dignidade da França. Balachov replicou-lhe não haver a mais pequena ofensa num tal pedido, uma vez que.— Murat interrompeu-o. — Com que então, na sua opinião, o instigador não é o imperador Alexandre? — exclamou, de chofre, com o seu estúpido sorriso bonacheirão. Balachov explicou-lhe porque entendia ser, de facto, Napoleão o causador da guerra. — Eh!, meu querido general — interrompeu de novo Murat —, desejo de todo o coração que os imperadores cheguem a um acordo e que esta guerra de que eu não sou responsável ter— mine o mais cedo possível. — Dizendo o que, assumiu otom dos criados que conversam entre si, querendo continuar bons amigos, embora os amos andem desavindos. Em seguida quis saber como ia de saúde o grão-duque, recordando os agradáveis momentos que haviam passado juntos em Nápoles. E de súbito, como se se tivesse lembrado da sua dignidade real, empertigou-se majestosamente, tomou a atitude que assumira por altura da coroação e com um gesto da mão direita: — Não o retenho mais, general, e desejo-lhe o êxito da sua missão — exclamou, e, resplandecente no seu manto vermelho bordado a ouro, as plumas do chapéu a esvoaçar, as jóias faiscantes, encaminhou-se ao encontro da comitiva que o aguardava respeitosamente. Balachov prosseguiu o seu caminho, supondo, de acordo com o que lhe dissera Murat, que não tardaria a encontrar-se na presença de Napoleão. Mas, em vez disso, as sentinelas do corpo de infantaria de Davout detiveram-no ainda na localidade próxima, como acontecera na primeira linha, e um ajudante-de-campo conduziu-o à aldeia, à presença do marechal Davout. [V] Davout era o Araktcheiev do imperador Napoleão, Araktcheiev em tudo menos na covardia, como ele meticuloso e cruel e incapaz de provar a dedicação que tinha ao amo de outra maneira que não fosse pela crueldade. Nas engrenagens de um Estado, homens assim são tão necessários como os lobos na natureza. Existem sempre, aparecem sempre e mantêm-se, por mais absurda que a sua presença possa parecer, junto do chefe do Estado ou na sua intimidade. Graças à fatalidade desta lei se pode explicar que este cruel Araktcheiev, habituado a arrancar com as próprias mãos os bigodes aos granadeiros, e de resto incapaz, por fraqueza nervosa, de enfrentar o menor perigo, que este homem sem cultura e sem educação tivesse podido manter uma tal influência sobre a natureza nobre, cavalheiresca e doce de um Alexandre. Balachov encontrou o marechal Davout na isbá de um aldeão, sentado num barril e ocupado a verificar umas contas. A seu lado, de pé, estava um ajudante-de-campo. Ter-lhe-ia sido possível arranjar uma instalação mais própria, mas Davout pertencia ao número dos homens que gostam de viver nas mais difíceis condições de vida para terem o direito de se conservar tristes e severos. E é por isso também que tais homens andam sempre apressados e esmagados com trabalho. «Como se há-de pensar nas coisas agradáveis da vida quando, como vocês estão a ver, uma pessoa tem de sentar-se em cima de um barril numa isbá sórdida, sempre que precisa de trabalhar?» Eis o que parecia ler-se-lhe na cara. O maior prazer, a necessidade capital destas pessoas quando em presença de alguém contente de viver é atirar-lhes à cara o seu trabalho obstinado e taciturno. Eis a satisfação que sentiu Davout com a chegada de Balachov. Ainda mais se enfronhou nas suas contas ao ver aparecer o general russo, e, depois de lançar um olhar por cima das lentes àquela figura animada pela corrida matinal e a conversa que tivera com Murat, sem se erguer, sem fazer um movimento, ainda franziu mais as sobrancelhas, com um sorriso mau. Vendo a impressão desagradável que o acolhimento provocava no recém- chegado, acabou por levantar a cabeça e perguntar-lhe friamente o que desejava. Como Balachov só podia atribuir aquela recepção ao facto de Davout ignorar a sua dupla qualidade de general ajudante-de-campo e de enviado, junto de Bonaparte, do imperador Alexandre, tratou de declinar a sua identidade e de enunciar o objectivo da sua missão. Ao contrário, porém, do que esperava, Davout ainda se mostrou mais rude e severo. — Onde está a sua mensagem? — interrogou ele. — Dê-ma, que eu envio-a ao imperador. Balachov replicou que recebera ordens para a entregar pessoalmente ao imperador. — As ordens do seu imperador só têm curso no exército dele; aqui o senhor tem de fazer o que se lhe diz. E, como que para fazer compreender ao general russo que estava na dependência de uma força brutal, mandou um ajudante-de-campo procurar o oficial de serviço. Balachov sacou do invólucro que continha a carta do imperador e pousou-o em cima da mesa, a qual era formada por uma porta donde pendiam ainda os gonzos, assente sobre dois barris. Davout pegou no sobrescrito e leu o endereço. — É consigo tratar-me ou não com respeito — disse Balachov —, mas permitaque lhe observe que tenho a honra de pertencer ao número dos generais ajudantes-de-campo de Sua Majestade. Davout olhou-o sem dizer palavra e a irritação que se lia no rosto do oficial russo foi para ele evidente motivo de satisfação. — Será tratado com as honras devidas — replicou, e, metendo a mensagem na algibeira, saiu da cabana. Um minuto mais tarde entrou o ajudante-de-campo do marechal, o Sr. De Castries, que conduziu Balachov ao alojamento que lhe fora destinado. Balachov jantou nesse dia com o marechal, na choupana, em cima da mesa de barris. No dia seguinte Davout partiu logo de madrugada, depois de haver convocado Balachov e de lhe ter ordenado que permanecesse onde estava, que apenas se afastasse com o comboio, no caso de este receber instruções para se deslocar, e que não falasse fosse com quem fosse, à excepção de Castries. Depois de quatro dias de tédio e solidão, agravados pelo sentimento de sujeição e de impotência, tanto mais impressionantes para ele quanto acabava de abandonar um meio onde era todo poderoso, após várias etapas com as bagagens pessoais do marechal e as tropas francesas que ocupavam toda a região, Balachov entrou em Vilna, então ocupada pelos Franceses, pela mesma porta da cidade por onde havia saído quatro dias antes. No dia seguinte, o camareiro do imperador, Monsieur de Turenne, veio anunciar-lhe que o imperador Napoleão lhe concedia uma audiência. Quatro dias antes, sentinelas do regimento de Preobrajenski estavam de guarda à porta da casa onde conduziram Balachov; no lugar delas, agora, havia dois granadeiros franceses, de uniforme azul com largas bandas e barretinas de pêlo, uma escolta de hússares e de ulanos, uma brilhante comitiva de ajudantes- de-campo, pajens e, generais, que aguardavam a saída de Napoleão à roda do cavalo do imperador, mantido pela arreata pelo mameluco Roustan. Napoleão recebeu Balachov na mesma casa de Vilna em que Alexandre lhe entregara a mensagem. [VI] Embora Balachov estivesse muito habituado às magnificências da corte, o luxo e o fausto da de Napoleão impressionaram-no. O conde de Turenne introduziu-o numa grande antecâmara onde esperavam muitos generais, camareiros e magnates polacos, a maior parte dos quais ele vira já na Rússia. Duroe veio anunciar que Napoleão receberia o general russo antes do passeio habitual, Após alguns minutos de espera, apareceu o camareiro de serviço, que, com uma polida reverência a Balachov, o convidou a segui-lo. Balachov entrou numa salinha cuja porta dava para um gabinete, para esse mesmo gabinete em que recebera as últimas ordens do imperador da Rússia. Esperou dois ou três minutos. Atrás da porta ouviram-se passos precipitados. Os dois batentes foram bruscamente abertos, toda a gente se calou, e novos passos firmes e enérgicos ressoaram no gabinete: era Napoleão. Acabava de vestir-se para o seu passeio a cavalo, Envergava um uniforme azul, cujas bandas abertas deixavam ver o colete branco que lhe moldava a rotundidade do ventre, e calções brancos também cingindo-lhe as coxas gordas e as curtas pernas metidas em botas altas, de montar. Via-se que acabara de pentear os cabelos curtos, mas uma madeixa se lhe derramava pela ampla testa. O branco e anafado pescoço ressaltava da gola negra do uniforme; rescendia a água-de-colónia. Em seu rosto cheio, ainda novo, de queixo proeminente, pintava-se a benevolência e a majestade de um acolhimento imperial. Entrou apressado, uma espécie de estremecimento nervoso a cada passo que dava, a cabeça ligeiramente atirada para trás. Toda a sua figura, repleta e curta, de ombros largos e espessos, o ventre e o arcabouço do peito fugindo-lhe para avante, davam-lhe esse aspecto representativo e imponente próprio dos quarentões que sempre viveram vida folgada. E, depois, via-se que nesse dia estava muito bem disposto. Com uma ligeira inclinação de cabeça respondeu à profunda e respeitosa saudação de Balachov, depois aproximou-se dele e imediatamente se pós a falar como um homem para quem todos os minutos são preciosos, que não se dá sequer ao trabalho de preparar os seus discursos, persuadido de que dirá sempre o que é preciso. — Bons dias, general! — exclamou. — Recebi a carta, que me trouxe, doimperador Alexandre e tenho muito prazer em vê-lo. — Fitou Balachov com os seus grandes olhos, desviando-os, porém, imediatamente. Era evidente que a personalidade de Balachov o não interessava: o que tinha interesse para ele era o que se passava na sua própria alma. Tudo o que lhe era exterior não tinha qualquer importância, uma vez que no mundo — pensava ele — tudo dependia da sua vontade. — Não desejo, nem desejei a guerra — disse ele. — Obrigaram-me a fazê-la. E mesmo agora — acrescentou, acentuando estas palavras — estou pronto a aceitar todas as explicações que me possa dar. E pôs-se a expor, pormenorizadamente, as causas do seu descontentamento em relação ao Governo russo. Graças ao tom tranquilo, moderado e até mesmo amistoso que tomou então, Balachov persuadiu-se de que na verdade ele desejava a paz e estava disposto a entabular negociações. — Sire!... O imperador, meu senhor... — tentou dizer Balachov, quando Napoleão, que se calara, o interrogou com o olhar. O russo trazia preparado o seu discurso, mas aqueles olhos fitos nele desorientaram-no. «Está perturbado, calma», parecia dizer Napoleão, que examinava, com um imperceptível sorriso nos lábios, o uniforme e a espada de Balachov. Este, serenando, continuou. Disse que o imperador Alexandre não considerava casus belli suficiente o pedido de passaportes de Kurakine, que este agira por iniciativa própria, sem conhecimento do monarca, que Alexandre não queria a guerra e não assinara qualquer pacto com a Inglaterra. — Ainda não — interveio Napoleão, mas, receoso de se deixar arrastar pelos seus sentimentos, franziu as sobrancelhas e baixou ligeiramente a cabeça, dando a entender a Balachov que podia continuar. Exposto que foi quanto lhe fora ordenado que dissesse, Balachov concluiu que o imperador Alexandre desejava a paz, porém que só entabularia negociações com a condição de... Neste ponto hesitou: lembrava-se das palavras que Alexandre não escrevera na sua carta mas que ordenara fossem introduzidas, sem esquecimento, no seu rescrito a Saltikov e que ele fora encarregado de repetir textualmente a Napoleão. Lembrava-se das palavras: «... enquanto houver um só inimigo em armas sobre a terra russa», mas um sentimento muito complexo reteve-lhe a frase, prestes a escapar-lhe, Foi-lhe impossível pronunciá-la, embora o desejasse.Acrescentou: — Com a condição de que as tropas francesas se retirem para o outro lado do Niémen. Napoleão dera-se conta da perturbação de Balachov no momento de pronunciar estas palavras: o rosto estremeceu-lhe e os músculos da barriga da perna esquerda tremeram-lhe. Sem se mover do sítio em que estava, mas em voz mais alta e mais precipitada, pôs-se a falar. Durante todo o discurso que se seguiu, Balachov, sempre que baixava os olhos, reparava, sem querer, no tremor da barriga da perna esquerda de Napoleão, que se ia acentuando à medida que o soberano levantava a voz. — Não desejo menos a paz que o imperador Alexandre — principiou ele. — Não fui eu quem durante dezoito meses fez tudo para a conseguir? Há dezoito meses que espero explicações. E que exigem de mim para entabular negociações? — acrescentou, franzindo o sobrolho e fazendo um gesto enérgico com a pequena mão branca e anafada. — A retirada das tropas para o outro lado do Niémen, Majestade — disse Balachov. — Para o outro lado do Niémen? — repetiu Napoleão. — Então agora querem que eu retroceda para lá do Niémen? — insistiu, fitando Balachov nos olhos. Este inclinou respeitosamente a cabeça. Em vez de lhe exigirem, como quatro meses antes, a evacuação da Pomerânia, agora apenas lhe pediam a retirada para o outro lado do Niémen. Napoleão voltou as costas, num movimento brusco, e pôs-se a andar de um lado para o outro. — Com que então, exigem de mim que retire para o outro lado do Niémen para entabular negociações? Mas há dois meses queriam que me retirasse para o outro lado do Óder e do Vístula, e apesar disso estão prontos agora a entabular negociações.— Percorreu a sala em silêncio de um extremo ao outro, depois deteve-se novamente diante de Balachov. Este notou que a barriga da perna esquerda do imperador ainda tremia mais e que a sua máscara se havia como que petrificado numa expressão severa. Napoleão conhecia esta sua particularidade: «A vibração da barriga da perna esquerda é, em mim, um grande sinal», costumava dizer. — Proposta como essa, o abandono do Óder e do Vístula, é para fazer ao grão- duque de Baden, não a mim — exclamou, de súbito, com uma violência que osurpreendeu a ele próprio. Mesmo que me oferecessem Petersburgo e Moscovo, não aceitaria as vossas condições. Dizem os senhores que eu principiei esta guerra! Mas quem primeiro concentrou as suas tropas? O imperador Alexandre e não eu. E vem o senhor falar-me de negociações quando eu já gastei milhões, quando sois aliados de Inglaterra e a vossa situação é má. Propõem-me negociações? Mas qual o objectivo da vossa aliança com a Inglaterra? Que vos deu Ela? — Falava precipitadamente; via-se que o seu discurso não tentava mostrar as vantagens da paz e discutir a viabilidade desta, mas apenas demonstrar quer o seu direito, quer a sua força e provar os erros e as faltas de Alexandre. Quando principiara a falar, tinha por finalidade, evidentemente, chamar a atenção para as vantagens da sua situação e que apesar de tudo aceitava as negociações. Mas agora, quanto mais falava menos senhor era das suas palavras. — Diz-se que assinaram a paz com os Turcos? Balachov inclinou a cabeça afirmativamente. — A paz foi assinada... — principiou. Mas Napoleão cortou-lhe a palavra. Havia nele uma necessidade imperiosa de monologar, e prosseguiu com essa eloquência irritada e essa intemperança de linguagem própria, às vezes, das pessoas favorecidas pela sorte. — Sim, bem sei, assinaram a paz com os Turcos sem terem conseguido nem a Moldávia nem a Valáquia. E eu teria dado essas províncias ao seu imperador, da mesma maneira que lhe ofereci a Finlândia. Sim – continuou — prometera e daria ao imperador Alexandre a Moldávia e a Valáquia, mas a verdade é que essas belas províncias lhe fugiram das mãos. E no entanto teria podido anexá-las ao seu império e sob o seu reinado a Rússia alargar-se-ia do golfo de Bótnia até às embocaduras do Danúbio. Nem a grande Catarina faria mais. — À medida que falava ia ficando mais exaltado. De um lado para o outro, na sala, repetia a Balachov, quase palavra por palavra, o que dissera na entrevista de Tilsitt. — E teria tido tudo isso devido à minha amizade. Ah, que belo reino, que belo reino! — Repetiu várias vezes estas palavras, parou, tirou da algibeira uma caixa de rapé, de ouro, e sorveu avidamente uma pitada. — Que belo reino poderia ter sido o do imperador Alexandre! Olhou para Balachov com ar de compaixão e, como este ia dizer qualquer coisa, interrompeu-o:— Que pode ele desejar e procurar que eu lhe não pudesse oferecer com a minha amizade?... — pronunciou, encolhendo os ombros. — E pensou que seria melhor rodear-se dos meus inimigos, e que inimigos? Chamou para junto de si os Stein, os Armfeld, os Bennigsen, os Wintzengerode. Stein, um traidor expulso do seu país, Armfeld, um libertino e um intriguista, Wintzengerode, um súbdito francês foragido, Bennigsen, um pouco mais militar que os outros, mas tão inepto como eles, que não foi capaz de fazer fosse o que fosse em 1807 e cujo nome deve despertar no imperador Alexandre tremendas recordações... Se eles prestassem para alguma coisa, vamos, podiam ser úteis — prosseguiu Napoleão, cuja palavra dificilmente lhe obedecia, tantos os argumentos que lhe acorriam para demonstrar o seu direito e a sua força, a seus olhos, afinal, uma e a mesma coisa. — Não, para nada prestam, nem na guerra nem na paz! Barclay, segundo dizem, é o mais esperto deles todos, mas eu não sou dessa opinião, a julgar pelos seus primeiros passos. E eles que fazem? Que fazem todos estes cortesãos? Pfuhl propõe, Armfeld discute, Bennigsen examina. Quanto a Barclay, chamado para agir, não sabe por onde começar. E o tempo vai passando sem nada acontecer de novo, Militar só Bagration. É estúpido, mas tem experiência, golpe de vista e decisão... E que papel desempenha o vosso jovem imperador no meio dessa massa amorfa? Comprometem-no e fazem pesar sobre ele a responsabilidade de tudo. Um soberano só deveria encontrar-se à frente do exército quando fosse general — concluiu Bonaparte, como se estas palavras fossem uma provocação directa ao czar. Ele bem sabia que Alexandre tinha o sonho de ser um grande capitão. — Há oito dias que a campanha principiou e os senhores não souberam defender Vilna. O exército russo está cortado em dois e foi expulso das províncias polacas. As tropas rebelam-se. — Perdão, Majestade — interrompeu Balachov, que, com dificuldade, apreendia aquela torrente de palavras — Pelo contrário, as tropas ardem em desejos... — Sei tudo — interrompeu Napoleão. — Sei tudo e o número dos vossos batalhões tão bem como dos meus. Os senhores nem duzentos mil homens têm em armas e eu tenho mais do triplo. Dou-lhe a minha palavra de honra — acrescentou, esquecendo-se de que esta sua garantia não podia ser tomada a sério —, dou-lhe a minha palavra de honra que tenho quinhentos e trinta mil homens deste lado do Vístula. Os Turcos não os podem ajudar: para nada prestam,e mostraram-no bem quando assinaram a paz convosco. Os Suecos, esses estão predestinados a ser governados por loucos. Tinham um rei louco: mudaram de rei e arranjaram outro, Bernadotte, que logo enlouqueceu também, pois é preciso estar doido para, sendo sueco, assinar uma aliança com a Rússia. Napoleão sorriu malevolamente e sorveu mais uma pitada de rapé. Cada frase sua sugeria uma réplica a Balachov, que gesticulava, como se fosse pedir a palavra. Napoleão, porém, interrompia-o sempre. A propósito da pretensa loucura dos Suecos queria dizer que a Suécia se transformava numa ilha, com a Rússia por detrás dela, mas Napoleão vociferava, para lhe abafar a voz. Estava nesse estado de irritação em que as pessoas têm necessidade de falar, de falar, de falar sempre, apenas para provarem a si próprias terem razão. A situação de Balachov era penosa. Como embaixador, receava comprometer a sua dignidade e sentia dever apresentar objecções; como homem, encolhia-se moralmente perante os excessos de ira sem causa a que o imperador se entregava. Sabia que aquela torrente de palavras não tinha grande importância, que Napoleão, quando voltasse a si, seria o primeiro a envergonhar-se do que dissera. Conservava-se diante dele com os olhos baixos, observando as grossas pernas do imperador e procurando evitar-lhe o olhar. — Que importam, no fim de contas, todos os vossos aliados? — dizia este. — Também os tenho, os Polacos: oitenta mil homens que se batem como leões. E não tarda que sejam duzentos mil. E indignado, provavelmente por ter a consciência de estar a mentir e da atitude de Balachov, o qual, dando a impressão de resignado perante a sua sorte, não dizia palavra e se mantinha sempre na mesma atitude, voltou-se bruscamente, veio colocar-se à frente do seu interlocutor e, com violentos gestos das suas mãos brancas, quase gritou: — Fique sabendo que, se levantarem a Prússia contra mim, eu apagá-la-ei do mapa da Europa. Estava pálido e desfigurado — pela ira e uma das suas pequenas mãos sobre a outra simulava o gesto de apagar. — Sim, fá-los-ei retroceder para lá do Dvina, para lá do Dniéper e restabelecerei contra vós essa barreira que a Europa, cega e criminosa, permitiu que desaparecesse. Sim, eis o que vos espera, eis o que ganharam afastando-se demim — concluiu. Depois, em silêncio, deu alguns passos, os largos ombros agitados por movimentos nervosos. Guardou a caixa do rapé na algibeira do colete, voltou a tirá-la, levou-a várias vezes às narinas e de novo veio postar-se diante de Balachov. Calado, por momentos, olhou ironicamente nos olhos o general russo, dizendo em voz serena: — E no entanto que belo reino poderia ter sido o do seu senhor! Balachov, sentindo ser preciso objectar fosse o que fosse, disse que da parte dos Russos as coisas não se apresentavam sob um aspecto tão tétrico. Napoleão continuou calado, olhando-o sempre com a mesma ironia, naturalmente sem o ouvir. Balachov acrescentou que na Rússia se esperavam óptimos resultados da guerra. Napoleão abanou a cabeça, condescendente— mente, como a dizer-lhe: «Bem sei, falas assim por obrigação, mas nem tu próprio acreditas no que estás a dizer. Convenci-te.» No fim da tirada de Balachov, Napoleão puxou de novo da caixa de rapé, tomou outra pitada, e, como se fizesse um sinal, bateu duas vezes com o pé no chão. A porta abriu-se; um camareiro, respeitosamente vergado pela cintura, entregou ao imperador o chapéu e as luvas, outro pôs-lhe na mão o lenço de assoar. Napoleão, sem lhes prestar a mínima atenção, voltou-se para Balachov: — Assegure, em meu nome, ao imperador Alexandre — disse, pegando no chapéu —, que continuo a ter por ele a mesma devoção de sempre: conheço-o e aprecio altamente as suas grandes qualidades. Não continuo a retê-lo, general, receberá a minha carta para o imperador. E Napoleão encaminhou-se rapidamente para a porta. Todos os que estavam na sala de espera se precipitaram para a escada. [VII] Depois de tudo o que Napoleão lhe dissera, dos seus arrebatamentos coléricos e das suas últimas palavras secas em extremo: «Não o retenho mais, general, receberá a minha carta dirigida ao imperador», Balachov persuadiu-se de que o imperador não só não tinha o mais pequeno desejo de o tornar a ver, mas até evitaria mesmo voltar a encontrá-lo, a ele, embaixador humilhado, e sobretudotestemunha da sua intempestiva exaltação. Mas, com grande espanto seu, foi convidado por Duroe, nesse mesmo dia, para sentar-se à mesa do imperador. Bessières, Caulaincourt e Berthier eram também convivas do jantar. Napoleão recebeu Balachov alegre e afavelmente. Não só não deu mostras de molestado ou arrependido pelo que se passara nessa manhã, mas, muito pelo contrário, procurou por o seu hóspede perfeitamente à vontade. Era evidente de há muito estar convencido de que não podia enganar-se e que aos seus próprios olhos tudo quanto ele próprio fizesse estaria bem feito, não porque os seus actos estivessem de acordo com a ideia que ele tinha do bem e do mal, mas simplesmente por ser ele o autor de tais actos. Voltara muito alegre do seu passeio a cavalo pelas ruas de Vilna, onde a multidão o acolhera e aclamara com entusiasmo. Todas as janelas das casas nas ruas que ele atravessara ostentavam colgaduras e bandeiras com as suas armas e as senhoras polacas haviam-no saudado agitando os lencinhos. A mesa sentou Balachov a seu lado e não só o tratou amavelmente, mas como se fosse um dos seus cortesãos, como se pertencesse ao número dos que aprovavam os seus planos e deviam alegrar-se com os seus êxitos. Entre outras coisas, veio à fala Moscovo, e Bonaparte interrogou-o acerca da capital, ao mesmo tempo como um viajante, desejoso de se instruir, que colhe informações sobre um país desconhecido que deseja visitar, mas também com a convicção de que Balachov, russo que era, se sentiria muito lisonjeado com esse interesse. — Quantos habitantes tem Moscovo? Quantas casas? É verdade que lhe chamam Mouscou la sainte? Quantas igrejas tem? — perguntou. E, ao ouvir que mais de duzentas, observou: — Para quê tantas igrejas? — Os Russos são muito tementes a Deus — replicou Balachov. — Convém notar que grande número de conventos e de igrejas é sempre sinal de atrasada civilização — disse o imperador, procurando a aprovação de Caulaincourt. Balachov, respeitosamente, ousou exprimir opinião contrária. — Cada terra com seus usos — disse. — Mas nada há na Europa que se pareça com isso — voltou Napoleão. — Que Vossa Majestade me perdoe — tornou o russo —, mas, além da Rússia, há a Espanha também, onde existem, igualmente, muitos conventos e igrejas.Esta resposta, alusão à recente derrota dos Franceses em Espanha, foi muito apreciada na corte da Rússia quando Balachov aludiu a ela, mas não produziu o mais pequeno efeito na mesa de Napoleão, onde passou despercebida. Via-se na indiferença das máscaras atentas dos senhores marechais que eles não haviam apreendido o sal da resposta, bem sublinhado pela entoação de Balachov. «Se isso levava água no bico, não demos por tal, o que quer dizer que graça nenhuma tem», pareciam dizer. Tão bem apreciada foi tal resposta que Napoleão lhe não prestou qualquer atenção e se limitou a perguntar a Balachov quais as cidades atravessadas pela estrada directa para Moscovo. Balachov, sempre de sobreaviso, respondeu que assim como todos os caminhos levavam a Roma, todos os caminhos levavam a Moscovo, que, aliás, eram muitas as estradas e que no número delas se contava a que passava por Poltava, escolhida por Carlos XII. Balachov corou involuntariamente, satisfeito com resposta tão feliz. Mas ainda não acabara de pronunciar o nome de Poltava já Caulaincourt falava dos incómodos da estrada de Petersburgo a Moscovo e das suas recordações da capital. Depois do jantar foram tomar café para o gabinete de Napoleão, o qual, quatro dias antes, pertencera ao imperador Alexandre. Bonaparte sentou-se, mexendo o seu café numa chávena de Sévres, e apontou a Balachov uma cadeira a seu lado. Depois do jantar o homem está sempre numa disposição bem conhecida, a qual, mais persuasiva que qualquer razão lógica, o leva a sentir-se satisfeito consigo mesmo e disposto a não ver senão afeições à sua roda. O imperador estava nessa feliz disposição. Imaginava-se rodeado de amigos que o adoravam. Estava convencido de que o próprio Balachov, depois daquele jantar, também era seu amigo e admirador. Observou-lhe com um sorriso amável e ligeiramente trocista: — Disseram-me que o imperador Alexandre ocupava esta mesma sala, É curioso, não acha, general? — Não lhe passou pela cabeça que esta observação não podia agradar ao seu interlocutor, visto ser uma prova da sua superioridade, dele, Napoleão, sobre Alexandre. Balachov, como não podia responder, limitou-se a inclinar a cabeça silenciosamente. — Sim, há quatro dias, discutiam nesta mesma sala Wintzengerode e Stein —continuou Napoleão, sempre com um sorriso trocista e seguro de si. — Eis o que eu não posso perceber, que e imperador Alexandre se haja rodeado de todos os meus inimigos pessoais. É o que eu não posso compreender... Não teria ele pensado que eu poderia vir a fazer o mesmo? — Formulando a pergunta, a Balachov, sentia-se, evidentemente, arrastado pela ira que o tomara nessa manhã, recordação bem presente no seu espírito. — Pois é bom que ele saiba que o farei — acrescentou, levantando-se e afastando de si a chávena. — Enxotarei da Alemanha toda a sua parentela, os Wurtemberg, os Bade, os Weimar.... sim, correrei com eles. Trate de lhes arranjar refúgio na Rússia! Balachov abanou a cabeça, dando a entender que desejava retirar-se e que não ouvia semelhantes considerações senão por lhe ser impossível proceder doutra maneira. Napoleão não dera por coisa alguma; continuou a tratar Balachov não como um enviado do seu inimigo, mas como um homem agora absolutamente dedicado e que devia sentir-se contente com a humilhação infligida ao seu antigo amo. — Porque assumiu o imperador Alexandre o comando dos seus exércitos? Que significa isso? A guerra é o meu mister, o dele é reinar, não comandar as tropas. Para que assumiu ele uma tal responsabilidade? Bonaparte tornou a puxar da caixa de rapé, deu alguns passos em silêncio e de repente abeirou-se de Balachov. Com um ligeiro sorriso, num gesto firme, pronto e simples, como se executasse um acto não só importante, mas em extremo lisonjeiro para o general russo, aproximou a mão do rosto daquele homem de quarenta anos e puxou-lhe ao de leve uma orelha. Receber um puxão de orelhas do imperador era considerado na corte de França uma grande honra e uma alta mercê. — Então, não diz nada, admirador e cortesão do imperador Alexandre? — pronunciou, ele, como se houvesse qualquer coisa de divertido de na sua presença ser-se cortesão e admirador de outro homem que não ele, Napoleão. — Os cavalos para o general estão prontos? — acrescentou, respondendo com um aceno de cabeça à saudação de Balachov. — Dêem-lhe os meus, têm muito que andar. A carta que Balachov levou consigo seria a última que Napoleão escreveria a Alexandre. Todos os pormenores da precedente conversa foram transmitidos ao imperador russo e a guerra principiou. [VIII] Depois da sua conversa em Moscovo com Pedro, o príncipe André dirigiu-se a Petersburgo para tratar de negócios, dissera ele à família, mas em verdade para se encontrar com Anatole Kuraguine, encontro que ele considerava indispensável. Procurou logo informar-se do paradeiro deste, mas Kuraguine já não estava em Petersburgo, Pedro fizera saber ao cunhado que André o procurava. Anatole obtivera imediatamente do ministro da Guerra uma comissão e partira a incorporar-se no exército da Moldávia. Em Petersburgo, o príncipe André encontrou Kutuzov, seu antigo general, sempre muito bem disposto a seu favor. Propôs-lhe que fosse com ele para o Moldávia, de cujo exército o velho general fora nomeado comandante-chefe. André, nomeado adido ao estado-maior do quartel-general, partiu para a Turquia. O príncipe considerava inconveniente escrever a Kuraguine desafiando-o para um duelo. Achava que desafiá-lo sem alegar um pretexto plausível seria, da sua parte, comprometer a condessa Rostov; por isso procurava encontrá-lo pessoalmente, o que lhe proporcionaria a oportunidade desejada. Mas também não encontrou Kuraguine no exército da Turquia; este mal soubera da chegada de André regressara à Rússia. Naquele país desconhecido e nas suas novas condições de existência a vida pareceu-lhe mais fácil. Depois da traição da noiva, tanto mais penosa para ele quanto mais procurava esconder o desgosto que sofrera, o meio em que fora feliz tornara-se-lhe insuportável e a liberdade e a independência, que tão caras lhe eram, ainda mais penosas. Não voltara ao estado de espírito que se apoderara dele pela primeira vez diante do céu de Austerlitz e às ideias que tanto gostava de discutir com Pedro e as quais lhe haviam enchido a solidão de Bogutcliarovo e, depois, da Suíça e de Roma. Receava mesmo tornar a evocá-las, a essas ideias, que lhe abriam horizontes luminosos e infinitos. Agora não se ocupava de mais nada senão de interesses práticos imediatos, sem relação com os de outrora, e punha nisso tanto maior ardor quanto mais distantes lhe ficavam as antigas ideias. Dir-se-ia que a abóbada do céu perdida no infinito que tivera por cima da cabeça se transformara de súbito numa abóbada baixa, limitada, que oesmagava, e tudo era nítido e claro, sem nada já de misterioso e etcrno. De todas as ocupações a que podia consagrar-se, o serviço militar era a mais simples e a mais familiar. Nas suas funções de adido ao estado-maior de Kutuzov ocupou-se com perseverança e zelo do seu mister, surpreendendo o chefe com o afã e a pontualidade do seu trabalho. Não topou com Kuraguine na Turquia, julgou desnecessário ir atrás dele para a Rússia, o que o não impediu de dizer de si para consigo que, apesar do tempo que passara já, se viesse a encontrar Anatole, não obstante o desprezo que tinha por ele e as razões que alegava para o julgar indigno de se bater consigo, consideraria indispensável, no entanto, desafiá-lo, pela mesma razão que um esfomeado que vê um prato de sopa não pode deixar de se atirar a ele. E o certo é que o sentimento de que a ofensa que recebera ainda não fora vingada, que a sua ira ainda não extravasara, continuando entranhada no fundo do seu coração, lhe envenenava a calma fictícia que criara na Turquia graças a uma actividade cheia de zelo e preocupações e de certa ambição e vaidade. Quando, em 1812, chegou a Bucareste, onde, havia dois meses, Kutuzov passava os dias e as noites em casa de uma amante valáquia, a notícia da guerra com Napoleão, o príncipe André pediu licença para ser transferido para o exército do Ocidente. Kutuzov, a quem o zelo de Bolkonski ofuscava, como uma censura viva à sua indolência, de muito boa vontade lhe deu consentimento, confiando-lhe uma missão junto de Barclay de Tolly. Antes de se juntar ao exército, que em Maio estava no acampamento d6 Drissa, André passou por Lissia Gori, que ficava no seu caminho, a três verstas da estrada real de Smolensk. Naqueles três últimos anos houvera tantas modificações na sua vida, tantas revoluções nas suas ideias e nos seus sentimentos, vira tantas coisas nas suas viagens no Ocidente e no Oriente, que, ao chegar a Lissia Gori, sentiu uma impressão estranha verificando que a vida ali se mantinha imutável nos seus mais pequenos pormenores. Entrou na alameda e transpôs o pórtico de pedra da residência como se entrasse num castelo encantado. Sempre o mesmo alinho, o mesmo asseio, a mesma serenidade em casa: os móveis eram os mesmos, as mesmas paredes; os ruídos os mesmos; o mesmo cheiro, as mesmas caras tímidas, embora um pouco envelhecidas. A princesa Maria a mesma, já não muito nova, feia e medrosa, vivendo continuamente em terrores e transes morais e assim passando os melhores anos da sua existência sem utilidade nem alegria. Mademoiselle Bourienne não mudara, apreciando alegremente os mais curtosmomentos, fabricando para si própria as mais belas esperanças, coquette e satisfeita. «Apenas adquirira mais segurança em si própria», assim pensou André. O preceptor, Dessalles, que ele trouxera da Suíça, vestia um redingote de talho eslavo, mastigava o russo com os criados e era sempre o mesmo pedagogo mediocremente inteligente, mas instruído, honestíssimo e um pouco pedante. O velho príncipe mudara fisicamente apenas nisto: a um canto da boca notava-se que perdera um dente; moralmente estava na mesma. Tornara-se apenas mais irritável e mais desconfiado de tudo neste mundo. Só Nikoluchka crescera, transformara-se, ganhara cores rosadas, e os seus cabelos eram agora castanhos encaracolados, rindo sem saber porquê, divertido com tudo. Soerguia o lábio superior da sua linda boca, tal qual a mãe, a falecida princesinha. Era o único que não queria saber da regra imutável que parecia reinar naquele castelo encantado. Mas, embora as aparências fossem as mesmas, as relações íntimas dos habitantes tinham mudado muito desde que André partira. Havia dois campos opostos naquela casa, estranhos um ao outro e inimigos, que apenas agora na sua presença se aproximavam, renunciando provisória— mente aos seus hábitos. A um desses campos pertencia o velho príncipe, Mademoiselle Bourienne e o arquitecto; ao outro, Maria. Dessalles, Nikoluchka e todas as criadas e amas. Durante a sua estada todos comeram juntos; sentia-se, porém, um mal-estar geral e o príncipe André tinha a sensação de ser um hóspede a favor de quem se faz uma excepção, e de que a sua presença era um embaraço para toda a gente. No primeiro dia, à mesa, sentindo esse embaraço, quedou-se silencioso, e o velho príncipe, que notava o seu ar pouco à vontade, mostrou-se igualmente taciturno e silencioso, retirando-se assim que a refeição acabou. Quando, pela noite, André o veio ver, e, para o distrair, se pôs a contar-lhe a campanha do jovem conde Kamenski, o pai, de repente, principiou a falar da princesa Maria, acusando-a de ser supersticiosa e de não gostar de Mademoiselle Bourienne, em sua opinião a única pessoa que lhe era verdadeiramente dedicada. O velho príncipe assegurou ao filho que se estava doente a culpa era de Maria, pois o atormentava de propósito e o irritava, estragando o príncipezinho com os seus excessos de indulgência e as suas tolas histórias. Sabia muito bem que atormentava inutilmente a filha, que a vida dela, em tais condições, era muito penosa, mas também sabia que não podia impedir-se a si próprio de a atormentar e que ela merecia esse tratamento.«Por que razão o André», dizia de si para consigo, «que vê tudo isto, não me fala da irmã? Naturalmente porque julga que eu sou algum malfeitor ou um velho doido, que, sem motivos, se afastou da filha para se aliar com a francesa? Então ele não me compreende. É por isso que preciso de lhe explicar, é preciso que ele me entenda.» E pôs-se a demonstrar as razões por que não podia tolerar o carácter absurdo da filha. — Se o pai me não tivesse pedido — volveu André, sem olhar para o príncipe, e era a primeira vez em sua vida que se atrevia a censurá-lo —, não lhe teria falado no caso, mas, desde que o pai pede a minha opinião, vou dizer-lhe francamente o que penso de tudo isto. Se existe entre o pai e Macha qualquer mal-entendido ou desacordo, não posso de maneira alguma acusá-la disso. Pois sei perfeitamente quanto ela lhe quer e quanto o venera. Desde que me pergunta a minha opinião — continuou André, irritando-se, o que, de resto, nesses últimos tempos se lhe tornara habitual —, só lhe direi uma coisa: se há qualquer mal- entendido, a única culpada é a insignificante dessa mulher, indigna de ser amiga de sua filha. O velho, no primeiro momento, não cabia em si de surpreendido, os olhos fitos em André, mostrando, com um sorriso forçado, a falta do dente, coisa a que o filho não conseguira habituar-se. — Que amiga é essa, meu caro? Hem! Estás a repetir a lição que aprendeste! Hem! — Meu pai, não pretendo ser seu juiz — disse André num tom azedo e duro —, mas obrigou-me a isso e eu digo e direi sempre que a princesa Maria não tem culpa, que os culpados... a culpada é essa francesa... é essa francesa... — Ah! Tu estás a julgar-me!... Estás a julgar-me! — exclamou o velho, em voz serena, e, assim pareceu a André, com um certo embaraço. Mas, de súbito, erguendo-se de um salto, gritou: — Fora daqui! Fora daqui! Não voltes a pôr aqui os pés!... O príncipe André resolveu abalar imediatamente, mas Maria implorou-lhe que ficasse mais um dia, Durante todo esse dia não viu o pai, que não saiu dos seus aposentos nem admitiu ao pé de si mais alguém além de Mademoiselle Bourienne e de Tikon. Por várias vezes perguntou se André já partira. No dia seguinte, antes da abalada, o príncipe André foi despedir-se do filho. A criança, saudável e decabelos encaracolados, como sua mãe, sentou-se-lhe nos joelhos. O pai pôs-se a contar-lhe a história do Barba— Azul, mas, antes de chegar ao fim, calou-se, pensativo. Não era na gentil criança que tinha nos joelhos que pensava, mas em si próprio. Procurava em si mesmo, sem nada encontrar, qualquer coisa que lhe dissesse estar arrependido de ter provocado a ira do pai ou penalizado por se ver obrigado a deixá-lo zangado com ele pela primeira vez na sua vida. E o mais importante ainda é que procurava debalde em si mesmo vestígios da sua antiga ternura pelo filho, tentando despertá-la acariciando-o e sentando-o nos seus joelhos. — Anda! Conta-me o fim — dizia o filho. Sem lhe responder, fê-lo saltar dos seus joelhos e saiu. Logo que deixava as suas ocupações quotidianas, sobretudo assim que voltava a sentir-se no meio antigo, em que fora feliz, o tédio da existência apoderava-se dele tão intenso que procurava fugir o mais depressa que podia das suas recordações, fazendo por encontrar uma ocupação qualquer. — Decididamente, vais-te, André? — disse-lhe a irmã. — Louvado seja Deus que me posso ir embora — respondeu-lhe ele— e só lamento não poderes fazer outro tanto. — Porque falas assim? — voltou Maria.— Porque falas assim quando partes para essa guerra terrível e ele é tão velho! Mademoiselle Bourienne disse-me que perguntou por ti... Maria não podia abordar este assunto sem que a emoção lhe fizesse tremer os lábios e as lágrimas se lhe soltassem dos olhos. O príncipe André afastou-se e principiou a passear na sala. — Meu Deus, meu Deus! Quando uma pessoa pensa que seres desprezíveis podem ser a causa da infelicidade dos outros! — exclamou, com uma raiva que assustou a irmã. Compreendera que os seres de quem ele falava eram não só Mademoiselle Bourienne, que a fizera infeliz a ela, mas também o homem que o fizera infeliz a ele. — André, só te peço uma coisa, suplico-te — disse-lhe ela, travando-lhe do braço e fitando-o com uns olhos que cintilavam através das lágrimas.— Vai, compreendo-te — acrescentou, baixando os olhos.— Mas não penses que são os homens a causa das nossas dores. Os homens não são mais do que os Seusinstrumentos. — O olhar de Maria passou por cima da cabeça de André, como se ela procurasse, confiante, com os olhos, uma imagem familiar no seu lugar habitual.— As dores são-nos enviadas por Ele e não pelos homens. Os homens são instrumentos, não são culpados. Se estás convencido de que alguém andou mal contigo, esquece e perdoa. Nós não temos o direito de castigar. Um dia compreenderás a felicidade de perdoar. — Se eu fosse mulher, assim faria. Perdoar é uma virtude de mulher. Mas o homem não deve nem pode esquecer e perdoar. — Embora até então não tivesse pensado em Kuraguine, toda a sua cólera insatisfeita lhe afluiu subitamente ao coração. «Se Maria me pede tanto que perdoe é porque há muito que eu o devia ter castigado», disse de si para consigo. E, sem responder à irmã, pensou, com uma alegria raivosa, no momento em que encontraria Kuraguine, que sabia no exército. A princesa Maria ainda suplicou ao irmão que ficasse mais um dia; disse-lhe saber muito bem que o pai sofreria caso ele partisse sem se reconciliarem. O príncipe André respondeu-lhe que podia muito em breve estar de volta do exército e que não deixaria de escrever ao pai, mas que naquela altura quanto mais tempo ali estivesse mais o seu desentendimento se acentuaria. — Adeus, André. Recorde-se de que as desgraças provêm de Deus e que os homens nunca são culpados. — Tais foram as últimas palavras que a irmã lhe disse no momento da despedida. «Assim deve ser!», pensava o príncipe André ao deixar a alameda de Lissia Gori. «Ela, pobre e inocente criatura, aqui vai ficar entregue a este velho meio doido. O velho sabe que é culpado, mas não pode modificar-se. O meu pequeno cresce e sorri à vida, a vida, onde, como todos os outros, virá a enganar ou ser enganado. Eu vou para a guerra, porquê? Nem eu próprio o sei, e só desejo encontrar esse homem que desprezo para lhe dar uma oportunidade de me matar e de se rir de mim!» Os elementos de que a sua existência se compunha não deixavam de seios mesmos, mas antes formavam um conjunto uno e agora iam por água abaixo, E uma série de visões insensatas e incoerentes se lhe foi representando no espírito. [IX] O príncipe André chegou em fins de Junho ao quartel-general. As tropas do primeiro exército, sob o comando do imperador, estavam concentradas no campo fortificado de Drissa, as do segundo recuavam, esforçando-se por juntar-se ao primeiro exército, de que as separavam, dizia-se, forças francesas muito consideráveis. Toda a gente se mostrava descontente com a marcha geral das operações, mas a ninguém passava pela cabeça que se pudesse vir a dar uma invasão das províncias russas, ninguém mesmo supunha que a guerra pudesse ultrapassar as províncias polacas de oeste. O príncipe André encontrou Barclay de Tolly, junto do qual fora nomeado adido, estabelecido nas margens do Drissa. Como não havia qualquer casal ou povoado nas imediações do acampamento, grande número de generais ou dignitários da corte que estavam no exército tinha-se espalhado por uma área de dez verstas em volta, nas melhores casas das aldeias de um lado e outro do rio. Barclay de Tolly alojara-se a quatro verstas do imperador, Acolheu Bolkonski seca e friamente e disse-lhe, com o seu sotaque estrangeiro, que informaria o czar para que se lhe desse algum destino e que entretanto ficaria pertencendo ao seu estado-maior, Anatole Kuraguine, que André supunha no exército, também ali se não encontrava. Estava em Petersburgo, e esta notícia não lhe foi de todo desagradável. Todo o seu interesse se concentrava agora naquela guerra gigantesca e sentia- se feliz por se ver livre por algum tempo do nervosismo que lhe, causava a lembrança de Kuraguine. Durante os primeiros dias, em que ninguém lhe perguntou fosse o que fosse, deu-se a percorrer todo o campo fortificado, e, graças aos seus próprios conhecimentos e às conversas que teve com pessoas competentes, tratou de formar uma ideia exacto, da situação militar. Um problema, porém, não foi capaz de resolver: o da utilidade daquela posição, A sua experiência da guerra ensinara-lhe que os planos mais cuidadosamente elaborados pouco valor têm, coisa que pudera verificar por si próprio em Austerlitz, e que tudo depende da maneira como se riposta aos ataques inesperados e imprevisíveis do inimigo e da forma como são conduzidas as operações, bem como da capacidade daqueles que as dirigem. Na intenção de obter pormenores sobre este últimoponto, procurou, mercê da situação que ocupava e dos conhecimentos que tinha, penetrar o carácter do comando e das pessoas e dos grupos que nele tomavam parte, e acabou por obter do conjunto o quadro seguinte: Quando o imperador se encontrava ainda em Vilna, o exército achava-se dividido em três partes: o primeiro exército estava sob o comando de Barclay de Tolly o segundo, sob o de Bagration; o terceiro, sob o de Termassov. O imperador encontrava-se junto do primeiro corpo do exército, sem, no entanto, desempenhar funções de comandante-chefe. Na ordem do dia dizia-se apenas que ele estava presente, não que o comandava. Além disso, o imperador, pessoalmente, não tinha junto de si um estado-maior de comandante-chefe, mas o estado-maior do quartel-general imperial. Sob as suas ordens tinha o chefe do estado-maior imperial, o general quartel- mestre príncipe Volkonski, generais, ajudantes-de-campo, diplomatas, uma turbamulta de estrangeiros, mas a verdade é que não existia estado-maior do exército. Também estavam com o czar, sem missão especial: Araktcheiev, o antigo ministro da Guerra, o conde Bennigsen, o general mais antigo da sua patente, o czarevitch, grão-duque Constantino Pavlovitch, o conde Rumiantsov, chanceler. Stein, antigo ministro prussiano. Armfeld, general sueco, Pfuhl, principal organizador do plano de campanha, Paulucci, ajudante-de-campo general e foragido da Sardenha, Woltzogen e muitos outros. Estas personalidades, embora não desempenhassem funções oficiais, exerciam pessoalmente grande influência, e muitas vezes um comandante de corpo de exército e até mesmo o comandante- chefe não sabiam em que qualidade Bennigsen ou o grão-duque, Araktcheiev ou o príncipe Volkonski lhes perguntavam isto ou aquilo ou lhes davam este ou aquele conselho, ignorando se tais observações provinham do seu comandante ou da parte do imperador, e se era mister ou não executá-las. Tudo isto, aliás, não passava de um cenário. No fundo ninguém se enganava sobre o que queria dizer a presença junto do exército do imperador e de todas essas personagens, as quais, necessariamente, na intimidade, não passavam, de cortesãos. O imperador não assumira o título de comandante-chefe, mas na realidade tinha nas mãos todos os corpos do exército. As pessoas que o rodeavam eram seus colaboradores. Araktcheiev era o fiel mantenedor da ordem e o guarda do corpo do soberano; Bennigsen, grande proprietário da região de Vilna, parecia limitar-se a fazer as honras do país, quando na realidade era um bom general, útil noconselho e óptimo para conservar de reserva e substituir Barclay. O grão-duque, esse apenas ali estava porque isso lhe dava prazer. O antigo ministro Stein encontrava-se presente na qualidade de conselheiro e por Alexandre ter em alta estima as suas qualidades pessoais. Armfeld era o inimigo implacável de Napoleão e um general muito seguro de si próprio, coisa que sempre impressionava o imperador. Paulucci era ousado e enérgico por palavras. Os generais ajudantes-de- campo estavam onde estivesse o imperador, e finalmente, ponto principal, Pfuhl achava-se presente por ser o autor do plano de campanha contra Napoleão, aprovado por Alexandre, que o considerava perfeito no seu conjunto, sendo ele quem na realidade dirigia todas as operações, Ao lado de Pfuhl, Woltzogen encarregava-se de dar uma forma prática às ideias deste teórico de gabinete, homem violento, cheio de uma tal confiança em si próprio que tinha um soberano desprezo por tudo e todos. Além destas personagens, russas e estrangeiras, principalmente estrangeiras — e estas, com a ousadia característica de todo o indivíduo que actua num meio que não é o seu próprio, todos os dias propunham novos planos —, ainda havia muitas mais, homens em posições subalternas, que se encontravam ali por os seus superiores lá estarem também. Entre todas as ideias e opiniões que ganhavam corpo no meio daquela massa de gente inquieta, vaidosa e ávida de honrarias não tardou que André pudesse distinguir correntes bem nítidas, partidos vários e diversas tendências. O primeiro partido era formado por Pfuhl e os seus apaniguados, teóricos convencidos de que existe uma ciência da guerra fiel a leis imutáveis, como as do movimento oblíquo, do envolvimento do inimigo, etc. Pfuh1 e os seus sequazes preconizavam a retirada para o interior do país, em virtude de leis estritas, fixadas pela pretensa teoria da guerra, e consideravam qualquer infracção a esta teoria como uma prova de barbárie, de ignorância ou de má-fé. A este partido pertenciam os príncipes alemães, Woltzogen, Wintzengerode, e outros, numa palavra, sobretudo os alemães. O segundo partido era diametralmente oposto. Como sempre acontece, pecava por excesso contrário. As pessoas que dele faziam parte reclamavam a ofensiva na Polónia, a partir de Vilna, e opunham-se a todos os planos traçados de antemão. Ao mesmo tempo que defendiam a ousadia na acção encarnavam o espírito nacional. Por isso eram ainda mais intransigentes nas discussões. Eram os russos:Bagration, Ermolov, que então principiava a elevar-se, e outros ainda. Contava-se então uma anedota de Ermolov. Dizia-se que ele pedira ao imperador uma única mercê: ser promovido a alemão. Os membros deste partido repetiam, lembrando- se de Suvorov, ser inútil conceber lindas teorias e espetar alfinetes num mapa, dizendo que o que era preciso era lutar, vencer o inimigo, não o deixar penetrar na Rússia e não dar tempo a que as tropas se desmoralizassem. O terceiro partido, aquele que inspirava mais confiança ao imperador, era formado por cortesãos partidários de combinações entre as duas tendências extremas. As pessoas deste partido, pela sua maior parte civis, pensavam e diziam o que geralmente dizem os que não têm convicções, embora desejem mostrar-se convencidos de alguma coisa. Eram de opinião de que a guerra, sobretudo com um génio como Bonaparte (de novo o chamavam assim), exigia combinações profundas e conhecimentos científicos e que de tal ponto de vista Pfuhl era um talento. Nem por isso, no entanto, devia deixar de reconhecer-se que os teóricos são por vezes exclusivistas, Daí que se não depositasse neles uma confiança absoluta. Deviam ouvir-se também os adversários de Pfuhl e o que diziam as pessoas práticas, experimentadas na arte da guerra, preferindo um meio-termo. Teimavam na necessidade de se manter a posição do Drissa, de acordo com o plano de Pfuhl, e de modificar o movimento dos demais corpos de exército. Embora desta sorte não se alcançasse nem uma nem outra solução, as pessoas deste partido pensavam ser aquele o caminho mais acertado. A quarta tendência tinha por representante mais saliente o grão-duque herdeiro, que não podia esquecer o desastre de Austerlitz, em que ele se apresentara como numa parada militar, à frente da Guarda, de capacete e plumas, convencido de que num abrir e fechar de olhos esmagaria os Franceses, tendo-se surpreendido de repente nas primeiras linhas, e só com grande dificuldade conseguindo escapar no meio da debandada geral. As pessoas deste partido tinham o mérito e ao mesmo tempo o de— feito de serem sinceras. Temiam Napoleão, reconheciam ser forte e elas fracas e diziam-no às claras. Iam repetindo: «De tudo isto não nos virá senão vergonha, desgraça e a derrota! Já abandonámos Vilna e Vitehsk, Também acabaremos por abandonar Drissa. A única coisa razoável a fazer é assinar a paz, e o mais depressa possível, se não quisermos ser expulsos de Petersburgo!» Esta opinião, muito espalhada nas altas esferas, obtinha eco também emPetersburgo e junto do próprio chanceler Rumiantzov, que outrossim sustentava o ponto de vista da paz por razões de Estado. O quinto partido agrupava-se em volta de Barclay de Tolly, não tanto pelo seu valor pessoal como pelo facto de ser ministro da Guerra e comandante— chefe. Os membros deste partido diziam: «Seja como for (era assim que principiavam sempre), é um homem honesto e activo e não temos melhor. Dêem-se-lhe poderes absolutos, pois a guerra não pode ter êxito sem unidade de comando, e ele se encarregará de demonstrar do que é capaz, como aconteceu na Finlândia. Se o nosso exército é organizado e forte e já pôde recuar até ao Drissa sem nenhuma derrota, a Barclay, e só a Barclay, o devemos. Se agora o substituíssemos por Bennigsen tudo estaria perdido. Bennigsen já mostrou a sua incapacidade em 1807.» O sexto grupo, de que faziam parte os partidários de Bennigsen, dizia, pelo contrário, não haver homem mais activo e experimentado e que fizessem o que fizessem acabariam sempre por recorrer a ele. E os membros deste grupo demonstravam ser a retirada russa até ao Drissa o mais vergonhoso dos desastres e uma cadeia ininterrupta de erros. «Quanto mais erros cometerem melhor! É a única maneira de compreenderem que as coisas não podem continuar assim», diziam. «Não precisamos de um Barclay qualquer, mas de um homem como Bennigsen, que já se revelou em 1807, e a quem o próprio Napoleão fez justiça. E o único homem a quem todos reconheciam poderes é Bennigsen.» As pessoas que constituíam a sétima categoria pertenciam a essa espécie de criaturas que sempre se encontram na roda dos jovens soberanos e que eram sobretudo numerosos junto do imperador Alexandre: generais e ajudantes-de- campo apaixonadamente devotados mais ao homem que ao soberano, que o adoravam sincera e desinteressadamente, como acontecera a Rostov em 1805, e que atribuíam ao imperador não só todas as virtudes, mas também todas as qualidades humanas. Essa gente, ao mesmo tempo que exaltava a modéstia do seu imperador, que se escusara a chamar a si o comando das tropas, censurava tão excessiva modéstia, declarando só desejarem uma coisa: que o seu soberano bem- amado vencesse essa desconfiança exagerada, declarasse francamente que tornava o comando do exército, organizasse em torno de si um estado-maior de comandante-chefe e, depois de se ter aconselhado junto dos técnicos, práticos maisexperimentados, conduzisse ele próprio no campo de batalha as suas tropas, a quem a sua presença, só por si, encheria de um entusiasmo desbordante. O oitavo grupo, o mais importante de todos — em relação ao anterior na proporção de noventa e nove para um — era constituído por pessoas que não queriam nem a paz, nem a guerra, nem a ofensiva, nem campos entrincheirados em Drissa ou em qualquer outra parte, nem Barclay, nem o imperador, nem Pfuhl, nem Bennigsen: não procuravam senão uma coisa, para eles mais substancial que tudo o mais: o maior número possível de vantagens pessoais e de diversões. Nestas águas turvas de intrigas e de enredos que formigavam no quartel-general do imperador era possível atingir situações que noutra altura se não poderiam conseguir. Um, para não perder uma situação vantajosa, era hoje partidário de Pfuhl, amanhã do adversário deste, e depois de amanhã afirmava não ter opinião sobre determinado ponto, e isto apenas para evitar assumir responsabilidades e agradar ao imperador. Outro, desejoso de se colocar bem, chamava sobre si a atenção do soberano fazendo muito barulho a propósito de unia, observação que o imperador fizera na véspera, discutia, gritava no conselho, batendo no peito, desafiava para duelo aqueles que não eram da sua opinião e tudo isto para demonstrar que estava pronto a sacrificar-se pelo interesse geral. Um terceiro, entre dois conselhos, e na ausência dos seus inimigos, solicitava muito simplesmente auxílio pecuniário por motivo dos seus fiéis serviços, convencido de naquele momento não haver tempo para lho recusarem. Um quarto procurava encontrar-se sempre, como que por acaso, esmagado de trabalho ante os olhos do imperador. Um quinto, para alcançar um objectivo ardentemente ambicionado — sentar-se à mesa imperial —, demonstrava encarniçadamente a justeza ou a falsidade de uma opinião recentemente adoptada e para tal servia-se de argumentos mais ou menos sólidos e justos, Toda esta gente não pensava noutra coisa senão em caçar dinheiro, cruzes, categorias, e nessa caçada não seguia outra pista que não fosse o penacho da mercê imperial, e assim que verificava que esse penacho se voltava para determinado ponto, todo esse enxame de zangãos batia as asas na mesma direcção, de tal sorte que se tornava por assim dizer impossível ao imperador fazê- lo girar noutro sentido. Em presença da incerteza da situação, da gravidade de um perigo iminente, que dava a todas as intrigas um carácter muito alarmante, nomeio daquele remoinho de intrigas, de ambições e conflitos entre pontos de vista e tendências diferentes, na confusão daquela gente de nacionalidades várias, este oitavo grupo, o mais numeroso, exclusivamente preocupado com os seus interesses pessoais, contribuía de maneira singular para tornar a marcha geral mais difícil e complicada. Fosse qual fosse a questão que se levantasse, este enxame de zangãos, sem ter ainda resolvido um problema, tratava de voar para outro, ensurdecendo com os seus zumbidos e abafando cada vez mais as vozes sinceras que tomavam parte na discussão. Na altura da chegada do príncipe André ao exército acabava de se constituir um novo partido, cuja voz apenas principiava a ouvir-se, Era o partido das pessoas idosas, sensatas, com experiência de assuntos políticos e que sabiam, sem partilhar nenhuma das opiniões contraditórias enunciadas, examinar objectivamente tudo quanto se passava no quartel-general, procurando maneira de acabar com a incerteza, a indecisão, a confusão e a fraqueza. Esta gente dizia e pensava que o mal provinha antes de mais nada da presença do imperador e da sua corte militar junto do exército, que se haviam transplantado para o campo de batalha os hábitos de versatilidade, de hesitação e de indiferentismo, talvez próprios da corte mas fatais no exército, e que o papel de um soberano era o de reinar e não o de comandar tropas, e que a, única saída para a situação consistia na partida do imperador e da sua corte. Bastava a sua presença para paralisar cinquenta mil soldados, indispensáveis para assegurar a sua guarda pessoal, e que o mais medíocre dos generais— chefes, sentindo-se independente, valia mais que o melhor deles enleado pela presença e pela vontade soberana do imperador. Quando o príncipe André vivia em Drissa, sem ocupar-se em quaisquer funções definidas, o secretário de Estado, Chichkov, um dos membros mais influentes deste partido, escreveu uma carta ao imperador, que Balachov e Araktcheiev concordaram em assinar também. Aproveitando a autorização que lhe fora concedida de apreciar a marcha geral das operações, propunha ao soberano, em termos respeitosos e salientando a necessidade de acordar o valor bélico do povo da capital, que abandonasse o exército. Esta necessidade de animar o moral do povo, de chamá-lo à defesa da pátria, acção que mais tarde se tornou eficaz com a presença pessoal de Alexandre emMoscovo e que veio a ser uma das razões principais da vitória russa, foi exposta ao imperador e por ele aprovada, ficando decidida a sua partida. [X] Ainda esta carta não fora entregue ao imperador quando um dia Barclay, durante uma das refeições, disse a Bolkonski que Sua Majestade desejava vê-lo para o interrogar sobre a Turquia e que devia apresentar-se a Bennigsen nesse mesmo dia às seis horas. Nessa mesma altura chegou ao quartel-general do imperador a notícia de um novo avanço de Napoleão que podia tornar-se perigoso para o exército, notícia esta que depois se reconheceu ser inexacta. Pela manhã, o coronel Michaux percorrera com o imperador as defesas de Drissa e provara que aquele campo entrincheirado construído Por Pfuhl, e que gozava da fama de obra-prima de técnica, destinado a vir a ser a ruína de Napoleão, não só não passava de uma utopia mas poderia vir a ser a perda do exército russo. O príncipe André apresentou-se no alojamento de Bennigsen, que estava instalado numa casa senhorial nas margens do rio. Não encontrou nem Bennigsen nem o imperador, mas Tchernichov, o ajudante-de-campo do czar, recebeu Bolkonski e explicou-lhe que o soberano fora, na companhia do general Bennigsen e do marquês Paulucci, inspeccionar, pela segunda vez nesse dia, as fortificações do campo, sobre cujo valor defensivo principiavam a correr sérias dúvidas. Tchernichov lia um romance francês à janela da primeira sala. Esta dependência servira provavelmente outrora de salão; ainda lá se via um harmónio, sobre o qual se empilhavam tapetes. A um canto estava a cama de campanha do ajudante-de-campo de Bennigsen. O ajudante-de-campo estava presente. Provavelmente cansado por algum divertimento ou por muito ter trabalhado, dormitava na cama de campanha, Duas portas abriam Para esta dependência: uma, em frente, dava directamente para o antigo salão, a outra, à direita, para um gabinete. Através da primeira ouvia-se falar alemão e de longe em longe francês. No antigo salão, por desejo do Imperador, reunira-se não um conselho de guerra, pois o czar gostava das designações vagas, mas um grupo depessoas cuja opinião queria conhecer rias circunstâncias actuais. Não era um conselho de guerra, mas uma espécie de reunião de personalidades selectas para esclarecer certos problemas para interesse próprio do imperador. Tinham sido convocados: o general sueco Armfeld, o ajudante-de-campo Woltzogen, Wintzengerode, a quem Napoleão chamava o súbdito francês foragido, Michaux, Toll, o conde Stein, que não era militar, e finalmente Pfuhl, que, como André veio a perceber, era a trave mestra do caso de que se tratava. André teve ocasião de o examinar muito bem, pois Pfuhl chegou pouco depois dele e passou pelo salão, detendo-se um momento a falar com Tchernichov. A primeira vista, Pfuhl, com o seu uniforme de general russo mal feito, e que lhe ficava tão mal que parecia disfarçado, deu-lhe a impressão de alguém muito seu conhecido, embora nunca o tivesse visto antes. Parecia-se muito vagamente com os Weirother, os Mack, os Schmidt, com tantos outros generais teóricos que ele tivera oportunidade de ver em 1805, embora fosse mais típico que todos os demais. Nunca vira um alemão que reunisse a tal ponto os traços característicos de todos os alemães. Pfuhl era de pequena estatura, mas de sólida compleição, bacia larga e omoplatas ossudas. Tinha a cara sulcada de rugas f, os olhos profundamente enterrados nas órbitas. Devia ter passado uma escova pelos cabelos, à frente e nas têmporas, mas atrás mechas soltas pendiam, ridiculamente. Entrou lançando à sua roda olhares inquietos e furiosos, como se tudo receasse na vasta sala em que penetrava. Segurando na espada desajeitadamente dirigiu-se a Tchernichov, perguntando-lhe em alemão onde estava o imperador. Era evidente que desejava atravessar a sala à pressa e desembaraçar-se das saudações e dos cumprimentos habituais para se instalar diante de um mapa, o seu elemento natural. Fez com a cabeça repetidos e breves acenos, enquanto ouvia Tchernichov, e teve um sorriso irónico quando este lhe disse que o imperador examinara o entrincheiramento que ele, Pfuhl, construíra segundo as suas teorias. Numa voz rude de baixo, como é própria dos alemães muito seguros de si, resmungou para si mesmo: «Imbecil... está tudo estragado... Daqui não sai coisa que preste.» (Em alemão no texto original. (N dos T.) O príncipe André, que não conseguia perceber distintamente o que ele dizia, quis afastar-se, mas Tchernichov apresentou-o a Pfuhl, dizendo que ele acabava de chegar da Turquia, onde a guerra findara vitoriosa, Pfuhl mal o olhou: disse rindo:«Devia ter sido uma rica guerra táctica.» (Em alemão no texto original. (N dos T.) E com um riso desdenhoso penetrou na sala onde se ouviam vozes. Pfuhl, irritável por natureza e propenso à ironia, estava evidentemente furioso por terem ousado na sua ausência examinar o seu campo entrincheirado, atrevendo-se a criticá-lo. Mercê daquela rápida entrevista com Pfuhl, e graças ao que vira em Austerlitz, não foi difícil ao príncipe André ficar com uma ideia muito nítida de tal personagem. Pfuhl era criatura de uma só peça e de uma teimosia tal que seria capaz de afrontar o martírio em defesa das suas ideias; era como só os Alemães sabem ser, pois só eles são capazes de uma cega confiança nas noções abstractas, na ciência, isto é, no conhecimento pressuposto da verdade absoluta. O Francês é um homem seguro de si, persuadido de que, pessoalmente, quer pelo espírito, quer pelo físico, exerce uma irresistível sedução tanto nos homens como nas mulheres. O Inglês também, goza da mesma segurança por estar persuadido de que é cidadão do Estado mais bem organizado do mundo, e daí saber sempre, na sua qualidade de inglês, que o que deve fazer e faz é indiscutivelmente perfeito. Pelo seu lado, o Italiano tem confiança em si próprio porque facilmente se emociona, esquecendo-se ainda mais depressa de si e dos outros. Ao Russo também não falta confiança, visto que tudo ignora e nada quer saber e estar convencido de que ninguém pode saber seja o que for. No que diz respeito ao Alemão, porém, esse é o pior de todos, mais obstinado que ninguém e mais desagradável para todo o mundo, convencido de que conhece a verdade, ou seja a ciência que ele próprio fabrica, para ele, a verdade absoluta. Evidentemente Pfuhl era assim mesmo, Tinha na sua mão uma ciência: isto é, a teoria do movimento oblíquo, colhida na história das guerras de Frederico, o Grande, e vai daí tudo quanto observava na história das guerras recentes a seus olhos não passava de insensatez, barbaria e um tremendo caos. Tailtos eram os erros nelas cometidos que a bem dizer nem sequer mereciam o nome de guerras. Como não acertavam com a sua teoria, não podiam mesmo ser objecto de estudo, Em 1806, Pfuhl fora um dos autores do plano que conduzira a leria e a Auerstaedt, mas o resultado dessa campanha não lhe Provara a falsidade da sua teoria, Pelo contrário, em sua opinião haviam sido precisamente os desvios dela as únicas causas do seu malogro e por isso dissera com ironia, muito contente de si próprio, coisa que lhe era peculiar: «Imbecil... está tudo estragado... vai tudo por água abaixo... » (Em alemão no texto original. (N dos T.)Pfuhl pertencia à família desses teóricos que de tanto amarem as teorias em si acabam por esquecer-lhes os fins, ou seja a sua aplicação prática. Por amor da própria teoria odiava tudo quanto fosse prático, recusando sistematicamente prestar atenção a esse aspecto. Até o próprio fracasso lhe dava satisfação, uma vez que o insucesso provocado pela violação da teoria na sua aplicação prática só servia para lhe provar a ele a justeza da teoria que professava. As poucas palavras que trocara com o príncipe André e Tchernichov sobre a guerra em curso foram pronunciadas no tom de quem sabe de antemão que tudo correrá mal e nada mais pode fazer senão lamentar que assim seja. O tufo de cabelos que lhe fustigava a nuca e as têmporas penteadas a preceito estavam a dizer isso mesmo com particular eloquência. Entrou na sala contígua e imediatamente se principiou a ouvir a sua voz rabugenta de baixo. [XI] Ainda o príncipe André não tivera tempo de ver desaparecer a figura de Pfuhl quando entrou, apressadamente, o conde de Bennigsen. Cumprimentando— o com um aceno de cabeça, penetrou no gabinete depois de ter dado ordens ao ajudante- de-campo. Como o imperador vinha logo atrás dele, tinha pressa de tomar algumas disposições antes de o receber. Tchernichov e André vieram até à escadaria da entrada. Com ar fatigado, o imperador desmontava. O marquês Paulucci dirigiu-lhe a palavra. O czar, inclinando a cabeça para a esquerda, ouvia, descontente, o que Paulucci lhe dizia, e este exprimia-se com uma violência desusada. O imperador, que evidentemente queria pôr ponto final naquele discurso, principiou a andar, mas o italiano, muito afogueado pela exaltação de que se achava possuído, esquecendo as conveniências, foi-lhe no encalço, falando sempre. — Quanto aquele que aconselhou este campo, este campo de Drissa — dizia Paulucci, enquanto o imperador, subindo os degraus da escada, fixava o príncipe André, que, de momento, parecia não conhecer. — Quanto aquele, Sire — teimava ele num ímpeto de quem não pode dominar-se —, que aconselha o campo de Drissa, não vejo outra alternativa senão a casa amarela (Hospital de alienados,geralmente pintado de amarelo (N, dos T.) ou a forca. Sem esperar pela conclusão do discurso e como se não tivesse ouvido o que dizia o italiano, o imperador, que acabava de reconhecer Bolkonski, dirigiu-se-lhe, muito cortês: — Gostei muito de te ver: entra para a sala em que eles estão reunidos e espera lá por mim. O czar penetrou no gabinete, onde o seguiram o príncipe Piotre Mikailovitch Volkonski e o barão Stein, e a porta fechou-se. O príncipe André, servindo-se da autorização do imperador, entrou com Paulucci, a quem conhecera na Turquia, no salão onde estava reunido o conselho. O príncipe Piotre Mikailovitch Volkonski desempenhava então as funções de chefe do estado-maior do imperador. Veio do gabinete com uns mapas que desdobrou em cima da mesa do salão. Depois pôs à assembleia as questões acerca das quais desejava conhecer a opinião dos presentes. Recebera-se durante a noite a notícia — que depois veio a saber-se, aliás, ser falsa —, de que os Franceses se propunham contornar o campo de Drissa. O primeiro a usar da palavra foi o general Armfeld. Inesperadamente, para enfrentar as dificuldades que se levantavam, propôs que se ocupasse uma posição completamente nova e que nada justificava (salvo o desejo que tinha de fazer ver que também podia ter uma opinião) a retirada das estradas de Petersburgo e Moscovo, posição essa na qual, segundo ele, o exército devia concentrar-se para ai aguardar o inimigo. Via-se perfeitamente que este plano de há muito estava elaborado pelo seu autor, o qual, se o expunha naquele momento, era menos para responder às questões formuladas, a que, aliás, nenhuma resposta dava, que para aproveitar a ocasião de o tornar conhecido, Era uma dessas numerosas propostas, nem melhor nem pior que qualquer outra aos olhos de quem quer que fosse sem a menor ideia do que aquela guerra viria a ser. Houve quem a combatesse e quem a defendesse. O moço general Toll, com mais ardor que nenhum outro, criticou esse plano, e, extraindo da algibeira um manuscrito, pediu licença para proceder à sua leitura. Nessa exposição, amplíssima, propunha um plano de campanha inteiramente oposto ao de Armfeld e de Pfuhl. Para o refutar, Paulucci aconselhou a ofensiva e o ataque, única solução, em seu parecer, para arrancá-los a todos da incerteza e da ratoeira, nome que dava ao campo de Drissa, onde se encontravam. Durante a discussão, Pfuhl e o seu intérprete Woltzogen — era obrigado a fazerpassar através dele todas as suas comunicações com a corte mantinham-se calados. Pfuh1 limitava-se a fungar desdenhosamente e a voltar as costas, mostrando que nunca desceria a refutar as tolices que ouvia. Quando o príncipe Volkonski, que presidia ao debate, lhe pediu que expusesse a sua opinião, limitou- se a dizer: — Para quê? O general Armfeld propôs-lhe uma posição magnífica com as retaguardas descobertas. Podem escolher, igualmente, ou o ataque desse senhor italiano, que também é óptimo, ou então a retirada, que é melhor ainda (Em alemão no texto original. (N, dos T,). Para que pedem a minha opinião? Os senhores sabem tudo melhor do que eu. Quando Volkonski franziu o sobrolho, dizendo pedir-lhe a sua opinião em nome do imperador, ele levantou-se, exaltando-se de repente, e prosseguiu: — Estragaram tudo, complicaram tudo: toda a gente queria saber mais do que eu e agora recorrem a mim. Como reparar o que está mal? Nada há a reparar. O que é preciso é aplicar exactamente os princípios que eu estabeleci — afirmou, batendo com o dedo ossudo em cima da mesa. — Onde está a dificuldade da situação? Tolices! Kinderspiel! (Brincadeira de crianças. (N, dos T) Aproximou-se da mesa e pôs-se a falar muito depressa, enquanto ia batendo no mapa com a ponta do dedo seco, demonstrando que nenhum acontecimento imprevisto poderia modificar a eficácia do campo de Drissa, que tudo fora previsto e que se de facto o inimigo tentasse um movimento de flanco acabaria inevitavelmente por ser aniquilado. Paulucci, que não sabia alemão, interrogou-o em francês. Woltzogen acorreu em auxílio do seu chefe, que falava mal o francês, e traduziu as suas explicações, seguindo-o com muita dificuldade, pois Pfuhl demonstrava, cada vez mais rápido, que, tudo, tudo, fora previsto no seu plano, não só o que acontecera, mas também o que viria a acontecer, e que se presentemente algumas dificuldades se levantavam o mal advinha de o não terem executado tal qual. E continuava a fungar ironicamente, prosseguindo na sua demonstração. Por fim deixou de argumentar pela mesma razão que um matemático desiste de apresentar provas de um problema demonstrado, Woltzogen substituiu-o, e continuou a expor, em francês, as ideias de Pfuhl, dizendo de vez em quando: «Não é verdade, Excelência?» (Em alemão no texto original. (N, dos T) Pfuhl, como um soldado que na excitação da batalha se põe a disparar contra os seus camaradas, gritava,furioso, a Woltzogen: — Pois claro, pois claro, para quê tantas explicações? Tanto Paulucci como Michaux refutavam Woltzogen, » mesmo tempo, em francês. Armfeld dirigia-se a Pfuhl em alemão. Toll explicava em russo a Volkonski o que todos eles diziam. O príncipe André ouvia e observava em silêncio. De entre todas aquelas personalidades, a que lhe despertava maior simpatia era Pfuhl, esse homem irascível, decidido e doidamente seguro de si próprio. De todos quantos ali estavam era aquele o único que nada queria para ele, a ninguém tinha inimizade. Apenas pretendia uma coisa: pôr em execução um plano assente numa teoria que lhe custara anos de trabalho. Evidentemente que era ridículo e desagradável com a sua permanente ironia, mas apesar de tudo inspirava respeito, graças â absoluta devoção pelas suas ideias. Aliás, em todos os discursos pronunciados, à excepção de Pfuhl, havia um traço comum, coisa que se não verificava nos do conselho de guerra de 1805: sentia-se neles uma espécie de terror pânico, conquanto dissimulado, perante o génio de Napoleão, e esse pânico transparecia nos argumentos mais insignificantes. Estavam convencidos de que aquele homem era capaz de tudo, esperavam vê-lo aparecer em toda a parte ao mesmo tempo e o seu temido nome servia a cada um para dar um golpe de morte na posição do adversário. Só Pfuhl se atrevia a considerar bárbaro Napoleão, pela mesma razão que considerava bárbaro qualquer que se opusesse às suas teorias, Além do respeito que Pfuhl lhe inspirava, o príncipe André sentia por ele uma espécie de piedade. Pelo tom que tomavam os cortesãos ao dirigir-se-lhe, pelo que Paulucci se permitira dizer ao imperador, e sobretudo pelo amargor e pela violência de que as suas próprias palavras vinham repassadas, era evidente todos estarem certos, e ele mesmo já desconfiava disso, de ser chegada a hora da sua ruína. Eis porque, não obstante a sua segurança e a sua acerba ironia de alemão, causava dó, com as melenas empastadas nas fontes e os tufos de cabelo a caírem- lhe na nuca. Embora dissimulasse os seus sentimentos por detrás de umas maneiras irritadas e desdenhosas, via-se que estava desesperado por ver fugir-lhe a ocasião única de verificar em vasta escala as suas teorias e de poder prová-las aos olhos do mundo. Os debates prolongaram-se por muito tempo e quanto mais se prolongavam mais exaltados se mostravam os contendores, que gritavam e faziam alusões pessoais, e menos probabilidades havia de extrair qualquer conclusão prática detudo quanto se dissera. No meio de toda aquela confusão de línguas, de todas aquelas hipóteses, de todos aqueles planos, de todas aquelas contradições e de todos aqueles gritos não pôde o príncipe André deixar de se mostrar surpreendido que fosse possível falar- se tanto. Enquanto estivera no exército várias vezes fora levado a pensar que não havia nem podia haver uma ciência da guerra e que por isso mesmo se não devia falar num suposto génio militar. E eis esta ideia confirmada agora com a plena evidência da verdade. ,Como falar-se em teoria e ciência numa matéria em que as condições e as circunstâncias são desconhecidas, não podendo ser definidas de antemão, e em que as forças actuantes mais dificilmente ainda podem ser determinadas? Nunca ninguém soube nem nunca ninguém poderá saber qual a posição do nosso exército e a do inimigo dentro de vinte e quatro horas e qual a acção deste ou daquele destacamento. Partindo do princípio de que na primeira fileira, em vez de um poltrão que debande a gritar: ’Estamos cortados!’ se ouve, em seu lugar, um moço, valente e decidido, gritando ’Hurra!, aí temos como um destacamento de cinco mil homens vale mais de que um corpo de exército de trinta mil. Esse o caso de Schöngraben. O que não impede que, noutra altura, cinquenta mil homens debandem diante de oito mil. Assim acontecera em Austerlitz. Como falar em ciência numa matéria em que, como sucede com todas as coisas da vida prática, nada pode ser previsto antecipadamente e tudo depende de circunstâncias imponderáveis cuja importância surge de um momento para o outro, sem que ninguém saiba quando chegará a sua hora? Armfeld sustenta que, o nosso exército está cortado: Paulucci, pelo contrário, afirma que colocámos o exército francês entre dois fogos; Michaux diz que o campo entrincheirado de Drissa é desvantajoso, pois o no lhe fica na retaguarda, enquanto Pfuhl mantém ser precisamente isso que lhe dá força. Toll propõe um plano, Armfeld propõe outro. «Todos estes planos são igualmente bons e igualmente maus e as vantagens de cada um deles não podem tornar-se evidentes senão no próprio momento em que os acontecimentos vierem a cumprir-se. Porque falta então toda a gente em génio militar? Será génio aquele que saiba abastecer a tempo de biscoitos o exército e envie Fulano para a direita e Sicrano para a esquerda? A verdade é esta: os génios militares são brilhantes e poderosos e há uma multidão de cobardes sempre pronta a lisonjear o poder, chamando a tais homens génios eatribuindo-lhes qualidades extraordinárias. Em vez de génios, os melhores generais que eu conheci eram estúpidos ou pouco sérios. Bagration, por exemplo, o melhor de todos, como o próprio Napoleão o reconheceu. E Bonaparte? Lembro-me perfeitamente da sua máscara cheia de suficiência na batalha de Austerlitz. Um bom militar nem precisa de ser génio nem de ter qualidades especiais. Pelo contrário, deve ser desprovido do que há de melhor e de mais elevado no homem: o amor, a poesia, a ternura, a dúvida filosófica, filha da experiência. Deve ser limitado, estar persuadido de que é de alta importância tudo quanto faz. De outro modo faltar-lhe-á a persistência; só assim será um valoroso capitão. Que Deus o de — fenda de amar alguém, de se afeiçoar seja a quem for, de ser compadecido, de pensar no que é justo e no que o não é. Compreende-se que desde tempos imemoriais se tenha inventado para galardão seu a teoria do génio, pois, em verdade, representa o poder. O êxito ou o desaire de uma acção militar não podem ser-lhe atribuídos, mas ao soldado que nas fileiras grita: ’Estamos perdidos!’ ou então exclama ’Hurra!’ Somente nas fileiras um homem pode servir convencido de que é útil!» Assim pensava o príncipe André enquanto ouvia as discussões e só deu por si quando todos se levantaram e Paulucci o chamou. No dia seguinte, durante a revista, o imperador perguntou a André onde desejava prestar serviço. E foi então que ele para sempre perdeu os seus créditos junto da corte pedindo que o deixassem prestar serviço na frente de batalha, em lugar de se deixar ficar na comitiva do soberano. [XII] Antes do princípio da campanha, Rostov recebera uma carta dos pais onde estes o informavam sumariamente da doença de Natacha e do seu rompimento com o príncipe André, rompimento que lhe explicaram como tendo sido provocado pela irmã, e de novo lhe rogavam que pedisse baixa do exército e voltasse para junto deles. Nicolau, quando recebeu esta carta, não tentou sequer obter licença ou autorização para deixar a tropa, e escreveu aos pais a dizer-lhes estar muito zangado por causa da doença de Natacha e do malogro do seu noivado, e que faria todo o possível para cumprir os desejos deles. A Sónia escreveu separadamente: Adorada amiga do meu coração. Nada, a não ser a honra, me impediria de regressar a casa. Mas neste momento, na altura em que se inicia u campanha, considerar-me-ia desonrado, não só perante os meus camaradas mas aos meus próprios olhos, se preferisse a minha felicidade ao meu dever e ao meu amor pela pátria. Esta será, porém, a nossa última separação, podes crer: assim que a guerra acabar e se eu for vivo e tu ainda me quiseres, deixarei tudo e correrei a apertar-te para sempre contra o meu coração fervoroso e apaixonado. E, com efeito, só o início da campanha retivera Rostov e o impedira, como prometera, de voltar a casa para casar com Sónia. O Outono em Otradnoie, com as suas caçadas, o Inverno, com as suas festas do Natal, e o amor de Sónia prometiam-lhe toda uma perspectiva de serenas alegrias e o, sossego de uma fidalga vida que ele outrora não conhecera e tanto o seduzia agora. «Uma esposa dedicada, filhos, uma boa matilha de cães com dez ou doze casais de vigorosos galgos, os trabalhos agrícolas, os vizinhos e as funções que competem à nobreza...», pensava Nicolau. Mas havia guerra e impunha-se-lhe ficar no regimento. E como tinha de ser, Nicolau Rostov, por índole, parecia satisfeito com a vida assim que levava no exército, procurando torná-la agradável. No regresso da licença fora acolhido com grande alegria pelos camaradas. E,encarregado da remonta, trouxera consigo da Pequena Rússia óptimos cavalos, que muito o entusiasmaram e lhe mereceram as felicitações dos chefes. Durante a ausência fora promovido a capitão e quando o regimento foi colocado em pé de guerra, com os efectivos reforçados, deram-lhe o comando do seu antigo esquadrão. A campanha principiou, o regimento foi enviado para a Polónia, dobraram os soldos, chegaram novos oficiais, praças novas, cavalos, e especialmente passou a reinar na tropa a animação de todas as novas campanhas. Rostov, que apreciava as vantagens da sua posição, entregou-se inteiramente aos prazeres e aos deveres do serviço militar, sabendo perfeitamente que mais tarde ou mais cedo teria de abandonar o exército. As tropas tinham evacuado Vilna por diversas e complicadas razões: razões de Estado, razões políticas e tácticas. Cada passo à retaguarda era pretexto para toda uma rede de complicações de interesses, de combinações, e todo um jogo de paixões do estado-maior. Para os hússares do regimento de Pavlogrado esta retirada, na melhor estação do ano, com abastecimentos em abundância, não passava de uma agradável excursão. Tudo quanto fossem tristezas, inquietações, intrigas, era com o quartel-general no seio do exército ninguém perguntava para onde iam e qual o motivo daquela retirada. A única coisa que levava a tropa a lamentar ter de bater em retirada era o facto de se ver obrigada a mudar do alojamento a que estava afeita, renunciando à bela polaca local. Se porventura algum dos oficiais se lembrava de pensar que as coisas não corriam bem, logo tratava de se sentir alegre, como é próprio de todo o bom soldado, e não pensava na situação geral, preocupando-se exclusivamente com as suas ocupações imediatas. De princípio estiveram alegremente acantonados em volta de Vilna, travando conhecimento com os proprietários polacos e preparando-se constantemente para as revistas que eram passadas pelo imperador e outros altos postos militares. Depois vieram ordens para retirarem sob Sventsiany e destruírem os abastecimentos que não fosse possível transportar. Sventsiany ficou memorável para os hússares, pois esse acampamento veio a ser conhecido por todo o exército pelo «campo dos borrachos», sendo muitas as queixas que se receberam por virtude de as tropas, que tinham ordem para se abastecer junto dos habitantes, haverem requisitado aos proprietários polacos, em matéria de abastecimentos,cavalos, equipagens e tapetes. Rostov lembrava-se muitíssimo bem de Sventsiany. No próprio dia da chegada vira-se obrigado a meter na ordem o sargento, nada podendo conseguir dos soldados do seu esquadrão, que se tinham emborrachado, bebendo cinco barris de cerveja velha roubada. Depois de Sventsiany cada vez recuava mais até ao Drissa, e ainda para além do Drissa, aproximando-se das fronteiras russas. A 13 de Julho, pela primeira vez, o regimento de Pavlogrado tomou parte numa operação séria. A 12, pela noite, levantou-se uma grande tempestade com forte chuva e granizo. O Estio de 1812 foi particularmente assinalado por numerosas tempestades. Dois esquadrões do regimento de Pavlogrado acampavam numa seara de cevada pisada pelos homens e pelo gado. Chovia a cântaros, e Rostov, mais o moço oficial Iline de nome, a quem tomara sob a sua protecção, abrigaram-se numa cabana construída ao deus-dará. Um oficial do regimento, de grandes bigodaças, que regressava do quartel- general e fora surpreendido pela chuva, entrou no abrigo de Rostov: — Acabo de chegar do estado-maior, conde. Já ouviu falar da façanha de Raievski? E o oficial pôs-se a contar o que soubera acerca da batalha de Saltanovka. Rostov, voltando o pescoço, onde a chuva penetrava, fumava o seu cachimbo e ouvia, com ar distraído, olhando de vez em quando para Iline, todo encolhido junto dele. Este oficial, um rapazote dos seus dezasseis anos chegado havia pouco ao regimento, era agora tratado por Nicolau como ele o fora, anos antes, por Denissov. Iline fazia por imitar Rostov em tudo e dir-se-ia enamorado dele como uma mulher. O oficial da bigodaça, Zdrzinski, contava, enfático, como o dique de Saltanovka era agora as Termópilas russas e como o general Raievski aí realizara uma façanha digna da antiguidade. Raievskl, sob intenso fogo inimigo, conduzira os seus dois filhos até ao dique e lançara-se na batalha com eles a seu lado. Rostov escutava o relato não só sem uma palavra que encorajasse o narrador, mas inclusivamente com uma cara que dir-se-ia envergonhada pelo que ouvia, embora nada tivesse que objectar. Depois de Austerlitz e da campanha de 1807, sabia, por experiência própria, que quem conta um episódio militar nunca fala inteiramente verdade,como com ele próprio acontecera então. Além disso, já era bastante experimentado na guerra para saber que nada se passa no campo de batalha como as pessoas o imaginam ou como é costume virem a contá-lo mais tarde. Por tudo isso, não lhe agradava o relato e também porque não morria de amores por Zdrzinski, que, com as suas bigodaças, tinha o péssimo costume de se debruçar sobre o interlocutor, estando a ocupar muito espaço na acanhada choupana. Rostov olhava para ele sem dizer palavra. «Em primeiro lugar, no dique em que se deu o ataque deve ter-se produzido uma tal barafunda e uma tal compressão que mesmo ainda que Raievski tivesse levado consigo os filhos, esse acto apenas poderia ter impressionado os dez ou doze homens que o rodeavam», pensava Rostov. «Os outros não podiam ter visto com quem é que Raievski pusera os pés no dique. E aqueles que porventura o tivessem visto não deviam ter sentido uma impressão por aí além, pois a verdade era esta: que lhes importavam a eles os sentimentos paternais do general, quando eles próprios estavam a dar o corpo ao manifesto? E depois, o destino da pátria não dependia da tomada de tal dique. Não vinha, pois, a propósito falar-se das Termópilas. E para que servia aquele sacrifício? Que ideia era aquela de arriscar a pele dos próprios filhos no campo de batalha? Eu, por mim, nunca me lembraria de expor assim roeu irmão Pétia, nem mesmo Iline, que não é meu parente, embora seja um belo moço. Pelo contrário, tudo faria para o deixar em lugar seguro. E Rostov assim ia pensando enquanto Zdrzinski falava, embora não lhe passasse pela cabeça dizer a alguém o que lhe ocorria naquele momento: a sua experiência pessoal dizia-lhe que era inútil. Sabia que todas aquelas histórias tinham por fim a glorificação dos exércitos russos; por isso o melhor era não pô-las em dúvida. E eis o que estava a fazer. — Já não posso mais! — disse, por fim, Iline, que percebera que a algaraviada de Zdrzinski não agradava a Rostov. — As botas, a camisa, estou todo a escorrer. Vou tratar de arranjar outro abrigo. Parece-me que a chuva está a passar. Iline abalou e Zdrzinski abalou também. Cinco minutos depois já Iline estava de volta, patinhando na lama. — Hurra! Rostov, despacha-te! Encontrei! A duzentos passos temos uma taberna, e os nossos já lá estão. Ao menos podemos enxugar a roupa. E está lá a Maria Henrikovna. Maria Henrikovna era a mulher do médico do regimento: uma jovem e bonita alemã com quem ele se casara na Polónia. Ou porque não tivesse recursos paradeixar a mulher em qualquer outra parte, ou porque não quisesse separar-se dela, nos primeiros tempos de noivado levava-a sempre consigo atrás do regimento, e os ciúmes que isso lhe causava tornaram-no motivo de troça entre a oficialidade. Rostov embrulhou-se no capote, e, chamando Lavnichka, mandou que levasse as suas coisas para a taberna. E lá foi com Iline, patinhando na lama, debaixo da chuva, que ia passando, no meio das trevas da noite, de onde em onde iluminadas pelos relâmpagos longínquos. — Rostov, onde estás tu? — Aqui. Olha, isto é que são relâmpagos — iam dizendo um para o outro. [XIII] A kibitka do médico estacionava diante da porta da taberna, onde já estavam quatro ou cinco oficiais. Maria Henrikovna, uma lourita alemã, roliça de carnes, de casaco e de touca de dormir, estava sentada, em lugar de honra, num grande banco, O marido, o médico, dormia atrás dela. Rostov e Iline foram recebidos com joviais exclamações e grandes risadas. — Ena! Vocês estão muito alegres por estes sítios! — disse Rostov, rindo. — E vocês, porque estão vocês aborrecidos? — Ah!, vêm em bonito estado! Deitam água por todos os lados! Nada de inundar o salão. — É proibido sujar o vestido de Maria Henrikovna. Rostov e Iline trataram de descobrir um recanto onde pudessem mudar de roupa sem ofender o pudor da mulher do médico. Passaram para o outro lado do tabique, para aí se despirem, mas o cubículo, iluminado por uma candeia pousada em cima de uma arca vazia, estava inteiramente ocupado por três oficiais que jogavam as cartas e por nada deste mundo lhes quiseram ceder o lugar. Maria Henrikovna então ofereceu-lhes a saia, que tirou para esse fim, com que eles fizeram um reposteiro, atrás do qual, auxiliados por Lavruchka, que lhes trouxera um carregamento de roupa, despiram as fardas molhadas e vestiram outras enxutas. Acenderam a estufa desmantelada, Depois arranjaram uma tábua, quecolocaram sobre duas selas de montar, cobriram-na com a gualdrapa de um cavalo, puseram-lhe em cima um samovar, uma cantina e meia garrafa de rum, e, tendo pedido a Maria Henrikovna que fizesse as honras da casa, juntaram-se todos à sua volta. Um deles ofereceu-lhe o lenço de assoar para enxugar as roliças mãos: outro pôs-lhe debaixo do,—, pés, para os resguardar da humidade, o seu capote de hússar: um terceiro tapou a janela com o seu para não deixar entrar o vento, e um quarto deu-se a afugentar as moscas da cara do médico para ele não acordar. — Deixem-no em paz — exclamou Maria Henrikovna, com um sorriso jovial e nada tímido. — Está a dormir, porque passou a, outra noite em claro. — Impossível, Maria Henrikovna — replicou o oficial —, temos de ter cuidado com o doutor. Talvez seja a maneira de ele ter pena de nós quando for obrigado a cortar-nos um braço ou uma perna. Só havia três copos. A água, de tão suja, tornara impossível saber se o chá estava forte ou fraco de mais, e no samovar apenas havia beberagem para seis copos. Contudo era uma satisfação para todos receber o seu copo, à vez, e por ordem de antiguidade, das mãos rechonchudas, de curtas unhas, e nada limpas, de Maria Henrikovna. Naquela noite dir-se-ia que todos os oficiais estavam realmente enamorados dela. Até os que se encontravam atrás do tabique a jogar as cartas acabaram por deixar o jogo, vindo juntar-se em volta do samovar, dispostos a fazer a corte a Maria Henrikovna. Ao ver-se rodeada de tantos moços distintos e corteses, a mulher do médico não cabia em si de contente, embora procurasse esconder essa satisfação e estivesse receosa de que o marido entretanto acordasse. Havia apenas uma colher. O açúcar era de sobra, mas não se conseguia dissolvê-lo na beberagem. Foi por isso resolvido ser ela a mexer o açúcar de todos, cada um por sua vez. Rostov, depois de ter deitado rum num copo, pediu a Maria Henrikovna que lhe mexesse o chá. — Mas o senhor não tem açúcar — exclamou ela, sorrindo sempre, como se tudo o que ela, dizia ou o que os demais diziam fosse engraçadíssimo e se prestasse a um segundo sentido. — Não preciso de açúcar, o que eu queria era vê-la a mexer o meu chá com a sua linda mãozinha. Maria Henrikovna acedeu e pôs-se à procura da colher de que alguém se havia apropriado.— Mexa com o seu dedinho, Maria Henrikovna — disse Rostov —, ainda será mais gostoso. — Mas está muito quente! — protestou ela, toda ruborizada de satisfação. Iline pegou num jarro de água, deitou-lhe dentro algumas gotas de rum e aproximou-se de Maria Henrikovna, a quem pediu que o mexesse com o dedo. — É a minha chávena — disse ele. Ponha lá o seu dedinho que eu bebo tudo. Unia vez despejado o samovar, Rostov pegou nas cartas e propôs-se jogar aos reis com Maria Henrikovna. Tiraram à sorte, para ver quem seria o parceiro dela. Rostov propôs, e foi aceite, que quem fosse rei teria o direito de beijar a mão de Maria Henrikovna e aquele que perdesse seria obrigado a preparar um novo samovar para o médico, quando este acordasse. — E se o rei for Maria Henrikovna? — perguntou Iline. — Já é rainha! E uma ordem sua é uma lei. Assim que principiou o jogo, por detrás de Maria Henrikovna ergueu-se a cabeça toda esguedelhada do médico. Havia algum tempo já que estava acordado, ouvindo o que se dizia. E via-se perfeitamente que aqueles ditinhos alegres nada tinham, para ele, de engraçado ou divertido. Era triste e aborrecida a sua expressão. Sem saudar os oficiais, coçou a cabeça e pediu licença para sair, pois vedavam-lhe o caminho. Mal ele desapareceu, todos romperam num estrondoso riso, o que fez com que Maria Henrikovna corasse muito, razão por que ainda ficou mais atraente aos olhos dos companheiros. Quando voltou a entrar, o médico disse à mulher, a qual perdera a vontade de rir e o olhava como se aguardasse, ansiosamente, a sentença que ele ia lavrar, que deixara de chover e que era melhor irem dormir para a kibitka, pois de outra maneira lhe roubariam as suas coisas. — Se quiser mandarei uma sentinela... até duas — disse Rostov. — Não se preocupe, doutor. — Eu próprio me encarrego de fazer de sentinela! — acrescentou Iline. — Não, meus senhores, os senhores dormiram bem, mas eu há duas noites que não prego olho — disse o médico, sentando-se de má catadura ao pé da mulher, à espera que a partida acabasse. O aspecto carrancudo do médico, que olhava a mulher de soslaio, ainda lhes tornou a cena mais divertida, e alguns deles não puderam reter o riso, rompendo em gargalhadas para que buscavam justificações adrede. Quando o médico e aesposa foram alojar-se na pequenina kibitka, os oficiais deitaram-se no chão, cobrindo-se com os capotes molhados. Mas muito tempo levaram antes que adormecessem: ora se punham a comentar o ar carrancudo do médico e a jovialidade da mulher, ora vinham à porta espreitar o que se estava passando dentro da kibitka. Por várias vezes, Rostov, cobrindo a cabeça, tentara dormir, mas os ditos deste e as saídas daquele não lho consentiam, e as conversas recomeçavam, bem como as gargalhadas infantis, joviais, sem tom nem som, que rompiam de todos os lados. [XIV] As três horas da manhã, ainda não tinham conseguido conciliar o sono, apareceu um sargento com ordem de retirarem imediatamente para a aldeia de Ostrovno. Sem deixarem de palestrar e de rir, fizeram os oficiais apressadamente os preparativos da partida, e de novo acenderam o samovar, metendo-lhe dentro a mesma água suja. Rostov, sem aguardar que o chá estivesse pronto, tratou de abalar para o esquadrão. Já era dia, deixara de chover, as nuvens abriam clareiras no céu. Sentia-se frio e humidade, sobretudo os que tinham em cima, do corpo roupas mal secas. Quando saíram da taberna, Rostov e Iline, ao passarem, lançaram um olhar, através da semi-obscuridade da madrugada, às cortinas de couro da kibitka, todas reluzentes da chuva, por baixo das quais se estiraçavam as longas pernas do médico, e para o seu interior, onde se descortinava, numa almofada, a touca de noite de Maria Henrikovna, ouvia-se lá dentro ressonar. — Realmente, é uma linda mulher — disse Rostov para Iline. — É encantadora! — replicou Iline, com a gravidade dos seus dezasseis anos. Meia hora mais tarde estava o esquadrão alinhado na estrada. A voz de comando «Montar!» ressoou. Os soldados persignaram-se e montaram a cavalo. Rostov tomou o comando da coluna e gritou: «Marchar!» Os hússares, quatro a quatro, no meio do estrépito das patas dos cavalos na lama da estrada, do entrechocar dos sabres e do rumor das conversas surdas, puseram-se a caminho ao longo da ampla estrada orlada de álamos, atrás da infantaria e da artilharia, quecaminhavam na vanguarda. O vento varria rapidamente as nuvens de um azul-violáceo, todas avermelhadas lá para os lados donde nascia o Sol. Ia clareando cada vez mais. Via- se agora nitidamente a erva rasteira e frisada que corre sempre ao lado das estradas vicinais e que estava toda repassada da chuva da véspera. Os ramos dos álamos, todos molhados também, balançando ao vento, despediam gotas de água brilhantes. As caras dos soldados desenhavam-se cada vez mais distintamente. Rostov, com Iline, que o não deixava um só momento, cavalgava, ao longo da berma da estrada, entre duas fileiras de álamos. Em campanha, Rostov dava-se ao luxo de montar, não um cavalo regimental, mas um cavalo de cossaco. Como aficcionado e entendedor que era, arranjara ultimamente um alazão do Dom, de crinas brancas, belo animal, vigoroso e possante, que nenhum outro podia vencer. Montá-lo era para ele um grande prazer. Pensando no seu cavalo, na manhã que chegava e na mulher do médico, nem um só momento lhe vinha à mente o perigo grande que os esperava. Outrora, Rostov, antes de um combate, tinha medo; agora não sentia o mais pequeno receio. Não porque se tivesse acostumado à metralha (ninguém pode habituar-se ao perigo), mas aprendera a dominar a alma. Acostumara-se, quando ia para o combate, a pensar em tudo menos no que mais importava, a proximidade do perigo. Apesar de todos os seus esforços, não obstante chamar-se a si próprio cobarde, nos primeiros tempos fora-lhe muito difícil chegar àquele resultado, mas com os anos as coisas vieram naturalmente. Lá ia cavalgando, ao lado de Iline, entre os álamos, arrancando, de quando em quando, um ramo que lhe passava junto das mãos, outras vezes aflorando de leve com as esporas o ventre do cavalo, ou, sem se voltar, estendendo o cachimbo ao hússar que o seguia, tão tranquilo e despreocupado como se fosse em passeio. Grande era a compaixão que lhe inspirava o rosto alterado de Iline, que falava muito e se mostrava inquieto. Conhecia por experiência aquela angústia na expectativa do medo e da morte que apertava o coração do porta— estandarte Iline e sabia que só o tempo lhe daria remédio. Assim que o disco do Sol apareceu numa faixa de céu descoberta, emergindo de entre as nuvens, o vento serenou como se não quisesse perturbar aquela magnífica manhã de Verão após aí, tempestade da noite. Ainda caíram algumas gotas de chuva, mas verticalmente já, e tudo se acalmou... O Sol descobrira-se porcompleto, surgindo por cima da linha do horizonte e desaparecendo em seguida por detrás de uma longa e estreita nuvem. Minutos depois despontou de novo, mais brilhante ainda, pela parte superior da nuvem, cujos bordos se franjaram, Tudo se iluminou e cintilou. E, como que para saudar esta onda de luz, ouviu-se, lá longe, o troar do canhão. Ainda Rostov não tivera tempo de se dar conta da distância a que estavam a troar os canhões quando surgiu, a galope, dos lados de Vitebsk, um ajudante-de-campo do conde Ostermann Tolstoi com ordem de meterem a trote. O esquadrão, ultrapassando a infantaria e, a bateria de artilharia, que igualmente aceleraram a sua marcha, meteu por uma ladeira, atravessou uma povoação abandonada pelos habitantes, e outra vez subiu a encosta. Os cavalos estavam cobertos de suor e os rostos dos soldados afogueados pela cavalgada, «Alto! Alinhar!», gritou a voz do comandante. «A esquerda, marchar!» Os hússares seguiram ao longo do flanco esquerdo das tropas e foram colocar- se por detrás dos ulanos da primeira linha, A direita, formando uma coluna compacta, estava a infantaria, que constituía a reserva. Por cima dela, na colina, destacavam-se os canhões russos iluminados pela luz clara e oblíqua da manhã. Lá para diante, no vale, divisavam-se as colunas e os canhões do inimigo. As primeiras linhas russas já tinham entrado em acção, trocando vivo tiroteio com os franceses, Como se ouvisse os primeiros compassos de uma alegre melodia, Rostov regozijou-se com o ruído da fuzilaria, que havia muito não ouvia! Trap, ta, ta, tap! As descargas sucediam-se, ora simultaneamente, ora sucessivas, Depois tudo ficava silencioso, e de repente os estampidos recomeçavam, como se fossem petardos que alguém tivesse pisado, Os hússares permaneceram quase uma hora no mesmo sítio, o canhoneio recomeçou. Seguido da sua escolta, passou o conde Ostermann por detrás do esquadrão. Parou, trocou algumas palavras com o comandante do regimento e afastou-se na direcção dos canhões instalados na colina. Pouco depois de ele se ter afastado ouvia-se a voz do comandante dos ulanos gritar: «Formar, colunas! Atacar!» A infantaria, que os encobria, abriu fileiras para deixar passar a cavalaria. Com as flâmulas das suas lanças flutuando ao vento, os ulanos desceram a trote a encosta ao encontro da cavalaria francesa, que se divisava no sopé da colina, à esquerda.Assim que os ulanos abandonaram a sua posição, os hússares receberam ordem de subir à cumeada para cobrirem a bateria. Enquanto este movimento se executava, algumas balas, gemendo e assobiando, passaram, perdendo-se no ar. Este ruído, que Rostov há muito não ouvia, ainda mais o estimulou que os primeiros que ouvira, enchendo-o de força e de alegria. Endireitou-se na sela e pôs-se a observar o campo de batalha, que se descortinava do alto, e com toda a sua alma tomou parte no ataque dos ulanos. Estes caíram sobre os dragões franceses. No meio da fumarada houve um momento de confusão e cinco minutos depois os ulanos retrocediam a galope, não para o lugar que anteriormente ocupavam, mas um pouco mais para a esquerda. Por entre os uniformes alaranjados dos ulanos em seus cavalos alazões, e também na sua retaguarda, distinguia-se um grupo compacto de dragões azuis montados em cavalos cinzentos. [XV] Rostov, com o seu penetrante olhar de caçador, fora um dos que primeiro vira os dragões azuis na cola dos ulanos. Estes fugiam em debandada, e os franceses, que os perseguiam, cada vez se aproximavam mais deles. Já se podiam ver os homens, que lá no sopé da colina pareciam pequeníssimos, investirem agitando os sabres e os braços. Rostov olhava para o espectáculo como se assistisse a uma caçada. Por instinto, compreendia que, se caísse, naquele momento, COM os seus hússares, sobre os dragões franceses, estes não resistiriam, mas era preciso agir imediatamente, de chofre; de outra maneira seria tarde de mais. Olhou à sua volta. O capitão, que estava a seu lado, também não perdia de vista a cavalaria lá no fundo da encosta. — André Sevastianitch — disse. — Nós podíamos dar cabo deles... — Realmente, que golpe magnífico — exclamou o capitão — e se... Sem ouvir mais, Rostov esporeou o seu cavalo e pôs-se à frente do esquadrão. Não teve tempo de dar qualquer voz de comando; todos os seus homens, impelidos pelo mesmo sentimento, se precipitaram atrás dele. Nem ele próprio sabia como eporque agira daquela maneira. Procedera como se estivesse numa caçada, sem pensar, nem reflectir. Ali muito perto via os dragões que galopavam. Tinha a convicção íntima de que não resistiriam. Sabia que, se perdesse a oportunidade, aquele minuto não voltaria. O assobio das balas excitava-o tanto, tamanha era a impaciência do seu cavalo, que não pudera resistir. No momento em que esporeava a montada, soltando o grito de comando, sentiu atrás de si todo o esquadrão que se agitava, e despediu a trote largo, pela encosta abaixo, direito aos dragões. Mal atingiram o fundo da encosta, os cavalos, espontaneamente, puseram-se a galopar, galope que se tornava cada vez mais rápido à medida que se aproximavam dos ulanos e dos dragões que os perseguiam. Estes estavam muito próximos. Os que iam na vanguarda, ao verem carregar os hússares, deram meia volta, e os da retaguarda pararam. Impelido pelo mesmo entusiasmo de quando se lançava atrás de um lobo, Rostov, lançando à rédea solta o seu cavalo do Dom, precipitou-se através das fileiras desordenadas dos dragões. Um ulano estacou, um soldado de infantaria deitou-se ao chão para não ser esmagado, um cavalo sem cavaleiro veio embater nos hússares. Quase todos os dragões fizeram meia volta. Rostov firmou-se num montado num cavalo cinzento, correu sobre ele. Na sua galopada surgiu-lhe diante uma moita; o seu rico cavalo empinou-se e galgou-a de um salto. Aguentando-se a custo em cima do selim, momentos depois Nicolau verificava ter apanhado o inimigo que se propusera atacar. Este, oficial, naturalmente, como se depreendia do uniforme, todo alapardado sobre o cavalo, galopava a mais não poder, fustigando-o com o sabre. Num abrir e fechar de olhos a montada de Rostov veio embater com os peitorais na garupa do cavalo do dragão, que por pouco não atirou a terra, ao mesmo tempo que Nicolau, sem saber o que fazia, brandia o sabre e feria o inimigo. De súbito todo o seu entusiasmo se desvaneceu por completo. O oficial caiu, não tanto em virtude da sabrada que recebera, a qual apenas lhe rasgara o braço um pouco acima do pulso, mas por causa do choque dos dois animais e do medo que o tornou. Refreando o seu cavalo, Rostov procurou-o com a vista para ver o homem a quem acabava de atacar. O oficial de dragões saltava, coxo, um dos pés preso no estribo. Fechava os olhos, franzia as sobrancelhas, cheio de medo, sempre à espera de receber uma nova cutilada, horrorizado, olhando, de baixo para cima, para o hússar. Aquele rosto, pálido e sujo de lama, muito infantil, de cabelos louros, olhos azul-claros, uma covinha no queixo, não era um rosto deguerreiro, um rosto de inimigo, mas a mais simples das caras, uma cara de filho de família. Ainda Rostov não sabia o que ia fazer dele quando o oficial gritou: «Rendo- me!» Tentando libertar o pé do estribo, sem o conseguir, continuava a fitar Rostov com os olhos azuis espavoridos. Os hússares que acorreram soltaram-lhe o pé e ajudaram-no a montar. Por todos os lados havia hússares a bater-se contra os dragões. Um deles estava ferido, e embora o sangue lhe escorresse pela cara abaixo não largava o cavalo; outro, com um hússar nos braços, cavalgava montado na garupa; um terceiro montava amparado por um hússar. A infantaria francesa acorria em reforço, disparando. Os russos trataram de se retirar, levando consigo os prisioneiros. Rostov ia atrás deles, dominado por uma penosa sensação, que lhe alanceava a alma. Despontava nele um pensa— mento obscuro, complicado, que não compreendia, desde que fizera prisioneiro aquele homem, e sobretudo desde que o atingira com o sabre. O conde Ostermann Tolstoi acolheu os hússares, mandou chamar Rostov, felicitou-o e disse-lhe que comunicaria ao imperador o seu acto heróico, propondo- o para a cruz de S. Jorge. Quando o chamaram à presença do conde, lembrando-se de que atacara sem ordens superiores, ia convencido de que o iriam castigar por ter agido de moto próprio. Maiores foram por isso a sua surpresa e o contentamento que sentiu ao ouvir as palavras elogiosas de Ostermann e a promessa de uma recompensa. No entanto, o tal sentimento obscuro e penoso continuava a pesar-lhe no coração. «Então, que me está a atormentar?», perguntava a si Próprio, no regresso. «Iline? Não; esse está são e salvo. Procederia eu mal? Não. Não é nada disso.» Qualquer outra coisa o atormentava como um remorso. «Sim, sim, é aquele oficial francês com a covinha no queixo. Ah!, sim, já sei! Foi o meu braço que se deteve quando o ergui para o acutilar.» Ao ver aproximar-se a leva dos prisioneiros quis tornar a Olhar para o francês. Lá vinha ele, com o seu estranho uniforme, montado num belo cavalo de hússar, lançando em roda olhares inquietos. A ferida que recebera no braço era por assim dizer insignificante. Sorriu para Rostov, com um ar embaraçado, acenando-lhe com a mão, como se o cumprimentasse. Também Rostov se sentiu embaraçado e quase com vergonha. Durante todo aquele dia e no que se lhe seguiu, amigos e camaradas notaram que, embora não estivesse aborrecido ou zangado, permanecia silencioso,pensativo e concentrado. Não lhe apetecia beber, procurava estar só e dir-se-ia obcecado por uma ideia qualquer. Rostov não se cansava de pensar na proeza que com grande espanto seu lhe valera a cruz de S. Jorge e lhe fizera ganhar a reputação de herói, dizendo de si para consigo haver ali qualquer coisa que ele não podia compreender. «Então eles ainda têm mais medo do que eu!», dizia com os seus botões. «E é a isto que se chama heroísmo? Foi, realmente, pela minha pátria que eu fiz isto? E que culpa cabe àquele outro com a sua covinha no queixo e os seus olhos azuis? E o medo que teve! Julgava que eu o ia matar. E porque havia eu de o matar? Aliás, tremeu-me a mão. E dar-me-ão a cruz de S. Jorge! Realmente não consigo perceber!» A verdade, porém, é que enquanto Rostov ia debatendo consigo todas estas interrogações, sem conseguir uma ideia clara do que o perturbava a tal ponto, a roda da fortuna, como tantas vezes acontece, rodava a seu favor. Depois da acção de Ostrovno foi promovido, nomearam-no comandante de batalhão e quando precisavam de um oficial corajoso para qualquer missão a ele se dirigiam. [XVI] Quando teve conhecimento da doença de Natacha, a condessa, que ainda não estava restabelecida e se sentia fraca, partiu para Moscovo com Pétia e toda a criadagem. A família abandonou a casa de Maria Dmitrievna e foi instalar-se na sua residência da capital, onde todos se reuniram. A doença de Natacha era tão séria que, felizmente para ela e para os pais, as causas que a tinham provocado — o seu procedimento e o desmanchar do casamento — foram relegadas para segundo plano. Tão grave era o seu estado que ninguém pensava nas suas culpas e em tudo o que acontecera. Não comia, não dormia, emagrecia a olhos vistos, tossia e corria sério risco, como os médicos davam a entender. Não se podia pensar noutra coisa senão em tratá-la. Os médicos iam vê-la, quer separadamente, quer em conferência, discutiam muito em francês, alemão e latim, criticavam-se mutuamente, prescreviam os remédios mais variados, aptos para curar todas as doenças de que tinham conhecimento, masnunca pela cabeça de qualquer deles passou a ideia tão simples de que a doença de que ela padecia estava tão pouco ao seu alcance como qualquer dos muitos males de que sofre a criatura humana. Cada homem, com efeito, tem sua constituição particular e traz consigo a sua doença especial, uma doença só dele, nova, complicadíssima, desconhecida da medicina, uma doença que não é dos pulmões, nem do fígado, nem da pele, nem do coração, nem dos nervos, etc., não está descrita nos livros, mas é produto de inumeráveis combinações produzidas pela alteração dos órgãos. Esta ideia simplíssima não podia vir à cabeça dos médicos — pela mesma razão que uma bruxa não pode renunciar aos seus bruxedos —, pois que o mister deles era curar, para isso eram pagos, e a essas funções consagravam os melhores anos da sua vida. Se antes de mais nada, porém, lhes não vinha à cabeça uma tal ideia, é porque sabiam incontestavelmente serem úteis, e o facto é que eram de grande utilidade para todos os habitantes da casa Rostov. Não por fazerem com que a doente ingerisse drogas geralmente prejudiciais, cujo nefasto efeito era, de resto, atenuado por serem tomadas em pequeninas doses. Eram úteis, indispensáveis, inevitáveis pelo facto de darem satisfação às necessidades morais da doente e daqueles que lhe queriam, e é essa a razão por que há e sempre haverá curandeiros, charlatães, homeopatas e alopatas. Davam satisfação aos desejos, perenes no homem, de consolação, à avidez de simpatia que há nele, à necessidade de que se ocupem dele sempre que sofre. Davam satisfação a essa perene necessidade que nas crianças se observa sob a sua forma elementar esfregando o sítio em que se magoam. A criança que se magoa vai logo lançar-se nos braços da mãe ou da ama, na esperança de que elas a beijem e lhe esfreguem o lugar ofendido, e o certo é que se sente consolada assim que obtém estes carinhos. Não lhe passa pela cabeça que as pessoas mais fortes e mais crescidas do que ela sejam capazes de a não socorrer. E com efeito a esperança de um lenitivo, a simpatia que lhe testemunham enquanto a mãe lhe passa a mão pelo sítio lesado, eis quanto basta para a consolarem. Os médicos desempenhavam junto de Natacha o papel da mãe que beija o filho e lhe passa a mão pelo dói-dói. Diziam-lhe que o mal de que padecia se curaria desde que o cocheiro fosse comprar ao farmacêutico da Praça de Arbate, por um rublo e sete grivens, certos pós ou certas pílulas, numa caixinha muito bonita, e ela tomasse esses pós, sem falta, de duas em duas horas, nem mais nem menos, em água fervida.Que seria de Sónia, do conde, da condessa, se todos tivessem de cruzar os braços em vez de cuidarem em dar-lhe essas pílulas de hora a hora, essas poções mornas, em vez de lhe prepararem esses caldos de galinha e tantas outras coisas prescritas pelos médicos, coisas para eles uma ocupação e uma consolação apreciáveis? Teria o conde podido suportar a doença da sua filha querida se não pudesse dizer consigo mesmo que esta já lhe custara mil rublos e que de bom grado despenderia outros mil para lhe dar alívio, se não pudesse pensar que para a restabelecer não se importaria de gastar outros mil rublos, levando-a a consultar médicos no estrangeiro sem olhar a despesas; se lhe não tivesse sido dado contar a toda a gente que Métivier e Feller nada tinham percebido do estado dela e que Friese acertara com o mal, mas que Mudrov ainda fora mais feliz no seu diagnóstico? Que teria sido da condessa se lhe não fosse dado zangar- se de quando em quando com a doente por esta não seguir à risca as prescrições médicas? — Assim nunca mais te curas — dizia-lhe ela numa irritação que a fazia esquecer o desgosto —, se não ouves o que diz o médico e não tomas o teu remédio a tempo e a horas! Não é ocasião para brincadeiras, quando tudo isso pode degenerar numa pneumonia — acrescentava, consolada por poder empregar aquele termo científico nem só para ela ininteligível. E Sónia, que teria feito Sónia pela sua parte se não lhe fosse dada a satisfação de dizer a si mesma que passara, de princípio, três noites sem se despir, sempre pronta a executar pontualmente as prescrições do médico e que ainda então mal fechava os olhos para não esquecer a hora de lhe administrar as pílulas assaz inofensivas da linda caixa dourada? E a própria Natacha, conquanto estivesse sempre a dizer que nenhum medicamento a poderia curar e que todas aquelas drogas eram tolice, ela própria sentia uma certa satisfação ao ver que as pessoas faziam por ela tantos sacrifícios, e tomava as suas poções a horas fixas. E até alegre se sentia descuidando-se do cumprimento das prescrições, por poder mostrar que não acreditava na cura e que não apreciava a vida. Todos os dias vinha o médico, que lhe tomava o pulso, lhe olhava a língua e gracejava com ela, sem prestar atenção ao seu parecer desfeito. Depois, quando entrava no quarto contíguo, a condessa seguia-o, e ele, com um ar grave e abanando a cabeça pensativamente, afirmava que, embora a situação fosse bastante grave, tinha confiança no efeito do último remédio, que era precisoaguardar e ver, que a doença era sobretudo moral, mas que... A condessa, procurando dissimular o pormenor, tanto aos seus próprios olhos como aos do médico, introduzia-lhe na mão uma moeda de ouro e voltava sempre com o coração mais aliviado para ao pé da doente. As características da doença de Natacha consistiam em que comia e dormia pouco, tossia e não tinha ânimo para coisa alguma. Os médicos diziam que ela não podia estar sem assistência clínica e por isso a mantinham na atmosfera sufocante da cidade. Os Rostov passaram o ano de 1812 sem irem à aldeia. Apesar da imensidade das pílulas absorvidas, das gotas e dos pós em garrafinhas e caixas, caixas de que Madame Schoss, que muito apreciava esse género de bugigangas, fizera uma colecção completa, apesar de a terem privado dos ares do campo, a mocidade venceu. O desgosto de Natacha foi pouco a pouco absorvido pelas impressões da vida quotidiana. Deixou de sentir uma dor tão violenta, que, lentamente, se foi desvanecendo e as forças físicas principiaram a reanimá-la. [XVII] Natacha estava mais tranquila, mas não mais alegre. Não só evitava todas as oportunidades de se distrair — os bailes, os passeios, os concertos, os espectáculos —, como nunca na sem que sentisse as lágrimas a borbulhar por detrás do riso. Já não podia cantar. Se se punha a rir, ou se tentava cantar só para si, as lágrimas sufocavam-na: lágrimas de arrependimento, lágrimas choradas sobre o seu inocente passado, que não mais volta— ria, lágrimas de pesar por ter dissipado daquele modo a sua juventude, que tão feliz podia ter sido. O riso e o canto afiguravam-se-lhe como que uma profanação da sua dor. Nem sequer pensava em ser coquette, pelo que não precisava de se reprimir. Dizia Para si mesma que todos os homens agora lhe eram tão indiferentes como Nastásia Ivanovna, o bobo. Uma voz íntima lhe interdizia ainda toda a espécie de prazeres. Já não sentia em si o amor à vida como outrora, no tempo em que fora rapariga descuidada, cheia de esperanças. Lembrava-se, com muitas saudades, dos meses do Outono, da caça, do tio, das festas do Natal, na Companhia de Nicolau, em Otradnoie. Que não teriaela dado Para voltar atrás, um dia só que fosse, a esses felizes tempos! Mas não, tinham passado para sempre. Não a enganava o pressentimento de que nunca mais voltaria a encontrar a alma livre que tivera outrora, aberta, a todas as alegrias. No entanto era preciso viver. Consolava-a pensar que não era mais feliz do que os outros, como imaginara antigamente, mas menos, muito menos feliz do que qualquer outra pessoa. O presente, contudo, pouco lhe importava. Desconfiava dele e perguntava a si mesma muitas vezes: «Que acontecerá mais tarde?» E o futuro também nada lhe dizia. Já não sentia alegria na vida e a vida continuava a passar. A única coisa que desejava era não ser pesada a ninguém, não incomodar fosse quem fosse, embora para si mesma nada pedisse. Conservava- se muitas vezes afastada de todos os que a cercavam e a única satisfação que tinha era junto de Pétia, seu irmão. Divertia-se muito mais com ele do que com os outros e por vezes a sós com a criança voltava a ser alegre. Quase não saía de casa, e de todas as pessoas que a visitavam uma só lhe era simpática: Pedro. Ninguém era capaz de lhe falar com tanta ternura, tanto tacto e ao mesmo tempo tanta seriedade como o conde Bezukov. Sem dar por isso, sentia bem toda aquela ternura, daí o grande prazer que lhe dava a companhia do amigo. E no entanto nem sequer lhe agradecia. Sabia que a bondade nada custava a Pedro. Tão natural lhe parecia a ele dever ser bom para toda a gente que lhe não advinha daí qualquer mérito. Por vezes Natacha percebia-o embaraçado e confuso na sua presença, principalmente quando ele queria ser-lhe agradável ou então quando receava que a conversa lhe pudesse trazer penosas recordações. Reparava nisso e atribuía o facto ao seu bom coração e sua timidez, que tímido, supunha-o ela, devia ele ser com toda a gente. Desde aquele dia em que lhe dissera inopinadamente que se fosse livre lhe pediria de joelhos que lhe quisesse e casasse com ele, palavras pronunciadas num momento de profunda emoção, Pedro nunca mais lhe falara dos seus sentimentos e para ela era evidente que aquelas palavras, que então lhe haviam sido de grande lenitivo, não tinham tido mais importância do que o que se diz Para consolar uma criança que chora. Não por Pedro ser casado, mas por Natacha sentir entre eles, no mais alto grau, aquela barreira moral que tanta falta lhe fizera na presença de Kuraguine; nunca lhe ocorrera que das suas relações pudesse nascer amor, não só nela, mas muito menos nele, ou sequer essa espécie de amizade amorosa, só poesia natural entre um homem e uma mulher, como ela conhecia alguns casos.Depois da Quaresma de S. Pedro, Agráfena Ivanovna Bielova, vizinha dos Rostov em Otradnoie, chegou a Moscovo para orar aos santos moscovitas. Propôs a Natacha que fizesse com ela as suas devoções e esta aceitou a ideia com alegria. Apesar da advertência dos médicos, que a proibiam de sair de manhã cedo, ela insistiu em fazer as suas devoções, e não era como de costume em casa dos Rostov, ou seja mandando rezar três ofícios na capela particular, mas como as fazia Agráfena Ivanovna, isto é, durante uma semana inteira, sem faltar às matinas, à missa e ao ofício de vésperas. Esta devoção religiosa agradou à condessa, que no fundo esperava, depois do tratamento pouco profícuo dos médicos, que a oração fosse mais eficaz do que as drogas. E embora receosa, escondendo o caso ao médico, cedeu aos desejos da filha, confiando-a à senhora Melova. Agráfena Ivanovna costumava chamar Natacha às três horas da manhã, e geralmente já a encontrava acordada. Arranjada à pressa, tendo enfiado o seu mais simples vestido e um casaco velho, lá ia a tremer de frio, pela algidez da noite, ao longo das ruas desertas, que a aurora começava já a iluminar. A conselho da companheira, Natacha não se dirigia à igreja paroquial, mas ao templo em que a devota Bielovna dizia haver um sacerdote muito austero e digno. Havia ali sempre muito poucos fiéis. As duas mulheres iam colocar-se no seu recanto habitual, diante do ícone da Virgem, que pendia da parte posterior do coro esquerdo. Um desconhecido sentimento de humildade invadia a alma de Natacha na presença de qualquer coisa de grande e de inacessível quando, àquela hora da manhã, contemplando o rosto enegrecido da Mãe de Deus iluminado pelos círios e a luz da madrugada filtrada pelas janelas, prestava atenção ao ofício divino, que procurava compreender. Se percebia as palavras, os seus sentimentos íntimos fundiam-se com a oração, se as não percebia, ainda lhe era mais grato pensar que o desejo de tudo compreender nascia do orgulho e não era possível saber tudo e que cada qual deve limitar-se a crer e a confiar-se a Deus, que ela, naqueles instantes, sentia reinar no seu coração. Persignava-se, posternava-se e quando não compreendia limitava-se, horrorizada perante as suas inquietações, a pedir a Deus que lhe perdoasse e se amerceasse dela. As orações que proferia eram de contrição. No regresso a casa, a uma hora ainda muito matinal, quando nas ruas apenas se viam os operários a caminho do trabalho, os porteiros que varriam os passeios diante das portas, e toda a gente dormia, Natacha experimentava um sentimento novo para ela, apossibilidade de corrigir os seus defeitos e vir a conhecer ainda uma vida de regeneração pura e feliz. Durante toda a semana em que se consagrou a estas piedosas práticas cresceu nela este sentimento de regeneração. E a felicidade que era para ela comungar, ou, como Agráfena Ivanovna gostava de dizer, recorrendo a um trocadilho, comunicar com Deus, afigurava-se-lhe tamanha que receava morrer antes da chegada desse bem-aventurado domingo. Essa venturosa data chegou, por fim, e quando Natacha, nesse domingo memorável, voltou da comunhão, com o seu vestido de musselina branca, foi a primeira vez após muitos meses que se sentiu em paz consigo mesma e a vida deixou de lhe parecer penosa. O médico, à hora da visita habitual, observou-a e mandou que continuassem a dar-lhe os pós que prescrevera quinze dias antes. — É preciso tomá-los de manhã e à noite, sem falta — disse, convencido da eficácia da droga —, e com toda a regularidade, se fazem favor. Esteja descansada, condessa — gracejou, fechando com presteza, na palma da mão, a moeda de ouro costumada —, não tarda que a tornemos a ver cantar e divertir-se. Está com muito melhor parecer, A condessa, olhando para as unhas, cuspiu (Entre o povo russo, cuspir correspondia a um exorcismo. (N, dos T) voltando muito contente ao salão. [XVIII] Em princípios de Julho espalharam-se em Moscovo boatos cada vez mais inquietantes sobre a marcha das operações militares; falava-se numa proclamação do imperador dirigida ao povo e no seu regresso à capital. Ora como a 11 ainda se não tinha conhecimento de qualquer manifesto nem de qualquer proclamação, mais exagerados se espalharam os rumores a esse respeito e a propósito da situação. Dizia-se que o imperador abandonava o exército por este estar em perigo, que Smolensk se rendera, que Napoleão dispunha de um milhão de homens e que só um milagre podia salvar a Rússia. Sábado, 11, recebeu-se o manifesto, mas ainda não fora tornado público,Pedro, que se encontrava nessa altura em casa dos Rostov, prometeu vir jantar no dia seguinte, domingo, e trazer o manifesto e a proclamação, que esperava obter através do conde Rostopchine. Nesse domingo, como de costume, os Rostov foram ouvir missa à capela particular dos Razumovski. Estava muito calor. Desde as dez da manhã, hora a que os Rostov se apearam da sua carruagem diante da capela, que o vento quente, os pregões dos vendedores ambulantes, a multidão com os seus trajos claros do Estio, as árvores das avenidas cobertas de poeira, o rataplã da banda de um regimento de pantalonas brancas dirigindo-se à parada, o rolar das carruagens ao longo dos pavimentos, o resplandecer de um sol de fogo, tudo se misturava, transmitindo já essa impressão amodorrante, misto de satisfação e de desgosto, que costuma sentir-se numa grande cidade em dia de muito calor. Boa parte da nobreza moscovita, personagens dos conhecimentos dos Rostov, estava reunida na capela dos Razumovski. Nesse ano, por causa dos acontecimentos, muitas das mais ricas famílias haviam ficado na capital, embora habitualmente passassem esses meses nas suas propriedades no campo. Seguindo atrás de um lacaio que afastava a multidão, Natacha, ao lado da mãe, ouvia um rapaz falar dela em voz baixa. — É a Rostov, a que... — Que magra, mas ainda assim é uma linda rapariga! Julgou ouvi-los pronunciar os nomes de Kuraguine e de Boikonski. Aliás, isso acontecia-lhe frequentemente. Estava sempre a pensar que toda a gente falava da sua aventura. Dolorosamente sentida e de coração apertado, que assim estava sempre no meio da multidão. Natacha continuou a andar, com o seu vestido de seda lilás guarnecido de rendas pretas, num passo tanto mais calmo e majestoso quanto maior a vergonha e o desgosto no fundo da alma, Sabia muito bem, e não se enganava, que era muito bonita; mas não sentia com isso o prazer de outrora. Pelo contrário, ultimamente o reconhecer que assim era fazia-a sofrer, sobretudo num dia como aquele, claro e quente, em plena cidade. «Mais um domingo, mais uma semana», dizia de si para consigo, lembrando-se de que ali viera no domingo anterior, «e sempre a mesma vida, que não chega a ser vida, sempre a mesma gente agradável de antigamente. Sou bonita, sou nova e agora também sei que sou bondosa; antigamente era má, mas agora não, tenho a certeza, e assim, em pura perda, vão passando os meus dias sem proveito para nada, sem proveito Para ninguém.» Ficou ao lado da mãe e cumprimentou com acenos de cabeça aspessoas conhecidas mais próximas. Como de costume, examinou os vestidos das senhoras, criticou o porte e a maneira pouco fina como uma delas fazia o sinal da cruz, e ali a dois passos, na estreita capela, pensou com despeito que diziam dela o que ela dizia das demais, mas de súbito, assim que principiou o serviço divino, sentiu-se como que assustada diante da sua própria baixeza e como que aterrada ao ver que perdera de novo a pureza de outrora. Um velhinho, de venerável aspecto, oficiava, com a serena unção de tão apaziguadora influência na alma dos fiéis. As portas reais abriram-se; a cortina afastou-se lentamente; ouviu-se lá dentro uma voz misteriosa e doce. Lágrimas, cuja causa ela não compreendia, oprimiam Natacha, e uma impressão alegre e enervante a invadiu, «Ensina-me o que tenho de fazer, como me devo conduzir na vida, como corrigir-me para sempre», orava ela. O diácono subiu ao púlpito, afastou com o dedo polegar as longas madeixas que lhe saíram do stikar, e depois de ter levado a cruz ao peito leu, em alta voz e solenemente, as palavras da oração. «Oremos em paz a Deus nosso Senhor!» «Oremos em paz todos juntos, isto é, sem distinções de classe, sem ódios, unidos no mesmo amor fraternal», disse Natacha para si mesma. «Oremos para que nos seja dado o reino dos Céus e a salvação das nossas almas!» «Sim, o reino dos anjos e de todos os espíritos celestes que vivem por cima de nós», pensou ela, ao mesmo tempo. Quando rezaram pelo exército lembrou-se do irmão e de Denissov. Quando rezaram pelos que andam sobre a terra e sobre o mar, rezou pelo príncipe André, pedindo que o Senhor lhe perdoasse o mal que lhe fizera. Quando oraram pelos entes queridos, rezou pelos seus, pelo pai, pela mãe e por Sónia, e pela primeira vez sentiu quanto era culpada para com eles e quanto lhes queria. Quando rezaram pelos que têm ódio, procurou saber quais os seus inimigos e os que lhe queriam mal, para rezar por eles. Não achou, porém, senão os credores de seu pai e aqueles que com ele haviam questionado. E assim lhe veio à mente Anatole, que tanto mal lhe fizera, e embora o não considerasse no número dos que a odiavam, rezou por ele, satisfeita, como se de um inimigo se tratasse. Só enquanto rezava era capaz de se lembrar serenamente e sem comoção do príncipe André e deAnatole, pois os sentimentos que nesse momento sentia nada eram ao pé do seu temor e do seu amor de Deus. Quando rezaram pela família imperial e pelo Santo Sínodo, ainda se posternou mais contra o solo, persignando-se e dizendo para si mesma que, embora o não compreendesse, lhe era impossível duvidar e que, fosse como fosse, tinha de amar o Sínodo e rezar por ele. Dita que foi a lektenia, o diácono fez com a estola o sinal da cruz sobre o peito e murmurou: «Encomendemo-nos, e encomendemos as nossas vidas a Jesus Cristo Nosso Senhor!» «Encomendemo-nos a Deus», repetiu Natacha no seu íntimo. «Deus meu, entrego-me à Tua vontade», orou ela. «Nada quero nem desejo mais. Ensina-me o que devo fazer, como hei-de empregar a minha vontade! Mas toma-me, toma- me!», murmurou ela mentalmente com exaltação e impaciência, sem se benzer, deixando cair os braços, como se esperasse que uma força invisível, naquele mesmo instante, tomasse conta dela e a libertasse de si própria, das suas mágoas, dos seus desejos, dos seus remorsos, das suas esperanças e dos seus erros. A condessa, por várias vezes durante o ofício, relanceara os olhos ao rosto recolhido e aos olhos fulgurantes da filha e rogara a Deus que a ajudasse. Subitamente, no meio da cerimónia, e alterando a ordem que Natacha muito bem conhecia, o sacristão trouxe um escabelo, o escabão que costumava servir para ler as orações da Santíssima Trindade, e colocou-o diante das portas reais. O sacerdote, com a sua sotaina de veludo lilás, emergiu das portas, compôs os cabelos e ajoelhou com dificuldade. Todos os fiéis repetiram o seu gesto, olhando uns para os outros com grande surpresa. Ia-se rezar a oração, recentemente emanada do Santo Sínodo, rogando a Deus a salvação da Rússia, sob a ameaça da invasão estrangeira. «Senhor Deus todo-poderoso, Deus da nossa salvação», principiou o sacerdote nessa voz nítida, suave e sem ênfase tão característica dos eclesiásticos eslavos quando oram e que tão grande Poder exerce sobre a alma russa. «Senhor Deus todo-poderoso, Deus da nossa salvação! Concede a Tua graça e a Tua misericórdia às Tuas humildes criaturas e ouve a nossa oração, amerceia-Te de nós e tem piedade. O inimigo enche de confusão a Terra e quer transformar o mundo num deserto. Este inimigo levanta-se contra nós. Homens criminosos reuniram-se para destruir oTeu bem, para arrasar a Tua fiel Jerusalém, a Tua Rússia bem-amada, para conspurcar Os Teus templos, derrubar os altares e profanar os Teus santuários. Até quando, Senhor, até quando triunfarão os pecadores? «Senhor todo-poderoso! Escuta-nos a nós, que Te imploramos: ampara com a Tua força o nosso mui piedoso imperador autocrata Alexandre Pavlovitch. Lembra- Te da sua lealdade e da sua doçura, recompensa-o pela bondade com que ele nos protege, a nós, a Tua Israel bem-amada. Abençoa as suas decisões, as suas empresas, as suas obras. Revigora com a Tua dextra todo-poderosa o seu reino e concede-lhe a vitória sobre o inimigo, como a Moisés sobre Amalek, Gedeão sobre Madian, David sobre Golias. Protege os seus exércitos, sustém o arco de cobre debaixo do braço dos que se armaram em Teu nome e cinge-os com a Tua força para o combate. Pega nas Tuas armas e no Teu escudo e vem em nosso auxílio. Que a confusão e a vergonha caiam sobre aqueles que nos querem mal e que eles sejam diante do rosto dos Teus fiéis armados como a poeira diante do vento e que o Teu Anjo todo-poderoso os expulse e persiga. Que uma rede os envolva sem eles darem por isso e que as armadilhas que escondem sirvam para que caiam nelas. Que eles caiam aos pés dos Teus escravos e que eles sejam esmagados pelos Teus exércitos, Senhor! Tens o poder que salva grandes e pequenos. Tu és Deus e o homem nada pode contra Ti. «Deus de nossos pais! Lembra-Te da Tua generosidade e da Tua graça, que são etcrnas. Não nos afastes da Tua presença, não Te apartes das nossas iniquidades, mas, na grandeza da Tua bondade e na imensidade da Tua misericórdia, esquece os nossos crimes e os nossos pecados. Edifica em nós um coração puro e renova no nosso seio um espírito recto. Fortalece-nos a todos na nossa fé em Ti, revigora a nossa esperança, inspira-nos um verdadeiro amor ao próximo, une-nos a todos para a defesa legítima do património que Tu nos deste, a nós e a nossos pais, e que o ceptro dos ímpios se não eleve sobre a terra daqueles a quem abençoaste. «Senhor nosso Deus, em quem nós cremos e em quem temos firme confiança, não desiludas a nossa esperança na Tua graça c, faz um milagre para nosso bem. Que o vejam aqueles que nos odeiam, a nós e à nossa fé ortodoxa, e que eles sejam confundidos e que pereçam e que todas as nações saibam que o Teu nome é Senhor e que nós somos Teus filhos. Revela-nos, Senhor, hoje mesmo, a Tua misericórdia e concede-nos a Tua salvação. Regozija o coração dos Teus escravos com a Tua graça. Fulmina os nossos inimigos e aniquila-os debaixo dos pés dos Teusfiéis. És o apoio, és o socorro e a vitória dos que confiam em Ti. Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, agora e por todos os séculos dos séculos. Amen.» No estado impressionante em que se encontrava, Natacha sentiu-se profundamente abalada por esta oração. Escutando as palavras referentes à vitória de Moisés sobre Amalek, de Gedeão sobre Madian, de David sobre Golias e à ruína de Jerusalém, rezava com toda a doçura e toda a ternura do seu coração. Contudo, não compreendia lá muito bem o que estava a rogar a Deus. Com toda a sua alma pedia que se lhe purificasse o espírito, que se lhe fortalecesse o coração com a fé e a esperança e que nela reinasse o amor. Era-lhe impossível, porém, orar para que os seus inimigos fossem esmagados quando minutos antes desejara ter ainda mais inimigos para por eles poder rezar. No entanto, não podia duvidar da justiça da oração que se rezara de joelhos. No fundo do seu coração sentia um terror pleno de reconhecimento ao pensar no castigo que fulmina os pecadores e sobretudo no castigo a que a expunham os seus próprios pecados e pediu a Deus que lhes perdoasse a eles e a ela própria e que lhes concedesse a todos, igualmente, o descanso e a felicidade nesta vida. E parecia-lhe que Deus ouvia a sua oração. [XIX] Desde o dia em que Pedro, ao sair de casa dos Rostov sob a impressão do olhar reconhecido de Natacha, contemplara o cometa e sentira como que desvendar-se- lhe um novo horizonte, deixara de ser atormentado pelo etcrno problema da vaidade e da loucura de tudo quanto existe à face da Terra. A terrível pergunta: «Porquê? Para quê?», que outrora vinha associar-se às suas ocupações, achava-se substituída não por qualquer outra pergunta ou por qualquer solução, mas pela imagem que guardara dela. Quando escutava ou falava de coisas insignificantes, quando lia ou se inteirava de qualquer baixeza ou loucura humana, não se horrorizava como antigamente. Não estava sempre a perguntar-se a si próprio porque se agitam tanto os homens quando a vida é tão curta e depois os espera o desconhecido. Bastava evocá-la, no aspecto em que a vira pela última vez, e todas as suas dúvidas desapareciam, e não era porque ela desse resposta a estasperguntas, mas porque a sua imagem o transportava num instante a uma região luminosa da alma onde não podia haver nem justos nem culpados, à região da beleza e do amor, as únicas razões pelas quais vale a pena viver. Fossem quais fossem as misérias morais que a existência lhe oferecia, para si mesmo Pedro murmurava: «Que me importa a mim que fulano roube o Estado e o czar e que o Estado e o czar o tenham cumulado de honrarias? Ontem ela sorriu-me e pediu-me que a fosse ver e eu amo-a e ninguém o saberá jamais.» E a alma de Pedro ganhava a serenidade e a paz. Pedro continuava a frequentar a sociedade, a beber muito, a levar a mesma vida ociosa e dissipada, pois, não falando nas horas que passava em casa dos Rostov, as demais tinha ele de as preencher de qualquer maneira. Os seus hábitos e as suas relações arrastavam-no vitoriosamente para aquela vida que o absorvia. Mas ultimamente, quando principiaram a chegar do campo de batalha notícias cada vez mais alarmantes, quando a saúde de Natacha principiou a restabelecer-se e deixou de lhe inspirar aquele antigo sentimento de compaixão, uma vaga inquietação, cada vez mais inexplicável a seus olhos, se apoderou dele. Pressentia que a vida que levava não podia durar muito, que uma catástrofe se preparava que transformaria toda a sua existência, e ei-lo a espiar com impaciência os sinais anunciadores. Um dos pedreiros-livres seu irmão desvendara-lhe a profecia seguinte, referente a Bonaparte, extraída do Apocalipse de S. João. No capítulo XIII do Apocalipse, versículo 18, diz-se: «Aqui está a sabedoria. Aquele que tem entendimento conte o número da besta; porque é número de homem, e o seu número é seiscentos e sessenta e seis.» No mesmo capítulo, versículo 5: «E deu-se-lhe a boca para falar grandezas e blasfémias: e deu-se-lhe poder para assim o fazer quarenta e dois meses.» As letras do alfabeto francês, iguais às do hebraico, podem exprimir-se por meio de algarismos, e atribuindo as dez primeiras letras o valor das unidades e o das dezenas às restantes, o seu valor numérico é o seguinte: a b e d e f g h i j k 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 20 l m n o p q r s t u v 30 40 50 60 70 80 90 100 110 120 130x y z 140 150 160 Utilizando este alfabeto cifrado, as palavras l’empereur Napoléon correspondem, pelas suas letras, a uns números que, somados, davam o resultado 666. E aí estava como Napoleão era a, besta de que falava o Apocalipse. Além disso, ao escrever-se, com esse alfabeto, as palavras quarante-deux, isto é, o limite que fora assinalado à besta para «falar grandezas e blasfémias», a soma das cifras obtidas era de novo igual a 666. Resultava, pois, que o poder de Napoleão teria o seu termo em 1812, data em que o imperador faria quarenta e dois anos. Esta profecia impressionara muito Pedro, que frequentemente perguntava a si próprio quem acabaria com o poder da besta, isto é, de Napoleão, e, graças à mesma representação das letras por algarismos e mercê dos mesmos cálculos, deu-se a procurar uma resposta para a interrogação. Escreveu como resposta a essa pergunta: «O Imperador Alexandre? A nação russa?» Calculou as letras, mas a soma era maior que 666. Unia vez em que estava entregue a estes cálculos escreveu: «Comte Pierre Bésouhoff», mas não conseguiu obter o resultado desejado. Alterou a grafia e pós um z no lugar do s, acrescentou a preposição de, o artigo le, mas também sem conseguir o resultado que esperava. Então ocorreu-lhe que, se a resposta à pergunta estivesse no seu nome, seria naturalmente necessário mencionar a nacionalidade. Escreveu então: «le russe Bésouhoff» e adicionando os algarismos obteve como resultado 671. Sobravam apenas cinco letras, e o cinco representava a letra e, a mesma letra e que em francês se suprime do artigo da palavra l’empereur. Suprimindo este e, não obstante resultar um erro, escreveu «le russe Bésouhoff», isto é, precisamente 666. Esta descoberta perturbou-o. Como estava ele relacionado com aquele acontecimento previsto pelo Apocalipse? Eis o que a si próprio não sabia explicar. Mas não hesitou um momento. O amor por Natacha Rostov, o Anticristo, a invasão de Napoleão, o cometa, o número 666, «l’empereur Napoléon» e «l’russe Besouhoff», todo aquele conjunto de factos misteriosos devia amadurecer, tinha de acabar por explodir, impelindo-o para fora do círculo vicioso dos hábitos mundanos moscovitas de que se sentia prisioneiro, e levando-o, por fim, a realizar um acto heróico e— a alcançar uma grande felicidade. Na véspera daquele domingo em que fora lida a oração, Pedro prometera trazer aos Rostov a proclamação do imperador e as últimas novas sobre o que se passava no exército, que procuraria obter junto do conde Rostoptchine, com quem estava em boas relações. Na manhã em que se apresentou em casa deste encontrou ali um correio que acabava de chegar do exército. Este correio era um dos melhores dançarinos dos bailes de Moscovo, e, conhecido seu. — Não quererá ajudar-me? — disse-lhe o correio — Trago uma mala cheia de cartas para pessoas de família. Entre essas cartas havia uma de Nicolau Rostov dirigida ao pai. Pedro tomou conta dela. Por seu lado, o conde Rostoptchine entregou-lhe a proclamação do imperador ao povo de Moscovo, que acabava de receber, as últimas ordens do exército e o último apelo por ele redigido. Ao percorrer as ordens do exército, Pedro descobriu, na lista dos, mortos, dos feridos e dos agraciados, o nome de Nicolau Rostov, que fora condecorado com a cruz de S. Jorge, de 4ª classe, pelo acto de bravura que cometera em Ostrovno, e na mesma ordem do exército a nomeação de André Bolkonski para comandante de um regimento de caçadores. Embora não lhe parecesse muito agradável lembrar aos Rostov o nome de Bolkonski, não quis deixar de lhes comunicar a boa nova da distinção concedida, e, resolvendo ser ele próprio a levar-lhes as outras ordens do exército, a proclamação e o apelo, à hora do jantar, tratou de lhes mandar imediatamente a relação impressa e a carta. A conversa que teve com o conde Rostopchine, o ar inquieto e azafamado deste, o encontro com o correio e as más novas do exército que o último lhe comunicara despreocupadamente, o boato que corria segundo o qual se haviam descoberto espiões em Moscovo encarregados de distribuir panfletos em que se dizia que Napoleão prometera ocupar as duas capitais antes do Outono e as conversações sobre a chegada do imperador, esperado no dia seguinte, tudo concorria para agravar a agitação e a inquietação em que andava Pedro desde a aparição do cometa, e sobretudo depois do começo da guerra. Havia muito que lhe ocorrera a ideia de alistar-se no exército, e já o teria feito se, por um lado, não pertencesse à sociedade maçónica, a que estava ligado por um juramento, e a qual pregava a paz perpétua e a abolição das guerras, e, por outro, não tivesse visto como avultado número de moscovitas vestia o uniforme militar com grande alarde de patriotismo, coisa que, sem que ele soubesse muitobem porquê, o fazia sentir-se um pouco envergonhado de dar esse passo. A causa principal do seu retraimento, no entanto, era aquela vaga convicção de ser ele «l’russe Bésouhoff», quem representava o número 666, e de que a sua participação na grande obra de destruição do poder da besta estava decidida desde toda a etcrnidade, facto que o levava a pensar, por conseguinte, não dever tomar por si próprio qualquer resolução, mas esperar pelo que fatalmente tinha de acontecer. [XX] Em casa dos Rostov, como era costume todos os domingos, havia algumas pessoas íntimas a jantar. Pedro chegou mais cedo para encontrar a família só. Engordara tanto nesse ano que, se não fosse a sua grande estatura, estaria disforme. Os seus largos ombros e a sua grande robustez aguentavam perfeitamente aquela obesidade. Subiu as escadas resfolgando e murmurando qualquer coisa entre dentes. O cocheiro não lhe perguntara se devia esperar; sabia muito bem que teria de aguardar até à meia-noite. Os lacaios de Rostov haviam-se precipitado para o ajudar a despir o casacão e tomarem conta do chapéu e da bengala. Deixava-os sempre no vestíbulo, como costumava fazer no clube. A primeira pessoa que ele avistou foi Natacha, Ouvira-a mesmo antes de a ver quando despia o casacão ira antecâmara. Dava-se a exercícios de solfejo no salão, como Pedro sabia que ela não voltara a cantar desde que adoecera, o som da sua voz foi para ele uma surpresa muito agradável. Entreabriu a porta de mansinho e viu-a com o seu vestido lilás, o que levara à missa, andar de um lado para o outro cantando. Estava de costas quando ele abriu a porta, mas, tendo-se voltado bruscamente, descobriu, assombrada, a sua espessa figura, Corando muito, correu para ele. — Estou com vontade de cantar outra vez — disse ela. — Ajuda-me a passar o tempo — acrescentou, como que a desculpar-se. — Muito bem. — Estou muito contente por ter vindo! Sinto-me hoje tão feliz! — continuou com a mesma animação de outrora, animação que Pedro lhe não via há muito. —Sabe? O Nicolau teve a cruz de S. Jorge! Estou cheia de orgulho por ele! — Sim, bem sei, fui eu quem mandou a ordem do exército. Mas não a quero importunar— acrescentou, dispondo-se a passar ao salão contíguo. Natacha deteve-o. — Conde! Acha que faço mal em cantar? — disse, corando, enquanto o interrogava com os olhos. — Mas... porquê? Pelo contrário... Porque me pergunta isso? — Não sei — replicou ela precipitadamente. — Não gostava de fazer fosse o que fosse que lhe desagradasse. Tenho tanta confiança em si! Nem calcula a importância que tem para mim e o bem que me tem feito!— prosseguiu ela, no mesmo tom, sem reparar que Pedro ia corando à medida que ela falava.— Ah!, também vi nessa mesma ordem do exército que ele está na Rússia, ele, Bolkonski — pronunciou o nome em voz baixa e precipitadamente —, e que voltou para o exército. Que acha? Crê que virá a Perdoar-me? — acrescentou, em voz sumida, como se receasse que as forças lhe faltassem antes de acabar a frase. — Acha que ficará para sempre zangado comigo? Diga. Que lhe parece? — Acho... — volveu Pedro — que nada tem a perdoar-lhe... E se eu estivesse no lugar dele... Por associação de ideias, transportara-se, subitamente, ao momento em que, para consolá-la, lhe dissera que se estivesse livre lhe pediria de joelhos que se casasse com ele, e os mesmos sentimentos de piedade, de ternura, de amor lhe encheram o coração e as mesmas palavras de então lhe vieram aos lábios. Natacha, porem, não lhe deu tempo de pronunciá-las. — Oh, o Pedro... o Pedro... — articulou a palavra com exaltação — o Pedro é muito diferente. Ninguém conheço melhor, mais generoso, mais nobre e não pode haver outro. Se o não tivesse a meu lado então, e agora mesmo, não sei o que teria sido de mim, pois... De súbito encheram-se-lhe os olhos de lágrimas. Voltou a cabeça para o lado, ergueu o caderno de música para esconder a emoção que a tomava e pôs-se a cantar, passeando na sala de um lado para o outro. Nessa altura Pétia entrou no salão. Era um rapazinho de quinze anos, fresco e rosado, com grossos lábios vermelhos, que se parecia com Natacha. Estava a preparar-se para entrar na universidade, mas ultimamente, tanto ele como o seu camarada Obolenski,congeminavam, às escondidas, fazer-se hússares. Pétia precipitou-se a falar do problema ao seu homónimo. Pediu-lhe que se informasse se o aceitariam no corpo de hússares. Mas Pedro, sem o ouvir, continuava a andar de cá para lá. Pétia travou-lhe do braço para lhe chamar a atenção. — Então, como vão as minhas coisas, Pedro Kirilovitch? Por amor de Deus! É a minha única esperança! — exclamou Pétia. — Ah, sim! O teu caso? Os hússares? Hei-de falar nisso, hei-de falar nisso. Hoje, sem falta. — Então, meu caro, então! Arranjou a proclamação? — disse-lhe o velho conde assim que o viu. — A condessa foi à missa, à capela dos Razumovski. Rezaram uma nova oração. Parece que é muito bonita. Ela assim o diz. — Sim, arranjei — redarguiu Pedro — O imperador chega amanhã... Haverá uma reunião extraordinária da nobreza e faia-se num recrutamento de dez por cada mil homens. E os meus parabéns! — É verdade, é verdade! Louvado seja Deus! E do exército, que notícias há? — Os nossos recuaram outra vez. Estão já nas proximidades de Smolensk, segundo se diz — replicou Pedro. — Meu Deus, meu Deus! — exclamou o conde. — E onde é que tem a proclamação? — A proclamação! Ah!, sim! Pedro pôs-se a mexer nos bolsos e não pôde dar com ela. Sempre revolvendo as algibeiras, ia beijando a mão à condessa, que entretanto penetrara na sala, e lançando olhares inquietos à sua roda, preocupado com Natacha, que deixara de cantar e não aparecia. — Ora que isto, não sei onde a meti — disse ele. — Perde tudo! — murmurou a condessa. Natacha entrou nessa altura na sala com um ar enternecido e emocionado e sentou-se, sem dizer palavra, a olhar para Pedro. Ao vê-la na sala, o rosto deste, triste até então, iluminou-se de súbito, e, continuando nas suas pesquisas, olhava- a de vez em quando. — Eu vou procurá-la. Devo tê-la deixado em casa. Com certeza... — Vai chegar tarde para o jantar. — É verdade, e o cocheiro foi-se embora.Mas Sónia, que fora procurar os papéis ao vestíbulo, encontrara-os no chapéu de Pedro, onde ele os guardara cuidadosamente debaixo da vira, Pedro ia principiar a ler. — Não, depois do jantar — atalhou o velho conde, que se preparava para apreciar devidamente a leitura. Durante o jantar, em que se bebeu champanhe à saúde do novo cavaleiro de S. Jorge, Chinchine contou o que se dizia na cidade: falou na doença da velha princesa georgiana, no desaparecimento de Métivier, na história de um alemão que fora conduzido à presença de Rostoptchine, a quem disseram que se tratava de um champignon, mas que, como o próprio Rostoptchine contara, mandara soltar dizendo que não era um champignon francês, mas apenas um velho cogumelo alemão. — Sim, sim, deitam-lhes a mão, deitam-lhes a mão – disse o conde —, e já tenho dito muitas vezes à condessa que não fale francês. Não é momento para isso. — E querem saber? — voltou Chinchine. — O príncipe Galitzine contratou um preceptor russo, está a aprender russo. Começa a ser perigoso falar francês pelas ruas. — Então, Pedro Kirilovitch, quando recrutarem a milícia, lá verei a cavalo — disse o velho conde. Pedro estivera silencioso e pensativo durante toda a refeição. Fitou o conde, que o interpelava, sem parecer tê-lo compreendido. — Sim, sim, a guerra! — exclamou ele. — E eu, que belo guerreiro! De resto, é tudo tão estranho! Realmente não percebo coisa alguma. Não sei, sou um homem com muito pouca propensão para a guerra, mas nos tempos que correm ninguém pode responder por si. Depois do jantar, o conde instalou-se tranquilamente numa poltrona, e, com grave semblante, pediu a Sónia, que tinha fama de pronunciar muito bem, que lesse a proclamação. «Dada em Moscovo, a nossa primeira capital. «O inimigo atravessou com forças consideráveis as fronteiras da Rússia. Vem assolar a nossa pátria bem-amada», leu Sónia, meticulosamente, com a sua vozita fina. O conde ouvia-a de olhos fechados, suspirando de vez em quando em certos passos. Natacha, na sua cadeira, muito atenta, ia fixando, escrutadoramente, ora opai ora Pedro. Este, sentindo que ela o olhava, evitava voltar-se para o seu lado. A condessa, sempre que havia uma frase solene na proclamação, abanava a cabeça num ar descontente e desaprovador. Em tudo aquilo via apenas que os perigos que ameaçavam o filho estavam longe de acabar. Chinchine, a boca franzida num sorriso trocista, preparava-se evidentemente para aproveitar todas as oportunidades que se lhe oferecessem para fazer espírito, quer a propósito da leitura de Sónia, quer do que o conde diria, quer ainda da própria proclamação, à falta de qualquer outro pretexto. Depois de ter lido os passos relativos aos perigos que ameaçavam a Rússia, às esperanças que o imperador depositava em Moscovo e sobretudo na sua gloriosa nobreza, Sónia, em voz trémula, principalmente por virtude da atenção que lhe prestavam, chegou ao fim: «Não tarda que nós próprios nos encontremos entre o nosso povo nesta capital e em outros locais do nosso Império, prontos a deliberar e a guiar todas as nossas milícias, tanto as que actualmente cortam o passo ao inimigo como as que se vão formar para combatê-lo onde quer que ele se encontre. Que a perdição em que ele quer precipitar-nos recaia sobre a sua própria cabeça e que a Europa, liberta da escravidão, glorifique o nome da Rússia!» — Muito bem! — exclamou o conde, entreabrindo os olhos humedecidos e fungando por várias vezes, como se lhe dessem sais a cheirar. E acrescentou: — Basta uma palavra do imperador, e estamos prontos a tudo sacrificar, sem poupar nada. Ainda Chinchine não tinha tido oportunidade de proferir o seu gracejo sobre o patriotismo do conde quando Natacha correu para o pai. — Que pai encantador eu tenho! — exclamou ela, beijando-o, e ao mesmo tempo relanceava de novo um olhar a Pedro com uma galanteria inconsciente, que acordava nela ao mesmo tempo que a alegria. — Isto é que é uma patriota! — disse Chinchine. — Não sou patriota, sou apenas... — ripostou Natacha, ofendida. — Ri-se de tudo, mas isto não é para rir... — Que há nisto que dê vontade de rir...? — observou o conde. — Basta uma palavra sua, e todos nós nos levantaremos... Nós não somos como os Alemães... — Repararam que a proclamação diz: «prontos a deliberar»? — Ou seja para isso ou para qualquer outra coisa.Nesse momento Pétia, a quem ninguém prestava atenção, aproximou-se do pai, e, muito corado, numa voz entrecortada, ora vibrante ora quase surda, disse- lhe: — Pois bem, pai, dir-lhe-ei agora, e a si também, minha mãe, se assim o querem; digo-lhes: deixem-me ingressar no exército, porque não posso mais... e é tudo... A condessa, aterrorizada, elevou os olhos, apertou as mãos uma na outra e disse para o marido: — Aqui tens! Foi isto o que tu conseguiste! Mas o conde imediatamente baixou o calor do seu entusiasmo. — Bom, bom — disse ele. — Olhem para este guerreiro. Não digas tolices! Trata mas é de ir para a escola. — Não são tolices, pai. Obolenski Fédia é mais novo do que eu e também vai para a guerra. Além disso, por mais que faça, não sou capaz de estudar agora, que... — Pétia calou-se, corando até às meninas dos olhos, e concluiu: — a pátria está em perigo. — Basta, basta! Deixa-te de disparates... Mas o pai ainda agora disse que estava pronto a sacrificar tudo. — Pétia! Já te disse que te calasses! — gritou o conde, trocando um olhar com a mulher, a qual, muito pálida, não retirava Os olhos do seu filho mais novo. — E vou dizer-lhe... Pedro Kirilovitch lhe dirá... — Já disse, são disparates. Ainda ontem era um menino de mama e já hoje quer ser soldado. Bem, bem, já te disse o que tinha a dizer-te. E o conde, pegando na proclamação, naturalmente para voltar a lê-la no seu gabinete, antes de ir para a cama, dispunha-se sair. — Pedro Kirilovitch — disse ele —, venha fumar um cigarro... Pedro estava muito perturbado e indeciso. Sentia postos nele a todo o momento os olhos brilhantes e animados de Natacha, com uma insistência que não era apenas amabilidade. — Não. Parece-me que vou para casa... — Que diz? Para casa? Mas o senhor vinha passar a noite connosco... Vem poucas vezes a nossa casa. E esta... — continuou o conde, bonacheirão, apontando para Natacha — esta só parece alegre na sua presença. — Sim, mas esqueci-me... Tenho de voltar a casa sem falta... Uns assuntos... —replicou Pedro, pressuroso. — Bem, então adeus — disse o conde, retirando-se. — Porque se vai embora? Porque está tão perturbado? Porquê? — perguntou- lhe Natacha, fitando-o provocadoramente nos olhos. «Porque te amo!», teria ele desejado dizer, mas não abriu a boca e corou até à raiz dos cabelos, baixando a vista. — Porque seria melhor para mim visitá-los menos vezes... Porque... Não, seriamente, é porque tenho uns assuntos... — Porquê? Diga-me porquê... — teimou Natacha, num tom decidido. De repente, porém, calou-se. Os dois entreolharam— se, receosos e confusos. Pedro procurou sorrir, mas não pôde. No seu esgar havia sofrimento. Beijou a mão de Natacha em silêncio e desapareceu. Pedro decidiu não voltar a casa dos Rostov. [XXI] Pétia, depois de tão formal negativa do pai, fechou-se no quarto e chorou amargamente. Todos fingiram não dar por coisa alguma quando ele apareceu para o chá, triste e calado, com os olhos todos vermelhos. No dia seguinte chegava o imperador. Alguns dos criados de Rostov pediram licença para assistir à chegada do czar. Naquela manhã Pétia levou muito tempo a vestir-se e a pentear-se e pôs um colarinho de homem. Franzia as sobrancelhas diante do espelho, esboçava grandes gestos, encolhia os ombros. Finalmente, sem dizer nada a ninguém, pôs o chapéu e saiu pela porta de serviço, procurando não ser visto. Decidira ir directamente ao local onde estivesse o imperador e explicar a um dos camaristas — pensava que o imperador andava sempre rodeado de uma nuvem de camaristas — ser o conde Rostov e que, não obstante muito novo, era seu desejo servir a pátria, e que a sua pouca idade não podia ser obstáculo quando se tratava de uma coisa assim e que estava disposto... Preparara uma série de lindos discursos para recitar ao dito camarista. Pétia contava ser bem sucedido ao apresentar-se ao imperador precisamenteporque era uma criança — pensava, inclusivamente, assombrar toda a gente com a sua juventude —, e, no entanto, na maneira como arranjara o colarinho, na forma como se penteara, no seu andar grave e moderado, procurava dar a impressão de ser um homem feito, A medida, porém, que ia avançando, mais distraído se mostrava com a multidão que afluía ao Kremlin, esquecendo-se de manter o ar grave que convinha. Ao aproximar-se do palácio, tratou de não deixar que a multidão o arrastasse e pôs-se a distribuir empurrões para a direita e para a esquerda, com ar ameaçador. Na porta da Trindade, apesar de toda a sua energia, a multidão, que provavelmente ignorava as suas intenções patrióticas, de tal modo o comprimiu de encontro à muralha que ele não teve outro remédio senão ficar ali parado espera que as carruagens que passavam sob o arco, estrondeando, houvessem desfilado. Ao pé dele estava uma mulher do povo, um lacaio, dois negociantes e um soldado reformado. Depois de algum tempo imobilizado, Pétia, sem esperar que desfilassem todas as carruagens, quis passar adiante dos demais e resolveu abrir caminho à força de cotovelos. Porém a mulher que estava a seu lado, a primeira pessoa a ser acotovelada, interpelou-o, colérica: — Que é lá isso, senhorito? Não vê que estão todos à espera? Onde vai com essa pressa? — Assim todos nós podíamos caminhar — corroborou o lacaio, que, servindo-se também dos seus cotovelos, o empurrou de encontro a um malcheiroso recanto da porta. Pétia passou a mão pela cara coberta de suor e deu um jeito ao colarinho todo amarrotado que com tanto esmero pusera, à imitação das pessoas crescidas. Reconhecia já não estar com aspecto decente e que se se apresentasse ao camarista não o deixariam aproximar-se do imperador. Mas recompor-se e sair daquele labirinto não lhe era possível. A certa altura viu passar um general conhecido da família. Pensou pedir-lhe que o ajudasse, mas logo reconsiderou, achando que isso não era atitude digna de um homem como ele. Assim que acabaram de desfilar as carruagens, a multidão precipitou-se c, arrastou-o consigo até à praça, coalhada de povo. Havia gente Por todos os lados, até em cima dos telhados, Assim que desembocou na praça ouviu distintamente o repicar dos sinos que enchia todo o Kremlin e o burburinho da turba-multa. De súbito abriu-se uma clareira entre a multidão, todas as cabeças se descobriram e mais uma vez toda a gente se lançou para diante. Pétia, esmagado pela multidão, mal podia respirar.Todos gritavam: «Hurra! Hurra! Hurra!» O pequeno erguera-se na ponta dos pés, empurrava os vizinhos, agarrava-se a eles, mas nada mais podia ver além da multidão que o cercava. Em todos os rostos havia o mesmo entusiasmo e o mesmo carinho. Uma vendedeira, a seu lado, rompeu em soluços, e as lágrimas caíam-lhe pela cara. — Paizinho, meu anjo, meu paizinho! — balbuciava ela, enxugando as lágrimas com as mãos. «Hurra!», continuava a ouvir-se por todos os lados. Por momentos, a multidão imobilizou-se, e de novo se lançou para a frente. Pétia sem dar conta do que fazia, de dentes cerrados e os olhos esbugalhados, precipitou-se também, distribuindo socos e gritando: «Hurra!» Dir-se-ia que naquele momento estava pronto a matar os outros e a matar-se a si. A seu lado, pessoas com expresses idênticas e igualmente selvagens, soltavam os mesmos clamores. «Finalmente, lá está o imperador!», pensava ele. «Ah!, mas como apresentar- lhe a minha petição? Seria um atrevimento!» Nem por isso deixava contudo de furar a multidão desesperadamente, e por cima dos ombros dos que iam diante dele pôde ver um espaço livre com uma passadeira encarnada. No mesmo momento, porém, a multidão recuou, pois os polícias que estavam na frente tinham repelido os que haviam chegado perto de mais do cortejo na altura em que o imperador, vindo do palácio, entrava na catedral de Uspenki. Foi então que Pétia recebeu de repente uma grande pancada na cabeça e se sentiu de tal modo esmagado pela multidão que a vista lhe toldou e caiu sem sentidos. Quando voltou a si, um dignitário da igreja, com um rabicho de cabelos brancos na nuca, vestindo uma sotaina azul desbotada, naturalmente um sacristão, amparava-o com uma mão por debaixo de um braço, enquanto com a outra o protegia da vaga da multidão. — Iam matando este rapazinho! — clamava o sacristão. — Não vêem?... Cuidado!... Está esmagado, esmagado! O imperador entrava na catedral. A multidão apaziguou-se outra vez e o sacristão levou consigo Pétia, muito pálido, mal podendo respirar, até ao pé do rei dos canhões. Várias pessoas se compadeceram de Pétia e a multidão refluiu, de súbito, direita a ele, comprimindo-se à sua volta. Os que estavam mais .pertodesapertaram-lhe o fato, obrigaram-no a sentar-se no pedestal do canhão, manifestando a sua revolta contra os que o haviam Posto em tal estado. «Podiam tê-lo liquidado! Sempre te digo! É um crime! Olhem para ele, pobre miúdo, está branco como a cal da parede!» murmurava-se na turba. Não tardou que Pétia voltasse completamente a si. As faces tornaram a ficar coradas, a dor passou e graças a esta passageira indisposição pôde conseguir um bom lugar em cima do canhão, donde esperava poder ver agora perfeitamente o imperador no seu regresso da catedral. Não pensava mais, porém, na sua petição. Vê-lo que fosse já era uma grande felicidade. Durante a cerimónia na catedral, em que se celebrava um serviço de acção de graças pelo regresso do imperador e outro pela conclusão da paz com os Turcos, a multidão dispersou-se. Apareceram então os vendedores de kvass, de rosquilhas de amêndoa e de sementes de papoula, de que Pétia gostava muito; soltavam os seus pregões enquanto a multidão tagarelava. Uma vendedeira expunha o xale rasgado e dizia quanto lhe custara, outra garantia estarem as sedas por um preço doido. O sacristão que salvara Pétia falava com um funcionário sobre as personalidades que oficiavam com Sua Eminência. Por várias vezes pronunciou a palavra «concílio», cuja significação Pétia ignorava. Dois comerciantes novos chalaceavam com duas moças que rilhavam nozes. Todas estas conversas, principalmente a dos rapazotes com as moças, coisa própria para o interessar na sua idade, não lhe despertavam a mais pequena curiosidade naquele momento. Ali estava empoleirado no pedestal do canhão, comovidíssimo, a pensar no imperador e no amor que lhe tinha. E a dor e o medo que experimentara quando se vira por terra, juntos ao entusiasmo que sentia, ainda lhe tornavam mais memorável aquela hora solene. De repente estrondearam tiros de canhão ao longo do cais — eram salvas para comemorar a paz com os Turcos —, e a multidão arrojou-se em peso para aquele lado na esperança de desfrutar o novo espectáculo. Pétia quis fazer o mesmo, mas o sacristão, que o tomara à sua guarda, não consentiu. Ainda as salvas não tinham cessado quando saíram apressadamente da catedral oficiais, generais, camareiros, e atrás deles outra gente que caminhava menos apressada, Todos os presentes se desbarretaram e a multidão que ocorrera ao cais de novo afluiu àquele lado da praça. Finalmente quatro senhores de uniforme de gala apareceram à porta. «Hurra! Hurra!», gritou a multidão,«Qual é? Qual é?», perguntava Pétia com lágrimas na voz, mas ninguém lhe respondia. Toda a gente estava embasbacada com o espectáculo. E, escolhendo ao acaso uma das quatro personagens que mal podia distinguir através das lágrimas de alegria que lhe inundavam os olhos, foi a ela que consagrou todo o seu entusiasmo. Gritou «Hurra!», numa voz arrebatada, e ali mesmo resolveu definitivamente, custasse o que custasse, que a partir do dia seguinte seria soldado. A turba correu atrás do imperador, acompanhando-o até ao palácio e em seguida dispersou, Era tarde, e Pétia, em jejum, sentia-se alagado de suor, que lhe gotejava da testa. Não saía, porém, de ao pé dos basbaques, cada vez mais raros, mas ainda muitos nessa altura. Enquanto durou o banquete do imperador deixou- se ficar diante do palácio, a olhar para as janelas, sempre à espera de um acontecimento qualquer, e cheio de inveja, ao mesmo tempo, quer dos dignitários que chegavam para tomar parte no jantar, quer dos lacaios que serviam à mesa e que se viam através das janelas. Durante o banquete, Valuiev, lançando um olhar para a rua, disse: — O povo ainda espera tornar a ver Vossa Majestade. O jantar estava no fim, o imperador levantou-se, a trincar ainda um biscoito, e apareceu à varanda. «Nosso anjo! Nosso pai! Hurra! Nosso pai!...», gritava a multidão, e Pétia com ela. E de novo as mulheres e alguns homens também, mais discretamente, em cujo número se contava Pétia, choraram lágrimas de alegria. Um pedaço de biscoito que o imperador tinha na mão caiu sobre o parapeito da varanda e daí para a rua. Um cocheiro, de avental, que estava mais perto, precipitou-se para apanhá-lo. Os que se encontravam nas imediações lançaram-se sobre ele. Vendo o que, o czar mandou lhe trouxessem o prato dos biscoitos e despejou-o do alto da varanda. Os olhos de Pétia injectaram-se de sangue. O perigo de ser pisado ainda mais o excitava, e precipitou-se. Não sabia porquê, mas sentia que precisava absolutamente de um dos biscoitos arrojados pela mão do imperador e por nada deste mundo teria desistido do seu intento. Na sua carreira atirou ao chão uma velha que ia deitar a mão a um deles, a qual se não deu por vencida, embora de joelhos em terra. Tinha, porém, o braço muito curto. Pétia deu-lhe uma joelhada, apanhou o biscoito, e, para não ficar atrás dos outros, gritou de novo: «Hurra!», mas desta vez numa voz rouca.O imperador recolheu-se e então a maior parte do povo dispersou. «Eu bem te disse que era bom esperar. Aqui tens, conseguimos vê-lo!», dizia- se, alegremente, no meio da multidão. Apesar da alegria que experimentava, Pétia não estava satisfeito por voltar para casa; o prazer daquela jornada findara para ele. Por isso, em vez de regressar ao lar, dirigiu-se a casa do seu camarada Obolenski, que tinha quinze anos e ia ingressar no exército. Quando voltou a casa, Pétia declarou resoluto que fugiria se o não deixassem alistar-se. E no dia seguinte, embora sem ter dado ainda a sua autorização formal, o conde Ilia Andreitch foi informar-se de qual seria a melhor maneira de alistar o filho sem o expor demasiado. [XXII] No dia 15, de manhã, três dias depois dos acontecimentos relatados, grande número de carruagens estacionava diante do Palácio Slobotski. Os salões estavam cheios de gente. No primeiro havia nobres envergando os seus uniformes; no outro, comerciantes de grandes barbas, com as suas condecorações e os seus cafetãs azuis. Na sala da nobreza tudo era bulício e agitação. Diante de uma grande mesa, sob o retrato do imperador, em cadeiras de alto espaldar, sentavam-se as personalidades mais importantes, mas a maior parte das pessoas deambulava pela sala. Toda esta fidalguia, a mesma gente que Pedro encontrava todos os dias no clube ou a quem visitava, vestia uniformes de épocas diferentes, do tempo de Catarina, de Paulo, de Alexandre, ou então a farda vulgar da nobreza. Mas esses uniformes, no fundo bastante parecidos, davam um aspecto estranho e fantástico a essas figuras, jovens ou idosas, tão diferentes e ao mesmo tempo tão conhecidas. Os mais extraordinários eram os velhos: desdentados, calvos, meio cegos, cobertos de uma gordura amarelenta ou então magros e rugosos. A maior parte permanecia sentada, sem dizer palavra, e, se alguns se levantavam para conversar, iam instalar-se ao pé dos mais novos. À semelhança do que acontecia com os rostos da multidão estacionada napraça em que estivera Pétia, também na expressão desta gente se reflectiam as mais variadas preocupações: a expectativa de um acontecimento memorável ou a recordação do facto mais banal da vida, uma partida de boston, um bom jantar preparado pelo cozinheiro Petrushka, a boa saúde de Zenaida Dmitrievna e coisas do mesmo teor. Desde manhã muito cedo que Pedro, que a custo se enfiara no seu uniforme de fidalgo, muito apertado, se encontrava na sala. Uma grande emoção o dominava. Esta reunião extraordinária, não só da nobreza, mas dos próprios comerciantes, aquela reunião das diversas classes, os estados gerais, despertava nele uma revoada de ideias há muito abandonadas, embora profundamente arreigadas no seu espírito, relativas ao Contrato Social e à Revolução Francesa. As palavras da proclamação anunciando que o imperador iria a Moscovo para deliberar com o seu povo confirmavam-no na sua maneira de ver. E na suposição de que se preparava, nesta ordem de ideias, qualquer coisa de importante, que há muito esperava, ia e vinha, observava, prestava o ouvido às conversas, sem de resto nada encontrar em parte alguma que viesse ao encontro dos pensamentos que o absorviam. Foi lida a proclamação, que despertou entusiasmo, depois formaram-se grupos fazendo comentários. Além dos assuntos triviais de conversa, Pedro reparou que se falava do lugar em que deviam ficar colocados os marechais da nobreza quando entrasse o imperador, da data do baile em sua honra, e as pessoas perguntavam umas às outras se deveriam reunir-se por distritos ou por províncias, etc. Sempre porém que se falava da guerra e do objecto preciso daquela reunião, só se diziam coisas vagas e indecisas. As pessoas preferiam ouvir a falar. Um homem de certa idade, com ar marcial, bonita figura e farda de oficial da marinha reformado, falava numa das salas a um grupo de pessoas que o rodeavam. Pedro aproximou-se e pôs-se a escutar. O conde Ilia Andreitch, com o seu cafetã de voivoda do tempo de Catarina, cirandava com um sorriso nos lábios por meio da multidão, tudo gente sua conhecida. Aproximando-se igualmente do grupo, apurou o ouvido, com esse ar bonacheirão que tinha sempre em tais casos, enquanto abanava a cabeça aprovadoramente. O marinheiro sustentava opiniões muito atrevidas, como podia depreender-se da expressão dos que o ouviam e do facto de pessoas que Pedro conhecia como pacíficas e serenas se afastarem dele com modos reprovadores oucontradizendo-o. Abrindo caminho até meio do grupo, Pedro, depois de escutar por algum tempo, convenceu-se de que quem falava era realmente um liberal, mas um liberal de uma natureza muito diversa da sua, o orador tinha uma voz de barítono, sonora e cantante, comia os rr e abreviava as consoantes, uma dessas vozes que costumam gritar: «Apraz, o meu cachimbo!» e coisas idênticas. Falava com e entono e a segurança de quem está habituado a mandar. — E então? Que tem que os de Smolensk tenham oferecido milícias ao imperador? São eles quem faz as leis? Se a digna nobreza da província de Moscovo assim o entender, tem outras maneiras de mostrar a sua dedicação. Já esquecemos a milícia de 1807? Só ganharam com isso os ladrões e os filhos de pope... O conde Ilia Andreitch, sorrindo docemente, abanava a cabeça, aprovador. — E então? De que serviram ao Estado os milicianos? De nada. A única coisa que fizeram foi arruinar as nossas propriedades. Ainda o melhor é o recrutamento... Se assim não for, aqueles que voltarem da guerra nem serão soldados nem camponeses, mas malandros, malandros, nada mais. Os nobres não poupam a sua vida, todos nós lá iremos individualmente e levaremos connosco os recrutas. Basta que o imperador chame por nós, e estaremos prontos a morrer por ele — concluiu o orador, cada vez mais entusiasmado. Ilia Andreitch engasgava-se, de tão contente, e ia dando cotoveladas a Pedro, pela sua parte desejoso de dizer alguma coisa também. Deu alguns passos em frente, arrebatado pelas circunstâncias, mas sem saber ao certo o que ia dizer. Mal abriu a boca, logo foi interrompido por um senador desdentado, de expressão inteligente, mas furibunda, que estava ao lado do orador. Via-se ser homem habituado a presidir a debates, e falava numa voz serena, mas precisa. — Suponho, meu caro senhor — disse, com a sua boca desdentada —, não termos sido convocados para discutir o que é preferível para o imperador na hora que passa: o recrutamento ou a milícia. Temos de responder à proclamação com que o imperador nos honrou. Quanto a escolher entre o recrutamento e a milícia, deixemos que o poder supremo decida... Pedro encontrou logo uma saída para a exaltação que o tomava. Estava indignado com as vistas curtas e com as limitações que o senador queria impor às opiniões da nobreza. Deu um passo em frente e interrompeu-o. Ele próprio não sabia o que ia dizer, mas pôs-se a falar com vivacidade, usandopalavras francesas intercaladas num russo assaz livresco. — Perdoe-me, Excelência — principiou ele. Era íntimo do senador mas entendia dever dar-lhe esse tratamento. — Embora eu sei a da opinião deste senhor... — Engasgou-se. Era sua intenção dizer: meu muito digno preopinante... — Deste senhor... que não tenho a honra de conhecer, suponho que a nobreza não foi convocada apenas para exprimir a sua simpatia e o seu entusiasmo, mas também para discutir as medidas que entenda úteis à pátria. Suponho — prosseguiu ele, cada vez mais animado — que o próprio imperador ficaria descontente se visse que não passávamos de proprietários de campónios postos às suas ordens para... carne de canhão, em vez de um... conselho. Vários circunstantes afastaram-se ao verem o sorriso desdenhoso do senador, além de acharem que Pedro empregava uma linguagem muito livre. Só Ilia Andreitch aprovou o discurso deste, tal qual como havia aprovado antes o do marinheiro, o do senador e em geral de todos quantos fossem os últimos a falar. — Suponho — prosseguiu Pedro — que antes de discutirmos estas questões devemos pedir respeitosamente ao imperador que nos comunique o número de soldados de que dispomos e a situação em que está o nosso exército e então... Mas Pedro não pôde continuar. Interpelaram-no de três lugares distintos. E o mais violento dos seus antagonistas foi um homem que ele conhecia havia muito, seu parceiro no jogo do boston, sempre nos melhores termos com ele, um tal Stepan Stepanovitch Adraksine. Este tal Stepan Stepanovitch envergava o uniforme, e, ou fosse por essa ou por outra razão, Pedro viu diante de si um homem completamente diferente. Com uma súbita cólera senil pintada no rosto, gritou para Pedro: — Em primeiro lugar, devo chamar-lhe a atenção para o facto de não termos o direito de formular tais perguntas ao imperador, e, em segundo lugar, ainda mesmo que a nobreza russa tivesse esse direito, o imperador não podia responder- nos, A marcha das nossas tropas está subordinada à do inimigo. Ora vão ora vêm... Outra voz ressoou, a voz de um homem de estatura média, dos seus quarenta anos, que Pedro outrora vira em casa das ciganas e que conhecia por batoteiro. Completamente outro, talvez também mercê do uniforme que vestia, avançou para Pedro, interrompendo Adraksine. — O momento não é para discussões — disse ele —, mas para agir: temos a guerra em casa. O nosso inimigo avança disposto a esmagar a Rússia, a profanar ostúmulos dos nossos antepassados, a levar consigo as nossas mulheres, os nossos filhos. — Ao dizer estas palavras o orador bateu no peito. — Levantar-nos-emos todos, daremos tudo ao nosso pai, o czar! — Gritava com os olhos injectados fora das órbitas, e na multidão ouviram-se algumas palavras de aplauso — Somos russos e não pouparemos e nosso sangue na defesa da fé, do trono e da Rússia. E se somos dignos filhos da nossa pátria, deixemos de lado todas essas quimeras. Mostraremos à Europa como a Rússia é capaz de se levantar pela Rússia. Pedro teria querido replicar, mas achou melhor não abrir a boca. Tinha percebido que as suas palavras, independentemente das ideias que exprimissem, teriam menos repercussão que as daquele nobre exaltado. Ilia Andreitch, lá atrás do grupo, aprovou também o orador. Quando este terminou o seu discurso, alguns dos presentes voltaram-se para ele e exclamaram: «Muito bem! Muito bem!» Pedro teria querido dizer estar pronto também a todos os sacrifícios monetários, e em homens igualmente, e até a sacrificar-se a si próprio, mas que entendia ser preciso conhecer a situação para lhe dar remédio. Não o pôde fazer porém. Toda a gente gritava e falava simultaneamente. Ilia Andreitch não tinha tempo de os aprovar a todos. E o grupo aumentava, dispersava-se, refazia-se, até que, finalmente, no meio do rumor das conversas, lá foi, através da sala, direito à grande mesa. Não só Pedro não lograva dizer uma única palavra, como o interpelavam grosseiramente, repeliam-no, voltavam-lhe as costas, como se ele fosse um inimigo comum, Não é que estivessem descontentes com o sentido do seu discurso — tinham esquecido por completo o que, ele dissera depois dos que haviam falado em seguida —, mas aquela multidão excitada necessitava de um objecto palpável que amasse ou odiasse. Pedro, eis o bode expiatório. Muitos foram os oradores que falaram ainda, e todos eles no mesmo tom. Alguns discursavam bastante bem e de maneira original. O director do Mensageiro Russo, Glinka, a quem saudaram, ao reconhecê-lo, gritando: «O escritor! O escritor!», disse que «o Inferno devia ser repelido pelo Inferno», que «vira uma criança sorrir à luz dos relâmpagos e ao ribombar dos trovões», mas ele «não era uma criança». «Sim, sim, o ribombar dos trovões!», repetia-se lá para trás, nas últimas filas. A multidão aproximou-se da grande mesa onde, de uniforme de gala, se sentavam as personalidades da alta nobreza, septuagenários de cabelos brancosuns, outros calvos. Pedro tinha-os visto quase todos, quer nas suas próprias casas, com os seus bufões, quer no clube, sentados às mesas do boston. As conversas nem por isso cessaram. Uns após outros, e às vezes ao mesmo tempo, iam os oradores tomando a palavra, comprimidos contra os altos espaldares das cadeiras. Os que estavam atrás notavam o que o orador precedente não dissera, para se darem pressa de o expressarem. Outros, no meio daquele calor e daquele apertão, procuravam no cérebro as ideias que lhes escapavam para que os outros as tomassem. Os nobres conservavam-se nos seus tronos, olhavam uns para os outros, um pouco sobressaltados, e na expressão dos seus rostos apenas se percebia estarem cheios de calor. No entanto, Pedro sentia-se emocionado também e aquele desejo de tudo sacrificar pela pátria que palpitava em todos os discursos acabou por comunicar-se-lhe. Não renegava qualquer das suas convicções, mas sentia-se confusamente culpado e que— na justificar-se. — Apenas digo que seriam mais fáceis os nossos sacrifícios se soubéssemos quais as necessidades a enfrentar — gritou, procurando dominar a outras vozes. Um velhinho que estava perto de Pedro encarou-o, mas logo o distraíram os gritos que ressoaram na outra extremidade da mesa. «Sim, Moscovo render-se-á! Será a expiadora», gritava alguém. «É um inimigo da humanidade!», vociferou outra voz. «Deixem-me falar... Os senhores sufocam-me!...» [XXIII] Naquele momento entrou na sala, apressadamente, por entre a multidão, que se afastava, o conde Rostoptchine, de uniforme de general, banda militar a tiracolo, queixo proeminente e olhos coruscantes. — Sua Majestade o imperador está a chegar — disse ele — Venho lá de dentro. Creio que na situação em que nos encontramos não temos muito tempo para discutir. O imperador dignou-se reunir-nos, bem como aos comerciantes. É dali que virão os milhões — acrescentou, apontando para a sala contígua. — A nós cabe-nos formar a milícia e não nos pouparmos a nós próprios... É o menos que podemos fazer.Entre os notáveis que se sentavam em volta da mesa principiou uma espécie de conselho. Tudo se dizia em voz segredada. E depois da algazarra anterior era triste ouvir aquele rouquejar de velhos, emitindo as suas opiniões um por um. Dizia uma voz: «Estou de acordo»; e outra, para variar a fórmula, murmurava: «Sou da mesma opinião.» Ao secretário foi dada ordem de inscrever a resolução seguinte da nobreza moscovita: «Os Moscovitas, seguindo o exemplo dos habitantes de Smolensk, darão dez homens por mil com equipamento completo.» Em seguida levantaram- se, satisfeitos por poderem desentorpecei, as pernas, afastando as cadeiras com fragor, e espalhando-se pela sala, de braço dado, dando à língua. «O imperador! O imperador!», gritaram daí a pouco, e toda a gente se precipitou para a entrada. Em passos largos, pelo meio de uma fila de nobres, o imperador caminhou sala dentro. Em todos os rostos havia uma curiosidade respeitosa e assustada. Pedro, bastante longe, não pôde distinguir muito bem as palavras pronunciadas. Compreendeu apenas que o imperador falava do perigo em que se encontrava o império e das esperanças que tinha na nobreza de Moscovo. Outra voz respondeu ao imperador para lhe comunicar os termos da resolução que acabava de tomar- se. — Meus senhores — disse o imperador em voz trémula. Um ligeiro sussurro percorreu a multidão, que instantaneamente se calou, e Pedro ouviu distintamente a voz simpática e comovedora do soberano, que dizia: — Nunca duvidei da dedicação da nobreza russa. Mas hoje sinto que ultrapassou as minhas esperanças. Agradeço-vos em nome da pátria. Meus senhores, mãos à obra, o tempo e precioso... O imperador calou-se, a multidão comprimiu-se à sua roda e exclamações de entusiasmo irromperam de todos os lados. «Sim, e o que é mais precioso ainda... é a palavra do czar», dizia, soluçando, nas ultimas filas, Ilia Andreitch, que nada ouvira e tudo compreendera à sua maneira. Da sala da nobreza o imperador passou à dos comerciantes. Esteve ali perto de dez minutos. Pedro, e como ele tantos outros, viram-no abandonar a sala com lágrimas de reconhecimento a bailar-lhe dos olhos. Como depois veio a saber-se, mal principiara c seu discurso aos comerciantes, as lágrimas saltaram-lhe dos olhose foi em voz trémula que pronunciou as últimas palavras. Quando Pedro o viu saía ele da sala acompanhado por dois dos assistentes, Um deles era seu conhecido, um grande produtor de álcool; o outro era administrador local, de rosto magro e amarelento, barba rala. Ambos choravam. O magro tinha lágrimas nos olhos, mas o outro soluçava como uma criança, repetindo constantemente: «Majestade! Ofereço-vos a minha vida e a minha fortuna!» Naquele momento Pedro não desejava outra coisa senão mostrar que para ele não havia obstáculos e que estava disposto a tudo sacrificar. Lamentava o seu discurso de tendências constitucionais. Procurava uma oportunidade para o fazer esquecer. Ao saber que o conde Mamonov oferecia um regimento inteiro, declarou imediatamente ao conde Rostoptchine que daria mil homens e se encarregaria da sua manutenção. O velho Rostov não pôde contar sem lágrimas, à mulher, que o ouvia, o que se tinha passado, dando desde logo a Pétia o consentimento que ele pedia e indo ele próprio alistá-lo. No dia seguinte o imperador partiu. Todos os nobres que tinham sido convocados despiram o uniforme, retomando os seus hábitos, tanto em casa como no clube, e foi resmungando que deram ordem aos intendentes respectivos para a formação das milícias, surpreendidos eles próprios dos seus oferecimentos. SEGUNDA PARTE [I] [II] [III] [IV] [V] [VI] [VII] [VIII] [IX] [X] [XI] [XII] [XIII] [XIV] [XV] [XVI] [XVII] [XIX] [XX] [XXI] [XXII] [XXIII] [XXIV] [XXV] [XXVI] [XXVII] [XXVIII] [XXIX] [XXX] [XXXI] [XXXII] [XXXIII] [XXXIV] [XXXV] [XXXVI] [XXXVII] [XXXVIII] [XXXIX] [I] Napoleão iniciou a guerra contra a Rússia porque não podia deixar de ir a Dresde, porque não podiam deixar de lhe subir à cabeça as honrarias, porque precisava de envergar um uniforme polaco e de se deixar envolver nos encantos de uma linda manhã de Junho, porque não pôde resistir à cólera na presença de Kurakine depois de Balachov. Alexandre recusara-se a parlamentar, pois se sentia pessoalmente ofendido. Barclay de Tolly procurava comandar o exército o melhor que podia no cumprimento do seu dever e na esperança de conquistar a fama de grande cabo- de-guerra. Rostov lançara-se contra os franceses porque não podia resistir à tentação de galopar em campo aberto. E eis como agiam, consoante as suas disposições pessoais, os seus hábitos, a sua condição ou as suas intenções, as numerosas personagens que tomavam parte na guerra. Os seus receios, as suas vaidades, as suas alegrias, os seus descontentamentos, as suas críticas vinham de suporem saber o que faziam e de julgarem agir por si próprios, quando afinal não passavam de instrumentos inconscientes da história, realizando um trabalho oculto para eles, mas inteligível para nós. Tal é o destino imutável de todos os comparsas, tanto menos livres quanto mais alto na hierarquia social. Os actores dos acontecimentos de 1812 já não pertencem ao número dos vivos, os interesses que os impeliam não deixaram o mais pequeno vestígio, e só restam os resultados históricos da sua época. Mas, se admitirmos que os habitantes da Europa conduzidos Por Napoleão deviam penetrar no coração da Rússia e ali ficar, toda a conduta contraditória, insensata e cruel dos actores dessa guerra se nos torna inteligível. A Providência obrigava todos esses homens na peugada de fins pessoais a colaborar num único e enorme resultado, resultado que ninguém conhecia, nem Napoleão nem Alexandre, e ainda muito menos qualquer dos que participavam naguerra. No momento actual vemos claramente o que provocou a perda do exército francês. Ninguém contestará que a causa desse desastre foi, por um lado, a sua penetração tardia e sem preparação suficiente no coração da Rússia, sujeito a arrostar com uma campanha de Inverno, e, por outro, o carácter que a guerra assumiu em virtude do incêndio das povoações e o ódio que germinou no coração do povo russo. Mas então ninguém podia prever o que actualmente é a própria evidência, isto é, que bastavam estas causas para aniquilar um exército de oitocentos mil homens, o melhor que ainda houvera no mundo, conduzido pelo melhor dos capitães, diante do exército russo, duas vezes mais fraco, sem experiência, e dirigido por generais igualmente inexperientes. E não só ninguém podia prever semelhante desfecho como todos os esforços da parte dos Russos tendiam constantemente a impedir a única coisa susceptível de salvar a Rússia e os da parte dos Franceses, apesar da experiência e do suposto génio militar de Napoleão, igualmente tendiam a levar as suas vitórias até Moscovo antes do fim do Estio, ou seja, a fazer exactamente o que deveria perdê-los. Nas obras históricas respeitantes a 1812 os autores franceses insistem no facto de Napoleão sentir o perigo que para ele havia em estender demasiado as suas linhas, e dizem que procurava dar batalha, que os seus generais o tinham aconselhado a deter-se em Smolensk e em quejandos argumentos da mesma sorte que provam não se ignorar então o perigo que ameaçava o exército francês, Por outro lado, os autores russos insistem, com mais peso ainda, no plano estabelecido, segundo eles, desde o princípio da campanha, de guerra cita, o qual consistia em atrair Napoleão ao coração da Rússia, e atribuem esse plano uns a Pfuh1, outros a um certo francês, outros ainda a Toll, e outros, por fim, ao próprio Alexandre, documentando-se nas notas, nos projectos e nas cartas em que existem, de facto, alusões a esta maneira de ver. Mas a verdade é que todas estas alusões a uma previsão do que veio a acontecer, tanto do lado francês como do russo, se agora são postas em relevo é precisamente porque os acontecimentos as justificam. Se tivesse acontecido o contrário, teriam sido completamente esquecidas, como sucede a milhares de alusões e de hipóteses espalhadas então e que se verificaram ser inexactas. O resultado de cada acontecimento dá sempre lugar a tantas suposições que, sejam elas quais forem, há sempre pessoas prontas a afirmar: «Eu bem dizia que as coisas se passariam assim.» Esquecem que entretodas estas numerosas suposições algumas há absolutamente contraditórias. É evidente que a esta categoria de suposições sem fundamento pertence a do perigo entrevisto por Napoleão na extensão da sua linha de comunicações e a relativa à guerra cita, e os historiadores só com muitas reservas devem atribuir tais vistas a Bonaparte e tal plano aos chefes militares russos. Todos os factos estão em contradição absoluta com essas hipóteses. Não só no decurso de toda a guerra se não observou qualquer desejo da parte dos Russos de atraírem os Franceses ao interior do seu país, mas, pelo contrário, tudo quanto se fez foi no sentido de os deter, uma vez verificado o seu primeiro avanço. Por outro lado, não só Napoleão não receava o alongamento da sua linha, mas até se regozijava, como se se tratasse de uma vitória, de cada passo em frente, indo com maior entusiasmo para a luta do que no decurso das suas campanhas anteriores. Desde o princípio que os exércitos russos se encontraram cortados, e o único objectivo dos seus chefes foi reuni-los de novo, quando é certo que para bater em retirada e atrair o inimigo ao coração do seu país tal junção não representava qualquer vantagem. O imperador esteve junto das suas tropas para encorajá-las na defesa de cada palmo da terra russa, e não para ordenar a retirada. Construiu- se o enorme campo entrincheirado de Drissa, de acordo com os planos de Pfuhl, na intenção bem clara de não se recuar mais. Cada passo à retaguarda custou aos comandantes-chefes repreensões do imperador. Não só este não Podia imaginar que os Russos deitariam fogo a Moscovo, como nem sequer previa que deixariam avançar o inimigo até Smolensk, e, quando os exércitos operaram a sua junção, exasperou-se pelo facto de aquela cidade ser tomada e incendiada e de se não ter travado uma batalha geral à volta das suas muralhas. Assim pensava o imperador, mas assim pensavam também os chefes russos, e o povo inteiro indignou-se com a ideia de que o seu exército recuava até ao interior do país. Napoleão, depois de cortar em dois o exército de Alexandre, Penetra cada vez mais a fundo em território russo, deixando escapar várias oportunidades para dar combate. Em Agosto está em Smolensk e não pensa noutra coisa senão em avançar mais ainda, embora, como hoje se vê perfeitamente, esse movimento fosse perigoso para ele. Os factos mostram com toda a evidência que Napoleão não previa o perigo de um movimento em direcção a Moscovo e que Alexandre e os chefes russos nãopensavam em atrair Napoleão, mas sim exactamente no contrário. O facto deu-se não em resultado de um plano qualquer — e o certo é que ninguém teria acreditado na possibilidade de o pôr em prática —, mas como consequência de um complicadíssimo jogo de intrigas, de ambições, de desejos da parte dos comparsas da guerra, os quais não adivinhavam o que iria acontecer e seria a única salvação da Rússia. É inopinadamente que as coisas sucedem. Os exércitos são cortados em dois no princípio da campanha. Os Russos tentam reuni-los na intenção evidente de travar uma batalha e de deter o inimigo, mas no decurso desta tentativa, quando as tropas russas evitavam um recontro com forças muito superiores, eis que os exércitos de Alexandre batem involuntariamente em retirada, formando um ângulo agudo, e os Franceses se vêem deste modo atraídos até Smolensk. Ainda não é tudo dizer-se que os Russos retrocedem em ângulo agudo, pois os Franceses avançam entre os dois exércitos. O ângulo torna-se ainda mais agudo e os Russos recuam ainda mais, porque Barclay de Tolly, esse estrangeiro impopular. é odiado por Bagration, que lhe deve ser subordinado, e o qual, à frente do 2º exército, procura realizar a sua junção com elo, quanto mais tarde melhor, para não vir a encontrar-se sob as suas ordens. Durante muito tempo Bagration não opera a junção, embora seja esse o objectivo de todos os comandantes do exército, porque se lhe afigura que se realizar esse movimento porá em perigo as suas tropas e por lhe parecer melhor recuar mais à esquerda e para o sul, inquietando o flanco e a retaguarda do inimigo, o que lhe permitirá completar o seu exército na Ucrânia. Ao mesmo tempo parece ter imaginado semelhante táctica para não querer ver-se subordinado ao estrangeiro Barclay, a quem detesta e é mais novo na promoção, O imperador está com o exército para o animar com a sua presença, mas o certo é que a sua estada junto das tropas, a ignorância das decisões que devem tomar-se e o número incrível de conselheiros e de planos propostos anulam a força ofensiva do 1º exército e as tropas batem em retirada. As coisas dispõem-se para as tropas irem deter-se no campo de Drissa, mas inesperadamente Paulucci, que aspira ao posto de comandante-chefe, influi, graças à sua energia, no espírito de Alexandre, e todo o plano de Pfhul é abandonado, passando tudo para as mãos de Barclay. Como este porém não inspira confiança, o seu poder é limitado. E ai temos os exércitos fraccionados. Já não há unidade de comando, e Barclay não goza de popularidade, Desta confusão, deste fraccionamento, desta impopularidade do general-chefe, resultam, por um lado, aindecisão e a recusa de travar batalha, a qual se não teria podido evitar se os exércitos estivessem reunidos e se Barclay não tivesse o comando, por outro, um descontentamento cada vez maior em relação aos estrangeiros e um despertar do sentimento patriótico. Finalmente o imperador retira-se de junto do exército e o único e mais plausível pretexto da sua retirada é que a ele compete incitar o entusiasmo nas capitais com vista a criar o espírito de uma guerra nacional. E esta viagem a Moscovo triplica as forças do exército russo. O imperador abandona o exército para não prejudicar a unidade do comando e espera-se que, após a sua partida, se tomem decisões mais enérgicas. Mas não. Pelo contrário, a situação do chefe do exército complica-se e enfraquece cada vez mais. Bennigsen, o grão-duque, todo um enxame de generais ajudantes-de-campo, permanecem no exército para vigiar os actos do comandante-chefe e despertar, em caso de necessidade, a sua energia, e Barclay, que de dia para dia se sente menos livre sob a vigilância de todos estes «olhos do imperador», torna-se ainda mais hesitante nas suas decisões e evita a batalha. Barclay é, pela prudência. O grão-duque herdeiro chega a pronunciar a palavra «traição», e pede que se trave a batalha geral. Liubomirski, Bronnitski, Blotski e outros ainda dão tanta repercussão a este boato que Barclay, a pretexto de entregar uns documentos ao imperador, faz com que partam para, Petersburgo todos os ajudantes-de-campo polacos e entra em luta aberta com Benngsen e o grão-duque. Finalmente, apesar da oposição de Bagration, em Smolensk opera-se a junção dos dois exércitos. Bagration chega, de carruagem, à residência ocupada por Barclay. Este afivela o cinturão, vai ao seu encontro e faz-lhe o seu relatório como se fosse de patente inferior a ele. Bagration, num rasgo de magnanimidade, embora mais antigo, submete-se a Barclay. Feito o que, no entanto, cada vez se mostra em maior desacordo com ele. Por ordem do imperador, dirige-lhe pessoalmente o seu relatório. Escreve a Araktcheiev: «Apesar de ser esse o desejo do imperador, não posso de maneira nenhuma permanecer com o ‘ministro’ [assim designava Barclay]. Por amor de Deus, enviai-me para qualquer parte, ainda que não seja senão Para comandar um regimento. Aqui é que eu não me posso ver. O quartel-general está cheio de alemães, e de tal modo que um russo não podeviver no meio deles. É de perder a cabeça. Julguei servir realmente o imperador e a pátria e afinal a quem eu sirvo é Barclay. Confesso que me recuso a isso. A praga dos Bronnitski, dos Wintzengerode e quejandos continua a envenenar cada vez mais os relatórios dos comandantes-chefes e de dia para dia é menor a unidade de vistas. Preparam-se para atacar os Franceses diante de Smolensk. É enviado um general para examinar as posições. Este general, que detesta Barclay, dirige-se a casa de um dos seus amigos comandante de corpo de exército, passa com ele o dia, regressa ao quartel-general e faz crítica cerrada, ponto por ponto, do campo de batalha que não viu nem de longe. Enquanto os Russos discutem e intrigam e se disputam sobre o futuro campo de batalha, enquanto procuram os Franceses e se enganam sobre as suas posições, estes caem sobre a divisão Nevierovski e aproximam-se dos muros de Smolensk, É preciso aceitar, quer queiram quer não, a batalha às portas de Smolensk a fim de salvar as linhas de comunicação dos Russos. A batalha dá-se. Caem milhares de homens de um lado e do outro. Smolensk é abandonada contra a vontade do imperador e de todo o povo. Os habitantes porém, enganados pelos seus governantes, queimam a cidade. Completamente arruinados, chegam a Moscovo, só pensando nos prejuízos que sofreram, para darem o exemplo aos outros russos e comunicar-lhes o seu ódio ao inimigo. Napoleão prossegue a sua rota. Os Russos recuam, e assim se encaminham as coisas para que os Franceses sejam vencidos. [II] No dia seguinte ao da partida do filho, o príncipe Nicolau Andreievitch mandou chamar a princesa Maria. — Bom, estás contente agora? — disse-lhe ele. — Conseguiste que eu me zangasse com o meu filho! Estás satisfeita? Era isso que querias, não é verdade? Estás contente?... Mas a mim isso faz-me pena, faz-me pena. Sou velho e fraco e foi isso que tu quiseste. Anda, alegra-te, alegra-te... Depois disto a princesa Maria não tornou a ver o pai durante todo o resto da semana. Estava doente e não saía do seu gabinete. Com grande espanto seu, a princesa notou que durante todo o período dadoença o velho príncipe também não deixou que Mademoiselle Bourienne entrasse rios seus aposentos, Tikon era a única pessoa que cuidava dele. No cabo de oito dias voltou a sair e retomou a sua vida habitual, dedicando-se com particular actividade à edificação e às plantações, sem, no entanto, voltar a ver Mademoiselle Bourienne, No seu rosto, na maneira fria como tratava a filha, parecia ler-se: «Vês, foste contar histórias a meu respeito, caluniaste-me junto de André por causa das minhas relações com a francesa e conseguiste que eu me zangasse com ele. Como vês, não preciso de ti nem da francesa.» A princesa Maria passava parte do dia com Nikoluchka: assistia às suas lições, dava-lhe mesmo, ela própria, lições de língua russa e de música e entretinha-se com Dessales. O resto do seu tempo levava-o a ler ou com a velha ama e os homens de Deus, que a vinham às vezes visitar pela porta do serviço. Pensava na guerra o que em geral as mulheres pensam. Temia pelo irmão, que por lá andava, horrorizava-a, sem poder percebê-la, a crueldade dos homens chacinando-se uns aos outros. E não compreendia a importância daquela guerra, que se lhe afigurava igual a todas as outras. No entanto, Dessales, o seu habitual interlocutor, seguia apaixonadamente a marcha das operações, procurando expor-lhe as suas ideias. Também os homens de Deus, à sua maneira, lhe falavam do que se dizia sobre a vinda do Anticristo, e Júlia, agora princesa Drubetzkoi, voltara a corresponder-se com ela, escrevendo-lhe de Moscovo cartas cheias de sentimento patriótico. Escrevo-lhe em russo, minha querida amiga — dizia-lhe ela — porque odeio os Franceses e a língua que eles falam, que já não posso ouvir... Em Moscovo estamos todos entusiasmados com o nosso adorado imperador. O meu pobre marido está passando fome e toda a sorte de incómodos nas sórdidas estalagens judias, mas as notícias ainda me animam mais. Provavelmente ouviu falar no feito heróico de Raievsy, o qual, abraçando os seus dois filhos, lhes disse: «Morrerei convosco, mas daqui não saímos!» E efectivamente, embora o inimigo fosse duas vezes mais forte, não recuámos. Passamos o tempo como podemos, mas a guerra é a guerra! A princesa Aline e Sofia estão dias inteiros comigo e aspobres de nós, infelizes viúvas de maridos vivos, enquanto preparamos ligaduras entretemo-nos a falar de coisas edificantes, Só temos saudades da nossa querida amiga... A princesa Maria não se dava conta da importância da guerra, principalmente porque o velho príncipe, que nunca falava em tal, parecia ignorá-la e troçava de Dessales quando ele se lhe referia, O tom do príncipe era tão calmo e seguro que a filha, sem raciocinar, acreditava nas suas palavras. Durante todo o mês de Julho o velho andou muito ocupado e até mesmo atarefado. Mandou plantar uma nova mata e construir um novo edifício para a criadagem. A única coisa que apoquentava a filha era o facto de ele passar mal as noites e de ter acabado com o seu antigo costume de dormir no gabinete: todos os dias mudava de quarto. Ora mandava pôr a cama de campanha na galeria, ora ficava num divã ou na cadeira de braços do salão, onde dormitava sem se despir, enquanto o jovem Petrucha, que substituíra Mademoiselle Bourienne, lhe lia em voz Outras vezes pernoitava na sala de jantar. No dia 1 de Agosto chegou a segunda carta do príncipe André, Na primeira, recebida pouco depois da sua partida, pedia docilmente ao pai lhe perdoasse o que se permitira dizer-lhe e rogava-lhe que voltasse a conceder-lhe a sua afeição. O velho príncipe respondera-lhe em termos afectuosos e depois dessa carta afastara de si a francesa. A segunda, datada de Vitebsk, depois da ocupação da cidade, era uma rápida descrição de toda a campanha, com um plano desenhado por ele e algumas considerações sobre a marcha da guerra. Chamava a atenção do pai para a inconveniência de estar a residir muito próximo do teatro da guerra, precisamente na linha de movimento das tropas, e aconselhava-o a que partisse para Moscovo. Ao jantar, nesse mesmo dia, ao ouvir dizer a Dessales que corria o boato de que os Franceses se encontravam já em Vitebsk, o velho príncipe lembrou-se da carta do filho. — Recebi hoje uma carta do príncipe André — disse ele para Maria. — Não a leste? — Não, meu pai — volveu-lhe ela, assustada. Não lhe teria sido possível, efectivamente, ler uma carta que nem sequer sabia que tinha chegado.— Falava da guerra, desta guerra — voltou o príncipe, com esse sorriso desdenhoso que se lhe tornara habitual sempre que abordava o assunto. — Deve ser, com certeza, muito interessante — observou Dessales. — O príncipe deve estar bem informado... — Ah!, interessantíssima! — exclamou Mademoiselle Bourienne. — Vá buscá-la — disse o velho príncipe para a francesa. — Está na mesinha, debaixo do pesa-papéis. Mademoiselle Bourienne ia já a sair, muito contente. — Não, não! — exclamou ele, franzindo as sobrancelhas. — Vai tu, Mikail Ivanovitch. Mikail Ivanovitch levantou-se e dirigiu-se ao gabinete. Mal ele saiu, o velho príncipe, olhando desassossegadamente à sua roda, atirou com o guardanapo e foi atrás dele. — Nada sabem fazer. Vão-me mexer em tudo. Durante a sua ausência, Maria, Dessales, Mademoiselle Bourienne, o próprio Nikoluchka, olharam uns para os outros sem dizer palavra. O velho príncipe voltou dai a pouco em passos apressados, seguido de Mikail Ivanovitch, com a carta e o plano, que pousou a seu lado, sem consentir que ninguém a lesse antes de findo o jantar. Quando passaram ao salão, o velho príncipe entregou a carta à filha, e, estendendo o plano diante de si, pôs-se a estudá-lo, pedindo a Maria que lesse a carta em voz alta, Acabada a leitura, Maria olhou para o pai, mas este observava o plano, parecendo absorto nos seus pensamentos. — Que pensa de tudo isto, príncipe? — permitiu-se dizer Dessales. — Eu? Eu? — replicou ele, sem erguer os olhos do plano e como se emergisse de um sonho. — É muito possível que o teatro da guerra realmente se aproxime de nós... — Ah! Ah! O teatro da guerra — repetiu o príncipe — Disse e repito: o teatro da guerra é a Polónia e o inimigo nunca avançará para além do Niémen. Dessales fitou-o, estupefacto e falava ele do Niémen quando e, inimigo já estava no Dniepre. Mas a princesa Maria, que esquecera a geografia, aceitava como verídicas as palavras do pai. — Quando as neves principiarem a derreter-se morrerão todos afogados nos pântanos da Polónia. Agora não podem dar-se conta disso — disse o príncipe, quenaturalmente estava a pensar na campanha de 1807, para ele de há dois dias. — Bennigsen devia ter entrado mais cedo na Polónia. Então as coisas teriam tomado outro rumo... — Mas, príncipe — interveio Dessales, timidamente —, na carta fala-se em Vitebsk... — Na carta? Ah! Sim... — replicou ele, enfadado — Sim... Sim... — E de repente ficou triste, calando-se— Sim – voltou —, ele diz que os Franceses foram batidos junto a que rio? Dessales baixou os olhos. — O príncipe nada diz que se pareça com isso — observou mansamente. — Quê? Não fala nisso? Fui eu quem o inventou ? Todos permaneceram calados por muito tempo. — Sim... sim... Bom, Mikail Ivanovitch — continuou ele, de súbito, levantando a cabeça e mostrando o projecto do edifício que andava a fazer. — Como é que queres modificar isto? Mikail Ivanovitch aproximou-se e o príncipe, depois de ter conversado com ele sobre o edifício em construção, relanceou um olhar furibundo a Maria e Dessales, desaparecendo em seguida. A princesa Maria reparou no espanto do preceptor e na maneira como olhara o príncipe. Notou o seu silêncio e impressionou-a o facto de o pai ter esquecido em cima da mesa do salão a carta do filho. Receava interrogar Dessales sobre as causas do seu estarrecimento e do silêncio a que se votara; temia não só falar neste assunto, mas, inclusivamente, pensar nele. Pelo fim da tarde, Mikail Ivanovitch veio pela carta, da parte do príncipe. A princesa Maria entregou-lha. Embora isso a contrariasse, perguntou ao arquitecto que fazia seu pai. — Nunca está quieto — replicou ele, com um sorriso entre respeitoso e irónico, o que fez empalidecer Maria — Está muito preocupado com os novos edifícios. Leu um bocado e agora — acrescentou Mikail Ivanovitch, baixando a voz — foi para o escritório, Parece-me estar às voltas com o testamento. Naqueles últimos tempos uma das ocupações favoritas do príncipe era compulsar os papéis que queria deixar depois da sua morte: aquilo a que ele chamava o seu testamento. — E sempre vai mandar Alpatitch a Smolensk? — inquiriu a princesa Maria. — Isso mesmo. Há muito tempo já que ele espera ordens. [III] Quando Mikail Ivanovitch voltou com a carta, encontrou o príncipe sentado diante da papeleira aberta, as lunetas no nariz e um quebra-luz na testa. A chama das velas lia uns papéis que conservava a certa distância dos olhos, numa atitude assaz teatral: lia o que ele chamava as suas anotações, anotações estas que deviam ser entregues ao imperador depois da sua morte. Quando Mikail Ivanovitch entrou, viu que o príncipe tinha lágrimas nos olhos: recordava-se do tempo em que escrevera aquelas páginas. O príncipe pegou na carta, meteu-a na algibeira, e depois de juntar os papéis chamou Alpatitch, que aguardava há muito tempo ali perto. Escrevera, num papel tudo quanto era preciso comprar em Smolensk e deu as suas ordens, andando sempre de um lado para o outro do quarto, a Alpatitch, que continuava no limiar da porta. — Em primeiro lugar, papel de carta, percebes? Oito mãos, aqui tens o modelo, Com os cantos dourados, sem falta, como o modelo. Verniz, lacre, como diz a nota de Mikail Ivanovitch. Continuando a passear, ia consultando o caderninho de algibeira. — Depois entregarás pessoalmente ao governador a carta que vou dar-te. Eram ainda precisas fechaduras para o novo edifício, exactamente do modelo que ele próprio inventara. E também necessitava de uma pasta para depositar o testamento. Mais de duas horas levou o príncipe a dar as suas instruções a Alpatitch. E não o largava. Sentou-se, ficou um momento pensativo, e em seguida, fechando os olhos, adormeceu. Alpatitch fez um movimento. — Anda, vai-te embora, vai-te embora. Se precisar de mais alguma coisa, chamo-te. Alpatitch saiu. O príncipe aproximou-se de novo da papeleira, percorreu-a com a vista, remexeu os papéis, voltou a fechá-la e foi sentar-se à mesa de trabalho, onde se pôs a escrever uma carta ao governador. Era, tarde quando se levantou da mesa, depois de ter lacrado a carta. Tinhasono, mas sabia que não poderia dormir e que desde que se deitasse o assaltariam os mais tristes pensamentos. Chamou Tikon e percorreu com ele várias dependências da casa à procura de onde instalar a cama para a noite. A cada canto tomava medidas. Não lhe agradava sítio algum, mas o que acima de tudo lhe repugnava era o local do costume, no divã do gabinete. Esse divã causava-lhe um imenso desgosto, naturalmente por virtude dos Penosos pensamentos que aí tivera deitado. Não lhe convinha sitio algum, mas apesar de tudo o recanto do gabinete, por detrás do piano, era o que lhe parecia preferível, naturalmente por ainda aí não ter passado noite alguma. Tikon, ajudado pelo mordomo, transportou para ali a cama e preparou-a. — Assim não! Assim não! — gritou o príncipe, afastando ele próprio e leito do recanto onde Tikon o armara e voltando a colocá-lo no mesmo sítio. «Bom, finalmente agora está tudo pronto, vou poder descansar», disse de si para consigo, consentindo que Tikon principiasse a despi-lo. Entre trejeitos, devidos ao esforço que tinha de fazer para deixar que lhe tirassem o cafetã e as calças, acabou por despir-se, caindo pesadamente sobre a cama, onde ficou pensativo a olhar tristemente as pernas ressequidas e amarelentas. Não estava propriamente a pensar, apenas adiava o momento difícil em que teria de soerguer as canelas e estender-se na cama. «Oh, que penoso que tudo isto é! Se tudo isto pudesse acabar dentro de pouco e se ’vós outros’ me pudésseis deixar tranquilo!», dizia para si mesmo. Tantas vezes tentou que, cerrando os dentes, acabou por se deitar. Mal se estendera, pôs-se-lhe a cama a balouçar. Dir-se-ia que o móvel ganhava vida. Era assim todas as noites. De novo abriu os olhos, que acabava de fechar. «Não me deixam em paz estes malditos», resmungou, increpando, colérico, pessoas invisíveis. «Bom, que tinha eu reservado para me lembrar quando estivesse deitado? Era uma coisa muito importante. Ah!, já sei, as fechaduras. Não, as fechaduras já estão. Mas há qualquer coisa, qualquer outra coisa que se passou no salão. Não teria sido qualquer tolice da princesa Maria?... Ou qualquer coisa que contou esse imbecil de Dessales?... Não será qualquer coisa que eu tenha na algibeira?... Já me não lembro.» — Tikon! De que se falou à mesa? — Do príncipe André...— Cala-te, cala-te — gritou o príncipe, fazendo um gesto violento. — Ah, sim, já sei, a carta do príncipe André. Dei-a a ler à Maria, Dessales disse lérias sobre Vitebsk. Agora é que tenho de a ler. Deu ordens para lhe irem buscar a carta, que estava na algibeira. Mandou que lhe aproximassem da cama uma mesinha com o copo de limonada e uma vela de cera e depois de encaixar as lunetas no nariz principiou a ler. Só então, no silêncio da noite, àquela pálida luz coada pelo abat-jour verde, compreendeu, de súbito, a importância do que nela vinha escrito. «Os Franceses estão em Vitebsk. Estarão em Smolensk em quatro etapas. Talvez já lá estejam até.» — Tichka! — Tikon, sobressaltado, pôs-se de pé. — Não, nada quero, não quero coisa alguma!... Pousou a carta debaixo da palmatória e cerrou as pálpebras, E diante dos olhos surgiu-lhe o Danúbio, por um radioso meio-dia, uns canaviais, o acampamento russo, e ele, moço general, sem uma ruga então, vigoroso, fresco e rosado, a penetrar na tenda bordada de Potemkine. E um pulgente sentimento do ciúme diante do favorito despertou nele tão poderoso como outrora. E lembrou-se de tudo quanto se disse nesse primeiro encontro, nos mais pequenos pormenores. E diante dele está uma mulherzinha de pequena estatura, cheia, as faces rechonchudas e tez amarelada: é a nossa mãe, a imperatriz. E tinha diante dos olhos o sorriso dela, ouvia as palavras amáveis que ela lhe dirigira a primeira vez que o recebeu, e lembrou-se desse mesmo rosto no catafalco e a altercação com Zubov junto do ataúde por causa do direito de beijar a mão da morta. «Ah, se eu pudesse voltar atrás a esse tempo e se o presente pudesse desaparecer por completo, rapidamente, muito rapidamente! Se eles me deixassem em paz!» [IV] Lissia Gori, o domínio do príncipe Nicolau Bolkonski, ficava a sessenta verstas mais além de Smolensk e a três verstas da estrada de Moscovo. Na mesma noite em que Bolkonski dera as suas ordens a Alpatitch. Dessales pediu uma entrevista à princesa Maria e respeitosamente fez-lhe ver, que visto asaúde do príncipe lhe não permitir tomas as medidas necessárias à segurança da sua gente e a carta do príncipe André indicar claramente que a permanência em Lissia Gori não podia deixar de constituir um perigo, seria prudente enviar por Alpatitch uma carta ao governador da Província de Smolensk pedindo-lhe que a informasse, da verdadeira situação e do risco que corria se continuasse na aldeia. Ele próprio escreveu a carta, que a princesa Maria assinou, a qual foi confiada a Alpatitch que recebeu instruções para a entregar ao governador e no caso de urgência regressar a Lissia Gori o mais cedo possível. Alpatitch munido, de todas estas instruções, rodeado de gente da casa, gorro de pelo branco, presente do amo, bengala na mão exactamente como o príncipe, quando saía, instalou-se numa pequena kibitka, de capota de couro, tirada por três nutridos cavalos ruões. Tinha amarrado as campainhas e metido papel nos guizos.. O príncipe não consentia que se usasse cascáveis no seu domínio. Mas Alpatitch gostava de guizalhar quando partia para uma longa viagem. Foram despedir-se o cartorário, o guarda-livros, uma cozinheira, uma moça de cozinha, duas velhas, um moço de recados, cocheiros e vários criados. A filha pusera-lhe no assento e nas costas almofadas de penas. A velha cunhada meteu-lhe no carro, às escondidas, um embrulhinho. Pegando-lhe por um braço, um dos cocheiros ajudou-o a subir para a carruagem. — Bom! Bom!, estes arranjos mulherengos! As mulheres! As mulheres! — exclamou Alpatitch, resfolegando, exactamente como costumava fazer o amo. E sentou-se no seu lugar. Depois de ter dado as suas últimas instruções ao chefe da polícia rural a respeito dos trabalhos e desta vez sem imitar o príncipe, Alpatitch descobriu a cabeça calva e por três vezes se persignou. — Se acontecer alguma coisa... volta logo para casa, Iakov Alpatitch. Por Deus, tem piedade de nós — gritou-lhe a mulher, aludindo aos rumores que corriam sobre a guerra. «Ah! Coisas de mulheres! Coisas de mulheres! Sempre com histórias!», murmurou Alpatitch para com os seus botões quando a kibitka se pôs em marcha. E lançava um olhar para a direita, outro para a esquerda, mirando ora os campos de centeio que amareleciam, ora a aveia ramalhuda e ainda verdejante, ora os campos ainda negros, que principiavam a ser preparados para as sementeiras.Alpatitch, ao longo do caminho, ia admirando as belas searas de trigo, excepcionais naquela Primavera, os regos de centeio onde, em certos locais, já principiava a ceifa, e para si mesmo ia deitando os cálculos às sementeiras e às próprias colheitas, ao mesmo tempo que se interrogava a si mesmo sobre se não se teria esquecido de qualquer recado do amo. Depois de se deter duas vezes para dar de comer aos cavalos, chegou à cidade na noite de 4 de Agosto. Já encontrara no caminho comboios e tropas que ultrapassara. Ao aproximar- se de Smolensk, ouvira tiros de canhão a distância, mas a nada prestara atenção. Impressionou-o bem mais o facto de ter visto, nos arredores da cidade, uma magnífica seara de aveia que os soldados ceifavam, naturalmente para ração dos cavalos, e onde se instalara um acampamento. No entanto, até este pormenor esqueceu em breve, preocupado que ia com o que tinha a fazer. Havia mais de trinta anos que Alpatitch não vivia senão para cumprir as ordens do príncipe, e era tudo. O que não dissesse respeito ao cumprimento das ordens do amo não só não o interessava como nem sequer existia para ele. Tendo chegado na noite de 4 de Agosto a Smolensk, deteve-se do outro lado do Dniepre, no arrabalde de Gatcha, na estalagem de Ferapontov, antigo porteiro do príncipe, onde havia trinta anos se hospedava. Trinta anos atrás, com a cumplicidade de Alpatitch, comprara Ferapontov uma mata ao príncipe, pusera-se a negociar e agora era dono de uma casa, de uma estalagem e de uma tenda de cereais na capital da província. Era um campónio dos seus cinquenta anos, gordo, vermelhusco, cabelo preto, lábios grossos, nariz batatudo, pança e lobinhos por cima das espessas sobrancelhas. Estava à porta da tenda que dava para a rua, de colete e em mangas de camisa. Ao ver Alpatitch velo a ele. — Bem-vindo sejas, Iakov Alpatitch! Os habitantes vão-se da cidade e tu vens — exclamou. — Que dizes tu? Vão-se da cidade? — inquiriu Alpatich. — E eu entendo que são estúpidos. Têm medo dos Franceses. — Coisas de mulheres!, coisas de mulheres! — replicou Alpatitch. — É o que eu digo, Iakov Alpatitch. Desde que deram ordens para não deixar passar o inimigo, o inimigo não passa. E aí tens tu os campónios a pedir três rublos por um carro. Que hereges! Iakov Alpatitch ouvia distraído. Pediu o samovar e feno para os cavalos edepois do chá foi deitar-se. Durante toda a noite desfilaram tropas pela porta da estalagem. No dia seguinte, Alpatitch envergou o trajo que só vestia quando vinha à cidade e desandou à sua vida. Estava uma manhã soalheira e às oito horas já fazia calor. «Rico tempo para as colheitas!», pensava Alpatitch. Do outro lado da cidade, desde manhã se ouvia a fuzilaria. A partir das oito horas salvas de artilharia vieram juntar-se aos tiros de espingarda. As ruas transbordavam de gente, que se agitava apressada, e de soldados, mas os carros de praça circulavam, e os comerciantes conservavam-se nas suas lojas. Nas igrejas celebravam-se os ofícios matinais. Alpatitch percorreu as lojas, as repartições, foi ao correio e a casa do governador. Nas repartições, nas lojas, no correio, não se falava senão na guerra e tio inimigo, que estava já a atacar a cidade; perguntavam todos uns aos outros o que deviam fazer e cada um procurava tranquilizar o vizinho. Em casa do governador havia muita gente, cossacos e carros de viagem pertença desse alto funcionário. Na escadaria de entrada encontrou dois indivíduos, um deles seu conhecido. Este, ex-comissário da polícia do distrito, falava acaloradamente: — Não se trata de uma brincadeira — dizia ele. — Isso é, bom para quem está sozinho. Quando se é só e pobre, passa, mas quando se têm treze pessoas de família a seu cargo e tudo quanto é nosso... Aí é que está, fica-se sem nada. Que, espécie de autoridades são estas?... Devíamos enforcá-los a todos. Bandidos... — Bom, bom, basta — dizia o outro. — Que me importa a mim? Pois que ouçam! Não somos cães.— E, tendo-se voltado, viu Alpatitch. — Eh, Iakov Alpatitch, que fazes tu por aqui? — Trago uma incumbência de Sua Excelência para o governador — replicou Alpatitch, empertigando a cabeça e metendo a mão na carcela da camisa, atitude que tomava sempre que se referia ao amo. — Encarregou-me de me informar da situação. — Então, trata de te informares — gritou o outro. — Vais ver ao que estamos reduzidos. Não há mais carros, nada mais há. E eles aí estão, ouves? — prosseguiu ele, apontando para os lados donde se ouvia a fuzilaria. — Arranjaram as coisas tão bem que estamos todos liquidados... Bandidos! —repetiu, enquanto descia a escada. Alpatitch encolheu os ombros e meteu pela escadaria acima. Na sala de espera havia negociantes, mulheres, funcionários, olhando todos uns para os outros, sem dizerem palavra. A porta do gabinete abriu-se: todos se levantaram e deram um passo em frente. Açodado, saiu lá de dentro um funcionário, que disse qualquer coisa a um dos negociantes, e depois se dirigiu a um gordo burocrata que trazia uma condecoração ao pescoço, desaparecendo em seguida, como que a eximir-se às perguntas e aos olhares que lhe endereçavam. Alpatitch colocou-se na primeira fila, e quando o funcionário voltou a aparecer, metendo a mão na carcela do cafetã, puxou das duas cartas, que lhe apresentou, — Para o Sr. Barão Asch, da parte do general-chefe príncipe Bolkonski — articulou ele, numa voz tão importante e tão solene que o funcionário não teve outro remédio senão aceitar as cartas. Alguns minutos depois, o governador recebia Alpatitch e dizia-lhe apressadamente: — Diz ao príncipe e à princesa que nada sei: procedo de acordo com as ordens superiores. Toma, aqui tens – acrescentou, entregando-lhe um papel. — Aliás, se o príncipe está doente, aconselho-o a que vá para Moscovo, eu próprio vou partir imediatamente. Diz-lhe... O governador não pôde concluir a frase. Um oficial coberto de suor e de poeira precipitou-se na sala e pôs-se a falar-lhe em francês. No rosto do governador havia uma expressão de pânico. — Vai-te embora — disse ele, fazendo-lhe um sinal com a cabeça, e pôs-se a interrogar o oficial, Olhares ávidos de notícias, assustados e impotentes, interrogaram Alpatitch quando ele saiu do gabinete do governador, Dando fé, mesmo sem querer, da fuzilaria cada vez mais intensa e mais próxima, tratou de regressar à estalagem. O papel que o governador lhe dera dizia o seguinte: «Asseguro-lhe que a cidade de Smolensk não corre perigo algum e não é de crer que venha a estar ameaçada. O príncipe Bagration e eu avançamos cada um pelo seu lado para nos reunirmos diante de Smolensk, junção esta que estará realizada no dia 22 deste mês, e os dois exércitos, na totalidade das suas forças, defenderão os seus compatriotas da província que lhe foi confiada até que osnossos esforços afastem deles o inimigo da pátria ou até que caia o último soldado das nossas valorosas fileiras. Portanto já vê que pode tranquilizar os habitantes de Smolensk; quando se é defendido por dois exércitos ião valentes pode estar-se seguro da vitória.» (Ordem do dia de Barclay de Tolly ao governador civil de Smolensk, barão Asch, no ano de1812.) O povo girava inquieto pelas ruas. Carroças carregadas de panelas, de cadeiras, de arcas, saíam a cada momento dos portais e seguiam ruas fora. Diante da casa contígua à de Ferapontov estacionavam vários carros, e algumas mulheres soluçavam, despedindo-se. Um cão ladrava correndo à frente dos cavalos atrelados. Alpatitch, em passo mais acelerado que de costume, penetrou no pátio e dirigiu-se directamente ao telheiro onde estavam os seus cavalos e a sua carruagem. O cocheiro dormia; acordou-o e mandou-o atrelar, entrando depois no vestíbulo da estalagem. No quarto do dono da casa ouviam-se choros de crianças, soluços dilacerantes de mulheres e a voz estentórea e rouca de Ferapontov. Quando Alpatitch penetrou no vestíbulo, a cozinheira corria de um lado para o outro como uma galinha assustada. — Deu-lhe uma paulada que a deixou meio morta... Bateu na patroa. Arrastou- a. — Porquê? — perguntou Alpatitch. — Queria que a levasse daqui. É mulher, coitada! «Leva-me», disse-lhe ela, «não me deixes morrer aqui com os meus filhos. Toda a gente se vai embora. Que vai ser de nós?» E ele pôs-se a bater-lhe. Aquilo é que foi dar-lhe. Como ele a arrastou! Alpatitch abanou a cabeça, com ar meio aprovador, e sem querer ouvir mais encaminhou-se para o quarto em frente do do patrão, onde deixara as suas compras. — Malvado! Bandido! —, gritava nessa altura uma mulher magricela e pálida, com uma criança ao colo, que se precipitou na escada a caminho do pátio, o lenço da cabeça meio rasgado. Ferapontov saiu-lhe no encalço, mas ao ver Alpatitch ajeitou colete e os cabelos e, bocejando, penetrou no quarto do amigo.— Pelo que vejo, vais-te embora — disse— lhe. Sem lhe responder e sem mesmo o olhar, Alpatitch continuou a embrulhar as suas compras e perguntou-lhe quanto lhe devia. — Já faremos contas. Falaste com o governador? — inquiriu Ferapontov — Que decidiram eles? Alpatitch explicou-lhe que o governador nada lhe dissera de muito preciso. — Como havemos nós de nos ir embora? — disse Ferapontov. — Quem há-de dar sete rublos por um carro até Dorogobuj? É por isso que eu digo que são hereges! Selivanov, esse, teve sorte, na quinta-feira: vendeu farinha ao exército à razão de nove rublos por saco. Ouve cá, tornas chá? — acrescentou. Enquanto atrelavam os cavalos os dois foram tomar chá, conversando sobre o preço dos trigos, sobre as colheitas e o tempo, que ia bom para as ceifas. — Parece que isto vai melhor — disse Ferapontov, depois de tomar três chávenas de chá, levantando-se. — Podes crer, os nossos têm-nos na mão. Eles bem dizem que os não hão-de deixar entrar. Só quer dizer que têm força... No outro dia, segundo ouvi, Matvei Ivanovitch Platov perseguiu-os até ao Marina. Dizem que só num dia afogou dezoito mil. Alpatitch fez um embrulho das suas compras, deu-o ao cocheiro, que acabava de entrar, e pagou a conta ao estalajadeiro. Junto do portão ouviam-se o ruído da kibitka que saía do pátio e o retinir dos guizos. Já passava do meio-dia. Parte da rua estava na sombra enquanto a outra brilhava ao sol. De súbito ouviu-se um silvo longínquo e estranho acompanhado de um estampido, e em seguida um ronco prolongado que fez estremecer os vidros. Alpatitch saiu para a rua. Dois homens corriam na direcção da ponte. Por todos os lados se ouviam silvos e o estampido surdo das granadas que explodiam sobre a cidade. Mas isso nada era e pouco chamava a atenção dos habitantes comparado com o canhoneio que se ouvia fora de portas. Era o bombardeamento da cidade de Smolensk, com cento e trinta peças de artilharia, que Napoleão ordenara principiasse às cinco horas da manhã. De princípio, a população da cidade não tinha sequer percebido que se tratava de um bombardeamento. Os obuses e as granadas que caíam começaram por despertar apenas curiosidade. A mulher de Ferapontov, que continuava a choramingar no telheiro, calou-se repentinamente, e com o filho nos braços veio para o portão, onde ficou,sem dizer nada, olhando para quem passava, de ouvido à escuta. A cozinheira e um lojista vieram-se-lhe juntar. Todos, numa curiosidade divertida, procuravam lobrigar os projécteis que lhes passavam por cima da cabeça. A esquina da rua apareceram uns indivíduos conversando animadamente. — Que força, caramba! — dizia um — O telhado, o tecto, ficou tudo em cacos. — Parece que andaram a fossar a terra como o porco faz com o focinho — acrescentou outro. — Isto sim, isto vale a pena. Põe um morto em pé! — prosseguiu um terceiro em ar de mofa. — Tiveste sorte. Se não tens dado um salto para o lado, estavas a estas horas em fanicos. Aproximaram-se deles outras pessoas. Contaram que as granadas lhes tinham caído em casa, mesmo a seu lado. Entretanto, os projécteis, as granadas, de silvos prolongados e lúgubres, os obuses, de uma música mais alegre, continuavam a passar por cima das cabeças. No entanto, nenhum caiu nas imediações, todos seguiam mais longe. Alpatitch instalou-se na kibitka. O estalajadeiro continuava de pé, ao portão. — Que estás tu para aí a olhar? — gritou ele para a cozinheira, a qual, de mangas arregaçadas, saiote vermelho, mãos nas ancas, se aproximara do cunhal da rua para ouvir o que se dizia. — Sempre há coisas! — exclamava ela, Mas, ao ouvir a voz do amo, retrocedeu, deixando cair a saia repuxada para cima. De novo, e desta vez ali mesmo, ressoou um silvo, e, como uma ave vinda do céu, viu-se um grande clarão no meio da rua, enquanto uma detonação, que encheu tudo de fumo, atroava os ares. — Bandidos! Que está esta gente a fazer? — gritou o estalajadeiro, correndo para a cozinheira. Nesse mesmo momento romperam de vários lados gritos aflitivos de mulheres. A criança, aterrada, pôs-se a chorar, e as pessoas, silenciosas e pálidas, juntaram- se em volta da cozinheira. Os gemidos e as exclamações que ela soltava ouviam-se no meio do vozear da multidão. — Oh, meus pombinhos! Oh, pombinhos brancos! Não me deixem morrer! Meus pombinhos brancos! Cinco minutos depois não havia vivalma na rua. A cozinheira fora levada para a cozinha, com uma costela partida por um estilhaço de obus. Alpatitch, o cocheiro, a mulher de Ferapontov mais os filhos, o porteiro, todos se haviam refugiado nacave, e falavam de ouvido à escuta. O troar do canhão, o silvar das granadas bem como os gemidos da cozinheira, que dominavam todos os demais ruídos, não se calavam um instante, A mulher do estalajadeiro embalava o filho, procurando sossegá-lo, e perguntam aos que iam entrando se tinham visto o marido, que ficara lá fora. Um lojista que chegou disse que ele acompanhara o povo que se dirigia à catedral para rezar diante do ícone miraculoso de Smolensk. Ao cair da noite o canhoneio diminuiu. Alpatitch saiu da cave e ficou um momento parado no limiar da porta. O céu, até aí claro, estava agora cheio de fumo. E no meio de toda aquela fumarada, no horizonte, resplandecia o crescente da lua nova. Desde que o troar das bocas de fogo se calara, parecia que a calma caíra sobre a cidade, apenas interrompida pelo ruído confuso dos passos, dos gemidos, dos gritos longínquos e do crepitar dos incêndios. Os gemidos da cozinheira tinham deixado de se ouvir. A direita e à esquerda elevavam-se, dispersando-se pelo ar, negras colunas de fumo, Nas ruas, não já em fileiras, mas como formigas de um formigueiro arrasado, corriam, em várias direcções, soldados com os mais variados uniformes. A vista de Alpatitch vários se refugiaram no pátio de Ferapontov. Alpatitch caminhou para o portão. Um regimento, em retirada, acelerada e em desordem, obstruía a rua. — A cidade rende-se, fuja, fuja o mais depressa possível — disse um oficial que, ao passar, reparara na silhueta de Alpatitch, e logo em seguida, gritando para os soldados. — Eu vos ensinarei a meterem-se no pátio. Alpatitch voltou à estalagem e, chamando o cocheiro, deu-lhe ordem de abalar. O pessoal de Ferapontov saíra logo atrás de Alpatitch e do cocheiro. Ao verem a fumarada e as chamas dos incêndios, agora mais brilhantes por ter começado a cerrar-se a noite, as mulheres, até aí caladas, de repente puseram-se aos gritos. Como se lhes respondessem, nos dois extremos da rua ressoaram gemidos. Alpatitch e o cocheiro, de mãos trémulas, no telheiro, desembaraçavam as rédeas dos cavalos e os tirantes enrodilhados. No momento em que saíam do portão viram na tenda de Ferapontov, cuja porta ficara aberta, um magote de soldados que em grande alarido enchiam sacos e bornais de farinha e de girassol. Nessa altura entrava Ferapontov, vindo da rua. Ao ver os soldados quis gritar mas, de súbito calou-se e, arrancando as mãos cheias os cabelos da cabeça, rompeu num riso entrecortado de soluços. — Levem tudo, rapazes! Não deixem coisa, alguma Para esses diabos —gritava ele, pegando também nos sacos e despejando-os na rua. Alguns dos soldados, assustados, fugiram, enquanto os outros continuaram a encher os sacos. Ao ver Alpatitch, Ferapontov gritou-lhe: — Rússia, estás perdida! Alpatitch! Rússia, estás perdida! Eu vou tratar de deitar o fogo a tudo. Estás perdida... — repetia, correndo para a rua. A rua estava completamente obstruída pelos soldados que passavam constantemente e Alpatitch, não podendo avançar, viu-se obrigado a esperar ali mesmo. A mulher de Feranontov com os filhos meteu-se também num carro à espera do poder passar. A noite fechara-se por completo. O céu coberto de estrelas e de tempos a tempos via-se surgir a Lua através de uma cortina de fumo. Ao descerem para o Dniepre, os carros de Alpatitch e da mulher do estalajadeiro, que avançavam, a passo, entre duas filas de soldados e viaturas, foram obrigados a parar. Não longe da encruzilhada onde fizeram alto, uma casa e uma tenda ardiam ainda. O incêndio principiava a extinguir-se. Tão depressa as chamas esmoreciam, perdendo-se numa fumarada negra, como se punham a crepitar de súbito, iluminando, com uma nitidez fantástica, as figuras dos fugitivos acumulados na estrada. Por diante das chamas perpassavam silhuetas negras e no meio do crepitar ininterrupto do fogo ouviam-se vozes e gritos. Alpatitch apeou-se e, vendo que o caminho não estaria desimpedido tão depressa, dirigiu-se à encruzilhada para contemplar o fogo. Os soldados andavam de um lado para o outro diante do braseiro. Viu que dois deles, acompanhados de um homem com um capote pelos ombros, arrastavam pela rua, em direcção a um Pátio vizinho, pranchas a arder. Outros traziam braçados de feno. Alpatitch aproximou-se de um grande ajuntamento estacionado diante de um vasto estabelecimento que ardia a bom arder. As paredes estavam envoltas em chamas, a retaguarda ruía. O telhado de folhas de madeira estava prestes a cair, as pranchas ardiam. A gente aguardava, sem dúvida, que o telhado viesse abaixo. Alpatitch esperou também. — Alpatitch! — gritou de repente uma voz conhecida. — Excelência, paizinho! — exclamou ele, ao reconhecer imediatamente a voz do seu jovem amo. O príncipe André, envolto numa capa e montado num murzelo, estava no meio da multidão, de olhos fitos nele.— Que estás aqui a fazer? — perguntou. — Exce... excelência... — balbuciou Alpatitch, rompendo a chorar. — Exce... excelência... É possível que estejamos perdidos? Paizinho... — Que estás aqui a fazer? — repetiu André. Naquele momento reavivaram-se as chamas e Alpatitch pode ver o rosto pálido e esgotado do seu jovem amo, Contou ao que viera e como não podia dali sair. — É verdade. Excelência, que estamos perdidos? — repetiu ele. O príncipe André, sem lhe responder, puxou de uma carteirinha de algibeira, arrancou-lhe uma página e em cima do joelho pôs-se a escrever a lápis estas palavras, dirigidas à irmã: «Smolensk rendeu-se. Lissia Gori será ocupada pelo inimigo dentro de oito dias. Partam imediatamente para Moscovo. Avisa-me em seguida da data da vossa partida, enviando-me um portador a Usviage.» Depois de ter entregue o papel a Alpatitch, deu-lhe oralmente instruções sobre os preparativos da partida do príncipe, da princesa e do filho, com o seu preceptor, e sobre a resposta que lhe devia ser remetida imediatamente. Mal acabara de falar, um dos chefes do estado-maior, a cavalo, e seguido de uma comitiva, precipitou-se para ele. — É o senhor o coronel? — Fritou, com um sotaque alemão não de todo desconhecido do príncipe André. — Estão a deitar fogo às casas na sua presença e o senhor nada faz para o impedir? Que quer isto dizer? O senhor é o responsável... Era Berg, então subchefe do estado-maior do flanco esquerdo da infantaria do 1º exército, «posição muito agradável e de destaque», como costumava dizer. O príncipe André fitou-o, e sem lhe responder continuou para Alpatitch: — Diz-lhe que espero resposta até ao dia 10, e se nesse dia não receber comunicação de que toda a gente abalou, ver-me-ei obrigado a deixar tudo para ir pessoalmente a Lissia Gori. — Príncipe, falo-lhe assim — disse Berg, reconhecendo-o — Porque sou obrigado a cumprir as ordens que recebo e desempenho-as sempre escrupulosamente... Desculpe-me, se faz favor... Alguma coisa crepitou no meio das chamas, que pareciam esmorecer, e turbilhões de fumo negro romperam do telhado. Outro estrondo ainda maior se ouviu e o telhado desmoronou-se.«Hurra!», ululou a multidão ao ouvir o estampido, O telhado do estabelecimento ruíra, espalhando em torno um forte cheiro a pão queimado. As chamas reavivaram-se de novo, iluminando os rostos fatigados da multidão extenuada que rodeava o braseiro. O homem do capote gritou, erguendo os braços ao ar: — Muito bem! Bom trabalho! Assim mesmo, rapazes!... — É o proprietário! — exclamaram algumas vozes de entre a multidão. — Bom! Está entendido! — prosseguiu o príncipe André — Repete-lhes tudo tal qual eu te disse. — E sem dar atenção a Berg, que permanecia silencioso junto dele, esporeou o cavalo e desapareceu por uma azinhaga. [V] Depois da queda de Smolensk, as tropas russas continuaram sua retirada, perseguidas pelo inimigo. No dia 10 de Agosto o regimento comandado pelo príncipe André passou, seguindo pela estrada principal, junto do caminho que conduzia a Lissia Gori. O calor e a seca duravam havia mais de três semanas. Todos os dias grossas nuvens perpassavam pelo céu, escondendo o Sol de vez em quando. Mas para o fim da tarde o firmamento clareava e o Sol desaparecia no horizonte no meio de uma neblina avermelhada. Só o rocio da noite refrescava a terra. O trigo que não fora ceifado secava e o grão caía. Os pântanos tinham secado. O gado morria de fome, sem encontrar pastos nos prados restados pelo sol, Só de noite, e nas florestas, enquanto durava a humidade nocturna, fazia fresco. Mas na estrada real, por onde seguiam as tropas, até de noite, até mesmo no meio das florestas, o calor era insuportável. Não se dava pelo rocio da noite na poeira dos caminhos, de mais de um quarto de archina de altura. Mal luzia a manhã, logo recomeçava a marcha, Os comboios, a artilharia, rolavam sem ruído, enterrados até aos eixos, e a infantaria metia os pés, até à barriga da perna, na poeira mole, sufocante, que nem de noite arrefecia. Parte daquela poeira trituravam-na os pés dos soldados e as rodas das viaturas e a outra subia no ar, formando uma nuvem por cima das tropas e metendo-se pelos olhos dentro, por dentro dos cabelos, pelo nariz esobretudo pelos pulmões dos homens e dos animais. À medida que o Sol ia subindo no horizonte mais espessa se tornava a nuvem! de poeira, a qual, à falta de verdadeiras nuvens, permitia aos soldados fitar o Sol o olho nu. Então o disco solar parecia um enorme globo carmesim. Não havia vento, e os soldados sufocavam nesta atmosfera imóvel. Era preciso marchar com um lenço diante do nariz e da boca. Ao atravessarem as aldeias precipitavam-se para a abertura dos poços. Disputavam a água a murro c às vezes até bebiam lama. O príncipe comandava um regimento e, a administração e o bem-estar dos seus homens, a necessidade, de receber e transmitir ordens, tomavam-lhe o tempo todo. O incêndio e o abandono de Smolensk representavam uma época importante da sua vida. Um sentimento de ódio contra o inimigo fizera-o esquecer o seu desgosto. Entregava-se inteiramente ao cumprimento das suas funções. Preocupava-se com os soldados e os oficiais. Todos lhe chamavam o «nosso príncipe»: orgulhavam-se dele e estimavam-no muito Mas só era bom e afectuoso com os homens do seu regimento, como Timokine e outros, gente nova para ele, gente de um meio desconhecido, que nada podia saber do seu próprio passado. Nas suas relações com os seus antigos conhecimentos, com a gente do estado- maior, tornava-se imediatamente intratável: era desagradável, irónico e altivo. Tudo quanto lhe lembrava o passado lhe repugnava, e em relação às pessoas do seu antigo meio limitava-se a usar da mais estrita justiça e a cumprir meramente os seus deveres. Em verdade, a seus olhos tudo se lhe representava sombrio e triste, principalmente depois de 6 de Agosto, dia da rendição de Smolensk, cidade que na sua opinião podia ter sido defendida e se devia ter defendido, e depois que seu pai, doente, tivera de fugir para Moscovo, abandonando à pilhagem Lissia Gori, propriedade a que tanto queria e que ele próprio construíra e povoara. Mas, apesar de tudo, o príncipe André, graças ao seu regimento, tinha o espírito preocupado com outras coisas, bem diferentes de todas essas tristezas, A 10 de Agosto a coluna de que o seu regi— mento fazia parte chegou a alturas de Lissia Gori. Dois dias antes recebera a comunicação de que o pai, o filho e a irmã haviam partido para Moscovo. Embora, realmente, nada tivesse que fazer ali, resolveu, movido por essa tendência especial do seu carácter que o levava a apreciar dolorosas alegrias, visitar aqueles lugares. Mandou selar o cavalo e dirigiu-se à aldeia de seus pais, onde ele próprionascera e onde decorrera a sua infância. Ao passar junto do tanque em que habitualmente dezenas de mulheres lavavam a roupa chalreando, notou que não havia vivalma e que uma tábua arrancada da borda, quase submersa, flutuava no meio da água. Aproximou-se da casa do guarda. Junto do portão de pedra da entrada ninguém havia e a porta da casa estava aberta, As áleas do parque estavam cobertas de relva e os bezerros e os cavalos deambulavam pelo jardim à inglesa. Na estufa os vidros estavam partidos e algumas plantas caídas por terra e outras secas... Chamou Tarass, o jardineiro, mas ninguém lhe respondeu. Rodeando a estufa pelo terraço, notou ao passar que a balaustrada de madeira entalhada estava partida e que os ramos das ameixieiras, sem frutos, jaziam quebrados no chão. Um velho camponês, que o príncipe de há muito conhecia, estava, junto do portão, sentado num banco verde entrançando laptis. Era surdo e não dera pela chegada do amo. Estava acomodado no banco em que o velho príncipe gostava de sentar-se, e junto dele, suspensas dos ramos de uma magnólia partida e seca, viam-se as meadas de cânhamo. O príncipe André dirigiu-se a casa, Tinham cortado várias tílias do antigo parque, uma égua malhada com o seu potro cirandava, por debaixo das janelas, mesmo pelo meio dos alegretes das roseiras. As portadas das janelas estavam fechadas. Havia apenas uma aberta, em baixo. Ao ver o príncipe André, o filho de um criado entrou correndo em casa. Alpatitch, que mandara família para a cidade, ficara em Lissia Gori, E ali estava a ler Vida dos Santos. Ao saber da, chegada do príncipe André, de lunetas no nariz e abotoando o casaco, tratou logo de vir ao encontro do amo, e sem dizer palavra rompeu a chorar enquanto se abaixava para lhe beijar o joelho. Depois voltou a cara, arreliado com a fraqueza que mostrara, e pôs-se a contar ao príncipe o que se passara. Tudo o que era precioso e, de valor fora transportado para Bogutcharovo. O trigo, cerca de cem tchetverts, fora levado também para lugar seguro. Quanto ao feno e ao trigo, a colheita da Primavera, excepcional, segundo ele dizia, haviam sido ceifados verdes e levados pelas tropas. Os camponeses estavam arruinados, e parte deles fora também para Bogutcharovo, embora a maioria houvesse ficado. Sem o ouvir até final, o príncipe André perguntou-lhe: — Quando se foram meu pai e minha irmã? Queria dizer: quando saíram para Moscovo. Alpatitch, julgando que ele sereferia à partida para Bogutcharovo, respondeu terem partido no dia 7, e de novo voltou a falar dos assuntos do domínio, pedindo instruções. — Acha que se deve dar às tropas, contra recibo, a aveia que ficou? Ainda há umas seiscentas tchetverts... — inquiriu. «Que devo eu responder— lhe?», pensava o príncipe André, enquanto filava o crânio do velho, calvo como a palma da mão, brilhando ao sol, e lhe ia lendo na expressão que ele próprio compreendia quão inoportunas eram essas perguntas, que ele as não fazia senão para afogar mágoas. — Pois sim, entrega-a — replicou. — Naturalmente reparou na desordem do jardim — prosseguiu Alpatitch. — Não foi possível evitá-la. Três regimentos passaram aqui a noite, principalmente dragões. Tomei nota do posto e do nome do comandante, para apresentar queixa. — E que vais tu fazer agora? Continuarás aqui se o inimigo ocupar a quinta? — perguntou o príncipe André. Alpatitch virou a cara para o príncipe, fitou-o e, de súbito, num gesto solene, ergueu os braços ao céu. — Ele é meu protector, que seja feita a Sua vontade! — exclamou. Um grupo de camponeses e de criados, todos de cabeça descoberta, avançava através do campo, direito ao lugar onde estava o príncipe André. — Bom, adeus! — disse este, inclinando-se para Alpatitch — Vai-te embora também. Leva contigo o que puderes e diz aos camponeses que se refugiem ou na propriedade de Riazan ou nas dos arredores de Moscovo. Alpatitch agarrou uma das pernas do amo, soluçando. O príncipe André desprendeu-se suavemente e, esporeando o cavalo, despediu a galope por uma das alamedas. No terraço da estufa, tão indiferente como uma mosca pousada no rosto de um morto que nos é querido, continuava sentado o ancião, ocupado a pregar num cepo os seus laptis, e duas pequenitas com as saias arregaçadas, cheias de ameixas colhidas nas árvores da estufa, correram dando de caras com o cavaleiro. Ao ver o patrão novo, a mais idosa, muito assustada, pegou na companheira pela mão e ambas se foram esconder atrás de um álamo, sem terem tempo de apanhar as ameixas verdes que deixaram cair no chão. O príncipe André deu-se pressa em voltar a cabeça para o lado, para que elas não vissem que ele as observara. Fez-lhe pena aquela linda garota, com o seu arassustado. Não queria olhar, mas não conseguia. Um sentimento novo, doce e apaziguador o invadiu ao ver aquelas crianças. Compreendeu que outros interesses havia na vida completamente alheios aos seus e tão naturais como os que o preocupavam. Aquelas crianças não tinham evidentemente senão um desejo: levar consigo, para comê-las, aquelas ameixas verdes e não se deixarem apanhar, e o certo é que André, lá no fundo, lhes estava desejando que fossem bem sucedidas na sua proeza. E não resistiu a olhar para elas uma vez mais. Julgando passado todo o perigo saíram do seu esconderijo e, tagarelando nas suas vozitas agudas, de saias arregaçadas, puseram-se a correr alegremente pela relva, de pés descalços tostados pelo sol. O príncipe André sentira-se um pouco mais fresco ao abandonar a atmosfera poeirenta da estrada real por onde avançavam as tropas. Mas não longe de Lissia Gori teve novamente de meter por ela e foi apanhar o seu regimento junto da comporta de um dique. Eram duas horas da tarde. O Sol, como uma bola vermelha no meio da poeira, escaldava, e as costas ficavam assadas através do pano preto do uniforme. O pó continuava na mesma e mantinha-se imóvel por cima dos soldados, que não cessavam de falar. Não havia vento. Ao passar junto da albufeira, André sentiu nas narinas um cheiro a lodo, e do tanque subiu um pouco de frescura. Teve vontade de se atirar à água, por mais suja que estivesse. Voltou- se para o lado da albufeira donde vinham gritos e risadas. Aquela pequenina extensão de água turva, cheia de juncos, parecia ter crescido mais dois palmos e inundava já a comporta, tantos eram os corpos brancos e nus que nela chafurdavam, de mãos, rostos e pescoços encarnados cor de tijolo. Toda essa carne humana chafurdava entre as gargalhadas e gritos naquele pântano lamacento, como carpas dentro de uma selha. Uma vaga tristeza se derramava daqueles alegres folguedos. Um soldado louro, das relações pessoais do príncipe André, da 3ª companhia, com uma correia na barriga da perna, persignou-se e recuou alguns passos para dar uma corrida e mergulhar na água; outro, um sargento, trigueiro e cabelos sempre revoltos, metido no tanque até à cintura, agitava o busto musculoso, resfolegando alegremente, enquanto salpicava a cabeça com os braços queimados até ao pulso. Só se ouvia chapinhar e gritar. Nas margens da albufeira, na comporta, no tanque, por toda a parte, só se via carne branca, sã e musculosa. O oficial Timokine, com o seu nariz vermelhusco, enxugava-se com uma toalha em cima da comporta, e, embora um poucoenvergonhado ao ver o príncipe André, exclamou: — Isto faz bem, Excelência, devia fazer o mesmo! — Está muito suja a água — replicou o príncipe André, fazendo uma careta. — Vamos já arranjar-lhe sítio. — E Timokine, meio vestido, correu a afastar os banhistas. — O príncipe queria... — Quem?, o nosso?... — exclamaram várias vozes, e todos se ajeitaram de tal modo que o príncipe André se viu em apuros para convencê-los a que se deixassem ficar como anteriormente. Preferia proceder as suas abluções debaixo de um te1heiro. «Carne, corpos, carne para canhão», pensava ele, despindo-se também, e tremendo menos de frio que à lembrança dessa massa de corpos que chafurdava no tanque cheio de lama: sentia ao mesmo tempo desgosto e pavor, embora não soubesse explicar o porquê desses sentimentos. No dia 7 de Agosto, o príncipe Bragation, do seu acampamento de Mikailovka, na estrada de Smolensk, escrevia a carta seguinte. Endereçada a Araktcheiev, sabia que seria lida pelo imperador, e por isso ponderou cada palavra, pelo menos na medida em que era capaz de o fazer Sr. Conde Alexis Suponho que o ministro já o terá informado que Smolensk foi abandonada ao inimigo. É doloroso e triste, e o exército inteiro está desesperado por ver que a mais importante das nossas praças foi perdida sem qualquer utilidade. Pela minha parte, pedi-lhe, pessoalmente e com o maior empenho, que o não fizesse, e até chequei a escrever- lhe nesse sentido, mas não se demoveu. Juro-lhe pela minha honra que Napoleão se encontrava num atoleiro e que teria perdido metade do seu exército sem tomar Smolensk. As nossas tropas têm-se batido e batem-se como nunca. Pela minha parte, resisti com quinze mil homens durante mais de trinta e cinco horas e venci-os, mas ele nem sequer catorze horas quis resistir. É uma vergonha e uma nódoa, para o nosso exército, e na minha opinião esse homem não temdireito a vida. Se lhe diz que as nossas perdas são muito grandes, não é verdade. Talvez uns quatro mil homens, não mais, e talvez menos até. Mas ainda que fossem dez mil, que havíamos nós de fazer? É a guerra. As perdas do inimigo, porém, essas são enormes. Que lhe custava demorar-se mais dois dias? Ao menos o inimigo ter-se-ia retirado por si, pois a verdade é que já não tinha água para os homens nem para os cavalos. Dera- me a sua palavra de honra de que não recitaria, e eis que me envia uma mensagem dizendo que se ia embora naquela mesma noite. Não se pode fazer a guerra deste modo, e por este andar não tarda, que o inimigo siga ate Moscovo. Corre por aqui que pensa na paz. Deus nos livre! Depois de todos estes sacrifícios e de uma retirada tão insensata, pedir a paz? Seria fizer com que o Rússia ficasse toda contra si, e todos nós teríamos vergonha de vestir uma farda. Já que as coisas chegaram a este ponto é preciso que lutemos enquanto a Rússia puder e enquanto houver homens. É mister que o comando esteja na mão de um, e não nas de dois. O seu ministro talvez seja excelente no exercício das funções da sua pasta, mas como general não é apenas mau, é mesmo péssimo. E a ele confiaram o destino da nossa pátria... Sinceramente, estou doido de indignação. Perdoe- me a ousadia das minhas palavras. É evidente que não gosta do seu imperador e que não deseja outra coisa senão a nossa perdição aquele que aconselha que se peça a paz e quer que o ministro seja o único a comandar. Por isso lhe digo a verdade: organize a milícia. De outra forma, o ministro acabará, de maneira magistral, por levar consigo o seu hóspede ale Moscovo. O senhor Vatltzofen, general ajudante-de-campo do imperador, não é visto com bons olhos pelo exército. Há quem diga que e mais fiel a Napoleão que ao nosso monarca e no entanto é o maior conselheiro doministro. Quanto a mim, obedeço-lhe como um cabo, embora mais antigo do que ele. É triste, mas é por lealdade para com o meu benfeitor e soberano que me submeto. No entanto, não posso deixar de lamentar que o nosso imperador confie o seu magnífico exército a semelhante pessoa. Imagine que na nossa retirada perdemos mais de quinze mil homens por esgotamento e hospitalizados, coisa que não teria acontecido se tivéssemos caminhado em frente. Diga-lhes aí, por amor de Deus, que a nossa Rússia, a nossa mãe, acabará por acusar-nos de termos medo e de entregarmos a nossa boa e heróica pátria a esses canalhas: talvez seja a maneira de despertar a vergonha, e o ódio em cada cidadão. Que significa esta cobardia? De que ternos medo? Não é minha a culpa se o ministro é indeciso, medroso, absurdo, lento, e se há nele todos os defeitos possíveis. O exército inteiro não faz senão chorar e cobre-o de impropérios. [VI] Entre as numerosas subdivisões que podem estabelecer-se nos fenómenos da vida há algumas em que predomina o fundo sobre a forma e outras em que é a forma que prevalece. É a esta última subdivisão, e em oposição à vida no campo, tia província, nas capitais do distrito e até mesmo em Moscovo, que pertence a vida de Petersburgo, principalmente a vida do salão. Esta última é imutável. Em 1805, os Russos tinham-se reconciliado e zangado com Napoleão, tinham feito e desfeito constituições, mas os salões de Ana Pavlovna e de Helena eram exactamente o que haviam sido sete anos antes um e cinco o outro. No salão de Ana Pavlovna continuava a falar-se com o mesmo espanto dos êxitos de Bonaparte e a ver-se nos seus triunfos, bem como nas convivências dos monarcas da Europa, uma pérfida conspiração adrede preparada para enfadar e perturbar a corte russa, que Ana Pavlovna representava. No de Helena, a que Rumiantsov, inclusivamente,dava a honra da sua presença, considerando a condessa Bezukov como uma mulher de excepcional inteligência, em 1812, exactamente como em 1808, continuava a falar-se entusiasticamente da grande nação e do grande homem, deplorando o corte de relações com a França, mal-entendido que não podia deixai de terminar com um tratado de paz. Nos últimos tempos, depois do regresso do imperador, verificava-se uma agitação desusada nestes mundos opostos, e houve, inclusivamente, algumas demonstrações hostis de parte a parte, embora a tendência geral de cada permanecesse a mesma, o salão de Ana Pavlovna, quanto a franceses, apenas recebia os legitimistas mais empedernidos, e os seus sentimentos patrióticos patenteavam-se no facto de incluir no índex o teatro francês cuja manutenção, segundo se dizia, era tão dispendiosa como a de um corpo de exército. Seguiam-se ali febrilmente os acontecimentos militares e faziam-se circular os boatos mais lisonjeiros para o exército russo. No salão de Helena, também o de Rumiantsov e dos franceses, desmentiam-se os rumores acerca das crueldades do inimigo e da guerra e discorria-se sobre as tentativas levadas a cabo por Napoleão para obter a paz. Eram censurados aí os que davam conselhos precipitados no sentido de transferir a corte para Kazan bem como os estabelecimentos de ensino de meninas dependentes da administração da imperatriz-mãe. Em geral, no salão de Helena a guerra apresentava-se como uma série de demonstrações estéreis que não tardariam a acabar com a paz, e a opinião que reinava ai era a de Bilibine, nessa, altura um dos íntimos de Helena — pois todo o homem inteligente tinha de frequentar o seu salão. Segundo ele, não era a pólvora que deveria resolver o pleito, mas os que a tinham inventado. Troçava-se com muito espírito, mas sem prudência, do entusiasmo de Moscovo, de que haviam chegado rumores a Petersburgo, bem como da recepção do imperador na velha cidade. No salão de Ana Pavlovna, pelo contrário, aplaudiam-se entusiasticamente essas manifestações, dignas dos heróis de Plutarco. O príncipe Vassili, que continuava a desempenhar as mesmas funções importantes, servia de traço de união entre os dois grupos. Frequentava, alternadamente, a minha boa amiga Ana Pavlovna e o salão diplomático de minha filha; como estava sempre a passar de um lado para o outro, sucedia às vezes enganar-se e dizer no salão de Helena o que devia dizer no de Ana Pavlovna e reciprocamente. Pouco depois do regresso do imperador, o príncipe Vassili, ao falar da situaçãoem casa de Ana Pavlovna, criticara severamente Barclay de Tolly, mostrando-se indeciso quanto ao nome que devia chamar-se para ocupar o lugar de general- chefe. Um dos frequentadores do salão, de quem se dizia ser um homem cheio de valor, e que contara ter visto nesse mesmo dia o chefe, da milícia de Petersburgo, Kutuzov, presidir à recepção dos voluntários na câmara das finanças, permitiu-se dizer, o mais prudentemente possível, que o homem que satisfaria a todas as exigências podia ser precisamente Kutuzov. Ana Pavlovna pôs-se a sorrir melancolicamente e observou que Kutuzov só servira para causar desgostos ao imperador. — Já disse e repeti na assembleia da nobreza — interrompeu o príncipe Vassili — mas ninguém me ouviu. Afirmei que essa escolha para chefe da milícia não agradaria ao imperador. Não fizeram caso. Não se perde o hábito de censurar! — prosseguiu ele. — E tudo isto porque o que queremos é macaquear os estúpidos entusiasmos de Moscovo. — Falando deste modo, cometia um deslize esquecendo- se que era no salão de Helena que devia ridicularizar esses entusiasmos, e no de Ana Pavlovna, pelo contrário, aplaudi-los. E ei-lo que corrige o seu desastramento. Será realmente recomendável que o conde Kutuzov, o mais velho dos generais russos, ocupe um lugar desses, valerá a pena? Será possível nomear para o cargo de general-chefe um homem que não pode montar a cavalo, que adormece no conselho e cujos costumes não são recomendáveis? Sim, senhor, arranjou uma rica fama em Bucareste! E não falo das suas qualidades de general, mas será possível que se nomeie um homem caduco e cego, sim cego, tal qual? Devia ser bonito um general cego! Não vê coisa alguma. É bom para jogar à cabra-cega... Completamente cego! Ninguém fez objecção a estas palavras. A 25 de Julho isto era exacto, mas a 29 Kutuzov recebeu o título de príncipe, Tal distinção, que podia querer dizer haver desejos de correr com ele, não invalidara o severo juízo do príncipe Vassili, embora obrigasse este a ser mais prudente. A 8 de Agosto reuniu-se uma comissão, de que faziam parte o marechal- de-campo Saltikov, Araktcheiev. Viazmitinov, Lopukine e Kotchubei, para tomar resoluções sobre a marcha da guerra. Chegou-se aí à conclusão de que os reveses eram provocados pela dualidade de comando e, embora os membros da comissão estivessem inteirados de que o imperador não estava satisfeito com Kutuzov, depois de uma curta deliberação, foi o nome dele que propuseram para o lugar degeneral-chefe. E assim, nesse mesmo dia, Kutuzov foi nomeado generalíssimo de todas as regiões ocupadas pelas tropas. A 9 de Agosto, o príncipe Vassili encontrou-se de novo no salão de Ana Pavlovna com o homem cheio de valor. Este, que queria obter o lugar de curador de um instituto de meninas, fazia a corte à dona da casa. O príncipe Vassili entrou no salão numa atitude de autêntico triunfador, como alguém que acaba de ver realizados os seus mais ardentes desejos. — Então, já sabem a grande notícia? O príncipe Koutouzoff foi nomeado marechal! Acabaram todos os dissentimentos. Estou muito contente, muito feliz! — exclamou. — Temos enfim, um homem — acrescentou, eircunvagando um olhar ao mesmo tempo competente e severo. O homem cheio de valor, apesar do empenho que tinha em conseguir o almejado lugar, não pôde deixar de chamar a atenção de Vassili para o facto de ele não ter sido sempre da mesma opinião. Claro que isso não era uma atitude muito diplomática da sua parte quer para com o príncipe Vassili e no salão de Ana Pavlovna, quer para com a própria dona da casa, que se mostrara regozijadíssima ao saber a notícia. Mas não pudera dominar-se. — Mas diz-se que ele é cego, príncipe? — observou ele, lembrando ao príncipe Vassili as palavras que ele próprio pronunciara. — Ora, ora, vê o suficiente — retorquiu este na sua voz de baixo, escamoteando as palavras e tossicando, costume seu quando em embaraços. — Ora, ora, vê o suficiente — repetiu. — E o que me dá maior prazer é o facto de o imperador lhe ter concedido plenos poderes sobre todo o exército e sobre todo o território, podei, nunca antes dado a qualquer outro general, É um segundo autocrata — concluiu com um sorriso de triunfo. — Deus o queira! Deus o queira! — exclamou Pavlovna. O homem cheio de valor, noviço da sociedade da corte, julgou lisonjear Ana Pavlovna tentando justificar a sua antiga opinião, e observou: — Dizem que o imperador só de má vontade o investiu deste poder. Dizem que corou como uma donzela a quem lessem a história Joconde, ao dizerem-lhe: o soberano e a pátria conferem-lhe esta honra. — Talvez o dissesse um pouco contrafeito — comentou Ana Pavlovna. — Oh, não, não! — exclamou Vassili, acaloradamente. Agora não podia trocar Kutuzov por mais ninguém. Em sua opinião, não só ele era perfeito, mas toda agente o adorava. — Isso não pode ser, porque o imperador sempre apreciou muito o seu mérito. — Deus queira — interveio Ana Pavlovna — que o príncipe Kutuzov tome, efectivamente, conta do Poder e não consinta que alguém lhe levante obstáculos. O príncipe Vassili percebeu imediatamente a alusão. Disse em voz baixa: — Sei de fonte limpa que Kutuzov impôs como condição sine qua non que o grão-duque herdeiro não continue no exército. Sabem o que disse ao imperador? E o príncipe Vassili repetiu as palavras que este teria dito ao soberano: «Não posso castigá-lo se se portar mal nem recompensá-lo se se portar bem.» — Oh, o príncipe Kutuzov é um homem de grande inteligência, conheço-o de longa data. — Dizem mesmo — interveio o homem cheio de valor, continuando a dar provas de falta de tacto de cortesão — que Sua Excelência Sereníssima impôs como condição indispensável que o imperador não compareça no exército. Mal pronunciou estas palavras, Vassili e Ana Pavlovna voltaram a cabeça simultaneamente e trocaram entre si um olhar triste, soltando um profundo suspiro, impressionados com tamanha ingenuidade. [VII] Enquanto isto se passava em Petersburgo, os Franceses deixavam para trás Smolensk e aproximavam-se mais e mais de Moscovo. Thiers, o historiador de Napoleão, como todos os outros autores que se ocuparam da sua personalidade, para justificarem c seu herói, sustentam que ele foi atraído, a pesar seu, até junto dos muros de Moscovo. Thiers tem razão na medida em que têm razão todos quantos procuram explicar os acontecimentos históricos pela vontade de um só homem. Tem razão como a têm os historiadores russos que afirmam que Napoleão foi impelido para a frente graças à habilidade dos generais russos. Nisto, além da lei da retrospectividade, que leva a crer que o passado não é mais que a preparação do facto consumado, existe uma certa conexão dos acontecimentos que complica tudo. Um bom jogador de xadrez que perde uma partida fica convencido de ter perdido por virtude de um erro em que incorreu, e vai procurá-lo noprincipio do jogo esquecendo-se de que no decurso da partida incorreu em outros erros semelhantes e que nenhuma das suas jogadas foi perfeita, Deu conta do seu erro apenas porque o adversário dele tirou partido. Quão mais complicado não é o jogo da guerra, que tem lugar em determinadas condições de tempo, em que não é uma vontade única que conduz as máquinas inanimadas, mas onde tudo depende do entrechocar de uma infinidade de vontades individuais e particulares! Depois de Smolensk, Napoleão procurou dar batalha para lá de Dorogobuje, perto de Viazma, em seguida em Tsarevo-Zaimichtche, mas, em virtude de um grande número de circunstâncias, os Russos não puderam aceitar combate senão em Borodino, a cento e doze verstas de Moscovo. Depois de Viazma, Napoleão deu instruções para avançar directamente sobre a antiga capital. Moscovo, a capital asiática deste grande império; a cidade santa do povo de Alexandre; Moscovo, com as suas inúmeras igrejas em forma de pagode chinês. Moscovo não deixava em paz a imaginação de Napoleão. Durante a etapa de Viazma a Tsarevo-Zaimichtche, Bonaparte montava o seu cavalo branco inglês, acompanhado da Guarda, de sentinelas, de pajens e de ajudantes-de-campo. O chefe do estado-maior, Berthier, ficara para trás para interrogar um russo feito prisioneiro pela cavalaria. Acompanhado do intérprete Lelorgne d’Ideville, galopando, veio juntar-se ao imperador e, com alegre semblante, fez estacar o cavalo. — Então? — perguntou Napoleão. — Um cossaco de Platov. Disse que o corpo de exército de Platov vai reunir-se ao grosso do exército, que Kutuzov foi nomeado general-chefe. Inteligente e falador. Napoleão sorriu, mandou dar um cavalo ao cossaco e deu ordem para que lho trouxessem. Desejava falar-lhe pessoalmente. Alguns dos ajudantes-de-campo puseram-se a galopar e, uma hora depois, Lavruchka, o servo que Denissov cedera outrora a Rostov, fardado de ordenança, com o seu ar astuto e jovial, um tanto borracho, surgiu diante de Napoleão montado sobre uma sela da cavalaria francesa. Este mandou-o seguir a seu lado e pôs-se a interrogá-lo. — És cossaco? — Cossaco, Sua Senhoria.«O cossaco, ignorando em presença de quem se encontrava, pois a simplicidade de Napoleão nada podia revelar a uma imaginação oriental a figura de um soberano, discorreu com extrema familiaridade sobre os assuntos da guerra actual», diz Thiers no relatar este episódio. Efectivamente, Lavruchka, que na véspera se havia emborrachado e deixara o amo sem jantar, fora vergastado e tivera de ir à aldeia procurar galinhas. Ali entretivera-se no saque e fora feito prisioneiro pelos Franceses. Lavruchka era um desses soldados atrevidos e desavergonhados que tudo foram na vida, que se julgam na obrigação de praticar todas as baixezas e todas as velhacarias imagináveis, sempre prontos a prestar serviços a seus amos, cujos pensamentos adivinham, especialmente quando se trata de vaidade e mesquinhez. Ao ver-se na presença de Napoleão, a quem não tardou a reconhecer, Lavruchka não se embaraçou, tratando desde logo de tirar o melhor partido que pudesse dos seus novos amos. Sabia perfeitamente que era Napoleão, e Napoleão não o intimidava mais que Rostov ou o sargento encarregado de o flagelar. Como nada tinha, nada lhe podiam tirar. Referiu histórias que se contavam entre as ordenanças, e muitas delas eram exactas. Mas quando Napoleão lhe perguntou se os Russos tinham esperança de vencer Bonaparte, franziu o sobrecenho e pôs-se a pensar. Percebeu que a pergunta escondia uma armadilha, pois as criaturas da espécie de Lavruchka estão habituadas a ver astúcia em tudo, e tomando um ar manhoso calou-se. — É como quem diz — acabou por responder —; se houvesse uma batalha nestes dias mais chegados, os Franceses levariam a melhor. Sim, não há dúvida. Mas se nestes quatro dias mais próximos não houver batalha, então já não digo nada, que essa batalha não a ganhariam de pé para a mão. Sorrindo, Lelorgne d’Ideville, traduziu deste modo para Napoleão as palavras de Lavruchka:— «Se a batalha se travar dentro de três dias, os Franceses ganhá- la-ão, mas, se ficar para mais tarde, só Deus sabe o que virá a acontecer.» Napoleão, embora muito bem disposto, em vez de sorrir quando lhe traduziram o oráculo, pediu que lho repetissem. Lavruchka reparou no facto, e, para entreter Napoleão, prosseguiu, fingindo sempre que não sabia a quem estava falando: — Sim, nós cá sabemos que há um francês, a quem chamam Bonaparte, queesta farto de levar a melhor por todo o lado, as com a gente o caso é, outro... – E, sem saber como nem porquê, as palavras saíam-lhe da boca cheias de presunção patriótica. O intérprete traduziu a resposta, suprimindo a ultima Napoleão sorriu. «O moço cossaco fez sorrir o seu poderoso interlocutor», refere Thiers. Depois de cavalgar algum tempo calado. Napoleão chamou Berthier e disse-lhe que queria ver qual o efeito que produziria sobre aquele rapaz do Don o dizerem-lhe que o homem com quem estivera conversando era o próprio imperador, o imperador que tinha gravado nas Pirâmides o seu nome vitorioso e imortal. E fez-se o que o imperador desejava. Lavruchka deu-se conta de que o queriam atrapalhar e meter-lhe medo e foi assim que para agradar a seus novos amos fingiu imediatamente grande espanto e estupefacção, abriu muito os olhos e fez a mesma cara de quando o vergastavam. «Mal o intérprete de Napoleão», escreve Thiers, «abriu a boca o cossaco, tomado de uma espécie de estupor, não proferiu mais palavra e seguiu de olhos fitos naquele herói cujo nome chegara até ele através das estepes do Oriente. Toda a sua loquacidade desaparecera de repente para dar lugar a um ingénuo e silencioso sentimento de admiração. Depois de o recompensar, Napoleão mandou que o pusessem em liberdade, como o pássaro que se deixa voar para os campos que o viram nascer.» Napoleão prosseguiu o seu caminho, pensando em Moscovo, cidade que lhe exaltava a imaginação. Quanto ao «pássaro que, deixaram voar para os campos que o viram nascer», esse tratou de cavalgar em direcção às linhas avançadas russas, congeminando uma engenhosa história para narrar aos camaradas. Não estava disposto a contar-lhes as coisas tal qual se haviam passado, pois a verdade é que a seus próprios olhos pouca importância, tinham. Reuniu-se aos cossacos, tratou de saber onde parava o seu regimento, o qual fazia parte do destacamento Platov, e à noitinha junto de seu amo, Nicolau Rostov, acantonado em Iankovo, e que nesse momento montava a cavalo para, com Iline fazer um giro pelas aldeias vizinhas. Mandou dar outro cavalo a Lavruchka e levou-o consigo. [VIII] A princesa Maria nem estava em Moscovo nem livre, de perigo, como André supunha. Depois que Alpatitch voltara de Smolensk, o velho príncipe pareceu como que acordar de repente. Deu ordens para que se levantassem as milícias nas suas terras e mandou que se armassem, escrevendo entretanto ao general-chefe. Informava-o de que resolvera ficar em Lissia Gori e que pensava defendê-la até, à última, deixando-lhe a ele a responsabilidade de saber se deveria ou não tomar medidas para proteger um domínio onde ia ser feito prisioneiro um dos mais antigos generais russos, Em seguida participou a todos os seus familiares que não arredaria pé de sua casa. Entretanto dera ordens para prepararem a partida da princesa e de Dessalles, que acompanhariam o príncipezinho para Bogutcharovo, e dai para Moscovo. A princesa Maria, muito preocupada com a actividade febril e as insónias do pai depois da apatia dos últimos tempos, não quis deixa-lo só e pela primeira vez na sua vida tornou a resolução de lhe não obedecer. Recusando partir, desencadeou no príncipe uma tremenda tempestade de ira. Mais uma vez lhe repetiu todas as acusações injustas com que costumava flagelá-la. Disse-lhe que passava a vida a atormentá-lo, que o indispusera com o filho, que fizera a seu respeito suposições abomináveis, que não pensava noutra coisa senão em envenenar-lhe a existência, e acabou por expulsá-la do seu gabinete, acrescentando que se, de resto, estava disposta a ficar, para ele tanto se lhe dava. Disse-lhe ainda que não queria saber mais dela e prevenia-a de que não ousasse aparecer-lhe mais diante dos olhos. O facto de o pai não decidir o que ela mais temia, mandá-la partir à força, limitando- se a proibi-la de aparecer diante dele, foi para a princesa um grande alívio. Sabia muito bem o que isso queria dizer: no fundo do seu coração, o príncipe gostava que ela ficasse em casa e irão partisse. No dia seguinte, após a partida de Nikoluchka, o velho príncipe apareceu logo pela manhã de uniforme de gala, disposto a ir ao encontro do general-chefe. A sua carruagem já estava pronto. A princesa Maria viu-o a sair do gabinete, com todas as condecorações ao peito, e dirigir-se para o pátio, a fim de passar revista aos camponeses e criados a quem dera armas. Da janela, a princesa ouvia-lhe as vociferações que ressoavam através das árvores. De súbito, um grupo de homens, muito assustado, surgiu,correndo, de uma das áleas do parque. A princesa Maria precipitou-se para a escada e dali, pela rua bordada de flores, direito à alameda. Ao seu encontro deparou-se-lhe um magote de milicianos e criados, no meio dos quais, amparado por debaixo dos braços, arrastando-se, vinha o velhinho com o seu uniforme de gala e as suas condecorações. Maria correu para ele, mas não pôde desde logo dar-se conta da transformação que se operara rios traços do pai em virtude das manchas de luz que na alameda das tílias desciam através da folhagem. A única coisa que pôde ver foi que o seu rosto, até então severo e enérgico, tinha agora uma expressão receosa e humilde. Ao ver a filha, remexeu os lábios impotentes, deixando filtrar através deles sons roucos e indistintos. Era impossível compreender o que ele queria dizer. Levaram- no em braços até ao gabinete e estenderam-no no divã que tantos terrores lhe causara ultimamente. — O médico, chamado à pressa, nessa mesma noite sangrou-o, dizendo que ele tinha uma paralisia do lado direito. Como a permanência em Lissia Gori se tornava mais perigosa de dia para dia, logo na manhã seguinte o príncipe foi levado para Bogutcharovo. O médico acompanhou-o. Quando ali chegaram, já Dessalles e as crianças haviam seguido para Moscovo. Sem dar sinal de melhoras, o velho príncipe permaneceu três semanas em Bogutcharovo na casa que André ultimamente mandara construir. Sem conhecimento, estendido, desfigurado, mais parecia um cadáver. A todo o momento murmurava palavras desconexas, mexendo as sobrancelhas e os lábios, e era impossível saber se tinha consciência do que se passava à sua volta. Não havia dúvida, porém, de que sofria e queria dizer fosse o que fosse. O quê? Impossível saber se se trataria de qualquer capricho de doente sem tino ou de alguma coisa relativa aos acontecimentos ou a questões de família, O médico afirmava que aquela inquietação era apenas de ordem física, mas a princesa Maria pensava que ele queria falar, e a confirmar a sua opinião lá estava o facto de o desassossego do enfermo desaparecer quando ela estava presente. De facto sofria física e moralmente. Não havia a mais pequena esperança de cura e não estava em estado de ser transportado. Que aconteceria se ele morresse no caminho? «Não seria preferível chegar a sua hora, a sua derradeira hora?», dizia muitas vezes, de si para consigo, a princesa Maria. Noite e dia, quasesem dormir, ela lá estava, à cabeceira do pai, e, por mais triste que pareça, o certo é que muitas vezes lhe espiava os mais pequenos movimentos, não na esperança de o ver melhorar, mas desejosa de lhe descobrir sinais de morte próxima. Por mais estranho que o facto lhe parecesse, a princesa Maria viu-se obrigada a reconhecer consigo mesma que era verdade. O que se lhe afigurou ainda mais terrível foi que enquanto a doença durou e antes ainda desta doença, nos momentos em que, sozinha com ele, dir-se-ia esperar que alguma coisa acontecesse, sentira acordar nela o desejo e as esperanças até ai adormecidos ou esquecidos, A ideia que durante anos nem sequer a aflorara da possibilidade de uma vida livre, liberta do medo paterno, e que poderia vir — a amar e a casar — tomara-lhe agora a imaginação, como se fosse uma tentação do Demónio. Conquanto tudo fizesse para se ver livre dessa ideia, a cada passo se estava a interrogar a si própria sobre a maneira de organizar a sua vida quando ele deixasse de estar presente, Eram tentações do Demónio e disso estava persuadida. Sabia que a única arma que lhe assistia era a oração e procurava rezar. Punha-se em atitude de quem vai orar, pousava os olhos nos ícones, articulava as fórmulas, mas a alma não a acompanhava. Sentia-se levada por um novo mundo de vida activa, difícil e independente, em tudo absolutamente oposto ao meio moral onde estivera fechada até aí e em que o único lenitivo era a oração. Não podia nem rezar nem chorar, e as preocupações do dia-a-dia assoberbavam-na. Continuar em Bogutcharovo era perigoso. De todos os lados chegavam notícias do avanço dos Franceses e numa aldeia a, quinze verstas dali os soldados inimigos tinham assaltado uma propriedade. O médico teimava em que se transportasse o doente, e o marechal da nobreza enviou um funcionário à princesa Maria para convencê-la a partir o mais depressa que pudesse. O ispraunik também apareceu para lhe fazer o mesmo pedido, e disse-lhe que os Franceses estavam apenas a umas quarenta verstas, que tinham sido distribuídas proclamações inimigas nas aldeias e que se não partissem antes do dia 15 não podia responsabilizar-se pelo que acontecesse. A princesa resolveu abalar no dia 15. Os preparativos e as ordens que era preciso dar — toda a gente se dirigia agora à princesa — ocuparam-na todo o dia 14. Como de costume ultimamente, passara a noite de 14 para 15 sem se despir noquarto contíguo ao do pai. Por várias vezes acordou para ouvir a respiração entrecortada e os gemidos do velho príncipe. A cama rangia. Tikon e o médico mudaram-no de posição. Por várias vezes veio escutar à porta e pareceu-lhe que nessa noite gemia mais do que o costume e, que o voltavam mais frequentemente. Não podia dormir, e foram muitas as vezes que veio pôr o ouvido à escuta: teria desejado entrar, mas não se resolvia a isso. Embora já não pudesse falar, Maria via e sentia quão desagradável Hw era a vista daquele rosto angustiado. Notara que ele voltava a cara sempre que encontrava o olhar dela obstinadamente fito nele. Sabia que aparecer-lhe no quarto, de noite, altas horas, o irritava. No entanto, nunca fora maior o terror e a dor de o perder, Lembrava-se de todos aqueles anos da, sua vida ao lado do pai e em todas as suas palavras, em todos os seus actos descobria o amor que ele lhe tinha. De longe em longe voltavam a aparecer-lhe, no meio das suas recordações, as tentações do espírito maligno, e pensava no que iria fazer depois da morte do príncipe, na sua existência futura, mais livre. Porém, horrorizada, sacudia de si tais pensamentos. Para a madrugada o pai acalmou e Maria pôde adormecer- Acordou tarde. A lucidez que se costuma ter ao despertar fez-lhe ver claramente qual a sua constante preocupação. Foi escutar à porta e voltou a ouvir a respiração rouca do doente, dizendo de si para consigo, suspirando, que estava na mesma. «Que tem ele então? Que quero eu então? É verdade que estou à espera que ele morra?», interrogou-se, sentindo que aquele pensamento a amargurava. Vestiu-se, arranjou-se, disse as suas orações e veio até ao alpendre da escada. Carros ainda por atrelar esperavam enquanto carregavam as bagagens. A manhã estava suave e cinzenta. Maria continuava no alpendre, alanceada de horror perante a sua cobardia moral e procurando que os seus pensamentos se aquietassem antes de penetrar nos aposentos do pai. Entretanto o médico desceu as escadas e aproximou-se dela. — Está um pouco melhor hoje — disse ele. — Andava à sua procura. Entende- se melhor o que ele diz, tem a cabeça mais fresca. Venha, está a perguntar por si... Ao ouvir estas palavras, o coração principiou a bater-lhe apressadamente e, empalidecendo, teve de encostar-se à porta, para não cair. Vê-lo, falar-lhe, sentir- lhe o olhar quando tinha a alma cheia daqueles pensamentos criminosos e medonhos provocava-lhe uma espécie de angústia misturada de alegria.— Vamos — disse o médico. Penetrou no quarto do pai e aproximou-se da cama. O velho estava deitado de costas, o busto soerguido apoiado em almofadas, as pequenas mãos ossudas com a sua rede de veias azuladas assentes sobre o coberta, o olho esquerdo olhando direito na sua frente, as sobrancelhas e os lábios imóveis. Todo ele era delgado, pequeno, insignificante. O rosto parecia ressequido e como que, derretido, os seus traços tinham por assim, dizer encolhido. Maria aproximou-se e beijou-lhe a mão. A mão esquerda do príncipe apertou a dela como se a esperasse há muito. Abanou-a mesmo, enquanto as sobrancelhas e os lábios se lhe contraíam com impaciência. Maria, olhou para ele assustada, tentando adivinhar o que, ele lhe queria. Mudou de posição de modo a que o olho esquerdo do príncipe lhe pudesse ver a cara: então ele serenou por alguns instantes, o olho fixo nela. Depois os lábios e a língua agitaram-se-lhe, saíram-lhe sons da boca e pôs-se a falar fixando-a com um ar tímido e súplice, como se receasse que eu o não compreendesse. Maria olhou-o concentrando nele toda a sua atenção. Diante do esforço quase cómico que ele fazia para mexer a língua, viu-se, obrigada a baixar os olhos e a custo reprimiu os soluços que lhe subiam à garganta. O príncipe falava, repetindo muitas vezes as mesmas palavras. A princesa Maria não conseguia perceber, mas fazia tudo para adivinhar e repetia interrogativamente as palavras que supunha entender. O doente repetiu ainda mais algumas vezes as mesmas silabas Não era possível encontrar-lhes qualquer sentido. O médico julgou perceber que ele perguntava à princesa se ela tinha medo, mas, ao dizê-lo em voz alta, o velho príncipe respondeu com um aceno negativo de cabeça e expeliu quaisquer sons. «A alma, a alma, dói-lhe a alma», percebeu de súbito, a princesa. O príncipe gemeu um «sim» indistinto, pegou-lhe na mão e pousou-a sobre vários pontos do peito, como se procurasse o melhor sitio para ela. — Penso sempre em ti... penso sempre articulou ele com muito maior nitidez, agora que estava certo de ter sido compreendido. A princesa Maria inclinou a cabeça contra a rirão do pai para reprimir os soluços e as lágrimas. Ele passou-lhe a mão pelos cabelos. — Chamei por ti toda a noite... — murmurou.— Se eu soubesse... — replicou ela entre lágrimas. — Tinha medo de entrar. Apertou-lhe a mão. — Não dormiste? — Não, não pude — disse ela, com um aceno negativo de cabeça. Submetendo-se mais uma vez sem querer à influência do pai, pusera-se, tal qual ele, a falar por acenos e parecia, também como ele, de língua entaramelada, — Alma minha... minha amiga. — Maria não pôde inteirar-se de qual das duas carinhosas palavras o pai se servira, mas como quer que fosse no seu olhar lia-se que empregara uma palavra afectuosa nunca outrora em seus lábios quando falava à filha. — Porque não vieste tu? «E eu a desejar, a desejar-lhe a morte!», dizia de si para consigo a princesa Maria. O príncipe ficou algum tempo calado. — Obrigado... minha filha, minha amiga... por tudo, por tudo... perdoa-me... obrigado... perdoa-me... obrigado! — As lágrimas saltaram-lhe dos olhos. — Chama o Andriucha — disse ele, de súbito, e, ao fazer este pedido, a sua expressão era de timidez e incredulidade como se fosse uma criança. Dir-se-ia compreender que tal desejo era desprovido de bom senso; isso, pelo menos, o que a princesa Maria julgou perceber. — Recebi carta dele — respondeu ela. — E onde está ele? — Na tropa, meu pai, em Smolensk. Esteve muito tempo calado, de olhos fechados, e depois, como se respondesse a perguntas que a si próprio dirigira, e ao mesmo tempo para mostrar que recuperara a memória e o entendimento, fez com a cabeça um aceno afirmativo, reabrindo os olhos. — Sim — murmurou em voz muito baixa e distintamente — a Rússia está perdida! Perderam a Rússia! De novo rompeu em soluços e as lágrimas escorreram-lhe pela cara abaixo. Maria não pode mais, e ela própria se debulhou em pranto. O velho príncipe fechou de novo os olhos e pouco a pouco ,quietou-se. Com um gesto de mão, apontou para as órbitas e Tikon, percebendo o que ele queria, enxugou-lhe os olhos. Então voltou a abrir as pálpebras e pronunciou algumas palavras que demomento ninguém percebeu e que só mais tarde Tikon apreendeu, traduzindo-as. Maria julgou ver nelas uma alusão à ordem de ideias que o preocupava minutos antes. Supôs que ele falava da Rússia, ou então do príncipe André, ou ainda dela própria, do neto ou também da morte próxima. Por isso não podia adivinhar o que ele dizia. — Vai pôr o teu vestido branco, gosto dele — dissera o príncipe. Ao ouvir estas palavras, as lágrimas ainda mais se lhe soltaram, e o médico, pegando-lhe por um braço, levou-a até à varanda, pedindo-lhe que serenasse e que tratasse quanto antes dos preparativos de partida. Depois de ela sair, o príncipe falou ainda do filho, da guerra, do imperador, franziu as sobrancelhas com uma expressão irritada, elevou cada vez mais a sua voz rouca e, foi então que um segundo e último ataque o fulminou. A princesa Maria deteve-se na varanda. O dia tinha clareado: fazia sol e estava quente. Não dava por nada, e não podia pensar noutra coisa que não fosse no amor apaixonado pelo pai, sentimento, pensava ela, que julgava ter ignorado até então. Correu para o jardim e, soluçando sempre, desceu até ao tanque, ao longo da alameda de tílias novas plantadas por André. «E eu... e eu... que lhe desejei a morte! Sim, desejei que tudo acabasse quanto mais depressa melhor... Tinha necessidade de descansar finalmente... E que vai ser de mim? Para que hei-de querer eu descanso quando ele desaparecer?» Maria murmurava estas palavras numa voz entrecortada, dando grandes passadas e comprimindo com a mão o peito, abalado por convulsivos soluços. Depois de ter dado uma volta em roda do jardim, tomou a direcção da casa, e nesse momento viu Mademoiselle Bourienne, que ficara em Bogutcharovo, recusando-se partir, que se dirigia ao seu encontro na companhia de um desconhecido. Era o marechal da nobreza do distrito, que pessoalmente vinha persuadir a princesa da urgência de uma rápida partida. Maria ouvia-o sem o entender. Conduziu-o a casa, convidou-o a almoçar e pediu-lhe que se sentasse a seu lado. Em seguida, desculpando-se, levantou-se e dirigiu-se ao quarto do velho príncipe. O médico, que vinha ao seu encontro com uma expressão alterada, proibiu-a de entrar, — Não entre, princesa, não entre, peço-lhe. Maria voltou para o jardim, e no fundo da ladeira que descia para o tanque, num recanto onde ninguém a via, sentou-se na relva. Não podia dizer quantotempo ali esteve. Passos femininos que corriam pela alameda obrigaram-na a despertar. Levantou-se e viu a criada de quarto, Duniacha, que a procurava, parar, de repente, como que assustada ao ver a ama. — Por favor, princesa... o príncipe... — disse ela, numa voz entrecortada. Vou já, vou imediatamente articulou a princesa, que sem lhe dar tempo de acabar o que ela queria dizer e sem olhar para Duniacha, correu para casa. — Princesa, cumpriu-se a vontade de Deus, é bom estar preparada para tudo — disse o marechal, que a esperava à entrada. — Deixe-me, não é possível — exclamou ela com angústia. O médico tentou detê-la, A princesa repeliu-o e correu para a porta. — «Porque não me deixa esta gente com estas caras assustadas? De ninguém preciso. Que estão todos aqui a fazer?» Abriu a porta e a viva claridade do dia que inundava o quarto ate então na obscuridade fê-la estremecer de pavor. No quarto viam-se várias mulheres, entre as quais a sua ama. Afastaram-se da cama para a deixar passar. O príncipe continuava deitado, mas o ar severo e calado que se espalhava no rosto imobilizou-a no limiar da porta «Não, não está morto, não é possível!», dizia de si para consigo à medida que se aproximava, e, vencendo o horror que tomava, pousou os lábios na face do pai. Ao sentir a frieza da pele recuou instintivamente. De súbito toda a ternura que ele acabava de lhe inspirar foi substituída pelo sentimento de horror que lhe despertava o espectáculo que tinha diante dos olhos: «Já não existe! Já não existe! Já não está no lugar em que estava, já não é senão uma coisa desconhecida e horrível, um mistério terrível que me gela o sangue nas veias e me obriga a fugir!» E, escondendo a cara nas mãos a princesa Maria caiu desmaiada nos braços do médico. Na presença de Tikon e do médico, as mulheres deram-se ao cuidado de lavar o corpo do príncipe, amarraram-lhe o queixo com um lenço, para que a boca lhe não descaísse, e para que as, pernas se lhe não afastassem amarraram-nas também. Depois vestiram-lhe o uniforme, com todas as condecorações, e estenderam sobre a mesa o pequeno cadáver descarnado. Só Deus sabe como tudo se fez, mas foi como se as coisas se fizessem por si próprias. Para a noite acenderam velas em volta do caixão e cobriu-se o ataúde com um pano mortuário. Espalharam no sobrado bagas de zimbro, puseram debaixo da cabeça do morto uma oração impressa e a um canto o chantre principiou a recitar os salmos.Tal como os cavalos se empinam e relincham diante do cadáver de outro cavalo, assim veio juntar-se no salão em volta do ataúde do príncipe uma multidão de gente da casa e de fora: o marechal da nobreza, o estaroste, as mulheres da aldeia, todos inclinavam até ao chão, beijando a mão fria e hirta do velho príncipe. [IX] Bogutcharovo, antes de o príncipe André ali se haver instalado, fora sempre uma propriedade abandonada pelo amo, e os camponeses dessa aldeia eram muito diferentes dos de Lissia Gori. Deles se distinguiam pela linguagem, pelo trajo e pelos costumes. Parece que eram camponeses da estepe. O velho príncipe elogiava-lhes o amor ao trabalho quando vinham a Lissia Gori ajudar nas colheitas ou abrir tanques ou canais, mas não gostava deles, selvagens que eram. A última permanência do príncipe André em Bogutcharovo, apesar das inovações que introduzira ali — hospitais, escolas e a redução de impostos — não lhes suavizara os costumes, antes, pelo contrário, acentuara neles o traço característico, essa selvajaria de que falava o velho príncipe. Entre os camponeses circulavam sempre boatos estranhos ora que iam ser recrutados em massa para o corpo de cossacos, ora que iam obrigá-los a aceitar uma nova religião, ou ainda falavam em certas cartas do czar, do juramento prestado a Paulo Petrovitch em 1797, de quem se dizia que já então dera a liberdade aos servos, liberdade que os senhores lhes tinham retirado de novo, ou então de Pedro Feodorovitch, que devia vir a reinar dentro de sete anos e sob cujo reinado toda a gente seria livre e tudo seria tão simples que acabariam as leis. O que se contava da guerra de Bonaparte c da invasão misturava-se na imaginação desta gente a confusas ideias sobre o Anticristo, o fim do mundo e a liberdade absoluta. Nos arredores de Bogritcharovo havia grandes povoações, propriedade da coroa ou de particulares, cujos camponeses viviam sob o regime de foreiros. Poucos eram os senhores que aí residiam: muito poucos eram também os criados ou servos que soubessem ler: daí que entre os habitantes desses lugarejos assumissem uma força e uma intensidade apreciáveis as misteriosas correntes da vida popular, cujas fontes costumam ser desconhecidas dos contemporâneos. Um fenómeno deste género se verificara uns vinte anos atrás, quando se formara uma corrente de emigração para certos rios de águas quentes. Centenas de famílias, entre as quais as de Bogutcharovo, venderam, de um dia para o outro, o eu gado e abalaram para sudoeste. Como aves migradoras que partem para além dos mares, com mulheres e crianças puseram-se a caminho para regiões onde nenhum deles jamais tinha estado. Agruparam-se em caravanas, depois de se haverem remido individualmente uns, outros mesmo sem salvo-conduto, e a pé ou de carrometeram-se a caminho. Muitos deles foram apanhados e castigados, sendo deportados para a Sibéria, outros morreram pelo caminho de fome e de frio e outros ainda voltaram espontaneamente, e o movimento extinguiu-se por si, tal qual como principiara, sem causa aparente. Uma corrente subterrânea, porém, não deixara de continuar a disseminar-se por entre esta gente e ia ganhar novo alento e manifestar-se estranha e inopinadamente e de maneira igualmente simples e natural. Quem vivesse então, nesse ano da graça de 1812, em contacto com o povo podia verificar que ele se encontrava profundamente trabalhado por essas forças ocultas prontas a vir à superfície. Alpatitch, que chegara a Bogutcharovo pouco tempo antes da morte do velho príncipe, notara certa agitação entre os camponeses, observando que, ao contrário do que acontecia na região de Lissia Gori, onde num raio de sessenta verstas todos os habitantes abalavam, abandonando as suas aldeias aos cossacos saqueadores, nesta zona da estepe, em Bogutcharovo, estabeleciam relações com os Franceses, segundo se dizia, acolhendo certos papéis que circulavam entre eles e permanecendo nas suas casas. Através de criados que lhe eram dedicados soube que o camponês Karp, ultimamente de volta de uma jornada no carro da administração, homem de grande influência na comuna, viera dizer que os cossacos saqueavam as aldeias abandonadas pelos seus habitantes enquanto os Franceses as respeitavam. Além disto, soube também que outro mujique trouxera, na véspera, da aldeia de Vislukovo, ocupada pelo inimigo, uma proclamação do general francês onde se dizia que se não faria mal algum aos habitantes e que se eles se conservassem nas suas casas lhes seriam pagas a pronto todas as requisições que se fizessem. Como prova desta afirmação exibia um assinado de cem rublos, que ignorava ser falso, com que lhe tinham pago a palha das suas terras. Por último, e isto era o mais importante, Alpatitch veio a saber que no mesmo dia em que dera ordem ao estaroste para atrelar os carros destinados ao transporte das bagagens da princesa houvera uma reunião da assembleia da comuna onde se resolvera não saírem dali e esperar. E o pior era que não havia tempo a perder. No dia da morte do príncipe, 15 de Agosto, o marechal da nobreza insistira com a princesa Maria para que abalasse imediatamente, em virtude de a situação se apresentar perigosa, Dissera mesmo que depois do dia 12 não podia responsabilizar-se fosse pelo que fosse. E partira pela noite do dia emque o príncipe falecera, prometendo voltar no dia seguinte para assistir ao funeral. Fora-lhe, porém, impossível regressar ao ter conhecimento de que os Franceses operavam um movimento imprevisto e não tivera tempo senão de mandar partir a família e o que tinha de mais precioso. Havia trinta anos que o estaroste Drone, a quem o velho príncipe chamava Dronuchka, administrava Bogutcharovo. Drone era um desses mujiques sólidos, quer física quer moralmente, que à medida que envelhecem principiam a deixar crescer as barbas, embora cheguem aos sessenta ou setenta anos com o melhor aspecto, todos os dentes, sem um cabelo branco, tão direitos e robustos como aos trinta anos. Drone pouco depois da emigração para as águas quentes, em que tomara parte como os demais, fora nomeado estaroste burmistre de Bogutcharovo, funções que desempenhava irrepreensivelmente havia mais de vinte e três anos. Os camponeses temiam-no mais a ele que ao próprio amo. Os amos, tanto o velho príncipe como o príncipe novo e o intendente, respeitavam-no e chamavam-lhe ministro, por graça. Durante todo o tempo em que desempenhara as suas funções nunca estivera nem bêbedo nem doente, nunca dera mostras do mais pequeno cansaço, ainda mesmo quando passava as noites em claro ou tinha que fazer qualquer trabalho extraordinário, e, sem saber ler nem escrever, nunca tivera qualquer engano quer nas contas em dinheiro, quer nos puds de farinha que vendia às carradas, quer na quantidade de feixes de trigo de cada desiatina dos campos de Bogutcharovo. Foi este homem que Alpatitch, ao chegar do devastado domínio de Lissia Gori, mandara chamar no dia do funeral do príncipe, encarregando-o de preparar doze cavalos para as carruagens da princesa e dezoito carroças para as bagagens que era preciso transportar. «Embora os camponeses pagassem foro, o cumprimento desta ordem não podia encontrar dificuldades», pensava Alpatitch, «pois Bogutcharovo contava duzentos e trinta fogos e todos os habitantes eram remediados.» A verdade, porém, é que o estaroste Drone, ao ouvir a ordem que lhe davam, baixou os olhos sem dizer palavra. Alpatitch disse-lhe o nome dos camponeses seus conhecidos que podiam encarregar-se dos transportes. Drone replicou que os cavalos desses camponeses estavam a fazer serviço. Alpatitch lembrou-lhe outros camponeses. E também esses não podiam, no dizer de Drone, pois não tinham cavalos: uns andavam em serviço da administração, outros estavam exaustos e a falta de pastos causara a morte de muitos outros.Dizia-se mesmo que não seria fácil arranjar cavalos, tanto para as carruagens como para as carroças. Alpatitch olhou-o fixamente, franzindo as sobrancelhas. Se Drone era um estaroste modelar, Alpatitch, pelo seu lado, havia mais de vinte anos que administrava as propriedades do príncipe, no que sempre se mostrara intendente exemplar. Era apuradíssimo nele o faro necessário para compreender as necessidades e os instintos das pessoas com quem tinha de lidar, e por isso mesmo era um intendente verdadeiramente excepcional. Bastou-lhe um relance de olhos a Drone para imediatamente compreender que as respostas que este lhe dava não correspondiam ao que ele pensava, antes reflectiam as disposições da comuna de Bogtitcharovo, a cuja influência o estaroste se não eximia. Por outro lado, não ignorava que Drone, camponês ricaço e detestado pela assembleia da comuna, devia estar hesitante entre dois campos, o dos senhores e o dos seus iguais. Lera esta mesma hesitação no olhar do estaroste, e por isso se aproximou dele com uma expressão de descontentamento. — Escuta, Dronuchka — disse-lhe —, não me venhas com histórias da carochinha. Sua Excelência o príncipe André Nikolaitch deu-me pessoalmente ordens para evacuar toda a gente e para não deixar que ninguém caísse em poder do inimigo. Há, de resto, uma ordem do czar no mesmo sentido. Aquele que ficar é considerado traidor. Estás a perceber? — Estou — replicou Drone, sem erguer os olhos. Alpatich não se contentou com a resposta. — Ah! Drone, está-me a cheirar a esturro! — exclamou ele, abanando a cabeça. — Faça o que entender! — murmurou Drone tristemente. — Drone! Basta! — voltou Alpatitch, retirando a mão da carcela do colete e apontando para o chão aos pés de Drone, com um gesto teatral. — Não sei se te diga que não estou só a ver claramente o que se passa contigo, mas até o que se está passando três archinas abaixo de ti. Drone perturbou-se, lançou um olhar furtivo a Alpatitch e voltou a baixar os olhos. — Deixa-te de tolices e vai dizer-lhes que se preparem para partir para Moscovo e que amanhã pela manhã tratem de trazer as carroças para a bagagem da princesa, e quanto a ti aconselho-te a que não ponhas os pés na assembleia.Estás a perceber? Drone deixou-se cair de súbito aos pés de Alpatitch. — Iakov Alpatitch, dispensa-me das minhas funções! Torna lá as chaves, dispensa-me das minhas funções, por amor de Deus! — Basta! — exclamou Alpatitch severamente. — Estou a ver o que se passa a três archinas abaixo de ti — repetiu. O intendente sabia que a sua grande habilidade para tratar das abelhas, o conhecer em que momento se deve semear a aveia e o facto de haver sabido agradar ao príncipe por mais de vinte anos de há muito lhe tinham granjeado a reputação de bruxo, e o poder de ver três archinas abaixo de um homem era dom de feiticeiro, dizia-se. Drone voltou a levantar-se e quis falar, mas Alpatitch cortou-lhe a palavra: — Que passou pela cabeça desta gente sempre quero saber? Vamos... Em que estão vocês a pensar?... — Que posso eu fazer com eles? — exclamou Drone. — Rebentou assim sem mais nem menos, de repente. Eu bem lhes disse — É isso mesmo que eu pensava, estão bêbedos, hem? — inquiriu o intendente, rápido. — Estão todos com a cabeça perdida, Iakov Alpatitch: já entraram na segunda pipa. — Bom, então ouve. Vou tratar de avisar Ipravnik, e tu vais dizer-lhes que se deixem de histórias e que arranjem as carroças. — Às suas ordens — volveu Drone. Iakov Alpatitch não insistiu mais. Havia muito que governava aquela gente e sabia que a melhor maneira de a submeter era nunca lhes dar oportunidade a que pensassem que ele julgava que lhe não pudessem obedecer. Depois de ter conseguido de Drone aquele dócil «Às suas ordens», isso lhe bastou, embora duvidasse de que as carroças viessem a ser-lhes fornecidas sem o auxílio da força pública e estivesse mesmo persuadido do contrário. Com efeito, pela, noite nada de carroças. Houvera uma nova assembleia diante da taberna, onde se tomara a resolução de enxotarem os cavalos para as matas e de nada fornecerem do que se lhes pedia, Sem nada dizer à princesa, Alpatitch mandou descarregar as suas próprias bagagens das carroças que tinham chegado de Lissia Gori, mandou atrelar os seus cavalos às carruagens da princesa e tratou de se dirigir às autoridades. [X] Depois do funeral do pai, a princesa Maria fechou-se no quarto e a ninguém quis receber, Uma criada aproximou-se da porta para lhe dizer que Alpatitch viera receber ordens sobre a partida — passara— se isto antes da conversa com Drone. A princesa ergueu-se do divã onde se estendera e através da porta fechada respondeu que não sairia dali e que a deixassem em paz. As janelas do quarto da princesa Maria davam para o poente. Estava estendida no divã, a cara virada para a parede e tacteava com os dedos os botões da almofada de couro; o horizonte que tinha diante dos olhos delimitava-lho esta almofada, e os seus pensamentos confusos concentravam-se num único objecto, a morte irrevogável e a sua própria baixeza moral até então dela própria ignorada, mas evidente agora durante a doença do pai. Queria rezar, mas não tinha coragem; no estado de espírito em que se via não ousava virar-se para Deus. Por muito tempo assim permaneceu naquela posição. O Sol punha-se do outro lado da casa e os seus oblíquos raios vespertinos filtravam-se pelas janelas abertas iluminando parte do aposento e parte da almofada de marroquim em que ela fixava os olhos. O curso dos seus pensamentos foi, de súbito, interrompido. Soergueu o busto maquinalmente, compôs os cabelos, levantou-se e aproximou-se da janela, aspirando, a seu pesar, a fresca brisa daquele belo entardecer. «Sim, agora podes admirar em paz a beleza do crepúsculo! Ele já cá não está e ninguém daqui para o futuro to poderá impedir», disse de si para consigo, deixando-se cair numa cadeira e pousando a cabeça no parapeito da janela. Uma voz terna e doce chamou lá debaixo do jardim e alguém a beijou na fronte. Voltou-se. Era Mademoiselle Bourienne, vestida de luto e coberta de crepes. Aproximara-se suavemente, e, depois de a ter beijado, principiara a soluçar. A princesa Maria voltou-se para ela. Os atritos que tinham tido, os ciúmes que ela lhe despertara, tudo lhe veio à memória; lembrou-se também de que ultimamente também ele, o pai, mudara por completo na sua atitude para com a francesa, que a não quisera tornar a ver e concluiu que, naturalmente, assuspeitas que nutrira no fundo do seu coração eram injustas. «Terei porventura o direito, eu, que desejei a morte de meu pai, de julgar o meu semelhante?», murmurou para si mesma. A princesa Maria fez passar diante dos olhos a situação de Mademoiselle Bourienne, a quem, nos últimos tempos, mantivera a distância, embora ela vivesse numa casa estranha e estivesse na sua dependência. E teve comiseração dela. Fitou-a com doçura e estendeu-lhe a mão. Mademoiselle Bourienne rompeu em soluços, beijou-lhe as mãos e falou-lhe do pesar por que estava passando e que sentia muito. Disse-lhe que a única consolação na sua dor era o facto de a ama lhe ter permitido que a partilhasse com ela. Todos os mal-entendidos do passado deviam desaparecer diante daquele imenso desgosto; no que lhe dizia respeito a ela, sentia pura a consciência, e ele, lá de cima, estava a ver quanto o estimara e quanto lhe estava reconhecida. A princesa ouvia-a sem compreender o que ela dizia; olhava para ela de vez em quando, deixando-se embalar pelo encanto das suas palavras. — A sua situação é duplamente terrível, minha querida princesa — prosseguiu Mademoiselle Bourienne depois de alguns minutos de silêncio. — Compreendo que não tenha podido nem possa pensar em si mesma, mas a estima que tenho por si obriga-me a fazê-lo... Falou consigo o Alpatitch? Falou-lhe na nossa partida? A princesa Maria não respondeu. Não percebia de que partida estava a francesa a falar: «Poderei eu pensar nalguma coisa ou tentar seja o que for num momento destes? Acaso me importa seja o que for?» E continuava calada, sem responder. — Sabe, querida Maria — disse-lhe Mademoiselle Bourienne —, sabe que corremos perigo, que estamos cercadas pelos Franceses; é mesmo perigoso agora metermo-nos a caminho. Se partirmos, é quase certo que seremos capturados e só Deus sabe... Maria olhava para Mademoiselle Bourienne sem compreender o que ela dizia. — Ah, se soubessem como agora tudo me é completamente indiferente! — exclamou ela. — Não sairia daqui por nada deste mundo... Alpatitch disse-me qualquer coisa sobre essa partida... Fale com ele, por mim nada quero nem posso fazer... — Falei com ele. Tem esperança de que possamos partir amanhã, mas na minha opinião acho que actualmente ainda seria mais prudente ficar aqui — disseMademoiselle Bourienne. — Tem de concordar, querida Maria, que seria horrível sermos apanhadas na estrada pelos soldados ou pelos camponeses revoltados. Mademoiselle Bourienne sacou da sua bolsinha uma proclamação do general francês Rameau, impressa num papel que não era o papel russo vulgar, em que se aconselhavam os habitantes a, não abandonarem as suas casas e em que se dizia que as autoridades francesas lhes concederiam a protecção que lhes era devida. Estendeu-o à princesa. — Parece-me que o melhor que temos a fazer é dirigirmo-nos a este general — disse Mademoiselle Bourienne —, e estou convencida de que ele nos dispensará todas as atenções. A princesa Maria leu o papel e o rosto contraiu-se-lhe convulsivamente. — Quem lhe deu isto? — interrogou ela, — Naturalmente souberam que eu era francesa, pelo meu nome — disse, corando. Mademoiselle Bourienne. Maria, com o papel na mão, levantou-se da janela e, muito pálida, saiu, dirigindo-se ao antigo gabinete do príncipe André.. — Duinacha, chama Alpatitch, Dronuchka, seja quem for! — disse ela — E diz a Amélia Karlovna que quero estar só — acrescentou, ao ouvir a voz de Mademoiselle Bourienne. — Temos de partir o mais depressa possível, o mais depressa possível! — sentia-se aterrada com a ideia de vir a cair rias mãos dos Franceses. «Ali! Se o príncipe André soubesse que ela caíra nas mãos deles, e que ela, a filha do príncipe Nicolau Andreievitch Boikonski, implorara a protecção do general Rameau, o qual usara para com ela da sua benevolência!» Este pensamento enchia-a de terror, fazia-a estremecer, corar, dava-lhe acessos de cólera dela própria desconhecida e revoltava-lhe o orgulho. Via com toda a clareza o que aquela situação representaria de penoso e sobretudo de humilhante. «Esses franceses vão-se instalar aqui, nesta casa; o Sr. General Rameau vai ocupar o gabinete do príncipe André: distrair-se-á a folhear e a ler as suas cartas e os seus papéis. Mademoiselle Bourienne far-lhe-á as honras de Bogutcharovo. A mim dar- me-ão, por caridade, um quartinho; os soldados profanarão o túmulo de meu pai para lhe roubarem as cruzes e condecorações: contar-me-ão as suas vitórias contra os Russos, fingirão simpatia pela minha dor..». Assim pensava a princesa Maria, não pessoalmente, mas sentindo-se, por assim dizer, obrigada, nestascircunstâncias, a adoptar os sentimentos que teriam animado seu pai ou seu irmão. A ela, pessoalmente, tanto se lhe dava ficar aqui ou ali e eram-lhe indiferentes as consequências que daí resultassem: mas para si mesma ia dizendo ser a representante do finado e do irmão ausente. Sem querer, pensava e reagia como eles. Sentia-se obrigada a dizer e a fazer o que eles teriam dito ou feito. Desde que entrara no gabinete de André que passara a encarar a situação como se estivesse possuída dos pensamentos dele. As exigências da vida quotidiana que ela julgara desaparecidas após a morte do pai apresentavam-se-lhe de repente com uma força nova e ainda desconhecida e absorviam-na por completo. Muito agitada, o rosto afogueado pela emoção, andava de um lado para o outro, ora chamando à sua presença Alpatitch, ora Mikail Ivanovitch, ora Tikon, ora Drone. Nem Duniacha, a ama, nem qualquer das criadas lhe puderam dizer fosse o que fosse a respeito da veracidade das asserções de Mademoiselle Bourienne. Alpatitch estava ausente: [ora avistar-se com as autoridades, O arquitecto Mikail Ivanovitch apareceu à princesa meio adormecido e nada lhe pode dizer. Foi com o mesmo sorriso de aquiescência que durante mais de quinze anos utilizara para responder ao velho príncipe, sem nunca manifestar uma opinião pessoal, que respondeu à princesa sem que esta pudesse concluir fosse o que fosse das suas palavras. O velho criado do quarto, Tikon, de cara afilada pela fadiga e uma expressão de dor inconsolável, limitou-se a dizer: «As suas ordens» a todas as perguntas que a princesa lhe fez, rompendo em soluços sempre que erguia os olhos para ela. Finalmente apareceu o estaroste Drone, que, depois de profundas reverências, se deixou ficar encostado à porta. A princesa Maria atravessou o gabinete e deteve-se diante dele. — Dronuchka — disse-lhe, vendo nele um amigo fiel, esse Dronuchka que lhe trazia todos os anos, aquando da sua jornada à feira de Viazma, para lhas oferecer, com um sorriso bom, rosquilhas de amêndoas especiais – Dronuehka, agora, depois da nossa desgraça... — Calou-se, porém, sem animo para continuar. — Tudo depende da vontade de Deus — replicou Drone suspirando. — Dronuchka, o Alpatitch não está, ninguém tenho com quem me aconselhar. É verdade que se diz que eu já não posso partir? — Porque não há-de poder partir, Excelência? Pode partir — disse Drone.— Disseram-me que é perigoso por causa do inimigo. Meu amigo, nada posso fazer, não percebo nada, ninguém tenho a meu lado. Quero ir-me embora sem falta esta noite ou amanhã de manhã muito cedo. Drone permaneceu calado. Olhava para ela de soslaio. — Não há cavalos — articulou ele. — Foi o que eu já disse a Iakov Alpatitch. — Não há cavalos, porquê? — inquiriu a princesa, — É castigo de Deus — replicou ele — Os cavalos que havia uns foram levados pelas tropas e os outros morreram. Ah! Vai um ano muito mau. E isso ainda é o menos, a gente não ter que dar a comer aos cavalos; mas o pior é que se acaba por morrer de fome, Não há nada de nada, estamos completamente arruinados. A princesa Maria ouvia atentamente. — Os camponeses estão arruinados? Não têm pão? — perguntou ela. — Estão a morrer de fome — volveu Drone. — Não só faltam carros... — E porque não o tinhas tu dito já, Dronuchka? Não podemos ajudá-los? Farei tudo o que estiver na minha mão... Parecia-lhe estranho pensar que naquele momento, naquela hora em que a dor lhe trespassava a alma, existissem ricos e pobres e que os ricos não procurassem ajudar os pobres. Ouvira falar vagamente do trigo dos senhores que por vezes se distribuía aos camponeses. Sabia igualmente que nem o irmão nem o pai se teriam negado a auxiliar os pobres. Receava apenas não vir a propósito a distribuição que estava disposta a fazer. Sentia-se feliz por ter um pretexto digno de preocupação capaz de lhe fazer esquecer o seu desgosto. Pediu a Dronuchka pormenores sobre as necessidades que havia a mitigar com as reservas do celeiro de Bogutcharovo. — Deve haver trigo dos senhores, de meu irmão, não é verdade? — perguntou ela. — O trigo do amo está intacto — replicou Drone com orgulho. — O príncipe não autorizava que se vendesse, — Distribui-o aos camponeses, distribui todo o trigo que for preciso. Estás autorizado a fazê-lo em nome de meu irmão — acrescentou ela. Drone não respondeu e despediu um grande suspiro. — Dá-lhes esse trigo, se há trigo bastante para eles. Distribui-o todo. É em nome de meu irmão que te dou esta ordem e diz-lhes que o que é nosso lhes pertence, que nada pouparemos para os ajudar. Repete-lhes bem isto. Drone olhava fixamente para a princesa enquanto ela falava.— Dispensa-me das minhas funções, mãezinha, em nome de Deus. Manda que eu te entregue as minhas chaves — disse ele. — Servi durante vinte e três anos sem nunca fazer nada de mal. Dispensa-me das minhas funções, em nome de Deus. A princesa Maria não percebia o que ele lhe pedia e a razão por que não queria continuar a desempenhar as suas funções. Replicou-lhe que nunca duvidara da sua dedicação e que estava disposta a fazer tudo quanto pudesse por ele e pelos camponeses. [XI] Daí a uma hora, Duniacha veio dizer à ama que Drone voltara e que todos os camponeses, de acordo com as suas ordens, estavam reunidos ao pé do celeiro e lhe queriam falar. — Mas eu não os mandei chamar — disse a princesa. — Disse apenas ao Dronuchka que lhes distribuísse trigo. — Por Deus, então, minha mãe, por amor de Deus, dê ordens para que os mandem embora e não vá falar com eles. Tudo isto é um grande engano — volveu Duniacha. — Quando Iakov Alpatitch voltar, ir-nos-emos embora... mas não consinta... — De que engano estás tu a falar? — perguntou a princesa Maria, surpreendida. — Bem sei o que digo, siga o meu conselho, por amor de Deus. Pergunte à ama. Não querem ir-se embora, como a senhora ordenou, segundo eles dizem. — Tu não sabes o que dizes. Nunca dei ordem para que se fossem embora — afirmou a princesa Maria. — Manda cá o Dronuchka. Drene confirmou as palavras de Duniacha: os camponeses haviam-se reunido por ordem da princesa. — Mas eu nunca os mandei reunir — teimou ela. — Não lhe devias ter transmitido essa ordem. Apenas te disse para lhes distribuíres trigo. Drene soltou um suspiro, sem responder. — Se a senhora manda, eles ir-se-ão embora — tornou ele. — Não, não, irei falar com eles — atalhou a princesa.Apesar das suplicas de Duniacha e da ama, a princesa Maria assomou ao alpendre. Dronuchka, Duniacha, a ama e Mikail Ivanovitch seguiram-na. «Naturalmente julgam que eu lhes ofereço o trigo em troca de eles consentirem em ficar, enquanto eu me vou embora, abandonando-os aos Franceses», dizia ela de si para consigo. Vou prometer-lhes cama e mesa na quinta dos arredores de Moscovo. Estou convencida de que no meu lugar André ainda faria mais do que eu.» Pensando deste jeito, aproximou-se da multidão reunida ao pé do celeiro no crepúsculo que descera do céu. A turba, que principiava a dar sinais de impaciência, agitou-se quando viu a princesa e todos se descobriram precipitadamente. A princesa Maria, baixando os olhos e tropeçando nas pregas do vestido, aproximou-se deles. Tantos eram os olhos de moços e velhos pousados nela e tantas as caras diferentes para ela voltadas que lhe não era possível reconhecer fosse quem fosse; diante da necessidade de se dirigir a todos ao mesmo tempo, não sabia como principiar. Porém, a consciência de ser, naquelas circunstâncias, o porta-voz do pai e do irmão deu-lhe a energia necessária e pôs-se a falar corajosamente. — Estou muito contente porque tenham vindo — pronunciou ela, sem sequer erguer os olhos, enquanto o coração lhe batia descompassadamente no peito. — Dronuchka disse-me que a guerra os arruinou. Estamos todos sujeitos à mesma desgraça, e tudo farei para os auxiliar. Por mim, tenho de me ir embora, porque é perigoso ficar aqui — e o inimigo não está longe... também... Enfim, meus amigos, é tudo vosso, peço-vos que tomem conta de tudo: o trigo todo é vosso. Não quero que haja miséria entre vós. E, se lhes vierem dizer que eu vos dou trigo para que vocês fiquem, creiam que é mentira. Pelo contrário, suplico-lhes que partam com tudo que é vosso para a nossa propriedade perto de Moscovo e prometo-lhes que nada vos faltará ali, tomo essa responsabilidade. Tereis cama e mesa. A princesa calou-se. Apenas se ouviram, entre a, multidão, alguns suspiros. — Não sou eu quem torna esta resolução — prosseguiu ela. — Procedo em nome de meu falecido pai, que foi vosso amo, f, de meti irmão, seu filho. Calou-se mais uma vez. Nenhuma voz rompeu o silêncio. — A nossa desgraça é a mesma, e dividiremos tudo a meias. Tudo quanto é meu é vosso — prosseguiu ela, fixando desta vez os que estavam mais perto. Todos os olhos a fitavam com uma expressão idêntica, expressão que ela nãopodia compreender. Curiosidade? Dedicação? Reconhecimento? Ou apenas medo e desconfiança? Impossível sabê-lo. Mas em todos os rostos a expressão era uma e a mesma. — Estamos-lhe muito reconhecidos pela sua bondade, mas não convém que a gente tome conta do trigo que é do amo — disse uma voz lá por trás. — E então porquê? — interrogou a princesa Maria. Ninguém lhe respondeu e a princesa, ao percorrer com a vista a multidão, deu- se conta de que todos os olhos que encontravam agora os seus imediatamente se baixavam. — Então porque não querem? — repetiu ela. Ninguém respondeu. Maria sentiu-se incomodada perante este silêncio: tentou fixar alguns daqueles olhares. — Porque não respondem? — E ao lobrigar um velho que estava diante dela encostado a um varapau: — Vamos, fala, achas que ainda precisam de mais alguma coisa? Estou pronta para tudo. Mas ele, como se ficasse de súbito furioso por ver-se pelado daquela maneira, ainda, baixou mais os olhos enquanto murmurava: — Porque havíamos nós de aceitar? Não precisamos de trigo. «E porque havíamos nós de abandonar tudo? Não estamos dispostos a isso... Não damos o nosso consentimento. Lamentamos mas não consentimos. Vai-te embora sozinha, se queres...», disseram várias vozes. E novamente todos os rostos retomaram a, mesma expressão, e o que neles se reflectia não era, por certo, nem curiosidade nem reconhecimento, mas antes uma resolução enérgica. — Naturalmente não me compreenderam bem — disse então a princesa Maria com um sorriso muito triste. — Porque não querem partir? Já lhes disse que lhes darei cama e mesa. Se ficarem aqui, o inimigo arruiná-los-á... As vozes da multidão, porém, abafaram a da princesa. «Não damos o nosso consentimento; pois que nos arruinem! Não queremos o teu trigo não damos o nosso consentimento!» Maria tentou ainda reter um olhar qualquer dos que falavam, mas nenhuns olhos estavam fitos nela. Todos a evitavam, E isto fê-la sentir uma impressão estranha e penosa. «Viste como ela recitou bem a lição? Não faltava mais. Queria levar-nos para trabalhos forçados! Quando as nossas casas estiverem arruinadas, dá-nos trabalhode graça. Que vem a ser isso? E diz que nos dará trigo!», exclamavam no meio da multidão De cabeça baixa abandonou o grupo e voltou para casa. Depois de ter repetido a Drone que eram precisos os cavalos para o dia seguinte pela manhã, retirou-se para o seu quarto e ali permaneceu sozinha com os seus pensamentos. [XII] Naquela noite a princesa Maria ficou por muito tempo sentada junto da janela aberta, ouvindo as vozes dos camponeses que chegavam da aldeia, mas sem pensar neles. Sabia perfeitamente que quanto mais pensasse na maneira de proceder deles menos poderia compreendê-los. Para ela só uma coisa contava: a sua dor, a qual, agora, depois daquela diversão provocada pelas preocupações do presente, se perdia no passado. Já não podia lembrar-se mais, já não podia chorar, já não podia rezar, Com o pôr do Sol o vento calara-se. A noite estava serena e fresca. Depois da meia-noite as vozes foram-se calando pouco a pouco. O galo principiou a cantar; a lua cheia ergueu-se por detrás das tílias; neblinas frescas e esbranquiçadas envolveram a distância e o silêncio caiu sobre a aldeia e a casa. Passaram diante dela, uma após outra, as imagens do passado tão próximo; a doença e os últimos momentos do pai. E era com alegria triste que ela recordava agora essas cenas, não repelindo com horror senão uma delas, a da morte, sentindo não ser capaz de a evocar naquela serena e misteriosa hora da noite. E esses quadros surgiam-lhe diante dos olhos com uma tal nitidez e com tais pormenores que se lhe afiguravam ora o presente, ora o passado, ora o futuro. Recordou o momento em que o pai fora acometido de apoplexia, quando o haviam trazido do jardim, amparado por debaixo dos braços, balbuciando palavras incompreensíveis, franzindo as sobrancelhas brancas e olhando para ela com uma expressão tímida e inquieta. «Já então me queria comunicar o que me disse no dia da morte», dizia ela consigo mesma. «Tinha pensado sempre no que me disse.» E eis que lhe ocorreu, em todos os seus pormenores, aquela noite em Lissia Gori, na véspera do dia em que ele fora acometido pelo último ataque, quando, na previsão da catástrofe, elaficara ao pé do doente contra sua vontade. Não pudera dormir e em bicos de pés aproximara-se da porta do jardim de inverno onde o pai dormia nessa noite e ouvira-lhe a voz. Entretinha-se a conversar com Tikon num tom fatigado e de quem sofre. Falava da Crimeia, das noites nos países quentes, da imperatriz. Tinha, sem dúvida necessidade de conversar. «E porque me não mandou chamar? Porque me não deixou ocupar o lugar de Tikon?», pensava ela, como já pensara então. «Ah! Agora já não poderá dizer a ninguém o que então lhe ia no coração. Nem para ele nem para mim. Não mais se repetirá aquele minuto em que ele teria dito quanto queria dizer e em que eu ali estaria presente, em vez de Tikon, para o ouvir e o compreender. Porque não entrei eu então? É de crer que ele me tivesse dito nesse momento o que me disse no dia da sua morte. Já então, conversando com Tikon, perguntara duas vezes por mim. Queria falar-me, e eu ali, atrás daquela porta. Era-lhe penoso não estar a ser ouvido senão por Tikon, que o não podia compreender. Lembro-me de que lhe falou de Lisa como se ela ainda estivesse viva, pois se esquecera de que ela morrera, que Tikon lhe disse que Lisa já não era do número dos vivos e que ele se pusera a gritar: ’imbecil’» Estas recordações eram-lhe penosas. Ouviu-o gemer através da porta quando ele se deitou e clamava em voz alta: «’Meu Deus!’ Porque não entrei eu naquele momento? Que me teria ele feito? Que arriscava eu então? E talvez que afinal se tivesse consolado e me tivesse dito essas palavras.» E Maria pronunciou em voz alta essas palavras acariciadoras que ele lhe dissera no dia da sua morte: «Alma minha!», repetiu ela, e rompeu em soluços, que lhe aliviaram o coração. Via agora, ali na sua frente, o rosto dele: não essa cara, que ela tão bem conhecia, sempre distante, mas essa outra expressão tímida e receosa que ela contemplara pela primeira vez de perto, com todas as suas rugas, nos seus mínimos pormenores, quando se debruçou sobre os lábios dele para o ouvir melhor. «Alma minha!», repetia ela. «Em que pensava ele quando assim me chamou? Em que estará ele a pensar neste momento?», perguntou ela a si própria, subitamente, e de novo lhe surgiu diante dos olhos a expressão que ele tinha no caixão com a ligadura branca por debaixo do queixo. E o mesmo horror que dela se apossara ao tocar no morto e ao verificar que já não era ele quem ali estava, mas qualquer coisa de misterioso e repelente, esse mesmo horror se apoderou dela naquele instante. Teria desejado pensar noutra coisa, rezar; não o conseguia, porém. Erguia os seus grandes olhosmuito abertos para o disco lunar e para a sombra e esperava a cada momento voltar a ver a cara do morto; sentia-se como que paralisada pela grande serenidade que reinava na casa e nas vizinhanças. «Duniacha!», balbuciou ela primeiro. «Duniacha!», clamou, em seguida, numa voz desesperada, e, arrancando- se ao silêncio e à meditação que a tomavam, correu para o quarto das criadas, ao encontro da ama e das mulheres, que vinham já atender ao seu chamamento. [XIII] No dia 17 de Agosto, Rostov e Iline, na companhia de Lavruchka, de regresso do breve cativeiro, e de uma ordenança hússar, abalaram, para um curto passeio a cavalo, do acampamento de Iankov, a umas quinze verstas, pouco mais ou menos, de Bogutcharovo, Queriam experimentar um cavalo novo que Iline comprara e investigar se haveria palha nas aldeias próximas. Há três dias que Bogutcharovo estava entre os dois exércitos inimigos, de tal sorte que, de um momento para o outro, podia vir a ser ocupada quer pela retaguarda dos Russos, quer pela vanguarda dos Franceses. Eis a razão por que, Rostov, comandante de esquadrão previdente, queria apoderar-se, antes da chegada do inimigo, dos abastecimentos que porventura ai tivessem ficado. Os dois amigos iam muito bem dispostos. Cavalgando em direcção a Bogutcharovo, a propriedade do príncipe, onde esperavam encontrar basta criadagem e lindas moças, interrogavam Lavruchka acerca de Napoleão, rindo das suas histórias, quando não se punham a galopar ao desafio para experimentar o cavalo de Iline. Rostov ignorava por completo que a aldeia para onde se dirigiam era propriedade desse Bolkonski que fora noivo de sua irmã. Num último desafio largaram a galope pela encosta que descia para Bogutcharovo, e Rostov, distanciando-se do amigo, foi o primeiro a atravessar a rua da povoação. — Deixaste-me para trás — disse Iline, afogueado pela galopada. — Sim, chego sempre primeiro, tanto em campo raso como aqui — replicou Rostov, afagando o seu corcel do Dom, branco de espuma.— E eu, Excelências, com a minha francesa — interveio Lavruchka, que os seguia e era assim que chamava ao rocim em que ia montado — eu, se os não quisesse envergonhar, já há muito que os teria apanhado, A passo aproximaram-se de um celeiro onde havia um grande ajuntamento de camponeses. Alguns deles desbarretaram-se, enquanto outros se limitavam a olhar para os recém-chegados. Dois mujiques idosos, de barbas ralas e caras sulcadas de rugas, saíram de uma, taberna e, titubeando e cantarolando uma canção incoerente, aproximaram-se dos oficiais. — Aqui temos homens! — exclamou Rustov, rindo. — Eh! Tendes palha? — Qual deles o melhor. — disse Iline. «Alegre... com... pa... nhia...», cantarolava um dos mujiques com um sorriso feliz. Um camponês saiu da multidão e, aproximou-se de Rostov. — Quem sois vós? — perguntou. — Franceses — respondeu Iline, a rir — E aqui tens Napoleão em carne e osso — acrescentou, apontando para Lavruchka. Então são russos? — voltou o camponês. — Trazem muitas forças? — perguntou outro camponês, pequenino, que se aproximara. — Sim, muitas, muitas — retorquiu Rostov. — E que estão vocês a fazer todos aqui? — acrescentou. — É dia santo, porventura? — Os velhos reuniram-se para tratar coisas lá da comuna — replicou o camponês, afastando-se. Nesse momento duas mulheres e um homem de gorro branco saíram da casa senhorial e dirigiram-se para os oficiais. — A vestida de encarnado é para mim! Ai daquele que ma roubar! — exclamou Iline, vendo Duniacha, que caminhava para ele num passo decidido, — É para nós! — disse Lavruchka, piscando o olho a Iline. — Que queres tu, minha linda? — perguntou Iline, sorrindo. — A princesa manda perguntar a que regimento pertencem como se chamam. — Conde Rostov, comandante de esquadrão e vosso muito humilde servidor. «Com... pa... nhia!», ia cantando o camponês bêbedo, sorrindo com ar feliz e olhando para Iline, que conversava com a rapariga. Logo atrás de Duniachaapareceu Alpatitch, que de longe se descobrira respeitosamente. — Atrevo-me a incomodar Vossa Senhoria — disse ele, com a mão na carcela do colete e numa deferência em que se misturava certa displicência, atendendo à juventude do oficial. — Minha ama, a filha do general-chefe príncipe Nicolau Andrejevitch Bolkonski, falecido no dia 15 deste mês, encontra-se numa situação penosa, por causa da ignorância desta gente. — E fez um gesto na direcção dos camponeses. — Roga-lhes que tenham a bondade... Querem fazer o favor de se afastar um pouco? Não é muito agradável na presença destes... — Apontou para os dois camponeses que, a pequena distância, cirandavam em volta dele como varejeiras à roda de um cavalo. — Oh, Alpatitch... Oh, Talcov Alpatitch... Muito bem! Em nome de Cristo, perdoa-nos. Muito bem! — diziam os camponeses, mostrando-lhe o melhor dos seus sorrisos. Rostov não pôde deixar de olhar para os dois borrachos e sorriu. — A não ser que isto divirta Vossa Excelência! — observou Iakov Alpatitch, com um ar grave, tirando a mão da carcela do colete para apontar os dois velhos. — Não, não, isto nada tem de divertido — atalhou Rostov, afastando-se. — E de que se trata afinal? — perguntou. — Excelência, estes grosseiros indivíduos não querem deixar sair daqui a minha ama e ameaçam-na de lhe desengatar os cavalos, de modo que tudo está carregado desde manhã e a princesa não pode meter-se a caminho. — Isso não pode ser! — exclamou Rostov. — Tenho a honra de lhe dizer a verdade pura — confirmou Alpatitch. Rostov apeou-se, entregou as rédeas do cavalo à ordenança e seguiu Alpatitch em direcção à casa, enquanto lhe ia pedindo pormenores. Efectivamente, a proposta da véspera aos camponeses para lhes distribuir o trigo e a explicação da princesa com Drone e a assembleia campesina de tal modo desarranjaram as coisas que Drone entregara definitivamente as suas chaves, se juntara aos camponeses e não aparecera quando convocado por Alpatitch. E assim, quando, na manhã seguinte, a princesa dera ordens para a partida, aquela gente reunira-se em grande número ao pé do celeiro e mandara dizer que não deixaria partir a princesa, que havia ordem para não abandonar as casas e que estava disposta a desatrelar os cavalos. Alpatitch viera parlamentar com os camponeses, tentando chamá-los à razão, mas haviam-lhe respondido — foi Karp quem falou, pois Dronenão aparecia — não ser possível deixarem partir a princesa, que havia ordem para isso. Se ela consentisse, porém, em ficar, continuariam a servi-la como até ali e lhe obedeceriam em tudo. Enquanto Rostov e Iline galopavam pela estrada, a princesa Maria, apesar das objecções de Alpatitch, da ama e das criadas, mandara atrelar os carros para a partida. Os cocheiros, no entanto, ao verem ao longe os cavaleiros, que julgaram franceses, fugiram e as mulheres puseram-se a gritar pela casa. «Paizinho! Nosso paizinho! Foi Deus quem te mandou!», exclamavam vozes suplicantes no momento em que Rostov penetrava no vestíbulo da casa. A princesa Maria, desamparada e sem forças, estava no salão quando Rostov entrou. Não percebia quem ele era, porque estava ali e o que estava a passar-se. Compreendeu tratar-se de um russo, e pela maneira de andar e assim que ele pronunciou as primeiras palavras deu-se conta de que estava diante de um homem polido. Fitou nele os olhos fundos e luminosos e pôs-se a falar-lhe numa voz entrecortada e trémula de emoção. Rostov sentiu imediatamente o que havia de romanesco naquele encontro. «Esta rapariga, sem defesa, esmagada pela desgraça, abandonada, à mercê de camponeses grosseiros revoltados! Que estranho capricho do destino me havia de trazer aqui!», dizia Rostov com os seus botões e, enquanto ouvia a narração que ela lhe fazia, observava-a, «E que suavidade, que nobreza de traços, que expressão de rosto!» Quando ela lhe disse que tudo aquilo acontecera no dia seguinte ao do funeral do pai, a voz tremia-lhe. Voltou a cabeça para o lado, e, em seguida, receosa de que Rostov pensasse que ela o queria comover, fitou nele uns olhares tímidos e interrogativos. Rostov tinha os olhos cheios de lágrimas. Maria deu por isso e agradeceu-lhe poisando nele umas pupilas luminosas que apagaram por completo a fealdade dos seus traços. — Não tenho palavras, princesa, para lhe expressar como me sinto feliz por haver passado aqui por acaso e poder-me confessar à sua disposição — pronunciou ele, levantando— se. — Pode partir. Garanto-lhe sob palavra que ninguém ousará incomodá-la desde que me dê a honra de a escoltar. — E, inclinando-se diante dela tão respeitosamente como se estivesse em frente de uma princesa de sangue real, encaminhou-se para a porta. Os modos cerimoniosos de Rostov queriam dizer clar2mente que, embora lhe fosse muito agradável entabular com ela mais amplas relações, não queriaaproveitar aquela circunstância triste para prosseguir no seu diálogo. A princesa Maria compreendeu e apreciou a sua discrição. — Estou-lhe muito, muito reconhecida — disse-lhe ela em francês — espero que tudo isto não passe de um mal-entendido e que ninguém seja culpado. — E principiou a chorar. — Perdoe-me — acrescentou. Rostov franziu as sobrancelhas, para esconder a emoção que o tomava, e, inclinando-se mais uma vez profundamente, saiu da sala. [XIV] — Então? É bonita? Ah, rapazes, a minha, a de encarnado, é um encanto e chama-se Duniacha... A expressão de Rostov, porém, fez que Iline se calasse imediatamente, Adivinhou que o seu herói e comandante estava numa disposição de espír4to diferente da sua. Rostov lançou-lhe um olhar irritado e sem lhe responder dirigiu-se em passos rápidos para a povoação. «Eu lhes ensinarei! Vão ter o que merecem, estes bandidos», dizia de si para consigo. Alpatitch, alargando o passo quanto podia, custou-lhe a apanhá-lo. — Que decisão se digna tomar? — perguntou-lhe, quando conseguiu alcançá-lo. Rostov deteve-se e, cerrando os punhos, caminhou, de súbito, ameaçador para Alpatitch. — Que decisão? Que decisão? Velho imbecil! — gritou-lhe. — Que andas tu para aí a fazer? Os camponeses revoltam-se e tu não sabes metê-los na ordem, hem! Afinal não passas de um traidor! Conheço-os a todos. Hei-de arrancar-lhes a pele! — E como se receasse esgotar inutilmente a cólera que se apoderava dele deixou Alpatitch no meio da rua e prosseguiu o seu caminho em passos acelerados. Alpatitch, calando a ofensa imerecida que se lhe acabava de fazer, continuou atrás de Rostov em passo acelerado também e teimou em pô-lo ao corrente do seu ponto de vista. Explicava-lhe que os camponeses estavam naquele momento absolutamente obstinados, que’ naquela altura seria insensato resistir-lhes sem oapoio da força armada, que seria muito melhor começar por pedir reforços. — Eu lhes darei as forças armadas... Sou eu quem lhes vai fazer frente — repetiu Nicolau, sem pensar no que dizia, sufocado por uma ira irreflectida e animal que só queria expandir-se. Sem medir o passo que ia dar, caminhou direito à multidão, rápido e decidido. E à medida que ele se aproximava, Alpatitch ia dizendo de si para consigo que talvez o seu acto insensato pudesse dar bons resultados. Eis o que os próprios camponeses pareciam compreender também ao verem av2nçar para eles aquele homem de passo rápido e enérgico e rosto decidido e contraído de raiva. Mal os hússares tinham entrado na povoação, e assim que Rostov se dirigira a casa da princesa, uma certa desorientação e um certo desacordo se verificaram entre o povo. Alguns camponeses principiaram a dizer que os militares eram russos e que naturalmente iam zangar-se quando soubessem que eles impediam a partida da princesa. Drone, especialmente, era desta opinião: mas, assim que manifestara o seu Parecer, Karp e muitos outros irritaram-se com ele. — Quantos anos estiveste tu para aí a comer à custa da comuna? — gritou-lhe Karp. — Para ti, tanto faz. Pegas na bolsa e por aqui me sirvo. Queres lá saber que as nossas casas sejam saqueadas! — Que se cumpra o que está resolvido: que ninguém saia de sua casa. Desde que ninguém tire nada daqui, não haverá novidade! — gritou outra voz, — O teu filho é que devia ter sido recrutado e tu, com p(ma dele, mandaste o meu Vanka no seu lugar. Todos ternos de morrer! — exclamou, de súbito, um velhito que se dirigia a Drone. — Sim, sim, todos temos de morrer. — Eu não sou delegado da comuna — observou Drone. — Sim, sim, não és delegado da comuna, mas criaste barriga!... Dois camponeses apalermados iam dizendo qualquer coisa. Assim que Rostov, acompanhado de Iline Lavruchka e Alpatitch, se aproximou do grupo, Karp, avançou para ele com os dedos no cinturão e um leve sorriso nos lábios. Drone, pelo contrário, tratou de se esconder nas últimas fileiras do povo, agora mais compacto do que nunca. — Quem é aqui o estaroste? — gritou Rostov caminhando rapidamente. — O estaroste? Que lhe quer? — perguntou Karp. Antes que pudesse terminar a frase, o barrete voou-lhe pelo ar e a cabeçaoscilou-lhe apanhada em cheio por um violento golpe. — Desbarretem-se, traidores! — gritou Rostov em voz alta. — Onde está o estaroste? — acrescentou numa voz terrível. «Está a chamar o estaroste, está a chamar o estaroste... Drone Zakaritch, estão a chamá-lo», exclamaram várias vozes receosas, e imediatamente os barretes desapareceram das cabeças. Não queremos revoltar-nos, estamos apenas a cumprir as decisões que tomámos — disse Karp. Depois, algumas vozes, lá para trás, começaram a falar todas ao mesmo tempo: «Foram os velhos quem resolveu... São muitos a mandar — Quem se atreve a falar?... É uma revolta!... Cambada de ladrões! Traidores! — vociferou Rostov sem pensar, numa voz que perdera a ressonância humana, agarrando Karp pela gola. — Amarrem-no, amarrem-no! — gritou, embora para amarrar Karp houvesse ali apenas Lavruchka e Alpatitch- Lavruchka precipitou-se para ele e agarrou-lhe as mãos por detrás. — Se quiser, vai chamar-se a nossa gente, lá ao fundo da colina — disse ele. Alpatitch chamou dois camponeses pelo seu nome para que viessem amarrar Karp. E os dois avançaram docilmente do meio da multidão e desataram os cinturões. Onde está o estaroste? — gritou Rostov. Drone, pálido e carrancudo, deu dois passos em frente. — Tu é que és o estaroste? Amarra-o, Lavruchka! — ordenou Rostov, como se o cumprimento desta ordem não pudesse levantar qualquer obstáculo. E, realmente, dois outros mujiques puseram-se a amarrar Drone, o qual, como se quisesse auxiliá-los, arrancou o cinturão e passou-lho para as mãos. — E vocês todos, ouçam-me bem — prosseguiu Rostov, dirigindo-se aos camponeses. — Agora é cada um tratar de ir para sua casa e que ninguém se lembre de abrir o bico. — Mas então? Que mal fizemos nós? Foi tudo uma asneira. Só fizemos asneiras. Eu bem disse que isto não estava direito — exclamaram algumas vozes, acusando-se mutuamente. — Eu bem vos tinha prevenido — comentou Alpatitch, recuperando a autoridade perdida. — Não está certo, rapazes! — Foi uma asneira nossa. Iakov Alpatitch — responderam várias vozes, e amultidão imediatamente se dispersou, espalhando-se pela aldeia. Os dois camponeses prisioneiros foram conduzidos ao pátio da casa senhorial. Atrás deles foram os dois bêbedos. — Olhem para a cara deles! — disse um dos bêbedos, dirigindo-se a Karp. — É maneira de se falar aos amos? Que julgas tu? Imbecil, sim, és um imbecil — disse o outro. Duas horas mais tarde estacionavam os carros no pátio de Bogutcharovo. Os camponeses atarefavam-se a carregar as bagagens dos amos enquanto Drone, que, a pedido da princesa, fora solto do sótão onde o haviam encerrado, ia dando as suas ordens no meio deles. — Que isso fique bem arrumado — dizia um homem de grande estatura, de cara cheia e sorridente, ao receber uma caixinha das mãos da criada. — Essa caixa vale dinheiro. Não a ponhas para aí de qualquer maneira. Vê lá se a amarras de maneira que se estrague. Não gosto disso. É preciso que as coisas se façam com consciência, em ordem. Assim, isso mesmo, agora cobre-a com uma serapilheira e põe-lhe em cima um bocado de palha. — Aqui vão livros, muitos livros — dizia outro, que transportava os livros da biblioteca do príncipe André. — Não me toques! Caramba, que é pesado, rapazes! Isto sim, são livros que valem quanto pesam! — Caramba, quem escreveu estes livros não teve tempo para se coçar! — dizia, por seu turno, piscando o olho, com ar de entendido, um rapazola gordo e grandalhão que apontava para os dicionários que vinham em cima. Rostov, que não queria impor-se à princesa, não voltou a casa dela e deixou-se ficar na aldeia até ao momento da partida. Assim que as carruagens se puseram em marcha, montou a cavalo e escoltou-as até à estrada ocupada pelas tropas russas, a umas doze verstas dali. Na estalagem de Iankovo pediu respeitosamente licença para se retirar, permitindo-se, pela primeira vez, beijar-lhe a mão. — Não diga isso, princesa — protestou ele, corando diante da princesa, que lhe agradecia ter-lhe salvo a vida, como ela dizia. — Qualquer comissário da polícia teria feito o que eu fiz. Se estivéssemos aqui só para guerrear com os camponeses, não teríamos deixado o inimigo chegar onde chegou. — E, para mudar de conversa, acrescentou: — Aliás, sinto-me feliz por ter tido a oportunidade de a conhecer. Adeus, princesa, desejo-lhe muitas felicidades e espero que ainda venhamos a encontrar-nos em circunstâncias mais agradáveis. Se não quer que eucore, por amor de Deus, não me agradeça. A princesa, se calava as palavras de gratidão, nem por isso deixava de traduzir na sua resplandecente expressão de enternecido reconhecimento quanto estava agradecida a Rostov. Não podia acreditar que nada tivesse a agradecer-lhe. A seus olhos era indiscutível que, se Rostov ali não tivesse aparecido, teria sido vítima ao mesmo tempo dos camponeses revoltados e dos Franceses. Era para ela um facto que, para a salvar, se expusera aos mais evidentes e terríveis perigos. E também se lhe afigurava incontestável que era um homem de alma alevantada e nobre, pois soubera compreender a sua situação e ter pena da sua dor. Os olhos de Rostov, tão bons e tão honestos, tinham-se enchido de lágrimas quando ela, lacrimosa também, lhe falara da morte do pai e esta recordação estava gravada na sua alma. Quando lhe disse adeus e ficou só, Maria sentiu, de súbito, que os olhos se lhe humedeciam, e foi então que, pela primeira vez, lhe veio ao espírito esta ideia estranha: estaria porventura enamorada? No decurso da jornada para Moscovo, embora a situação não fosse das mais alegres, Duniacha, que ia ao lado da princesa, na mesma carruagem, mais de uma vez pôde observar que ela espreitava pela portinhola com um vago e triste sorriso. «E se realmente eu estivesse enamorada dele?», dizia de si para consigo. Apesar da vergonha que sentia por confessar a si própria que amava um homem pela primeira vez, homem esse que naturalmente não tinha por ela qualquer sentimento especial, consolava-a a ideia de que nunca alguém conheceria o seu segredo e que não era crime gostar, sem o confessar a ninguém, e até ao último dos seus dias, daquele que seria o seu primeiro e último amor. De vez em quando lembrava-se do olhar dele, das suas atenções, das suas palavras cheias de simpatia, e então a felicidade não se lhe afigurava impossível. E era então que Duniacha lhe notava o ar feliz quando olhava pela portinhola. «Tinha de vir a Bogutcharovo e logo naquele momento!», dizia para consigo a princesa Maria. «E tinha sido preciso que a irmã desfizesse o casamento com o príncipe André!» E em tudo isto não podia deixar de ver o dedo da Providência. Quanto a Rostov, a impressão que lhe produzira a princesa Maria era de suavidade e agrado. Sempre que falava dela sentia-se mais alegre, e sempre que os seus camaradas, a cujos ouvidos chegara qualquer coisa arespeito da aventura do camarada em Bogutcharovo, se punham a brincar com ele, dizendo que Rostov fora à procura de palha e achara uma das mais ricas herdeiras da Rússia, zangava-se a bom zangar. E o facto é que se irritava porque a ideia de um casamento com a doce e simpática princesa, possuidora aliás de uma grande fortuna, lhe ocorrera várias vezes sem que ele desse por isso. Pessoalmente, não podia desejar uma esposa melhor. «Aquele casamento, que faria a felicidade da condessa e restabeleceria a situação do próprio pai, talvez não desagradasse à própria princesa», pensava Nicolau, E que faria de Sónia? E a palavra dada? Eis por que Rostov se, irritava quando brincavam com ele por causa da princesa Bolkonski. [XV] Tendo aceitado o comando dos exércitos russos, Kutuzov lembrou-se do príncipe André e expediu-lhe ordem para se apresentar no quartel-general André chegou a Tsarevo-Zaimitch no dia e à hora em que Kutuzov passava a sua primeira revista às tropas. Deteve-se na aldeia, junto da casa do pope, onde estava a carruagem do general-chefe, e sentou-se num banco ao pé do portão para aguardar ali o «Sereníssimo», como toda a gente o tratava agora. Nos campos por detrás da aldeia ressoavam ora os acordes de uma banda militar ora as formidáveis aclamações em honra do novo generalíssimo. A meia dúzia de passos do príncipe André, duas ordenanças, um impedido e um mordomo aproveitavam a ausência do amo e o bom tempo para tomarem o fresco. Um tenente-coronel de hússares, homenzinho trigueiro, de grandes bigodes e patilhas, aproximou-se do portão e, dirigindo-se a André, perguntou-lhe se era efectivamente ali que vivia o Sereníssimo e se regressaria em breve. O príncipe André respondeu-lhe que não pertencia ao estado-maior e que além disso também acabava de chegar. O tenente-coronel de hússares dirigiu-se então a uma das ordenanças de grande uniforme e este disse-lhe, com o desdém peculiar das ordenanças dos generais-chefes pelos oficiais: — Quem? O Sereníssimo? Sim, talvez, talvez não tarde a chegar. Que lhe quer?O tenente-coronel pôs-se a rir do tom da ordenança retorcendo o bigode; apeou-se do cavalo, entregou-o ao impedido e aproximou-se de Bolkonski, inclinando-se ligeiramente. Bolkonski arranjou-lhe lugar no banco. O outro sentou- se a seu lado. — Também está à espera do generalíssimo? — perguntou o tenente-coronel. — Tenho ouvido dizer que é pessoa para receber toda a gente. Graças a Deus! Se ainda fosse um desses papa-chouriços, que grande trapalhada! Razão tinha Ermolov quando pediu que o promovessem a alemão. Talvez agora os Russos também tenham o direito de falar! Só o diabo é que sabe o que se tem feito até hoje. Sempre a recuar, sempre a recuar. Esteve na frente? — Tive o prazer — respondeu o príncipe André — não só de participar da retirada, mas também de perder o que tinha de mais querido, meu pai, que morreu de desgosto, sem alar rios meus bens e na casa paterna. Sou de Smolensk. — Ah! É o príncipe Bolkonski? Muito prazer em conhecê-lo, Eu sou o tenente- coronel Denissov, mais conhecido por Vaska — disse Denissov, apertando-lhe a mão e fitando-o com afectuoso interesse. — Sim, eu soube... — acrescentou com simpatia. E, após alguns momentos de silêncio, continuou: — É uma verdadeira guerra de citas. Tudo isto está certo menos para aqueles que têm de dar o corpo ao manifesto. Com que então, é o príncipe Bolkonski?... — Abanou a cabeça. — Muito prazer, príncipe, muito prazer em conhecê-lo — repetiu, com um sorriso triste, apertando-lhe de novo a mão. O príncipe André conhecia Denissov através do que Natacha lhe dissera a respeito do seu primeiro namorado. Esta lembrança era para ele ao mesmo tempo agradável e penosa e fazia-o evocar recordaç5es dolorosas nos últimos tempos muito longe das suas preocupações, embora sempre a miná-lo no fundo do seu coração. De então para cá experimentara já tantos abalos morais, e tão graves — o abandono de Smolensk, a sua visita a Lissia Gori, a notícia recente da morte do pai —, que as recordações antigas o tinham abandonado havia muito ou pelo menos não agiam sobre ele com o mesmo poder. Para Denissov, o nome de Bolkonski evocava toda uma série de imagens de um passado longínquo e poético, esse dia em que, depois da ceia e da romança cantada por Natacha, lhe fizera, a essa garota de quinze anos, nem sabia como, uma verdadeira declaração de amor. Sorriu, lembrando-se do seu romance de então, e logo em seguida voltou aoassunto das suas constantes e apaixonadas preocupações. Tratava-se do plano de campanha que imaginara durante a retirada estando de serviço nos postos avançados. Apresentara-o a Barclay de Tolly e pensava agora submetê-lo à apreciação de Kutuzov. Este plano baseava-se no facto de as linhas de operação dos Franceses serem muito extensas. Segundo ele, o que era preciso, em vez de os atacarem de frente e lhe cortarem o passo, ou até mantendo-se a mesma táctica, era atacarem-lhes as linhas de comunicação. Principiou a expor este plano ao príncipe André. — Eles não se podem aguentar com uma linha assim. É impossível e eu sou capaz de lha cortar: dêem-me quinhentos homens e acabo com ela, palavra de honra! O único sistema eficaz é a guerra de guerrilhas. Denissov levantou-se e em gestos exuberantes principiou a expor os seus planos. Enquanto ele falava, aclamações mais indistintas e mais prolongadas, que se misturavam com a música e os cantos, chegavam dos lados onde decorria a parada militar. A povoação estava cheia do tropear dos cavalos e dos gritos dos soldados, — Aí vem ele — gritou um cossaco, à porta do pátio — aí vem ele! Bolkonski e Denissov aproximaram-se do portão onde se perfilava uma esquadra de soldados, a guarda de honra, e viram Kutuzov cavalgando um cavalito balo. Atrás dele vinha uma escolta de generais assaz considerável. Barclay cavalgava a seu lado; uma chusma de oficiais a cavalo ia e vinha, no flanco da coluna e na retaguarda, gritando: «Hurra!» Os ajudantes-de-campo galoparam para entrar no pátio adiante do general- chefe. Kutuzov esporeava impacientemente o seu cavalo, que, vergando sob tão pesado fardo, caminhava a passo. A cada momento o Sereníssimo inclinava a cabeça e levava a mão ao gorro branco, de cavaleiro da guarda, sem pala e agaloado de encarnado. Ao chegar junto da guarda de honra, formada por heróicos granadeiros, a maior parte condecorados e que lhe apresentavam armas, fitou-os por momentos em silêncio com o seu olhar penetrante de superior e voltou-se para a chusma de generais e oficiais de outras patentes que o rodeavam. No seu rosto surgiu de súbito uma expressão irónica: encolheu os ombros com um gesto de surpresa. — E recuamos, recuamos com rapazes tão valentes como estes! — exclamou ele. — Bom, até à vista, general — acrescentou, e, dando de esporas ao cavalo,meteu pelo portão, passando diante de André e Denissov. «Hurra! Hurra! Hurra! », gritavam atrás dele. Desde a última vez que o príncipe André o vira, Kutuzov ainda engordara mais, e parecia encolhido, esbarrondando-se em gordura. Mas o seu olho torto, a cicatriz e a expressão de cansaço da sua fisionomia e de toda a sua pessoa não tinham mudado. Vestia o redingote do uniforme, pingalim a tiracolo, suspenso de uma correia fina, e trazia na cabeça o gorro branco dos cavaleiros da guarda. Pesadamente escarranchado e balouçando-se em cima do selim do seu valente cavalinho, assobiava entre dentes quando penetrou no pátio. Na sua cara via-se a satisfação de estar finalmente em paz e de poder descansar depois de uma estopada. Tirou o pé esquerdo do estribo, e, torcendo o corpo e franzindo as sobrancelhas com o esforço que fazia, lá conseguiu passar a perna por cima da sela. Depois apoiou-se no joelho e, tossindo, deixou-se cair nos braços dos cossacos e dos ajudantes-de-campo que o amparavam. Endireitou-se, passeou em volta o olho pisco, olhou para o príncipe André sem o conhecer e no seu andar pesadão encaminhou-se para o alpendre. Fu... fu... fu... !, continuava a assobiar, enquanto relanceava de novo os olhos para o príncipe André. E alguns segundos foram precisos, como é vulgar entre os velhos, para reconhecer aquela cara. — Ah!, viva, príncipe! Viva, meu amigo! Vamos. — disse penosamente, lançando um olhar à sua roda, e subiu, pesado, os degraus do alpendre, que rangiam sob os seus pés. Desabotoou-se e sentou-se num banco que estava no patamar. — Teu pai como está? — Recebi ontem a notícia do seu falecimento — disse laconicamente o príncipe André. Kutuzov fitou-o de olhos muito abertos e assustados. Depois tirou o gorro e persignou-se. — Que Deus o tenha em Sua santa glória! Que a vontade de Deus seja feita em todos nós! — Suspirou fundo e calou-se. — Apreciava-o e estimava-o muito e sinto sinceramente a tua dor. Abraçou o príncipe André, apertando-o contra o peito e assim o conservou por muito tempo. Quando dele se desprendeu, André viu que lhe tremiam os beiços grossos e que tinha os olhos cheios de lágrimas. Suspirou e para se levantarapoiou-se no banco com as duas mãos. — Vamos, anda daí a minha casa para conversarmos — disse ele. Nesse mesmo instante, porém, Denissov, tão destemido diante dos superiores como perante o inimigo, apesar de os ajudantes-de-campo terem tentado detê-lo no alpendre, gritando-lhe qualquer coisa em voz baixa e furiosa, galgara ousadamente os degraus, fazendo retinir as esporas. Kutuzov, com as mãos ainda apoiadas no banco, olhou para ele com ar pouco satisfeito. Denissov declinou o seu nome e declarou ter de comunicar a Sua Excelência uma coisa da maior importância para bem da pátria. O general percorreu-o com o seu olhar fatigado e num gesto cheio de enfado, cruzando as mãos sobre o ventre, repetiu: — Para bem da pátria? Bem, de que se trata? Fala. Denissov corou como uma donzela, o que não deixava de ser estranho naquela velha cara de bêbedo, com seus grandes bigodes, e principiou a expor um plano de rotura das linhas de comunicação do inimigo entre Smolensk e Viazma. Vivera naquela região e conhecia o sítio muito bem. O plano parecia, indiscutivelmente, de primeira ordem, quanto mais não fosse por causa da convicção com que ele o expunha. Kutuzov, de olhos postos no chão, erguia-os de quando em quando para mirar o pátio da isbá vizinha, como se esperasse ver sair dali alguém indesejável. Com efeito, enquanto Denissov falava, apareceu um general com uma pasta debaixo do braço. — Então? — disse Kutuzov, interrompendo a exposição de Denissov. — Esta preparado? — Sim, Excelência — volveu o general. Kutuzov abanou a cabeça. Parecia dizer: «Como é possível um só homem fazer tudo isto?» E continuou a ouvir Denissov. — Dou-lhe a minha palavra de honra de oficial russo — prosseguia este — de que cortarei as comunicações de Napoleão. — Kiril Andreievitch Denissov, o intendente— geral, é teu parente? — perguntou Kutuzov, interrompendo -o. — É meu tio, Excelência. — Oh, fomos amigos — continuou ele, alegremente. — Bom, bom, meu rapaz, fica aqui no estado-maior. Voltaremos a falar disso amanhã. Com um aceno de cabeça amistoso, voltou-se e estendeu as mãos para ospapéis que lhe trouxera Konovnitsine. — Vossa Excelência não quer entrar? — disse o general de serviço em tom pouco satisfeito. — Há aqui planos para examinar e alguns documentos para assinar. Nesse momento surgiu um ajudante-de-campo que vinha anunciar estar tudo em ordem na casa. Mas Kutuzov não queria entrar sem se ver livre de tudo aquilo. Franziu as sobrancelhas. — Não, diz que tragam uma mesinha e despacharei aqui mesmo o que há a fazer. E, tu, não te vás embora — acrescentou, dirigindo-se ao príncipe André. André deixou-se ficar no alpendre, ouvindo o que dizia o general de serviço. Enquanto Kutuzov despachava, André apercebeu o ciciar de uma voz feminina e o roçagar de um vestido de seda. Atrás da porta, vestida de cor-de-rosa, com uma fita lilás na cabeça, estava uma linda mulher, bem fornida de carnes, de belas cores, com um tabuleiro na mão, esperando ansiosamente que o general-chefe entrasse em casa. Um ajudante-de-campo explicou em voz baixa que era a dona da casa, a mulher do pope, que se dispunha a oferecer o pão e o sal a Sua Excelência. O marido já recebera o Sereníssimo na igreja, de cruz alçada, e ela ia acolhê-lo em sua casa... «Não é qualquer peste», comentou o ajudante, sorrindo. Kutuzov, ao ouvir isto, voltou a cabeça. Escutava o relatório do general que se referia especialmente à crítica da posição de Tsarevo-Zaimitch, e ouvia-o exactamente como escutara Denissov e como sete anos antes seguira a discussão no conselho de guerra de Austerlitz. Era evidente que ouvia pelo facto de ter ouvidos e porque, apesar do algodão que lhe rolhava um deles, não podia deixar de ouvir. Mas também era certo que nada que aquele general lhe dissesse seria capaz de o surpreender ou sequer interessar, a ele, que de antemão sabia tudo quanto lhe pudessem dizer e que escutava apenas porque assim tinha de ser, pela mesma razão que se tem de ouvir até ao fim um ofício divino. O que Denissov expusera era prático e sensato e o que o general de serviço dissera ainda era mais prático E, mais sensato. Mas a verdade é que Kutuzov menosprezava tanto o saber como a inteligência e estava certo de que havia de ser uma coisa muito diferente — uma coisa independente por completo do saber e da inteligência — que resolveria, a questão. O príncipe André observava cuidadosamente o jogo fisionómico do general-chefe e a única expressão que lhe podia ler no rosto era a, de enfado, enfado esse que desapareceu quandoouviu o roçagar do vestido e se refreou para salvar as conveniências, Era evidente que Kutuzov desdenhava da inteligência, do saber, e até dos sentimentos patrióticos de Denissov, e se mostrava semelhante desdém não era por causa da inteligência dele, do seu saber, do seu patriotismo, de que não fazia o mais pequeno estendal. Era, sim, por causa da sua idade e da sua experiência da vida. A única medida que espontaneamente tomou dizia respeito aos actos de bandoleirismo praticados pelas tropas russas. No fim do relatório, o general apresentou ao Sereníssimo para assinar um documento relativo a uma queixa dirigida às autoridades militares por um proprietário a quem haviam ceifado verde um campo de aveia. Kutuzov deu um estalido com a língua e abanou a cabeça. — Fogo com eles... Estufa com eles... Digo-te de uma vez para sempre, meu caro, tudo isso para o fogo! Que ceifem o trigo, que queimem a lenha quantas vezes quiserem. Nem o proíbo nem o consinto; o que não posso é passar o tempo a fazer inquéritos a tal respeito. É inevitável. Quando se parte lenha. é certo e sabido que as lascas vão pelo ar, — E relanceando de novo os olhos ao papel: — Oh, esta meticulosidade alemã! — exclamou, abanando a cabeça. [XVI] — Bom, agora já está tudo! — disse Kutuzov, enquanto assinava o último papel. Ergueu-se com esforço e, endireitando o grosso pescoço branco, dirigiu-se para a porta de cara satisfeita. A mulher do pope, ruborizada pela emoção, apanhou, apressadamente, o prato que não conseguira apresentar a tempo apesar dos seus longos preparativos. Com uma profunda reverência ofereceu-o a Kutuzov. O general piscou o olho, sorriu e, acariciando-lhe o queixo, disse: — Que linda que ela é! Obrigado, minha flor! Tirando da algibeira das calças algumas moedas de ouro pô-las em cima da bandeja. «Bom, bom, isto não vai mal!», dizia ao dirigir-se para o quarto que lhe fora destinado. A mulher do pope, com um sorriso que lhe abria covinhas na cara rosada, seguia atrás dele. Um ajudante-de-campo veio depois ao alpendreprocurar o príncipe André, convidando-o para almoçar. Meia hora mais tarde foi novamente chamado para junto do general-chefe. Kutuzov estava recostado numa poltrona com o uniforme desabotoado. Tinha na mão um livro francês, que pousou, quando viu entrar o príncipe André, depois de o ter marcado com a faca de papel. Era Les Chevaliers du Cygne, de Madame de Genlis, como o príncipe pôde verificar relanceando a vista para a capa. — Senta-te ali e conversemos — disse Kutuzov. — É triste, muito triste. Mas quero que saibas, meu amigo, que sou para ti como um pai, um verdadeiro pai... O príncipe André contou-lhe tudo quanto sabia sobre os últimos momentos do pai e o que vira em Lissia Gori quando por lá passara. — A que situação nos levaram... a que situação nos levaram! — exclamou, de súbito, Kutuzov, numa voz comovida, ao ver, com toda a nitidez, pelo relato do príncipe André, o estado em que a Rússia se encontrava. — Mas paciência, paciência! — acrescentou, numa inflexão irritada, e, para não prosseguir numa conversa que o perturbava, disse: — Mandei chamar-te para que ficasses ao pé de mim. — Estou-lhe muito grato, Excelência — respondeu André — mas receio já para nada servir nos serviços do estado-maior... Kutuzov notou o sorriso com que ele sublinhara estas palavras e interrogou-o com os olhos. -... E além disso — acrescentou — estou muito habituado ao meu regimento, estimo os meus oficiais e os meus soldados, que, segundo creio, também gostam de mim. Custar-me-ia muito separar-me deles! Se recuso a honra de ficar junto de Vossa Excelência, pode acreditar... Uma expressão subtil, bondosa e ao mesmo tempo ligeiramente irónica iluminou o rosto balofo de Kutuzov. Interrompeu-o. — Lamento, podias ser-me útil; mas tens razão, tens razão. Não é aqui que precisamos de homens. Conselheiros não faltam, mas homens a valer são raros. Os regimentos não seriam o que são se todos estes conselheiros que para aí há lá estivessem a prestar serviço como tu. Lembro-me de ti em Austerlitz... Lembro-me, lembro-me, ainda te estou a ver com a bandeira na mão. — Esta evocação fez perpassar pelo rosto de André um fugitivo rubor. Kutuzov puxou-lhe por um braço e apresentou-lhe a cara, e André viu de novo que os olhos do velho estavam cheios de lágrimas, Embora soubesse que Kutuzovera homem que chorava com facilidade, e que o acolhia assim carinhosamente, com tanta simpatia, por causa da perda que ele sofrera, o príncipe André sentiu-se lisonjeado e feliz com o facto de o general-chefe lembrar Austerlitz. — Continua no caminho que traçaste. Esse, sim, é o caminho da honra. — Ficou por momentos calado. — Fizeste-me muita falta em Bucareste; não tinha em quem confiar. — E, mudando de assunto, pôs-se a falar da guerra na Turquia e da paz concluída. — Sim, fizeram-me muitas críticas — continuou —, tanto pela guerra como pela paz que assinei. Sim. Mas tudo acabou bem. Quem espera sempre alcança. E lá não havia menos conselheiros do que aqui... — acrescentou, retomando um assunto que, pelo visto, o preocupava. — Ah! Os conselheiros, os conselheiros! Se lhes temos dado ouvidos a todos lá na Turquia, não teríamos assinado a paz e não teríamos posto termo à guerra. Acabar com as coisas, está certo, mas fazer tudo a correr dá muitas vezes resultado contrário. Se Kamenski não tem morrido, estaria perdido. Precisava de trinta mil homens para tomar as fortalezas. Tomar uma fortaleza não é difícil; difícil é ganhar tinia campanha. E para isso não é preciso tomar de assalto e, atacar, mas ter «paciência e tempo diante de nós». Kamenski deu ordens aos seus soldados para tomarem Rustchnk, mas eu, apenas com paciência e tempo, tomei mais fortalezas do que Kamenski e fiz com que os Turcos comessem carne de cavalo. — Abanou a cabeça. — E podes acreditar no que te digo: os Franceses também — prosseguiu com vivacidade, batendo na arca do peito —, os Franceses também a hão-de comer. — E as lágrimas brilharam-lhe de novo nos olhos. — Entretanto temos de aceitar o combate? — interrompeu o príncipe André. — Talvez, se todos quiserem. Então nada haverá a fazer... Mas acredita no que te digo, meu caro: nada há que valha estes dois soldados: a paciência, e o tempo! Eles farão tudo. Mas os conselheiros não vêem por esse prisma, eis o mal. Uns querem, outros não. E então que se há-de fazer? — Calou-se, como se esperasse resposta à sua pergunta. — Bom, que farias tu? — perguntou ele, de olhos brilhantes, com uma expressão profunda e penetrante. — Pois bem, vou dizer-te o que é preciso fazer — prosseguiu, vendo que André não respondia.— Vou dizer-te o que é preciso fazer e o que eu faço. Na dúvida, meu caro, abstém-te — acrescentou, destacando as palavras.— Bem, adeus, meu amigo: lembra-te de que compartilho, de todo o coração, da tua dor e para ti nem sou Sereníssimo, nem príncipe, nem general-chefe, mas muito simplesmente teu pai. Se precisares dealguma coisa, dirige-te a mim. Adeus, meu caro. Apertou-o mais uma vez nos braços e beijou-o. E, ainda o príncipe André não transpusera o limiar da porta, já ele, soltando um suspiro apaziguador, se engolfava de novo na leitura do romance Les Chevaliers du Cygne. Embora o príncipe André não soubesse explicar como nem porquê, o certo é que voltou para o seu regimento, depois desta conversa, absolutamente descansado quanto à marcha geral da guerra e confiante na pessoa que orientava superiormente as operações. Quanto mais via a ausência de personalidade naquele velho, cuja única arma era, por assim dizer, a experiência, resíduo das paixões, e que, em lugar da inteligência que sabe associar os factos e tirar deles conclusões, apenas tinha a capacidade de contemplar tranquilamente a marcha dos acontecimentos. Tanto mais se persuadia de que, tudo havia de acontecer pelo melhor. «Nada trará de seu, não inventará nem empreendera coisa alguma», dizia de si para consigo. «mas ouvirá e lembrar-se-á de tudo, tudo colocará no seu lugar, não impedirá nada de útil, não consentirá nada de prejudicial. Compreende que há qualquer coisa de mais forte e de mais poderoso que a sua vontade pessoal: a marcha inevitável dos acontecimentos. Sabe vê-los, tem o dom de lhes apreender o valor, e sabe, para os não tolher, abster-se de intervir e anular a sua própria vontade, dirigida deliberadamente para outro objectivo. E sobretudo», concluía André, «inspira confiança, porque o sentimos verdadeiramente russo, apesar de Madame Genlis e dos adágios franceses, pois a verdade é que a voz lhe tremia quando murmurou: A que situação nos levaram!’, e, que soluçava quando garantia que os havia de fazer comer carne de cavalo.» Fora este sentimento, mais ou menos vagamente experimentado por todos, que levara à aprovação unânime., num movimento de entusiasmo nacional, e ao arrepio das intenções dos cortesãos, da escolha de Kutuzov para general-chefe dos exércitos russos. [XVII] Depois da partida do imperador a vida de Moscovo retornara o seu ritmo habitual, e tão habitual, realmente, que era difícil de conceber o entusiasmopatriótico e a exaltação dos últimos dias, e se não chegava quase a compreender como era possível a Rússia estar em perigo e os membros do Clube Inglês poderem ser também filhos da pátria prontos para todos os sacrifícios por ela. A única coisa que fazia lembrar o estado de espírito dos dias em que o imperador estivera em Moscovo era a execução do pedido de homens e de dinheiro, o qual, revestindo aspecto legal e oficializado, se tornara desde logo inevitável. A aproximação do inimigo não levara os Moscovitas a acre— ditar que a situação se, tivesse tornado mais séria; examinavam-na, pelo contrário, com mais leviandade, como costuma acontecer quando uma catástrofe se aproxima. Na hora do perigo duas vozes, igualmente fortes, se ouvem na alma do homem: uma aconselha sempre, prudentemente, que cada um de nós se dê conta exacta do perigo que o ameaça e trate de procurar maneira de o evitar; a outra, ainda com maior prudência, diz-nos ser muito penoso e dolorosíssimo pensar no perigo, visto não estar nas possibilidades do homem prever e furtar-se à marcha dos acontecimentos, e o melhor é não nos preocuparmos com as coisas tristes antes do facto consumado e só pensarmos nas coisas agradáveis. O homem isolado obedece, regra geral, à primeira destas vozes; em sociedade, pelo contrário, submete-se à segunda. Era o que de facto estava a acontecer com os habitantes de Moscovo. Nunca as pessoas ali se haviam divertido tanto como naquele ano. Os cartazes de Rostoptchine representavam uma taberna, um taberneiro e um burguês moscovita, Karpuchka Tchiriguine, que «tendo sido recrutado, depois de beber um copo a mais, ouviu dizer que Bonaparte queria ir a Moscovo, se zangara e proferira palavras grosseiras contra todos os franceses e, saindo da taberna, se pusera a falar ao povo reunido debaixo da tabuleta do taberneiro». Estes cartazes eram lidos e comentados e o mesmo acontecia às últimas rimas de Wassili Lvovitch Puchkine. No clube, numa das salas, reuniam-se os sócios para comentar estes cartazes, e muitos riam-se da maneira como Karpuchka troçava dos Franceses, dizendo que «inchariam por terem comido couves, que rebentariam com as papas que tinham devorado, que haviam de estourar com uma indigestão de chtchi, que eram todos anões, que bastava uma camponesa com uma forquilha para dar cabo de três franceses». Havia outros que não estavam de acordo com estas graçolas, qualificando-as de vulgares e de estúpidas. Contava-se que Rostoptchine expulsara os Franceses de Moscovo, e mesmo todos os estrangeiros de maneira geral, poisentre eles havia espiões e agentes de Napoleão. Mas se se falava nisso era sobretudo para poderem citar-se os ditos do governador. Expediam-se os estrangeiros em barcaças para Nijni Novgorod, e Rostoptchine dizia-lhes: «Tenham juízo, entrem no barco, e não façam dele a barca de Caronte.» Dizia-se já terem saído de Moscovo todos os serviços administrativos e acrescentava— se, repetindo um gracejo de Chinchine, que os Moscovitas deviam estar por este facto muito reconhecidos a Napoleão. Contava-se também que o regimento municiado por Mamonov lhe custaria oitocentos mil rublos, que Bezukov ainda gastara mais do que isso com os seus soldados e que — lindo acto da sua parte — ele próprio envergaria o uniforme, caracolando à frente dos seus homens, nada tendo de pagar os que viessem admirá-lo nessa atitude marcial. — A ninguém perdoa — dizia Júlia Drubetskaia, enquanto enrolava um montinho de ligaduras entre os dedos delgados cheio de anéis. Júlia pensava sair de Moscovo no dia seguinte e organizara uma festa de despedida. — Bezukov é ridículo, mas é tão bom, tão gentil! Que prazer pode ter em ser tão cáustico? — Multa! — exclamou um jovem de uniforme de miliciano, a quem Júlia chamava «meu cavaleiro» e que ia acompanhá-la a Nijni Novgorod. No salão de Júlia, como em muitos outros de Moscovo, combinara-se não se falar senão russo, pagando multa quem pronunciasse palavras francesas, multa essa que reverteria para a comissão de socorros. — Outra multa pelo galicismo — interveio um literato que estava presente, «que prazer... pode ter» não é russo. — Ninguém poupa — prosseguiu Júlia, dirigindo-se ao miliciano, sem prestar atenção ao que dizia o homem de letras. — Por cáustico peço desculpa e estou pronta a pagar. Quanto ao galicismo acrescentou para o crítico —, recuso-me a considerar-me responsável. Não tenho nem tempo nem dinheiro, como o príncipe Galitzine, para arranjar um professor e aprender russo. Ai está ele, precisamente. Quando... Não, não, não me apanhará desta vez — disse ela para o miliciano. — Quando se fala do Sol, vêem-se-lhe os raios. — Sorria amavelmente para Pedro com aquela facilidade de mentir tão característica das senhoras da sociedade. — Acabávamos de falar de si. Dizíamos que o seu regimento devia ser com certeza muito melhor do que o de Mamonov.— Oh! Não me fale do meu regimento! — replicou Pedro, beijando-lhe a mão e sentando-se a seu lado.— Se soubesse os aborrecimentos que tenho com ele! — Naturalmente vai comandá-lo, não é verdade? — inquiriu Júlia trocando um sorriso malicioso e trocista com o miliciano. Este último, na presença de Pedro, deixara de ser cáustico e pareceu contrariado ao ver o sorriso de Júlia. Apesar do seu ar distraído e de pobre diabo, Pedro, graças à sua personalidade, paralisava, na sua presença, qualquer tentativa de troça. — Não, não — disse Pedro, rindo e mirando o rotundo corpo. — Que belo alvo seria eu para os Franceses, e tenho cá as minhas dúvidas quanto a ser capaz de montar a cavalo! Entre as pessoas de quem se falou aconteceu aludir-se também à família Rostov. — Tenho ouvido dizer que as coisas não vão bem lá por casa — disse Júlia. — Aquele conde é uma pessoa inútil. Os Razumovski queriam comprar-lhe a casa e a quinta de Moscovo, mas não vejo jeito. Pedem muito dinheiro. — Consta-me que a venda se fará por estes dias — observou alguém —, se bem que me parece rematada loucura comprar agora qualquer coisa em Moscovo. — Porquê? — interrogou Júlia. — Acha que Moscovo corre perigo? — Então porque se vai embora? — Eu? Que pergunta tão estranha. Vou-me embora porque... porque toda a gente se retira da cidade. E além disso também não tenho jeito nem para Joana d’Arc nem para amazona. — Sim, sim, esta claro. Deixe-me ver mais trapos. — Se ao menos soubessem administrar o que é seu, poderiam pagar as dívidas — prosseguiu o miliciano, voltando a falar dos Rostov. — Sim, é um bom velho, mas um pobre sire. Mas que estarão eles aqui a fazer há tanto tempo? Há muito que deveriam ter regressado à aldeia. Não está já restabelecida a Nathalie? — perguntou Júlia, dirigindo-se a Pedro com um sorriso malicioso. — Estão à espera do filho mais novo — replicou este. — Foi incorporado no regimento dos cossacos de Obolenski e mandado para Bielaia Tserkov, É lá que estão a formar o regimento. Mas os pais conseguiram transferi-lo para o meu e aguardam a sua chegada de um dia para o outro. Há muito que o conde se queria ir embora, mas a condessa por coisa nenhuma quis partir antes de tornar a ver ofilho. — Encontrei-os antes de ontem em casa dos Arkarov. Nathalie está mais bonita e outra vez alegre, cantou uma romança. Muito depressa esquecem certas pessoas... — Que se passa? — perguntou Pedro com certa irritação. Júlia sorriu. — Bem sabe, conde, que cavalheiros como o senhor já não se encontram senão nos romances de Madame Souza. — Que cavalheiros? Que vem a ser isso? — teimou Pedro, corando. — Então, meu querido conde, não se faça de novas, não se fala de outra coisa em Moscovo. Admiro-o muito, palavra de honra! — Multa! Multa! — exclamou o miliciano. — Credo. Não pode uma pessoa abrir a boca. Que maçada! — De que é que se trata? — perguntou Pedro, levantando-se. — Então, conde. Como se não soubesse! — Não sei absolutamente nada — volveu Pedro. — O que sei é que o conde é amigo de Natacha; por isso... Eu, por mim, sempre me dei melhor com Vera. Aquela querida Vera. — Não, senhora — prosseguiu Pedro com a mesma voz irritada. — Não é verdade que eu me tenha transformado em pajem de Mademoiselle Rostov e há perto de um mês que não vou a sua casa. Não posso atingir o alcance da sua crueldade... — Qui s’excuse s’accuse (Provérbio francês que pode corresponder, em tradução livre, a: «Quem muito se justifica, alguma culpa tem.» (N, dos T.) — pronunciou Júlia, sorrindo, enquanto sacudia a ligadura que tinha na mão, e, para ser ela a dizer a última palavra sobre o assunto, mudou repentinamente de conversa. — Querem saber o que me constou hoje? Que a pobre Maria Bolkonskaia chegou ontem. Já sabiam que lhe tinha morrido o pai? — Será possível? E onde estará ela? Gostava muito de a ver! — exclamou Pedro. — Passei ontem a noite com ela. Deve partir hoje ou amanhã com o sobrinho para a quinta nos arredores de Moscovo. — E ela, como está? — inquiriu Pedro. — Está bem, um pouco triste. E quer saber a quem deve ela a vida? É um verdadeiro romance. Ao Nicolau Rostov. Cercaram-lhe a quinta, quiseram matá-la,havia já gente ferida. E ele foi em seu auxílio e salvou-lhe a vida... — Mais um romance — comentou o miliciano. — Estou a ver que esta debandada geral foi inventada para casar as solteironas. Primeiro a Catiche, agora, a princesa Bolkonskaia. — Aqui para nós, tenho a impressão de que ela está um pouco derretida com o jovem. — Multa! Multa! Multa! — Como hei-de eu dizer isto em russo? Capítulo XVIII Ao chegar a casa, Pedro encontrou dois editais de Rostoptchine afixados naquele mesmo dia. No primeiro dizia-se não ser verdade ele ter dado ordens proibindo que se saísse da cidade, e que, pelo contrário, com grande satisfação veria afastarem-se as senhoras e as esposas dos comerciantes. «Se houver menos medo, dar-se-á menos à língua», acrescentava. «Mas que esse malfeitor não entrará em Moscovo com a minha vida o garanto-» Estas palavras levaram Pedro a acreditar pela primeira vez que os Franceses entrariam na cidade. O segundo edital dizia que o quartel-general russo estava em Viazma, que o conde Wittgenstein derrotara os Franceses e que, como havia muitos habitantes desejosos de se armar, punha um carregamento de armas à disposição de todos no arsenal — sabres, pistolas, espingardas —, que podiam ser adquiridas por pouco dinheiro. O tom dos editais já nada tinha de divertido como os que até ai haviam servido de pretexto para os gracejos de Tchiriguine. Pedro ficou pensativo. Era evidente que aquela grande nuvem tormentosa que ele tanto desejava, embora com involuntário horror, essa feia nuvem se aproximava. «Deverei alistar-me no serviço militar e partir para a guerra ou esperar?», perguntava Pedro aos seus botões pela centésima vez. Pegou num baralho de cartas que estava em cima de uma mesa e pôs-se a fazer paciências. «Se conseguir fazer esta paciência», dizia de si para consigo enquanto ia embaralhando as cartas de olhos fitos no tecto, «se conseguir fazer esta paciência, quer dizer... Que quer dizer?...» Não teve tempo de concluir. Nesse mesmo instante a voz da princesa mais velha ressoou à porta, perguntando se podia entrar. «Quer dizer que devo partir para a guerra», concluiu Pedro. — Entre, entre! – gritou. Apenas a mais velha das princesas, a do longo busto e cara inexpressiva,continuava a viver sob o tecto de Bezukov. As duas mais novas tinham casado. — Perdoe-me, meu primo, vir incomodá-lo — disse ela, num tom repreensivo e cheio de emoção — Temos de decidir, finalmente, qualquer coisa. Que quer isto dizer? Está toda a gente a sair de Moscovo e o povo revoltado. Que ficamos nós aqui a fazer? — Ao contrário, tudo parece caminhar muito bem, minha prima — tornou Pedro, no tom faceto que habitualmente tomava ao falar-lhe, única maneira de esconder o embaraço que lhe causava o papel de benfeitor que representava aos olhos dela. — Que diz? A caminhar bem? Onde foi descobrir isso? Ainda hoje me contou a Várvara Ivanovna que as nossas tropas se têm portado muito bem. Sim, devemos sentir-nos orgulhosos! Mas o pior é que o povo começa a revoltar-se, não quer obedecer. Até a minha criada tem sido grosseira para comigo. Pouco falta para que nos batam. Não se pode já passar pelas ruas. E o pior de tudo que os Franceses estão aí a chegar, hoje ou amanhã. Porque esperamos nós? A única coisa que lhe peço, meu primo, é que dê as suas ordens para me levarem a Petersburgo. Sei muitíssimo bem que não sou pessoa para acatar o domínio de Bonaparte. — Que está a dizer, minha Prima? Quem lhe meteu tal coisa na cabeça? Ao contrário... — Não me submeterei ao seu Napoleão. Os outros que façam o que quiserem... E se o senhor não atender ao que lhe peço... — Que ideia! Vou dar ordens imediatamente. A princesa parecia desconcertada por ter perdido aquela oportunidade de se zangar com alguém. Deixou-se cair numa cadeira, enquanto entre dentes ia murmurando fosse o que fosse. — Muito mal a informaram — continuou Pedro. — Na cidade reina o sossego e não há perigo algum. Olhe o que eu estava a ler... — Mostrou-lhe os editais. — Diz aqui o conde que o inimigo não entrará em Moscovo, que o garante com a sua vida. — Olhe, esse seu conde! — exclamou a princesa, mal-humorada. — Esse seu conde é um hipócrita, um miserável, que está farto de incitar o povo à revolta. Pois não foi ele quem escreveu num dos seus estúpidos editais ser preciso agarrar fosse quem fosse pela gola do casaco e metê-lo na cadeia? Que estupidez! E aquem assim proceder promete-lhe honra e glória. Ora aí tem o, resultado de tudo isto. Várvara Ivanovna contou-me que a iam quase matando na rua por estar a falar francês... — Ora... Que diabo... Tomam as coisas demasiado a sério. — murmurou Pedro, que prosseguia com a sua paciência. Embora a tivesse conseguido fazer, Pedro não foi para a guerra, e ficou em Moscovo, de dia para dia mais vazia, e sempre agitada pela mesma inquietação, a mesma incerteza, num terror a que se misturava alegria, sempre na expectativa de terríveis acontecimentos. No dia seguinte, ao fim da tarde, a princesa abalou e Pedro recebeu a visita do seu administrador, que lhe vinha dizer ser impossível reunir o dinheiro necessário para equipar o regimento sem vender uma das suas propriedades. Aliás, teve o cuidado de lhe fazer compreender que semelhantes fantasias acabariam por arruiná-lo, tão certo como ele ser seu administrador. Ao ouvir isto, Pedro só a muito custo pôde esconder o riso. — Pois venda — disse-lhe ele. — Que havemos de fazer? Agora não posso voltar atrás com a minha palavra. Quanto piores a situação geral e os seus negócios pessoais, tanto maior a sua alegria, tanto mais evidente a catástrofe que esperava para breve. Na cidade já por assim dizer ninguém das suas relações restava. Júlia abalara, a princesa Maria também. Dos seus íntimos, apenas os Rostov continuavam em Moscovo, mas Pedro não mais os visitara. Nesse dia, para se distrair, foi à aldeia de Vorontzovo ver um grande balão imaginado pelo engenheiro Leppich com vista a aniquilar o inimigo. Iam experimentá-lo na intenção de o largar no dia seguinte. O balão ainda não estava pronto, mas Pedro veio a saber que o imperador mostrara desejos de o ver montado. A tal respeito, Sua Majestade endereçara a carta seguinte ao conde Rostoptchine: Assim que Leppich estiver preparado, arranje-lhe uniu tripulação de homens de confiança e inteligentes para a barquinha do balão e mande um correio prevenir o general Kutuzov. Já o pus ao corrente do assunto. Faça o favor de recomendar a Leppich que repare nolocal onde descer pela primeira vez, para que se não engane e não caia nas mãos do inimigo, É indispensável que os seus movimentos sejam combinados previamente com o general- chefe. No regresso de Vorontzovo, ao passar na Praça Bolotnaia, Pedro viu uma grande multidão junto de Lobnoie Miesto. Mandou parar o carro e apeou-se. Tratava-se da flagelação de um cozinheiro francês acusado de espionagem. O castigo terminara e o carrasco desatava do potro um homem corpulento, de suíças ruivas, meias azuis e colete verde, que gemia dolorosamente. Outro delinquente, magro e pálido, esperava a sua vez. Pelo tipo, também este era francês. Assustado e lívido, Pedro abriu caminho por entre a multidão. — Que foi? Que fizeram eles? — perguntou. Mas tão absorvida estava no espectáculo a turba de funcionários, burgueses, comerciantes, mulheres de golinhas e peliças, que ninguém lhe respondeu, O rotundo homem levantou-se, franzindo o sobrolho, encolheu os ombros e desejando, sem dúvida, mostrar firmeza vestiu o casaco, sem olhar para a multidão que e rodeava, embora lhe tremessem os lábios e vertesse algumas lágrimas, furioso consigo mesmo, como acontece aos homens de temperamento sanguíneo. «A turba falava alto para afogar talvez um assomo de piedade que ameaçava crescer», pensou Pedro. «É o cozinheiro de um príncipe...» — Então, mussiu? Pelo que se vê, o molho russo é um bocado picante para o paladar francês... Pica-te na língua — disse um manga-de-alpaca, todo encarquilhado, que estava ao lado de Pedro, quando viu o francês chorar. E depois olhou em volta, como à procura de aplauso para o seu gracejo, Algumas pessoas puseram-se a rir, outras continuaram a olhar, apavoradas, o carrasco, que ia despindo o segundo sentenciado. Pedro resfolgou, franziu as sobrancelhas e, dando de súbito meia volta, regressou à sua carruagem, não sem continuar a resmungar qualquer coisa entre dentes. Durante o resto do trajecto várias vezes estremeceu e soltou exclamações — o que levou o cocheiro a perguntar-lhe: — Que diz, patrão? — Aonde vais? – gritou. — Pedi-o, quando viu que o cocheiro se dirigia àLubianka. — Então não foi para casa do general governador que me mandou seguir? — perguntou o cocheiro. — Imbecil! Animal! — vociferou Pedro, insultando o cocheiro, coisa que raramente lhe acontecia. — Disse-te que me levasses para casa. Depressa! — «Tenho de partir hoje mesmo», disse com os seus botões. A multidão em volta dos flagelados de. Lobnoie Miesto convencera-o definitivamente a não permanecer por mais tempo em Moscovo, seguindo nesse mesmo dia para o campo de batalha. Julgou mesmo que o dissera já ao cocheiro ou que este devia conhecer as suas intenções mesmo sem nada lhe dizer. Ao chegar a casa mandou chamar Evstafievitch, o cocheiro, um homem que tudo conhecia, sabia tudo, e era conhecido de toda a gente em Moscovo. Deu-lhe as suas instruções, dizendo-lhe que partia naquela mesma noite para Mojaisk, a fim de se incorporar no exército, ordenando-lhe que mandassem para ali os seus cavalos de sela. Não era coisa que se fizesse num só dia, por isso, a conselho de Evstafievitch, resolveu adiar a partida para o dia seguinte de modo a que ele tivesse tempo de lhe mandar preparar as mudas. No dia 24 o tempo melhorou, depois de uma quadra de mau cariz, e nesse mesmo dia, após o jantar. Pedro deixava Moscovo. Já noite, ao mudar de cavalos em Perkuchkovo, soube que nessa mesma tarde se travara uma grande batalha, Dizia-se que até a terra tremera com o canhoneio. Perguntando Pedro quem ganhara a batalha, ninguém lhe soubera responder. Tratava-se da batalha de 24, em Chevardino. De madrugada chegava a Mojaisk. Todas as casas de Mojaisk estavam ocupadas pelas tropas e na estalagem onde o aguardavam o escudeiro e o cocheiro não havia um único quarto: estava tudo tomado pelos oficiais. Tanto em Mojaisk como nas vizinhanças, por toda a parte, só havia militares. A cada canto se viam cossacos, soldados de infantaria, de cavalaria, furgões, armões e peças de artilharia. Pedro deu-se pressa em continuar avante e quanto mais se afastava de Moscovo e se submergia naquele mar de tropas mais se sentia invadido por um sentimento misto de inquietação e íntima satisfação, sentimento novo para ele. Era qualquer coisa como o que sentira no Palácio Slobodski aquando da visita do imperador. Tratava-se de tomar uma decisão e de se sacrificar. Agora tinha a satisfação de compreender que tudo quanto em geralconstitui a felicidade do homem, as comodidades da existência, a riqueza, a própria vida, não passavam de coisas absurdas, a que renunciava com grande satisfação, quando comparadas com... Com quê, eis o que Pedro não sabia dizer; o certo é que não procurava explicar claramente por quem ou porque sen(,ia aquela satisfação no sacrifício. Não procurava saber porque se queria sacrificar, mas era de facto o próprio sacrifício em si que lhe dava aquela satisfação íntima e inteiramente nova. [XIX] No dia 24 deu-se a batalha de Chevardino: a 25 não se disparou um único tiro quer de um lado, quer do outro, e a 26 travou-se a batalha de Borodino. Porque se travaram estas duas batalhas? Como se deram? Porque se deu, particularmente, a batalha de Borodino? Tal batalha não tinha o menor sentido nem para os Franceses nem para os Russos. O seu resultado imediato foi, e tinha de ser, para os Russos mais um passo para a perda de Moscovo, a coisa que eles mais receavam, para os Franceses passo idêntico para a perda total do seu exército, o que eles também temiam acima de tudo. Este resultado era evidente; mesmo então, e apesar disso, Napoleão ofereceu batalha e Kutuzov aceitou-a. Se os grandes capitães se deixassem guiar por considerações razoáveis, dir-se- ia evidente para Napoleão que, depois de se afastar mais de duas mil verstas das suas bases, travar uma batalha com a possibilidade a todo o ponto verosímil de perder a quarta parte do seu exército era como que caminhar para uma derrota certa. Devia ser igualmente certo para Kutuzov que aceitar o combate, arriscando também, por seu lado, a quarta parte das suas forças, era como que jogar a perda de Moscovo. Para este, então era tão matemático como nas damas aquele que, tendo no fim do jogo menos uma pedra do que o adversário, a joga deixando-a comer e perdendo, portanto, a partida. Se um dos adversários tem dezasseis pedras e outro catorze, este é apenas uma oitava parte mais fraco do que aquele: porém, quando ambos tiverem perdido, cada um à sua parte, treze pedras, o primeiro será três vezes mais forte do que o segundo. Antes de Borodino as forças russas, em relação às francesas, encontravam-seaproximadamente na proporção de cinco para seis e, depois da batalha, na de um para dois, o que quer dizer que antes da batalha os Russos eram cem mil contra cento e vinte mil, e depois dela cinquenta contra cem mil. E no entanto o experimentado e inteligente Kutuzov aceitou o combate. E Napoleão, esse génio militar, como então se dizia, aceitou a luta, que lhe custou um quarto do seu exército e ainda mais lhe estendeu as linhas. Ainda que se diga que, tomando Moscovo, pensava dar a campanha por finda, como acontecera depois da tomada de Viena, não faltam provas que demonstrem o contrário, Os próprios historiadores de Napoleão referem que depois de Smolensk ele queria deter-se, ele próprio se dava conta do perigo da extensão das linhas, sabendo que a ocupação de Moscovo não seria o fim da campanha, pois desde Smolensk que verificava o estado em que encontravam as cidades que tomava e que nenhuma resposta obtinha às suas reiteradas tentativas de entabular negociações. Oferecendo e aceitando a batalha, tanto Kutuzov como Napoleão agiram contrariamente ao livre-arbítrio e de forma insensata. No entanto, os historiadores, consumados os factos, extraíram consequências complicadas e especiosas sobre a visão e o génio dos generais, quando a verdade é que estes, no meio dos instrumentos inconscientes dos acontecimentos dessa época, mostraram ser os mais servis e os mais cegos. Os antigos deixaram-nos modelos de poemas épicos em que os heróis são o principal interesse da história, por isso não nos podemos resignar a que a história do nosso tempo se lhe não assemelhe. Para a pergunta — como se deram as batalhas de Borodino e a de Chevardino, que a precedeu? — existe também uma explicação precisa que toda a gente conhece, embora completamente falsa. Todos os historiadores, com efeito, descrevem essa dupla batalha da seguinte maneira: O exército russo, na sua retirada depois de Smolensk, teria procurado a melhor posição para travar uma batalha geral e tê-la-ia encontrado em Borodino. Os Russos teriam fortificado previamente essa posição à esquerda da estrada de Moscovo a Smolensk e perpendicularmente, pouco mais ou menos, a esta estrada, entre Borodino e Utitsa, exactamente no local onde a batalha se travou. Ante esta posição, ter-se-ia estabelecido, para observar o inimigo, um posto avançado na encosta de Chevardino. A 24, Napoleão teria assaltado esse posto avançado e tê-lo-ia tomado: a 26 teria atacado o grosso do exército russo,concentrado no campo de Borodino. Eis o que os historiadores dizem e tudo isto é absolutamente inexacto, coisa de que se convencerá facilmente quem quer que se decida a estudar com cuidado o acontecimento. Os Russos não escolheram a melhor posição; pelo contrário, no decurso da sua retirada menosprezaram muitas outras melhores do que a de Borodino. Não se detiveram em qualquer delas porque Kutuzov não queria aceitar uma posição que não fosse escolhida por ele, e depois porque a patriótica necessidade de dar batalha ainda irão se concretizara com suficiente força e ainda porque Miloradovitch ali não estava com a sua milícia, além de outras razões impossíveis de enumerar. O facto é que as outras posições eram mais fortes, e que a de Borodino, onde se travou a batalha, não só não era a melhor como nem sequer era uma posição, visto não passar de um lugar como qualquer outro marcado ao acaso com um alfinete no mapa do império moscovita, Os Russos não só não fortificaram a posição de Borodino à esquerda e perpendicularmente à estrada, quer dizer, no local onde a batalha se travou, como antes de 25 de Agosto nunca tinham pensado que se pudesse vir a dar um recontro naquele local. E a prova está, em primeiro lugar, que não só a 25 não havia ali qualquer fortificação, mas até mesmo as que se iniciaram a 25 não estavam concluídas a 26, e, em segundo lugar, na própria situação do reduto de Chevardino. Este reduto, na vanguarda da posição onde os exércitos se defrontaram, era inteiramente destituído de sentido, Porque foi esse reduto mais fortificado que todos os outros pontos? E porque é que, para defendê-lo, se resistiu no dia 24 até alta noite, envidando tantos esforços e perdendo seis mil homens? Para observar o inimigo, uma patrulha de cossacos chegava perfeitamente. Em terceiro lugar, a prova de que a posição onde se travou a batalha não estava prevista e que o reduto de Chevardino não era o seu posto avançado é que Barclay de Tolly e Bagration estiveram convencidos até 25 de que o reduto de Chevardino constituía o flanco esquerdo da posição, e que o próprio Kutuzov, no seu relatório, redigido quando ainda frescas as impressões da batalha, lhe chama o flanco esquerdo da posição. Muito mais tarde, ao descrever-se a batalha de Borodino, naturalmente para justificar os erros do general-chefe, infalível custasse o que custasse, emitiu-se a afirmação inexacta e estranha de que o reduto de Chevardino era um posto avançado, quando na verdade não passava de umaposição fortificada qualquer do flanco esquerdo, e afirmando-se também que os Russos tinham aceitado a batalha numa posição fortificada e escolhida previamente, quando a verdade é que essa batalha se travou num local de todo imprevisto e por assim dizei —, em fortificações. Eis como em verdade se passaram as coisas: escolheu-se um ponto no Kolotcha, que corta a estrada real não em ângulo recto, mas em ângulo agudo, de tal sorte que o flanco esquerdo estava em Chevardino, o direito nas imediações da aldeia de Novoie e o centro em Borodino, na confluência dos rios Kolotcha e Voina. Esta posição, protegida pelo no Kolotcha, era, evidentemente, a de um exército que se propunha deter o inimigo em marcha ao longo da estrada de Smolensk a Moscovo: eis qualquer coisa de evidente para quem quer que examine o campo de batalha esquecendo-se de como os factos se passaram. Napoleão, ao dirigir-se, no dia 24, para Valuieva, não viu, segundo dizem os historiadores, a posição ocupada pelos Russos entre Utitsa e Borodino (não podia vê-la porque ela não existia). Tão-pouco viu a guarda avançada do exército, e só ao perseguir a retaguarda tropeçou no flanco esquerdo dos Russos, isto é, no reduto de Chevardino, e que, inesperadamente para os Russos, fez passar as suas tropas para a outra margem de Kolotcha. E então os Russos, que não tinham podido travar uma batalha geral, fizeram obliquar a ala esquerda da posição que pensavam ocupar para se estabelecerem numa posição nem prevista nem fortificada. Ao atravessar para a margem esquerda do no Kolotcha, portanto para a esquerda da estrada, Napoleão transportara a futura batalha do flanco direito para o esquerdo dos Russos, para a planície entre Utitsa. Semionovskoie e Borodino, planície não mais vantajosa como posição que qualquer outra, e ali se travou a batalha de 26. A traços largos, o plano da batalha, tal como a descreveram e tal como ela realmente se travou, seria o indicado na página seguinte. Se Napoleão não tivesse atravessado o no Kolotcha no dia 24 à noite e não houvesse dado ordens para não atacar o reduto nessa mesma noite, adiando o ataque para o dia seguinte, seríamos obrigados a reconhecer que o reduto era o flanco esquerdo da posição russa e a batalha ter-se-ia travado como os Russos esperavam. Neste caso os Russos teriam defendido mais encarniçadamente ainda o reduto de Chevardino, seu flanco esquerdo, atacando Napoleão no centro e à direita, e no dia 24 travar-se-ia a batalha geral na posição fortificada e prevista.Mas como o ataque ao flanco esquerdo russo se verificou à noite, em consequência da retirada da retaguarda russa, isto é, imediatamente após a batalha de Gridnievo, e como os generais russos não puderam ou não quiseram desencadear no dia 24 à noite a batalha geral, a primeira e parte principal da batalha de Borodino estava perdida desde aquele mesmo dia, implicando, forçosamente, a derrota do dia 26. Depois da perda do reduto de Chevardino, na manhã de 25, os Russos viram-se privados do ponto de apoio no flanco esquerdo, sendo forçados a restabelecer a ala esquerda e a fortificá-la à pressa, fosse como fosse. Mas o facto de as tropas russas no dia 28 de Agosto se encontrarem em entrincheiramentos insuficientes nada era comparado com o facto de os generais russos não terem atribuído a devida importância à perda da posição do flanco esquerdo, ou seja, a mudança da orientação da batalha da esquerda para a direita, deixando que as suas linhas continuassem a estender-se da aldeia de Novoie a Utitsa, e viram-se obrigados à transferência de tropas da direita para a esquerda durante o combate. E foi assim que os Russos, em plena batalha, só puderam opor à totalidade das tropas francesas a sua ala esquerda, isto é, forças duas vezes mais fracas. Quanto aos ataques de Poniatowski a Utitsa e de Uvarov ao flanco direito dos Franceses, eis incidentes inteiramente alheios à marcha geral das operações. E foi assim que a batalha de Borodino se travou em circunstâncias completamente diferentes daquelas por que foi descrita na intenção de ocultar os erros dos generais, e isso apenas serviu para diminuir a glória do exército e do povo russos. Essa batalha não se travou numa posição escolhida e fortificada com forças apenas um pouco mais fracas do lado russo; foi aceite, em consequência da perda de Chevardino, numa planície aberta e quase sem fortificações, com forças duplamente mais fracas que as dos Franceses. Isto é, em condições tais teria sido impossível a essas tropas não já baterem-se durante dez horas seguidas e num combate indeciso, mas até mesmo aguentarem-se três horas que fosse sem serem vítimas de um desastre completo e sem virem a ser completamente desbaratadas. [XX] Na manhã do dia 25, Pedro saiu de Mojaisk. Para descer o empinado e tortuoso caminho que levava da cidade à catedral, situada um pouco à direita, e onde se celebrava um serviço religioso acompanhado do toque de sinos, apeou-se da sua carruagem e fez o percurso a, pé. Atrás dele vinha um regimento de cavalaria precedido dos seus cantores, um comboio de viaturas com feridos do recontro da véspera caminhava em sentido contrário. Os camponeses que o conduziam, entre gritos e chicotadas, corriam ladeando as carroças. Por cima das pedras espalhadas no caminho à guisa de pavimento, as viaturas, cada uma delas com três ou quatro feridos, rins sentados outros estendidos, lá iam cambaleando ladeira acima. Lá dentro, os feridos, pernas e, braços entrapados, pálidos, de lábios apertados e sobrancelhas franzidas, fincavam-se nos taipais, atirados uns contra os outros. Quase todos ficavam a olhar, numa curiosidade entre infantil e ingénua, o chapéu branco e o fraque verde de Pedro. O cocheiro de Bezukov vociferava, colérico, contra os postilhões do comboio, exigindo-lhes que formassem fila de um só lado da estrada. Cantando, o regimento de cavalaria que descia a encosta, ao cruzar com a carruagem de Pedi-o, interceptou-lhe o caminho. Pedro parou, comprimindo-se contra o talude que marginava o caminho talhado na encosta. Tão abrupto era o local que o sol ainda não atingira a estrada profunda. Fazia frio e estava húmido. Lá no alto, por cima da sua cabeça, brilhava uma bela manhã de Agosto e um jucundo carrilhão ressoava pelo espaço além. Uma das viaturas cheia de feridos parou à beira da, estrada, mesmo ao lado de Pedro. O postilhão de laptis, acorreu, ofegante, atirou uma pedra para debaixo das rodas traseiras e pôs-se a ajustar os arneses do cavalicoque. Um dos feridos, soldado idoso, com um braço ao peito que seguia a pé, atrás do carro, agarrou-se a ele com a mão sã e voltou-se para Pedro. — Que há, paisano? Vão deixar-nos para aqui a criar bolor ou vamos para Moscovo? — disse ele. Pedro tão absorto estava nos seus pensamentos que não compreendeu a pergunta. Ora olhava para o regimento de cavalaria agora junto do comboio ora para a viatura que se detivera ao pé dele e onde jaziam três feridos, dois sentados e um prostrado, e afigurava-se-lhe que aqueles desgraçados lhe davam a soluçãodo problema que o preocupava. Um dos que estavam sentados devia ter sido atingido na cara, Tinha o crânio completamente envolto em trapos e uma das faces inchada a tal ponto que parecia a cabeça de um recém-nascido. O nariz e a boca estavam disformes. Relanceou o olhar para a igreja e persignou-se. O outro, um recruta jovem, louro e de pele branca, que dir-se-ia não ter já gota de sangue na cara afilada, olhava para Pedro com um sorriso bondoso desenhado nos lábios. O terceiro estava deitado de bruços e não se lhe podia ver a cara. Os cantores a cavalo passavam nesse momento diante da viatura parada. «Oh! Liquidada... cabeça de ouriço-cacheiro... para o estrangeiro é o caminho...» Destacavam bem nitidamente as palavras de uma canção de soldados. Como a responder-lhes, mas num tom de uma jovialidade muito diferente, repicavam lá no alto as notas metálicas do carrilhão. E alegres também, mas ainda de outra alegria, os raios ardentes do Sol inundavam os píncaros dos montes que coroavam o outro lado da estrada. Entretanto, do lado em que estava Pedro, junto da viatura com os feridos e o cavalicoque extenuado, continuava escuro, húmido e triste. O soldado da cara inchada olhou furioso para os cantores. — Olhem para eles, para estes presumidos — exclamou mal-humorado. — Hoje em dia já lhes não bastam os soldados, recrutaram também os camponeses! Guerra com eles! — murmurou com um sorriso triste o soldado estacionado junto da viatura, dirigindo-se a Pedro. — Nesta altura tudo lhes serve. Toda a gente lhes serve! Moscovo... Não se fala doutra coisa. E cada qual que se governe! É o que eles querem. Apesar da pouca nitidez destas palavras, Pedro compreendeu o que elas queriam dizer e acenou com a cabeça, aprovador. A estrada ficou desimpedida. Pedro voltou a descer a encosta e subiu para a carruagem disposto a continuar o seu caminho ia olhando de quando em quando ora para um ora pura outro lado da estrada. à procura de alguma cara conhecida, mas apenas se lhe deparavam militares desconhecidos, de diversas armas, que todos, por igual, pasmavam diante do seu chapéu branco e do seu fraque verde. Umas quatro verstas andadas viu, finalmente, alguém conhecido, a quem tratou de interpelar com grande satisfação. Era, um médico, militar de alta patente, que vinha na sua britctka, em sentido contrário ao da carruagem dePedro. Acompanhava-o um médico jovem. Ao reconhecer o viajante, fez sinal ao cossaco que lhe servia de cocheiro para que se detivesse. — Conde! Excelência! Que faz o senhor aqui? — inquiriu o médico. — Queria ver isto... — Sim, sim, tem muito que ver... Pedro apeou-se do seu carro e pôs-se a contar-lhe como resolvera assistir à batalha. O médico aconselhou-o a que se dirigisse directamente ao Sereníssimo. — Só Deus sabe onde o senhor estaria bem durante a batalha sem ser reconhecido — disse ele, trocando um olhar com o seu jovem companheiro. — No entanto, o Sereníssimo conhece-o e estou certo de que o aconselhará de bom grado. Sim, é o que tem a fazer, meu caro. O médico tinha um ar fatigado e parecia ter pressa. — Então, acha? E também lhe queria perguntar onde fica a nossa posição — retorquiu Pedro. — A nossa posição? — replicou o médico. — Isso não é da, minha competência. Depois de passar Tatarinovo verá, andam aí a remover muita terra. Suba ao cabeço. Daí poderá ver qualquer coisa. — Então pode ver-se dali?... Se o senhor... O médico interrompeu-o e apontou para a britchka. — Acompanhá-lo-ia com gosto, mas, Deus meu!, estou até aqui — disse, com a mão na garganta. — Vou, numa carreira, ao encontro do comandante do corpo. E o senhor sabe como estas coisas são entre nós, conde... Amanhã travar-se-á a batalha. Em cem mil combatentes temos de contar muito por baixo com vinte mil feridos. E não temos macas, nem camas de campanha, nem enfermeiros, nem médicos que cheguem para seis mil. Contamos com dez mil viaturas, mas ainda é preciso mais alguma coisa. Arranja-te como puderes! E Pedro, então, pensou que de entre aqueles milhares de homens na plenitude da vida, de perfeita saúde, jovens e velhos, que ao passar se punham a observar- lhe o chapéu com galhofeira surpresa, pelo menos vinte mil estavam votados ao sofrimento e à morte e muito bem podia acontecer que a esse número pertencessem exactamente aqueles que acabava de ver. «Talvez morram amanhã mesmo; como podem eles pensar noutra coisa que não seja a morte?» E de súbito, mercê de uma associação misteriosa de ideias, viudiante de si a encosta de Moiaisk e as viaturas carregadas de feridos e ouviu o som dos sinos e entreviu os raios oblíquos do Sol e tornou a ouvir as canções dos cavaleiros. «O regimento de cavalaria caminha para o combate e os soldados cruzam o comboio dos feridos e nem por um segundo lhes vem à cabeça o que os espera e ao passarem ao lado deles piscam o olho a este e àquele. E, embora vinte mil vão ao encontro da morte, o meu chapéu diverte-os! Que estranho!», dizia Pedro de, si para consigo enquanto seguia direito a Tatarinovo. Junto de uma casa senhorial, à esquerda da estrada, aglomeravam-se carruagens, galeras e uma chusma de impedidos e sentinelas. Era ali que estava instalado o Sereníssimo. Mas à hora em que Pedro chegava, tanto ele como quase todo o seu estado-maior encontravam-se ausentes. Assistiam todos ao serviço religioso. Pedro prosseguiu na direcção da Gorki. Ao chegar ao alto da encosta, e quando atravessava a ruazinha da aldeia, viu pela primeira vez camponeses milicianos, de cruz na barretina e camisa branca, que falavam alto e riam, cobertos de suor, em grande animação, cavando à direita da estrada, num cabeço coberto de relva. Uns abriam trincheiras à picareta, outros acarretavam terra em carrinhos de mão por cima de pranchas assentes no solo e outros ainda nada faziam. Dois oficiais postados no cabeço dirigiam os trabalhos. Ao veios camponeses, muito contentes na sua nova profissão de soldados, Pedro lembrou-se dos feridos de Mojaisk e compreendeu então o que queriam dizer as palavras do militar. «Toda a gente lhes serve!» E a vista daqueles homens barbados, trabalhando no campo de batalha, com as suas botifarras estranhas, as nucas reluzentes de suor, os colarinhos desabotoados, com as ossudas clavículas à mostra, produziu em Pedro uma impressão mais forte que tudo o que observara e ouvira até então sobre a solenidade v a importância do momento. [XXI] Pedro apeou-se da carruagem, e, passando diante dos milicianos entregues à sua tarefa, trepou ao cabeço, donde, na opinião do médico, podia ver-se o campode batalha. Eram onze horas da manhã. O Sol, um pouco à esquerda e na retaguarda de Pedro, através do ar puro e sereno. Iluminava vivamente o imenso panorama acidentado que diante dele se estendia como um grande anfiteatro. A esquerda, e cortando esse anfiteatro, serpenteava, subindo, grande estrada de Smolensk que atravessava a aldeia, com a sua branca igreja, situada junto do cerro, a quinhentos passos dele, Era Borodino. A estrada, depois da aldeia, transpunha uma ponte e, através de uma série de descidas e subidas, encaminhava-se, serpeando, para o povoado de Valuieva, que se via a umas seis verstas de distância, agora nas mãos de Napoleão. Depois de Valuieva a estrada perdia-se no meio de uma floresta que amarelecia no horizonte. Nesta mata de álamos e abetos, à direita da estrada, brilhava, ao sol, a cruz e o campanário distantes do Mosteiro de Kolotcha. Nessa longínqua linha azulada, à direita e à esquerda da floresta, surgiam, aqui e ali, o fumo das fogueiras dos acampamentos e a massa indistinta das tropas russas e francesas. À direita, ao longo dos rios Kolotcha e Moskva, o terreno era entrecortado de barrancos e colinas. Ao longe, nesses barrancos, descobriam-se as aldeias de Bezubovo e de Zakarino. A esquerda a região era menos acidentada e viam-se aí searas de trigo e as ruínas fumegantes da aldeia de Semionovskoie, que fora incendiada. Tudo o que Pedro dali descobria, quer à direita, quer à esquerda, era tão vago que nem de longe correspondia ao que ele esperava. Não via em parte alguma o campo de batalha com que contava, mas apenas campos lavrados, clareiras, tropas, florestas, fogueiras de acampamentos, aldeias, cerros, rios e, por mais que procurasse com os olhos, não conseguia distinguir as tropas russas das francesas naquela paisagem buliçosa. «Tenho de perguntar a uma pessoa competente», dizia de si para consigo, e dirigiu-se a um oficial que, cheio de curiosidade, examinava a sua corpulenta figura nada marcial. — Quer ter a bondade de me dizer — principiou ele — que aldeia é aquela ali em frente? — Burdino, não é? — replicou o oficial, voltando-se para um dos seus camaradas. — Borodino — corrigiu o outro. O oficial, que pelos vistos parecia contentíssimo daquela oportunidade de dar àlíngua, aproximou-se de Pedro. — Ali são os nossos? — perguntou Pedro. — Sim, e lá adiante, mais longe, os Franceses — tornou o oficial. — Lá adiante, lá muito adiante, está a ver? — Onde? Onde? — Vêem-se perfeitamente à vista desarmada. Lá adiante. O oficial apontou para os penachos de fumo que se descobriam à esquerda, para lá do rio, enquanto se lhe pintava no rosto uma expressão preocupada e grave, expressão que Pedro já notara em muitos outros rostos. — Ah!, são os Franceses! E lá adiante? Pedro apontava para um monte, à esquerda, em volta do qual se viam tropas. — São os nossos. — Ah!, os nossos! E lá, ali, mais adiante — apontou para outro cabeço mais afastado, com uma grande árvore, junto de um povoado assente numa dobra do terreno: ao lado subia no ai, fumo dos bivaques e viam-se manchas escuras no solo. — Ali também é «ele» — disse o oficial. Tratava-se do reduto de Chevardino. — Ontem éramos nós quem ali estava e agora é «ele». — Então onde fica a nossa posição? — A nossa posição! — exclamou o oficial, com um sorriso satisfeito. — Posso descrever-lha com todos os pormenores, pois fui eu quem levantou quase todas as fortificações. Pois, o nosso centro fica ali, em Borodino, lá adiante. — Apontava para a aldeia da igreja branca, em frente deles. — Ali é o vau do Kolotcha. Vê, lá adiante, onde se descobrem, ainda no horizonte, aquelas medas de palha? Ali fica a ponte. É o nosso centro. O nosso flanco direito fica por aqui. — E apontava uma fractura do terreno, escarpada e profunda, na extrema direita.— Acolá é o no Moskva e ali construímos três redutos fortíssimos. O nosso flanco esquerdo... — Neste ponto o oficial calou-se. — Sabe?, é difícil de explicar... Ontem o nosso flanco esquerdo estava ali, em Chevardino, lá adiante, onde se divisa um carvalho. Mas agora retirámos para a retaguarda a ala esquerda. Afirme-se naquela aldeia e naquela fumarada. É Semionovskoie. E além — acrescentou, apontando para o cabeço de Raievski.— Mas não é natural que a batalha venha a travar-se ali. O inimigo fez deslocar para aqui as suas tropas por manha. É de esperar que trate de nos envolver pela direita, em direcção ao Moskva. Mas, seja como for, o certo é que amanhã muitos dos nossos ficarão ali!Um velho sargento, que se aproximara enquanto o oficial falava, esperava, em silêncio, que o superior acabasse, mas quando ele chegou a este ponto, naturalmente pouco satisfeito com o que ouvia, interrompeu o oficial para dizer, bruscamente: — É preciso ir buscar os cestões. O oficial pareceu perturbado, como se compreendesse que, se podia pensar que no dia seguinte faltariam muitos dos seus camaradas, não lhe era dado falar no caso. — Bem, manda outra vez a 3ª companhia — replicou o oficial imediatamente. — E o senhor, quem é o senhor? Não é médico? — Não, estou aqui apenas por curiosidade — retorquiu Pedro. F pôs-se de novo a descer o cabeço, tornando a passar diante dos milicianos. — Oh, malditos! — exclamou o oficial, que o seguia, enquanto tapava o nariz, e apressava o passo. — Aí estão eles! Trazem-na, lá vêm... Lá estão... Daqui a bocado estão aí... — exclamaram, ao mesmo tempo, várias vozes, e oficiais, soldados e milicianos correram para a estrada. Uma procissão, que saíra da Igreja de Borodino, subia a encosta. A frente, pela estrada poeirenta, marchava alinhada a infantaria, de barretinas na mão e espingardas de coronha ao alto. Lá para trás ouviam-se cânticos religiosos. Soldados e milicianos passaram por Pedro, de cabeça descoberta, ao encontro dos que chegavam. — Trazem a nossa Santa Mãe! A nossa protectora!... A Virgem Iverskaia. — Não. É a Santíssima Virgem de Smolensk — corrigiu outro. Tanto os milicianos que estavam na aldeia como os que trabalhavam na bateria, largando as pás, correram ao encontro da procissão. Atrás do batalhão seguia a cleresia de casula; o padre, ia velhinho, de solidéu, acompanhado dos acólitos e dos chantres. Atrás deles vinha um grupo de soldados e de oficiais que carregavam um grande ícone, de rosto escuro, todo paramentado. Era o ícone que viera de Smolensk e acompanhava agora o exército. Em volta dele, por todos os lados, caminhava, corria, prosternava-se uma chusma de soldados de cabeça descoberta. No alto da colina o ícone estacou. Os homens que o traziam aos ombros revezaram-se, os acólitos tornaram a acender os incensórios e deu-se começo auma cerimónia religiosa de acção de graças, Os raios ardentes do Sol dardejavam, mas os cabelos das cabeças descobertas e as fitas que enfeitavam a imagem agitavam-se à brisa fresca. Os cânticos ressoavam debilmente na vasta curva dos céus. Grande multidão de oficiais, soldados, milicianos, todos de cabeça descoberta, rodeava a imagem. Atrás do padre e do acólito, num espaço livre, viam-se os oficiais de alta patente. Um general calvo, com a cruz de S. Jorge ao peito, mesmo atrás do sacerdote, sem se persignar, o que queria dizer que era alemão, esperava, pacientemente, que as orações terminassem, sentindo-se obrigado a assistir a elas, pois reanimavam e patriotismo do povo russo. Outro general, que assumira uma atitude marcial, ia fazendo sucessivos sinais da cruz, enquanto olhava para um lado e para o outro. Pedro, no meio dos camponeses, identificou entre aquelas altas personalidades alguns conhecidos seus, mas não lhes prestou a mínima atenção, todo entregue a observar a grave expressão dos soldados e dos milicianos, de olhos fitos na imagem numa espécie de ávida exaltação. Quando os chantres, fatigados, principiaram a entoar arrastadamente — era a vigésima vez que o faziam — a invocação «Santa Mãe de Deus, salva os Teus escravos da desgraça», e o padre e o diácono repetiram: «Todos a Ti acorremos como a um muro inquebrantável, rogando-Te que Te amerceies de nós», em todos os rostos se via essa mesma expressão, essa mesma compenetração na solenidade do momento, por ele observada já na encosta de Mojaisk e em muitas pessoas com quem se cruzara nessa manhã. As cabeças pendiam cada vez mais para o chão, os cabelos esvoaçavam ao vento, ouviam-se profundos suspiros e os constantes sinais da cruz ecoavam na arca do peito dos fiéis. De súbito, a multidão que rodeava o ícone afastou-se, arrastando Pedro. Alguém se aproximava, sem dúvida da mais alta categoria — a avaliar pela pressa com que todos abriam alas. Era Kutuzov, que acabava de inspeccionar a posição. De regresso a Tatarinovo, quisera assistir àquela cerimónia religiosa. Pedro reconheceu-o imediatamente graças à sua figura particular, muito diferente de todas as outras. De comprido redingote, que lhe envolvia a enorme corpulência, as costas arqueadas, a cabeça branca descoberta, o olho vazado na face de carnes flácidas, o passo balanceado e trôpego, chegou e deteve-se precisamente atrás do padre. Persignou-se maquinalmente, baixou-se quase até tocar no solo com a mão e,depois de soltar um profundo suspiro, deixou pender sobre o peito a cabeça branca. Bennigsen e a sua comitiva seguiam-no. Apesar da presença do general- chefe, que desde logo chamara a atenção de todos os oficiais superiores, os soldados e os milicianos, sem olharem para ele, continuavam a rezar. Quando a cerimónia religiosa acabou, Kutuzov aproximou-se do ícone, deixou-se cair pesadamente sobre os joelhos, prosternou-se quase até ao chão e de novo tentou pôr-se de pé. Levou tempo a consegui-lo, mercê da sua corpulência e da fraqueza em que estava. Os esforços que fazia para se erguer comunicavam-lhe à cabeça branca movimentos sacudidos. Conseguiu levantar-se finalmente, e depois de beijar o ícone, estendendo os lábios num bochecho infantil e ingénuo, de novo se inclinou tocando a terra com a mão. Todos os generais fizeram o mesmo, imitando-o, depois foram os oficiais e em seguida, acotovelando-se e atropelando- se uns aos outros, no meio de exclamações e expressões comovidas, chegou a vez dos soldados e dos milicianos. [XXII] Surgido pela multidão, que o atirava de um lado para o outro. Pedro ia olhando à sua roda. Conde Pedro Kirillitch, que está aqui a fazer? — exclamou uma voz. Pedro voltou-se. Bóris Drubetskoi, sacudindo os joelhos que sujara no chão, naturalmente ao prosternar-se diante do ícone. Aproximou-se dele, sorrindo. A elegância da sua farda não excluía o ar marcial do militar em campanha. Vestia uma longa túnica tinha um pingalim a tiracolo, tal qual como Kutuzov, Entretanto o general-chefe regressara à aldeia e sentara-se à sombra da casa mais próxima, num banco que um cossaco trouxera a pressa e outro cossaco cobrira com um tapete. Rodeava-o uma brilhante e imensa comitiva. O ícone fora levado para mais longe aos ombros da multidão. Pedro detivera- se a uns trinta passos de Kutuzov a conversar com Bóris. O conde Bezkikov expunha-lhe o seu desejo de assistir à batalha e examinar a posição. — É o que o senhor vai fazer — disse-lhe ele. — Eu faço-lhe as honras docampo. Verá, tudo melhor dali: acolá está também o conde Bennigsen. Estou adstrito ao seu quartel. Preveni-lo-ei, E se quiser percorrer a posição, irei consigo. Vamos agora precisamente ao flanco esquerdo, Não tardamos, e, queira aceitar o meti tecto para passar a noite, jogaremos uma partida. Conhece não é verdade, Dimitri Sergueievitch? Está aqui instalado — acrescentou, apontando para a terceira casa de Gorki. — O que eu gostava de ver era o flanco direito. Dizem que é, muito forte — observou Pedro. — Gostava de percorrer toda a posição a partir do Moskva. — Está bem, isso pode ser depois, o principal é o flanco esquerdo... — Sim, sim. E onde fica o regimento do príncipe Bolkonski, poderia indicar-me a sua posição? — O de André Nikolaievitch? Vamos passar diante dele, levá-lo-ei lá. — Que me diz do flanco esquerdo? — perguntou Pedro. — Para lhe falar verdade, entre nós, o nosso flanco esquerdo está numa triste situação — disse Bóris, baixando a voz, confidencialmente. — O conde Bennigsen esperava uma coisa completamente diferente. Propôs que se fortificasse aquele cabeço, lá adiante. Era outra coisa. Mas — acrescentou, encolhendo os ombros — o Sereníssimo não quis, ou fizeram-no mudar de ideias. Porque... E Bóris não concluiu a frase. Nesse mesmo instante aproximava-se Kaissarov, o ajudante-de-campo de Kutuzov. — Eh, Paissi Sergueievitch! — exclamou ele, dirigindo-se ao recém-chegado com a maior desenvoltura.— Estou tratando de explicar ao conde a nossa posição. É assombroso como o Sereníssimo pode, prever com tamanha exactidão as intenções dos Franceses. — Refere-se ao flanco esquerdo? — disse Kaissarov. — Sim, sim, precisamente. O nosso flanco esquerdo está agora fortíssimo. Embora Kutuzov tivesse afastado do seu estado-maior todos os inúteis, Bóris conseguira manter-se no quartel-general, tornando-se adido ao conde Bennigsen. Este, como todos os generais com que ele servira, considerava Drubetskoi homem de grande valor No alto comando do exército haviam-se formado dois partidos bem definidos: o de Kutuzov e o de Bennigsen, chefe do estado-maior. Bóris pertencia a este último partido e, embora mostrasse diante de Kutuzov um respeito servil pela sua pessoa, não perdia a oportunidade de fazei, compreender que o velho não passamde um medíocre e que era Bennigsen quem tinha o supremo comando de tudo. Chegava agora o momento decisivo da batalha que devia ou aniquilar Kutuzov, que transmitiria a autoridade a Bennigsen, ou então, no caso de Kutuzov ganhar a bata-lha, dar a entender que fora Bennigsen quem tudo fizera. Em qualquer caso, no dia seguinte distribuir-se-iam importantes distinções e haveria numerosas promoções. E não era outra a razão por que Bóris nesse dia estava tão agitado. Depois de Kaissarov, outros conhecidos de Pedro vieram ao seu encontro, e de tal modo o assediaram que muito dificilmente podia responder a todas as perguntas que lhe faziam sobre Moscovo ou então dar ouvidos a todas as histórias que lhe contavam. Em todos os rostos havia emoção e desassossego, Mas a Pedro afigurava-se-lhe que esta, emoção era geralmente provocada por motivos de interesse puramente pessoal e não pode deixar de se lembrar, a propósito disto, da exaltação que vira noutros rostos, a qual não provinha do roais pequeno interesse pessoal, mas do interesse geral relacionado com uma questão de vida ou de morte. Kutuzov acabou por descobrir a rotunda pessoa de Pedro e o grupo que o cercava. — Chamem-no — ordenou. Um ajudante-de-campo transmitiu o desejo do Sereníssimo. Pedro dirigiu-se para o banco do general. Um miliciano, soldado raso, adiantou-se-lhe, porém. Era Dolokov. — Como é que este indivíduo se encontra aqui? — perguntou Pedro. — Tipos como este têm sempre maneira de meter o nariz em toda a parte! — responderam-lhe. — Foi degradado. Tem de se fazer valer. Parece que apresentou diversos projectos e que de noite se introduziu rias linhas inimigas... Digam o que disserem, é um valente!... Pedro, descobrindo-se, saudou Kutuzov respeitosamente. — Pensei — ia dizendo, entretanto. Dolokov — que, se expusesse este projecto a Sua Excelência, me poderia mandar embora ou então que esta história já era sabida... De maneira que não me consideraria diminuído se... — Bem! Bem! — E se tiver razão, prestarei assim um serviço à minha pátria, pela qual estou pronto a dar a vida. — Bem, muito bem! — E se Sua Excelência precisar de um homem sem medo de dar o corpo aomanifesto, peço-lhe que se lembre de mim... Talvez possa vir a ser útil a Sua Excelência. — Bem... Muito bem... — repetia Kutuzov mirando Pedro, como em confidência, com o seu olho risonho. Nesse momento, Bóris, habilíssimo cortesão, aproximou-se para estar nas proximidades de Bezukov, na vizinhança imediata do grande chefe, como se fosse a coisa mais natural deste mundo, e, em voz baixa e como se prosseguisse uma conversa interrompida, disse a Pedro: — Os milicianos vestiram camisas brancas, muito limpas, para se prepararem para a morte. Que heroísmo, conde! Bóris pronunciara estas palavras para ser ouvido, evidentemente, pelo Sereníssimo. Sabia que Kutuzov prestava ouvidos a todos estes pormenores, e na verdade voltou-se para ele: — Que estás tu a dizer da milícia? — perguntou. — Excelência, para se prepararem para o dia de amanhã, para morte, vestiram camisas brancas. — Oh!... Que povo admirável, que povo incomparável! — exclamou o general- chefe, fechando os olhos e abanando a cabeça. Que povo incomparável! — repetiu, suspirando. — Com que então quer sentir o cheiro da pólvora? — acrescentou, dirigindo-se a Pedro. — Sim, realmente, é um cheiro agradável. Tenho a honra de ser um adorador da senhora sua mulher. Como está ela? O meu acampamento está à sua disposição. E, como amiúde acontece com os velhos, Kutuzov olhou em torno de si, preocupado, como se já não se recordasse do que queria dizer ou fazer. Lembrando-se, naturalmente, do que procurava, fez um sinal a André Sergueievitch Kaissarov, irmão do seu ajudante-de-campo. — Como são então esses versos de Marin, como são eles? Sim, os que ele escreveu sobre Guerakov: «Serás mestre no teu regimento...» Recita lá um bocado. E Kutuzov preparava-se para uma boa risada. Kaissarov fez-lhe a vontade... Kutuzov, divertidíssimo, acenava com a cabeça a compasso. Quando Pedro se afastou do general-chefe. Dolokov veio ao seu encontro e travou-lhe do braço. — Tenho muito prazer em encontrá-lo aqui, conde — disse-lhe em voz alta,com o ar decidido e solene que lhe era natural e sem se preocupar com a presença de estranhos. — Na véspera do dia em que só Deus sabe qual de rios ficará com vicia, tenho muito gosto em aproveitar esta oportunidade para lhe dizer que lamento o mal-entendido havido entre nós e que espero que não tenha razão de queixa contra mim. Peço-lhe que me perdoe. Pedro, sorrindo, olhava para ele sem saber que responder-lhe. Dolokov, com os olhos cheios de lágrimas, abraçou e beijou Pedro. Bóris disse qualquer coisa ao seu general e o conde Bennigsen propôs a Pedro que o acompanhasse na inspecção às linhas. — Será interessante para si — disse-lhe ele. — Sim, muito — respondeu Pedro. Meia hora depois, Kutuzov voltava para Tatarinovo e Bennigsen e a sua comitiva, de que Pedro fazia parte, dirigiram-se para o campo de batalha. [XXIII] De Gorki, Bennigsen e a sua escolta desceram a estrada real até à ponte que o oficial apontara a Pedro do alto do cabeço como sendo o centro da posição, e junto da qual medas de feno recém-cortado embalsamavam o ar— Atravessada a ponte, penetraram na aldeia de Borodino, voltaram à esquerda e, passando diante de tiro grande aglomerado de tropas e peças de artilharia, chegaram à vista de um cabeço onde milicianos revolviam a terra. Era o reduto, ainda por baptizar, mas que depois viria a chamar-se o «reduto Raievski» ou a «bateria do cabeço». Pedro não prestou a isto qualquer atenção especial, ignorava que aquele local se tornaria o ponto mais memorável de todo o campo de batalha. Em seguida atravessaram a ravina defronte de Semionovskoie, donde os soldados levavam os restos do madeiramento das isbás e dos secadores de sementes. Final— mente, subindo e descendo encostas e atravessando campos de centeio arrasados, como se sobre eles tivesse caído granizo, meteram pelo novo caminho, recentemente aberto pela artilharia ao longo dos trilhos de um campo lavrado, e chegaram às «flechas» que se andavam ainda a abrir. Bennigsen deteve-se ali e pôs-se a olhar em frente para o reduto deChevardino, que ainda na véspera pertencia aos Russos, e onde se viam alguns cavaleiros. Os oficiais diziam que devia ser Napoleão ou Murat. Toda a gente olhava avidamente o grupo de cavaleiros. Pedro fez o mesmo, tentando perceber qual deles poderia ser Napoleão. Pouco depois, o grupo descia do cabeço, desaparecendo. Bennigsen, dirigindo-se a um general que se aproximava, pôs-se a explicar-lhe a posição das tropas russas. Pedro ouvia-o, num esforço de inteligência, tentando compreender o essencial da futura batalha, mas, a pesar seu, verificou que o não podia acompanhar. Decididamente, não estava em condições de perceber, Bennigsen, quando acabou de falar, notou a expressão de Pedro. — Suponho que isto o não interessa — disse-lhe ele, bruscamente. — Pelo contrário! É muito interessante! — repetiu Pedro, que não era completamente sincero. Das «flechas» tomaram mais à esquerda por um caminho que serpenteava através de uma mata de álamos muito espessa, mas de pouca altura. No meio dessa mata apareceu de repente, saltitando, uma lebre parda de patinhas brancas. Assustada com o ruído das patas de tantos cavalos, de tal modo se alarmou que por muito tempo foi correndo e pulando diante dos cavaleiros, que riam a bom rir, e só quando alguns lhe gritaram abandonou o caminho, embrenhando-se no mato. Depois de terem cavalgado umas duas verstas entre folhagem, chegaram a uma floresta onde estavam reunidas as tropas do corpo de Tutchkov, que se destinavam a apoiar o flanco esquerdo. Neste local, no extremo do flanco esquerdo. Bennigsen ficou a falar por muito tempo e animadamente e a Pedro afigurou-se-lhe que ele tomava nessa altura importantes disposições do ponto de vista militar. Diante das tropas de Tutchkov havia um monte. Esse monte não estava ocupado. Bennigsen lamentou em voz alta este erro, dizendo ser insensato deixar assim, sem qualquer guarnição, um ponto que dominava o terreno, colocando-lhe tropas no sopé. Alguns generais foram da mesma opinião. Um deles, com ardor bem militar, disse que aquilo era como mandar animais para o matadouro. E Bennigsen, de sua iniciativa, deu ordens para que no monte fossem colocadas tropas. Esta medida, tornada no flanco esquerdo, ainda mais concorreu para que Pedro duvidasse da sua capacidade, para compreender os problemas estratégicos. A respeito deste pormenor — as tropas no sopé da encosta — estava pronto a darrazão às críticas de Bennigsen e dos generais, mas eis o que o levava a compreender ainda menos como pudera cometer um erro tão evidente quão grosseiro aquele que as mandara colocar ali. Não subia Pedro que aquelas tropas não tinham sido ali colocadas para defesa daquela posição, como pensava Bennigsen, mas precisamente para preparar uma armadilha, naquele lugar oculto, isto é, para que não fossem vistas e pudessem assim cair de surpresa sobre o inimigo num momento determinado. Bennigsen ignorava também este pormenor e, de acordo com os seus pontos de vista particulares, alterava as disposições tomadas sem informar disso o general-chefe. [XXIV] Precisamente naquela clara noite de 25 de Agosto estava o príncipe André deitado num telheiro desmantelado da aldeia de Kniazkovo, no extremo limite do local destinado ao seu regimento. Apoiado sobre o cotovelo, pousava os olhos, através das paredes desconjuntadas, numa fila de álamos dos seus trinta anos, cujos ramos inferiores haviam sido cortados e que se perdia na distância, e nos campos lavrados, no meio dos quais havia molhos de aveia dispersos, e nos arbustos onde se perdia o fumo das fogueiras em que os soldados preparavam o rancho. Embora a vida lhe parecesse naquele momento mesquinha, inútil e penosa, tal qual como sete anos antes, em Austerlitz, na véspera da batalha, o príncipe sentia-se emocionado e nervoso. Recebera e transmitira ordens para a batalha do dia seguinte. Nada mais tinha que fazer. No entanto agitavam-no os pensamentos mais simples, mais claros, e por consequência mais sinistros. Sabia que a batalha que se preparava seria a mais terrível de quantas assistira até então e a possibilidade de morrer apresentava-se-lhe pela primeira vez na sua vida com toda a simplicidade e todo o horror, despojada de toda a espécie de relações com o que era vivo, alheia a todas as considerações acerca do efeito que poderia causar nos outros, coisa que lhe dizia apenas respeito a ele próprio, e a sua própria alma, numa acuidade de visão extraordinária, quase como uma certeza. E lá do alto a que subiam os seuspensamentos tudo o que outrora o havia atormentado ou preocupado surgia-lhe banhado numa espécie de luz fria e branca, sem sombras, sem perspectiva, sem contornos definidos, Toda a sua vida lhe aparecera por muito tempo como que projectada por Lima lanterna mágica através de um vidro e a uma luz artificial. E agora via, de súbito, sem qualquer interposição de vidros, à clara luz do dia, esses quadros grosseiramente coloridos. «Sim, sim, aqui estão elas, essas miragens enganosas que tanto me emocionaram, exaltaram e fizeram infeliz; dizia a si próprio, fazendo perpassar pela imaginação toda a fantasmagoria da existência e vendo-a agora a esta branca e fria luz do nítido pensamento da morte. Ei-las, essas figuras grosseiramente iluminadas que então me pareciam tão belas e misteriosas. A glória, o bem público, o amor de uma mulher, a própria pátria, quão grandes que pareciam essas belas coisas, com que profundo sentido elas se me apresentavam! E afinal como tudo isso é mesquinho, pálido, miserável, a clara e fria aurora desta manhã que está nascendo em mim!», Retinham-lhe o pensamento sobretudo as três grandes dores da sua existência: o seu romance de ai-flor, a morte do pai e a invasão francesa, que alcançara já metade da Rússia, «O amor!... Aquela garotinha que se me afigurava rica de forças misteriosas! Sim! E eu amava-a. Entretinha com ela poéticos sonhos de amor, de felicidade mútua. Pobre rapaz!», exclamou, de súbito, em voz alta, com uma amarga ironia, «E depois? Acreditava em não sei que amor ideal que ma conservaria fiei todo o ano que estaria ausente. E ela acabaria por se consumir, como a meiga pomba da fábula, esperando, esperando sempre. Ai de mim! É tudo muito mais simples... Tudo é muito mais simples e muito mais repugnante! «Meu pai também, ao instalar-se em Lissia Gori, pensava que aquele pedaço do mundo lhe pertencia, que a terra, o ar, os camponeses, tudo era dele. Mas aparece Napoleão, e, sem sequer saber que ele existia, varre-o para a rua como a um grão de poeira e a sua Lissia Gori e toda a sua existência caíram por terra, E a princesa Maria diz que tudo são provações que vêm do alto, Para quê tais provações se ele já não existe e nunca mais voltará a existir? Nunca mais voltará! A pátria, a perda de Moscovo! Mas, quem sabe?, matar-me-ão, e talvez nem sequer um francês, mas um dos nossos, como o soldado que ainda ontem descarregou a espingarda mesmo ao pé da minha cabeça. E os Franceses chegarão depois, e pegar-me-ão pelos pés e pela cabeça e atirarão comigo para dentro deuma vala para que eu não venha a cheirar mal. E depois novas condições de vida surgirão tão naturais para os que vierem como as antigas, e eu já não as conhecerei já não serei deste mundo.» Fitou a mata de álamos, os seus ramos amarelos imóveis, as suas folhas verdes e a sua casca branca que brilhava ao sol. «Já que temos de morrer, bom, então que me matem... amanhã... que eu desapareça... Que tudo isto continue a existir, mas para mim tudo acabe.» Via com toda a nitidez a vida sem que ele já lá estivesse. E aqueles alamos brancos com a sua luz e a sua sombra, e aquelas nuvens desgrenhadas e o fumo dos acampamentos, tudo se transformou, de súbito, para ele, ganhando um aspecto terrível e ameaçador, Foi tomado de um arrepio. Levantou-se, saiu do telheiro e pôs-se a caminhar. Atrás do telheiro ressoaram umas vozes. — Quem vem lá? — perguntou o príncipe André. Timokine, o capitão de nariz rubicundo, ex-comandante da companhia de Dolokov, então, por virtude da falta de oficiais, comandante de batalhão penetrou timidamente no telheiro. Atrás dele vinham um ajudante-de-campo e o tesoureiro do regimento. André voltou a penetrar no telheiro e ouviu o que eles tinham a dizer-lhe relativamente ao serviço, deu-lhes ainda algumas instruções e preparava-se para os despedir quando ouviu lá fora uma voz sua conhecida, que resmungava. — Irra! — dizia a voz do homem, que tropeçara em qualquer coisa. André olhou lá para fora e viu Pedro, que ia caindo ao tropeçar numa viga que estava no chão, encaminhando-se para ele. Em geral era com desagrado que voltava a ver criaturas do seu meio, e Pedro especialmente, pois lhe recordava todos os dolorosos momentos por que passara aquando da sua última estada em Moscovo. — Ah, és tu?! — exclamou ele. — Que te traz por aqui? Não esperava ver-te. Ao pronunciar estas palavras, tios seus olhos e em toda a sua fisionomia havia mais do que frieza, havia mesmo hostilidade, e Pedro deu por isso. Este vinha na melhor disposição de espírito, mas, ao ver o ar nada acolhedor do amigo, sentiu-se embaraçado e pouco à vontade. — Vim... Sim... Sabe... vim porque me interessa — disse Pedro, que já repetira nesse dia muitas vezes que aquilo o interessava. — Quis ver a batalha. — Ah, sim? E que dizem da guerra os irmãos mações? Não a puderam impedir?— disse o príncipe André com ironia. — E que há por Moscovo? Como está a minha família? Já chegaram, finalmente? — acrescentou em tom mais grave. — Sim, já chegaram. Disse-me Júlia Drubetskaia. Quis visitá-los, mas não os encontrei. Tinham partido para a quinta dos arredores. [XXV] Os oficiais queriam retirar-se, mas o príncipe André, como para evitar ver-se só com o amigo, pediu-lhes que ficassem para tomar chá. Trouxeram bancos e serviu- se o chá. Os oficiais iam observando, não sem espanto, a enorme e maciça pessoa de Pedro, ouvindo as histórias que ele contava de Moscovo e a descrição que fazia da posição das tropas russas, que acabava de visitar, André não abria a boca e a sua expressão era tão desagradável que Pedro se dirigia de preferência a Timokine, o heróico comandante de batalhão. — Então compreendeste a disposição das tropas? — perguntou-lhe o príncipe André, interrompendo-o de súbito. — Compreendi! Ou antes — acrescentou Pedro — , como não sou da profissão, não posso dizer que tenha compreendido completamente, mas apreendi o plano geral. — Então sabes mais que ninguém — tornou-lhe o príncipe André. — Ah! — exclamou Pedro, estupefacto, mirando-o através dos vidros das lunetas. — E que pensa da nomeação de Kutuzov? — Agradou-me muito, é tudo quanto te posso dizer. — Bom, e que opinião tem de Barclay de Tolly? Diz-se tanta coisa dele em Moscovo, santo Deus! Que pensa dele? — Pergunta a estes senhores — replicou o príncipe André, apontando para os oficiais. Pedro, com o sorriso indulgente que toda a gente tinha quando se dirigia a Timokine, interrogou-o com os olhos. — Foi a luz que brilhou para rios, Excelência, o aparecimento do Sereníssimo — disse Tiryiokine, timidamente, sem deixar de olhar para o seu coronel. — Porquê? — inquiriu Pedro.— Sim, posso falar-lhe, por, exemplo, da lenha, da forragem. Quando principiámos a recuar, depois de Sventsiani, que ninguém se lembrasse de apanhar um cavaco de lenha, um braçado de palha ou fosse o que fosse. E certo é que, rios íamos embora, e o inimigo, ficava com tudo, não é verdade, Excelência? — acrescentou dirigindo-se ao seu príncipe. – Mas ai de nós de o fizéssemos! «Por esse motivo no nosso regimento foram julgados dois oficiais em conselho de guerra. Quando o Sereníssimo chegou, porém, tudo se tornou muito simples. Vimos a luz...» — Porque é que o general proibia? Timokine pôs-se a rebolar os olhos, muito confuso, sem saber como responder a esta pergunta. Então Pedro dirigiu-se ao príncipe André. — Para não arruinarmos o território que abandonámos ao inimigo — replicou este, com uma entoação de amarga ironia. — É justo: não pode consentir-se que as tropas saqueiem o país e os soldados se habituem a roubar. Já em Smolensk, o pensar que os Franceses podiam vir por ai abaixo e que dispunham de forças superiores às nossas, vira as coisas com equidade. O que ele não pode compreender, no entanto — gritou, subitamente, fazendo vibrar a sua voz fina — o que ele não pode compreender e que nós nos batemos pela primeira vez em defesa da terra russa, que as nossas tropas lutam com uma coragem que eu lhes não conhecia, que durante dois dias seguidos detivemos os Franceses e que a nossa resistência nos duplicara, as forças. E apesar disso deu ordem de retirada e foram baldados todos os nossos esforços e todas as nossas perdas. Naturalmente não queria trair-nos, procurava arranjar as coisas da melhor maneira, calculara tudo Mas exactamente por isso é que nada vale. Nada vale hoje precisamente por tudo ter previsto, prudente e cauteloso como bom alemão que é. Como hei-de explicar-te?... Supõe que teu pai tinha um criado alemão, um criado excelente, que adivinhava todos os seus pensamentos melhor do que tu próprio. E, como é natural, deixarias que ele continuasse a servi-lo. Mas supõe que teu pai adoecia gravemente, então tratarias de o pôr de lado e serias tu, com as tuas mãos desajeitadas e inexperientes, que cuidarias dele e muito melhor do que, um estranho, por mais hábil que fosse. Ora foi assim que procederam para com Barclay. Enquanto a Rússia esteve de perfeita saúde, qualquer estrangeiro podia servi-la, e este era um excelente ministro, mas desde que a sua vida corre perigo, é de um homem do seu sangue que ela precisa. Lá no teu meio, no teu clube,acharam que ele era um traidor. Caluniando-o dessa maneira é que depois se envergonharão dos juízos temerários que sobre ele ousaram, acabando por fazer dele um herói ou um génio, coisa ainda mais injusta. É um alemão honrado e meticuloso... — No entanto, dizem que é um cabo-de-guerra muito hábil — contraveio Pedro. — Não sei o que isso quer dizer — continuou o príncipe André, sorrindo. — Um hábil cabo-de-guerra é aquele que prevê todas as eventualidades... que adivinha as intenções do adversário. — É impossível! — replicou André, como se não pudesse haver dúvidas a tal respeito. Pedro fitou-o, estupefacto. — Há quem diga, no entanto — voltou ele — que a guerra é como que uma partida de xadrez. — Talvez — replicou o príncipe André —, mas com esta pequenina diferença: que no xadrez, antes de mexeres uma pedra, te é dado pensares o tempo que quiseres, o tempo não urge: e com esta diferença ainda: que o cavaleiro é sempre mais forte que o peão, que dois peões são sempre mais fortes do que um, enquanto na guerra um batalhão às vezes é mais forte que uma divisão e outras mais fraco que uma companhia. Ninguém é, competente para conhecer a força relativa das tropas. Acredita no que te digo: se o resultado dependesse das medidas tomadas pelos estados— maiores, eu teria ficado no estado-maior e aí daria as minhas ordens, mas é aqui, neste regimento, que eu e estes senhores temos a honra de servir; é de nós, realmente, em minha opinião, que depende o dia de amanhã e não deles... O êxito nunca dependeu, nunca dependerá, nem da posição, nem do armamento, nem mesmo do número de tropas, sobretudo nunca dependeu da posição. — Então de que depende? — Do sentimento íntimo que existe em mim, naquele — apontou para Timokine —, no sentimento íntimo de cada soldado. O príncipe André olhava fixamente para Timokine, que, por sua vez, fitava o seu comandante com olhos assustados e estupefactos. Em vez de calado e sorumbático, como habitualmente, o príncipe André parecia agora extremamente agitado. Percebia-se que não podia deixar de exprimir os pensamentos que lheacudiam em tropel. — Ganha a batalha quem decide firmemente ganhá-la. Porque perdemos nós a batalha de Austerlitz? As nossas baixas eram quase iguais às dos Franceses, mas tínhamos dito a nós próprios cedo de mais que seríamos vencidos e na verdade fomos. E se o dissemos é porque não tínhamos porque rios bater ali: só queríamos abandonar o campo de batalha quanto mais depressa melhor. «A batalha está perdida, tratemos de fugir!» E demos ás de vila-diogo. Se assim não tivéssemos falado muito antes do fim da jornada, só Deus sabe o que teria acontecido. Amanhã não diremos a mesma coisa. Dizes tu que a nossa posição, a do flanco esquerdo. é fraca, que o nosso flanco esquerdo é extenso de mais. Tolices, tudo tolices, isso nada quer dizer. Que nos espera amanhã? Haverá milhões de possibilidades diversas, infinitamente variadas, que num momento dado farão que os deles ou os nossos homens desatem a fugir, que este ou aquele seja morto. Mas a verdade é que tudo quanto neste momento se faça não passa, de uma brincadeira, Na realidade, esses com quem til visitaste a posição, em vez de ajudarem a marcha geral das operações, estão a entravá-la. Só uma coisa os preocupa: os seus pequeninos interesses pessoais. — Num momento destes?! — indignou-se Pedro. — Sim, num momento destes — continuou o príncipe André. — Este momento, para eles, é apenas o momento em que lhes é possível minar a situação de um adversário e conseguir mais uma cruz ou mais uma palma. Quanto a mim, eis como a situação se apresenta amanhã. Cem mil russos vão defrontar cem mil franceses. É um facto que estes duzentos mil homens se vão bater e que sairão vencedores aqueles que se mostrem mais encarniçados mi luta e que menos se compadeçam de si próprios. E dir-te-ei mais: aconteça o que acontecer, sejam quais forem as maquinações dos chefes, seremos nós quem ganhará a batalha de amanhã. Amanhã, apesar de tudo, ganharemos a batalha. — Excelência, essa é a pura verdade — pronunciou Timokine.— Será a altura de poupar vidas? Pode crer, os soldados do meu batalhão não quiseram beber vodka. «Não é dia para isso», disseram eles. Todos ficaram calados. Depois os oficiais levantaram-se. O príncipe André acompanhou-os para dar as últimas ordens ao ajudante-de-campo. Assim que eles saíram, Pedro aproximou-se do príncipe André disposto a cavaquear com ele, quando, na estrada, a pequena distância do telheiro, se ouviu o trote de trêscavalos, e o príncipe André, relanceando os olhos nessa direcção, reconheceu Woltzogen e Clauzewitz, acompanhados de um cossaco. Tão perto passaram deles que puderam ouvir o que diziam: falavam alemão: — É preciso que a guerra se espalhe. Não posso exprimir-lhe a elevada apreciação deste juízo — dizia um deles. — Oh, sim! — replicou o outro. — Como o objectivo consiste em debilitar o inimigo, não se podem tomar em consideração as perdas de homens. — Evidentemente — afirmou o primeiro. — Sim, que a guerra se espalhe (Em alemão no texto original. (N, dos T)’ — repetiu o príncipe André, numa expressão de cólera depois de eles passarem— Que eu tenha deixado um pai, um filho, uma irmã, em Lissia Gori, isso para eles não importa. Era o que eu te dizia, não serão estes senhores alemães quem ganhará amanhã a batalha: não farão outra coisa senão complicá-la em tudo que estiver nas suas mãos; naquelas cabeças não há senão raciocínios que não valem um ovo furado e àqueles corações falta-lhes a única coisa precisa para amanhã, aquilo que tem Timokine. Entregaram-lhe a «ele» toda a Europa e agora vêm dar- nos lições... Ricos mestres! concluiu numa voz áspera. — Está então convencido de que se ganhará a batalha de amanhã? — inquiriu Pedro. — Sim, estou — replicou o príncipe André, distraidamente. — Uma decisão tomaria, se tivesse poderes para tal: não fazer prisioneiros. Prisioneiros? Eis o que é cavalheiresco! Os Franceses saquearam-me a casa e tentaram destruir Moscovo. Ultrajaram-me e outra coisa não fazem senão ultrajar-me. São meus inimigos, e para mim todos são criminosos. E é assim que pensam Timokine e o resto do exército. É preciso castigá-los. Desde que são meus inimigos não podem ser meus amigos, apesar de tudo o que disseram em Tilsitt. — Sim, realmente — replicou Pedro, olhando para o amigo com olhos brilhantes.— Estou completamente de acordo consigo. Naquele momento o problema que preocupava Pedro desde a encosta de Mojaisk afigurou-se-lhe claro e fácil de resolver, Agora compreendia inteiramente o sentido e a importância da guerra que se travava e da batalha que ia dar-se. Tudo o que vira durante aquele da, aquela expressão grave dos rostos que observara ao passar pelos homens, se iluminou para ele de um novo esplendor. Compreendeu esse calor oculto, latente, como se diz em física, o calor dopatriotismo que emanava de toda essa gente e isso explicava-lhe porque todos, serena e por assim dizer despreocupadamente, se preparavam para morrer. — Não fazer prisioneiros — prosseguiu o príncipe André — seria transformar a guerra e torná-la menos cruel. Em vez disso, não fizemos outra coisa senão brincar às guerras. E esse foi o erro: mostrámo-nos magnânimos, etc. Esta magnanimidade, este sentimentalismo, fazem-me lembrar a senhora que desmaia quando vê matar uma vitela. É tão boazinha que não pode ver correr sangue, embora seja capaz de comer com apetite essa mesma vitela servida com um molho saboroso. Falam-nos nos direitos da guerra, de cavalheirismo, de parlamentários, de humanidade para com os desgraçados e de outras coisas no mesmo género. Tudo isso são tolices. Eu bem vi em 1805 todas essas lindas coisas, esse cavalheirismo, esse respeito pelos parlamentários.. Enganaram-nos, e nós, pela nossa parte, fizemos o mesmo. Saqueiam casas que lhes não pertencem, espalham dinheiro falso, e, coisa pior ainda, matam-nos filhos, pais, e depois vêm-nos falar das leis da guerra e da generosidade para com o inimigo. Não fazer prisioneiros, mas matá-los a todos e morrermos também! Aquele que chegou, como eu, a esta convicção, depois de ter passado pelos mesmos sofrimentos... O príncipe André ia dizer ser-lhe indiferente que Moscovo viesse a ser ou não tomada, como o fora Smolensk, mas calou-se de chofre: um espasmo imprevisto lhe apertava a garganta. Deu alguns passos calado, mas nos seus olhos havia um brilho febril e os seus lábios tremiam quando retomou a palavra: — ...Se não existisse esta falsa magnanimidade na guerra, não caminharíamos para a morte senão quando a morte fosse certa, como acontece hoje. Não haveria guerras com o pretexto de que Pavel Ivanitch ofendeu Mikail Ivanitch. Mas em compensação quando houvesse uma guerra como a de hoje então seria uma guerra a valer. E não haveria também grandes massas de tropas em acção, como agora. Todos esses westfalianos e todos esses hessianos que Napoleão traz consigo não o teriam seguido até à Rússia, e nós, pela nossa parte, não nos teríamos ido bater ia Áustria e na Prússia, sem mesmo saber por que razão. A guerra não é um divertimento, mas a coisa mais repugnante deste mundo. É preciso compreendê-la e não nos servirmos dela como uma brincadeira. É preciso aceitar seriamente, com austeridade, esta terrível necessidade. E daqui não há que sair, é preciso acabar Com a mentira: a guerra, sim, a guerra é a guerra e não um divertimento. De outro modo a guerra será um entretenimento próprio de ociosos e de espíritossuperficiais. A classe militar é das mais dignas, Mas que é a guerra? Que é preciso para se ter êxito nas operações militares? Quais são os costumes da sociedade militar? A finalidade da guerra é o homicídio; as suas armas são a espionagem, a traição, a ruína dos habitantes, o saque e o roubo organizados para manutenção do exército, a fraude e a mentira mascaradas como astúcias de guerra. Quais os costumes da classe militar? A supressão da liberdade sob o pretexto da disciplina, a ociosidade, a grosseria, a crueldade, a devassidão, a embriaguez, E, apesar de tudo, é uma classe superior, respeitada por todos. Todos os reis, à excepção do imperador da China, envergam o uniforme militar e as mais altas recompensas reservam-se para aquele que mais gente matou. Reúnem-se os soldados, como vai acontecer amanhã, para se chacinarem uns aos outros. Matar-se-ão e ficarão mutilados dezenas de milhares de homens e depois haverá cerimónias religiosas de acção de graças por se terem morto tantos homens, sem que, no entanto, se deixe de exagerar o número dos que se mataram, proclamando-se a vitória, dizendo que quanto maior o número de mortos mais retumbante esta será. Como é possível que Deus os ouça e os escute lá de cima? — clamou o príncipe André na sua voz colérica. – Oh, querido amigo, durante os últimos tempos muito penoso me tem sido viver! Vejo que principiei a compreender coisas de mais. Não é bom conhecer o homem os frutos da árvore do bem e do mal... Mas não será por muito tempo — acrescentou. — Parece que estás com sono e para mim também são horas de dormir. Bom, volta para Gorki — disse, de súbito. — Oh! Não! — replicou Pedro, fitando André com os olhos ao mesmo tempo assustados e enternecidos. — Vai-te, vai-te! É preciso dormir bem antes da batalha. Aproximou-se rapidamente de Pedro, abraçou-o e beijou-o. — Adeus! Vai-te embora! — exclamou. — Tornar-nos-emos a ver?... Deu meia volta rapidamente e recolheu-se ao telheiro. Estava escuro e Pedro não pôde ver se no rosto do príncipe André transparecia raiva ou ternura. Pedro permaneceu um momento em silêncio sem saber se devia seguir o amigo ou retirar-se. «Não, não precisa de mim!», decidiu. «Também eu sei que é a última vez que nos vemos.» Soltou um fundo suspiro e regressou a Gorki. O príncipe André, ao voltar ao telheiro, estendeu-se sobre uma manta, mas não pôde dormir.Fechou os olhos. Imagens sobre imagens lhe perpassaram pela mente. O pensamento deteve-se-lhe por muito tempo e comovidamente numa delas. Uma noite, em Petersburgo. Natacha, muito animada e de rosto afogueado, contava-lhe como se perdera, no Verão anterior, andando a apanhar cogumelos, numa grande mata. E ia descrevendo-lhe, entrecortadamente, a floresta espessa, o que sentira, a conversa que tivera com um apicultor que encontrara ali; de vez em quando suspendia a narrativa para exclamar: «Não, não sei, não sei contar: não, não me pode compreender.» E ele tranquilizava— a, dizia-lhe compreendê-la muitíssimo bem; efectivamente sabia muitíssimo bem o que ela queria dizer. Natacha, porém, estava desolada por não ser capaz de exprimir como desejava a emoção poética que nesse dia lhe inundara a alma. «O velho era tão maravilhoso, estava tão escuro na floresta... e eram tão bondosos os seus... Não, não sei como dizer-lhe!», exclamava de novo, muito ruborizada e numa grande excitação. E André sorria agora com o mesmo venturoso sorriso com que então a olhara nos olhos. «Ah, compreendia-a perfeitamente. Sim, compreendia-a, e era isso mesmo que eu amava nela, essa alma que trasbordava, essa sinceridade, essa candura, essa alma que parecia não lhe caber no corpo... Sim, era essa alma que eu tão intensamente amava, que tão feliz me fazia... » E, de súbito, de novo se lembrou como terminara aquele idílio. «Aquele homem nada disto o embaraçava. Nada via, nada compreendia de todas estas coisas. Para ele era apenas uma garota bonita, um botãozinho, que nem sequer considerava digna de associar ao seu destino, Enquanto eu... no entanto, lá continua alegre e bem disposto.» Como se se sentisse queimado por um ferro em brasa, André ergueu-se de um salto e principiou a andar de um lado para o outro diante do telheiro. [XXVI] No dia 25 de Agosto, véspera da batalha de Borodino, haviam chegado ao acampamento de Napoleão em Valuieva o prefeito do palácio imperial, Monsieurs de Beausset, e o coronel Fabvier, o primeiro vindo de Paris e o segundo de Madrid. Depois de envergar o seu uniforme palaciano, Monsieur de Beausset principioupor pedir que lhe trouxessem o embrulho que devia entregar ao imperador. Depois penetrou no primeiro compartimento da tenda imperial, e enquanto ia conversando com os ajudantes-de-campo ai presentes pôs-se a abrir a caixa que lhe trouxeram. Fabvier, sem penetrar na tenda, detivera-se à entrada a cavaquear com os generais seus conhecidos. O imperador Napoleão ainda, não saíra do seu quarto de, dormir, onde acabava de se arranjar. Resfolegando e espirrando, ia, voltando ora as espadaúdas costas ora a peitaça cabeluda para a escova coro que o friccionava o criado de quarto. Entretanto, outro criado, com o dedo no gargalo de um frasco, espargia de água-de-colónia o corpo bem tisnado do amo e lia-se no rosto que só ele estava em condições de saber em que sítio o devia pulverizar e quanto. Os cabelos curtos de Napoleão, molhados, empastavam-se-lhe na testa. Mas o rosto, embora balofo e amarelento, respirava bem-estar físico. «Vá, com firmeza, continue...», dizia ele., encolhendo-se e espirrando enquanto a escova o friccionava. Um ajudante-de- campo que penetrara na tenda para lhe comunicar o número de prisioneiros feitos no recontro da véspera, cumprida a sua missão, aguardava a ordem de se retirar — Napoleão, franzindo as sobrancelhas, olhava-o de soslaio. — Não há prisioneiros — repetia ele — Deixam-se matar. Tanto pior para o exército russo. Vá, com firmeza, continue —, prosseguia ele, encolhendo o peito e apresentando ao criado os robustos ombros. — Bem, mande entrar Monsieur de Beausset, assim como Fabvier — disse ao ajudante-de-campo, com um aceno de cabeça — Sim, Sire. — E o ajudante-de-campo desapareceu. Os dois criados vestiram num rufo o seu amo, o qual, envergando o uniforme azul da Guarda, se dirigiu para a antecâmara em passos rápidos e firmes. Monsieur de Beausset, entretanto, dera-se pressa em instalar sobre duas cadeiras, mesmo em frente do focal por onde o imperador devia passar, o presente que trouxera da parte da imperatriz. Napoleão, porém, vestira-se tão depressa e surgira tão inopinadamente que não tivera tempo de preparar a surpresa como queria. O imperador percebeu imediatamente que tramavam qualquer coisa e que a surpresa ainda não estava pronta. Não quis privar Monsieur de Beausset do prazer que antegozava. Fingiu não dar pela sua presença e fez sinal a Fabvier paraque se aproximasse. Napoleão ouviu, de sobrecenho carregado e sem nada dizer, os elogios do coronel à bravura e à dedicação das suas tropas que se haviam batido em Salamanca, na outra extremidade da Europa, e cujo único desejo era serem dignas do seu imperador, só receando uma coisa: não o satisfazer. O resultado da batalha não fora feliz. Napoleão, enquanto Fabvier falava, dirigiu-lhe algumas observações irónicas das quais se depreendia que, estando ele ausente, não era outro o resultado que esperava. — Tenho de compensar isto em Moscovo. — comentou. — Até já — disse, e chamou De Beausset, que entretanto conseguira preparar a sua surpresa, instalando-a em cima de rima cadeira e cobrindo-a com um pano. De Beausset fez uma reverência à francesa, como o sabiam os antigos servidores dos Bourbons, e aproximou-se com um sobrescrito na mão. Napoleão colheu-o com jovialidade e puxou-lhe a ponta da orelha. — Não perdeu tempo. Muito folgo. Então, que diz Paris? — acrescentou, ao mesmo tempo que no rosto, grave lhe transparecia uma expressão cheia de ternura. — Sire, Paris inteiro lastima a sua ausência — replicou De Beausset cheio de a- propósito, Posto Napoleão soubesse que aquelas ou quejandas palavras eram da praxe na boca de Monsieur de Beausset, e apesar de nos seus momentos de lucidez perceber que tudo aquilo era falso, a frase soou-lhe bem. E de novo se dignou puxar-lhe a orelha. — Lastimo tê-lo obrigado a fazer uma tão longa jornada — disse ele. — Sire, nunca esperei encontrá-lo senão às portas de Moscovo — replicou De Beausset. Napoleão sorriu-se e, soerguendo a cabeça, lançou um olhar indiferente a sua direita. Um ajudante-de-campo aproximou-se rápido, e apresentou-lhe uma tabaqueira de ouro. Napoleão pegou na caixa. — Sim, teve sorte — disse ele, aproximando do nariz a tabaqueira aberta —, dentro de três dias, o senhor, que tanto gosta de viajar, vai ter ocasião de ver Moscovo. Naturalmente não contava visitar a capital asiática. Vai fazer uma linda viagem. De Beausset inclinou-se reconhecido pela delicada atenção do seu soberano,que lhe atribuía inclusivamente gostos de que ele nem sequer suspeitava. — E isto que é? — interrogou Napoleão, ao reparar que toda sua comitiva tinha os olhos num objecto coberto com um pano. De Beausset, com ligeireza de cortesão, recuou dois passos, sem voltar as costas, e retirou o pano ao mesmo tempo que dizia: — Um presente para Vossa Majestade da parte da imperatriz. — Era um retrato, de cores vivas, pintado por Gérard, do filho de Napoleão e de Maria Luísa, a quem toda a gente, sem que se soubesse porquê, chamava rei de Roma. A linda criança, cujo olhar lembrava o do Menino Jesus da Madona Sistina, jogava a emboca-bola. A bola era o globo terrestre e a forquilha que tinha na outra mão representava um ceptro. Embora a intenção do pintor figurando o rei de Roma a perfurar o globo terrestre com uma forquilha não fosse muito clara, a alegoria agradara e parecera claríssima tanto aos olhos dos que tinham visto o quadro em Paris como aos do próprio Napoleão. — O Rei de Roma! — exclamou ele, com um gesto gracioso. — Admirável! Com essa facilidade tão dos italianos de mudarem de expressão a seu talante, aproximou-se do retrato com um ar ao mesmo tempo cismador e enternecido. Sentia que o que dissesse e o que fizesse naquele momento pertenciam à história. Em contraste com sua magnificência graças à qual seu filho podia jogar a emboca- bola com o próprio mundo, afigurava-se-lhe que o que de melhor tinha a fazer era mostrar uma expressão da mais singela ternura paternal. Os olhos velaram-se-lhe de lágrimas, aproximou-se, procurou com os olhos uma cadeira, que logo se apressaram a chegar-lhe, e sentou-se diante do retrato. A um ligeiro gesto seu, toda a gente saiu em bicos de pés, deixando o grande homem sozinho com os seus pensamentos. Depois de permanecer algum tempo naquela muda contemplação, enquanto, sem saber porquê, percorria a rugosidade das tintas com a palma de uma das mãos, levantou-se e chamou De Beausset e o oficial de serviço. Deu ordem para que o retrato fosse colocado diante da tenda. Assim a velha Guarda não seria privada da grande ventura de ver o rei de Roma, filho e herdeiro do seu adorado imperador. Como já o esperava, enquanto almoçava com Monsieur de Beausset, a quem concedera essa honra, ressoaram diante da tenda os gritos entusiastas dos oficiaise dos homens da Guarda, que se haviam aproximado. — Viva o Imperador! Viva o Rei de Roma! Viva o Imperador! Findo que foi o almoço. Napoleão, na presença de De Beausset, ditou a ordem do dia ao exército. — Curta e enérgica! — disse ele quando acabou de ler a proclamação, escrita de um só jacto, sem uma rasura. A proclamação dizia: Soldados! Eis aqui a batalha que tanto desejáveis! A vitória depende de vós e é-nos indispensável; com ela teremos abundância, bons aquartelamentos de Inverno e um rápido regresso à pátria! Comportai-vos como vos comportastes em Austerlitz, em Friedland, em Vitebsk e em Smolensk e a posteridade recordara, orgulhosa, as vossas façanhas deste dia. Que se possa dizer de cada um de vós: este esteve na grande batalha de Moscovo. — De Moscovo! — repetiu Napoleão, e, tendo convidado Monsieur de Beausset, grande amador de viagens, a acompanhá-lo no seu passeio, saiu da tenda e dirigiu-se para os cavalos, já selados. — É muita bondade de Vossa Majestade — respondeu De Beausset ao convite de Napoleão, conquanto muito desejasse ir dormir e não soubesse montar a cavalo. Napoleão acenou com a cabeça ao visitante e este não teve outro remédio senão acompanhá-lo. Quando o imperador saiu da tenda, recrudesceram as aclamações dos soldados da Guarda diante do retrato. Napoleão franziu o sobrolho. — Tirem-no daí — disse ele, apontando para o retrato com um gesto majestoso e cheio de graciosidade. — Ainda é muito cedo para que essa criança veja um campo de batalha. Cerrando os olhos e inclinando a cabeça. De Beausset soltou um profundo suspiro, como querendo significar que avaliava muito bem as palavras que o imperador acabava de pronunciar. [XXVII] Os historiadores de Napoleão contam que o imperador passou toda a manhã desse dia 25 de Agosto a cavalo, examinando o terreno, discutindo os planos que os marechais lhe apresentavam e transmitindo pessoalmente as suas ordens aos generais. A linha primitiva dos Russos ao longo do no Kolotcha fora perfurada e uma parte dessa linha, a saber, o flanco esquerdo, depois da tomada do reduto de Chevardino, no dia 24, tivera de recuar. Essa parte não estava fortificada nem defendida por um curso de água e diante dela havia apenas uma planície descoberta e lisa. Era evidente, tanto para os observadores militares como para os leigos, que por ali os Franceses atacariam. Para isso não pareciam precisas quer tantas combinações, quer tantas preocupações e diligências da parte do imperador e dos seus marechais, bem como parecia dispensável essa alta capacidade muito especial a que se dá o nome de génio e que tanto gosto se exibir a Napoleão. Porém, os historiadores que mais tarde descreveram este acontecimento, as pessoas da sua comitiva e ele próprio pensavam de outra maneira. Napoleão percorria o campo examinando atentamente a topografia, do local, abanava a cabeça ora para aprovar ora para rejeitar as sugestões que lhe faziam, sem nada dizer aos generais sobre a marcha secreta dos pensamentos que o levavam às suas decisões, e não lhes dava a conhecer senão as suas conclusões definitivas, já como ordens. A Davout, a quem chamava príncipe de Eckmühl, que propusera se contornasse o flanco esquerdo do inimigo, respondera simplesmente Napoleão que tal não devia fazer-se, e sem explicar porquê. Mas tendo o general Compans, encarregado de, atacar as flechas, emitido a opinião de que se fizesse marchar a sua divisão através da floresta, o imperador aprovou-o, embora o pretenso duque de Elchingen, isto é, Ney, se tivesse permitido observar que os movimentos através da floresta podiam ser perigosos e provocar a desordem nas fileiras. Depois de examinar o terreno diante do reduto de Chevardino, o imperador quedou-se por momentos pensativo e silencioso, indicando, em seguida, os locais onde deviam ser instaladas no dia seguinte as duas baterias destinadas a atacara,’ fortificações russas e onde, a seu lado, deveria ser instalada a artilharia de campanha. Depois de ter dado esta e outras ordens, regressou à sua tenda, e o dispositivo das tropas foi redigido por escrito e, ditado por ele. Os seus historiadores falam com grande entusiasmo e demais com grande respeito desse dispositivo. ORDEM DE BATALHA Dada no acampamento imperial, na retaguarda de Mojaisk, a 6 de Setembro de 1812 Ao amanhecer, as duas novas baterias, instaladas durante a noite no plaino do príncipe de Eckmühl, romperão fogo contra as duas baterias inimigas dispostas na sua frente. Na mesma altura, o general Pernety, comandante de artilharia do 1º corpo, com as trinta bocas de jogo da divisão Compans e todos os obuses das divisões Dessaix e Friant, que avançarão, romperá fogo e inundará de granadas a bateria inimiga, a qual, deste modo, terá contra si vinte e quatro peças da Guarda, trinta da divisão Compans e oito das divisões Friant e Dessaix, Total, sessenta e duas bocas de fogo. O general Foucher, comandando a artilharia do 3.` corpo, colocar-se-á, com todas as baterias de obuses dos 3º e 8º corpos, num total de dezasseis, em volta da bateria que bombardeia o reduto da esquerda, o que perfará um conjunto de quarenta bocas de fogo contra esta bateria. O general Sorbier esta preparado para à primeira voz se dirigir com todas as baterias de obuses da Guarda contra uma ou outra das fortificações. Durante este canhoneio, o príncipe Poniatowski dirigir- se-á, através da floresta, em direcção à aldeia e contornaráa posição inimiga. O general Compans embrenhar-se-á na floresta para tomar o primeiro reduto. Uma vez a batalha começada desta sorte, as ordens serão dadas consoante os movimentos do inimigo. O canhoneio da esquerda iniciar-se-á assim que se ouvir o canhoneio da direita. Os atiradores da divisão Morand e das divisões do vice-rei, assim que virem principiado o ataque da direita, abrirão fogo muito intenso. O vice-rei ocupará a aldeia, transpondo as três pontes, e seguirá ao mesmo nível das divisões de Morand e de Friant, que, sob o seu comando, se dirigirão para o reduto e penetrarão na linha com as demais tropas. Tudo isto será feito com ordem e método e conservando sempre uma boa reserva de homens. Este dispositivo, pouco claro e assaz confuso, se assim nos é permitido referirmo-nos, sem blasfémia, ao génio de Napoleão, encerrava quatro pontos, quatro disposições. Nenhum deles se podia cumprir nem nenhum foi cumprido. A ordem dizia, em primeiro lugar, que as baterias instaladas no local escolhido pelo imperador, bem como as peças de Pernety e de Foucher, que a elas se deveriam associar, ou seja, na sua totalidade, cento e duas bocas de fogo, romperiam fogo e inundariam de granadas as flechas russas e o reduto. Eis o que era impossível, visto que dos locais designados os projécteis não Podiam alcançar as fortificações russas e estas cento e duas peças disparariam debalde até que um comandante, procedendo contra as ordens dadas, as mandasse avançar. A sua segunda resolução determinava que Poniatowski se dirigisse à aldeia, através da floresta, para contornar a ala esquerda dos Russos. Eis o que não podia executar-se, e o não foi, pois a Poniatowski deparou-se-lhe, na floresta, Tutchkov, que lhe cortou o passo e o impediu de contornar a posição. A terceira determinação dizia que o general Compans atravessaria a floresta para se apoderar da primeira fortificação. A divisão Compans não pôde apoderar- se desta fortificação e foi repelida, visto que, ao desembocar da floresta, se viu obrigada a alinhar sob um fogo de metralha que Napoleão não previra. E a quarta, por fim: «O vice-rei ocupará a aldeia de Borodino transpondo astrês pontes, e seguirá ao mesmo nível das divisões de Morand e Friant, que, sob o seu comando, se dirigirão para o reduto e penetrarão na linha com as demais tropas.» Tanto quanto é possível interpretar esta ordem, não quanto sua confusa redacção, mas de acordo com as tentativas feitas pelo vice-rei para a executar, devia ele atravessar Borodino à esquerda do reduto, enquanto as divisões Morand e Friant atacariam a frente ao mesmo tempo. Esta ordem, assim como todos os outros pontos do dispositivo, não foi executada nem o podia ser. Depois de ter ultrapassado Borodino, o vice-rei foi repelido para o no Kolotcha e não pôde avançar mais: quanto às divisões de Morand e Friant, essas não tomaram o reduto, sendo esmagadas, e o reduto apenas foi tomado pela cavalaria no fim da batalha, circunstância que Napoleão naturalmente não previra. Assim, nenhuma das disposições preconizadas foi executada e não o podia ser. Lê-se ainda nesse documento que, uma vez iniciada a batalha de acordo com o dispositivo assente, ordens ulteriores seriam dadas, consoante os movimentos do inimigo. Era, portanto, de presumir que durante a batalha Napoleão desse todas as ordens necessárias. Ora tal não aconteceu, o que aliás seria impossível, visto que, como depois veio a saber-se, o imperador, durante o combate, se manteve tão afastado que não podia ter conhecimento do desenrolar da batalha e que nenhuma das suas ordens poderia ter sido executada. [XXVIII] Muitos historiadores garantem que a batalha de Borodino não foi ganha pelos Franceses devido a Napoleão, nesse dia, estar constipado, e que, se não fosse isso, as suas ordens anteriores à batalha e durante ela teriam sido ainda mais geniais, a Rússia teria sido derrotada e a face do mundo teria sido outra. Para os historiadores que admitem ser a Rússia obra da vontade de um único homem, de Pedro, o Grande, que a França se metamorfoseou de república em império e que os exércitos franceses penetraram naquele país graças à vontade de um só homem, de Napoleão, aceitar que a Rússia se manteve poderosa apenas porque o imperador estava muito constipado no dia 26 eis o que é raciocinar com toda alógica. Se tivesse dependido da vontade de Napoleão travar ou não a batalha de Borodino, se dele dependesse tomar esta ou aquela disposição, é evidente que uma constipação, capaz, necessariamente, de influenciar as manifestações da sua vontade, podia ter sido a causa da salvação da Rússia e o criado de quarto que no dia 24 se esqueceu de dar umas botas impermeáveis ao imperador seria a esta hora, certamente, o nosso salvador. Nesta ordem de ideias, a conclusão é indiscutível, tão indiscutível como o gracejo de Voltaire ao atribuir a matança de S. Bartolomeu a uma indisposição de estômago de Carlos IX. Mas, para os homens que se recusam a admitir que os acontecimentos importantes possam ser a consequência da manifestação da vontade de um só homem, o argumento anterior, além de pura e simplesmente absurdo, é contrário a toda a verdadeira lógica humana. Quando se inquire da causa dos acontecimentos históricos, outra resposta pode dar-se, qual seja a que o caminho das coisas deste mundo está determinado antecipadamente, dependendo do concurso do livre arbítrio de todos os actores dos acontecimentos, não sendo senão externa e aparente a influência que sobre eles possam exercer os Napoleões. Por estranho que pareça à primeira vista a asserção segundo a qual a ordem dada por Carlos IX para a matança de S. Bartolomeu só aparentemente dependeu da sua vontade, e que a batalha de Borodino, em que oitenta mil homens perderam a vida, não haja sido ordenada por Napoleão, embora tenha sido ele quem deu essa ordem e quem orientou os lances da batalha, pois apenas julgou fazê-lo, por mais ilógico que se suponha, a dignidade humana que nos diz que cada um de nós não é mais nem menos homem do que qualquer Napoleão leva-nos a admitir essa solução como uma hipótese, e as investigações históricas plenamente confirmam tal ponto de vista. Na batalha de Borodino, Napoleão não disparou um único tiro (1 não matou quem quer que fosse. Foram os seus soldados quem tudo fez. Por consequência, não foi ele quem matou. Os soldados do exército francês acorreram a matar o seu semelhante não para executarem ordens, mas de livre vontade, Todo o exército — franceses, italianos, alemães, polacos – esfomeado, esfarrapado, morto de fadiga, ao ver-se diante desse outro exército que lhe cortava o passo para Moscovo, teve a impressão de que «o que não tem remédio, remediado está», Se naquele momento Napoleãotivesse proibido os seus soldados de se baterem com os Russos, tê-lo-iam matado a ele, e teriam ido bater-se fosse como fosse, visto isso ser inevitável. Quando ouviram ler a ordem do dia de Napoleão, na qual lhes prometia, para os recompensar dos ferimentos e da morte, o orgulho, para a posteridade, de terem estado na batalha de Moscovo, gritaram. «Viva o Imperador!» exactamente como tinham gritado: «Viva o Imperador!» ao verem a criança que trespassava o globo terrestre com um taco de emboca-bola, e tal qual como o fariam de cada vez que lhes dissessem uma tolice do mesmo género. Outra coisa, não podiam fazer senão gritar: «Viva o Imperador!» e marchar para a batalha. Eis a única maneira, de virem a encontrar em Moscovo, depois da vitória, pão para a boca e descanso para o corpo, E eis como não foi por causa das ordens do seu amo que eles mataram o seu semelhante. E também não foi Napoleão quem dirigiu a luta, visto nada se ter cumprido do dispositivo que ele traçara, e que ele próprio nada soube da marcha da batalha. Assim, pois, o facto de estes soldados terem chacinado o seu semelhante não veio a produzir-se por vontade de Napoleão, mas deu-se, sem sua intervenção, graças à vontade dessas centenas de milhares de homens que, intervieram no acontecimento. Bonaparte teve apenas a ilusão de, que tudo era obra de sua vontade. Por isso mesmo, o ter estado ,constipado ou não conta mais para a história que a constipação de qualquer dos seus mais modestos soldados. A constipação de Napoleão no dia 26 de Agosto ainda se torna menos importante desde o momento em que são injustificadas as demonstrações dos historiadores ao dizerem ter sido por causa desta indisposição que as suas resoluções durante a batalha foram menos eficazes do que das outras vezes. O dispositivo atrás citado não era pior do que os anteriores, era mesmo melhor que todos os que tinham servido para ganhar outras batalhas. As supostas ordens dadas por Napoleão durante o combate não eram piores que as precedentes, mas exactamente iguais. No entanto esse dispositivo e essas ordens pareceram piores porque a batalha de Borodino foi a primeira que Napoleão não ganhou. Os mais belos e mais profundos planos parecem sempre maus e os sábios estrategos criticam-nos com um ar proficiente sempre que acontece não terem levado à vitória; pelo contrário, parecem excelentes as mais contestáveis disposições, e os autores mais sérios não se cansam de lhes louvar os méritos, enchendo sobre eles volumes e volumes, desde que levaram à vitória.O dispositivo de Weirother em Austerlitz era modelar no seu género; no entanto, foi desaprovado e desaprovaram-no precisamente por causa da sua perfeição, da minúcia dos seus pormenores. Na batalha de Borodino, Napoleão desempenhou o seu papel de representante do poder tão bem ou melhor do que em qualquer das outras batalhas. Nada fez que prejudicasse a marcha dos acontecimentos. Tomou as medidas mais sensatas; não perdeu a cabeça, não caiu em qualquer contradição, manteve o sangue-frio e não fugiu do campo de batalha. Mercê do seu grande tacto e da sua experiência guerreira, soube desempenhar com calma e dignidade o papel de personagem fictícia de chefe supremo. [XXIX] Ao regressar da segunda e minuciosa inspecção das linhas, Napoleão disse: — As pedras estão no tabuleiro, amanhã começará o jogo! Deu ordem para que lhe servissem um ponche, e, chamando De Beausset, pôs- se a falar-lhe de Paris, das modificações que pensava fazer no palácio da Imperatriz, surpreendendo o prefeito com o facto de se lembrar das coisas mais insignificantes da corte. Interessou-se por futilidades, entreteve-se a brincar com a mania que De Beausset tinha das viagens e a sua conversa era despreocupada como a de um cirurgião conhecedor do seu ofício e cheio de confiança em si que vai arregaçando as mangas e ajustando o avental enquanto colocam o paciente na marquesa. «Tudo depende de mim e está claro e definido na minha cabeça. Quando chegar o momento de meter mãos à obra, ninguém fará melhor do que eu; por enquanto estou no meu direito de gracejar e quanto mais gracejo e estou sereno tanto mais deveis sentir-vos tranquilos e confiantes e tanto mais o meu génio vos causará admiração.» Depois de ingerir o seu segundo copo de ponche, Napoleão foi descansar na expectativa do grave acontecimento que, como ele pensava, iria dar-se no dia seguinte. O que se preparava preocupava-o de mais para o deixar dormir, e apesar da constipação, que se lhe agravara com a humidade da noite, às três horas da manhã entrou na grande sala da tenda assoando-se ruidosamente. Perguntou se os Russos não se haviam retirado. Responderam-lhe que as fogueiras inimigas se viam sempre no mesmo sítio. Bonaparte abanou a cabeça em sinal de aprovação. O ajudante-de-campo de serviço penetrou na tenda. — Então, Rapp, acha que faremos hoje um bom trabalho? — perguntou Napoleão. — Sem dúvida nenhuma, Sire — replicou Rapp. Napoleão relanceou-lhe os olhos. — Recorda-se, Sire, do que me deu a honra de me dizer em Smolensk? — voltou Rapp. — «O que não tem remédio, remediado está.» Napoleão franziu as sobrancelhas e quedou-se por muito tempo calado, com a cabeça entre as mãos.— Pobre exército — exclamou, de súbito — diminuiu muito desde Smolensk. A fortuna é uma verdadeira cortesã, Rapp, sempre o disse e começo a senti-lo. Mas a Guarda, Rapp, a Guarda mantém-se intacta? — perguntou ele. — Mantém-se, sim, Sire — respondeu Rapp. Napoleão pegou numa pastilha e levou-a à boca enquanto consultava o relógio. Não tinha sono; a madrugada ainda vinha longe, e para matar o tempo nem sequer tinha ordens a dar, pois todas as medidas estavam dadas ou postas em execução. — Distribuíram os biscoitos e o arroz aos regimentos da Guarda? — inquiriu com severa expressão. — Distribuíram, Sire. — Mas o arroz? Rapp disse ter sido ele próprio quem transmitira pessoalmente essas ordens, mas o imperador abanou a cabeça, com ar descontente, como se duvidasse. Um criado entrou com o ponche. Mandou que trouxessem outro copo para Rapp e, calado, pôs-se a saborear o ponche, bebendo gole a gole. — Não tenho nem paladar nem olfacto — disse, cheirando o copo. — Esta constipação é insuportável. Estão sempre a falar em medicina. Que medicina é esta que não é sequer capaz de curar uma constipação? Corvisart deu-me estas pastilhas, mas para nada prestam. Poderão curar? É impossível curar. O nosso corpo é uma máquina de viver. Está organizado para isso, é da sua natureza; deixe-se nele a vida exprimir-se livremente, que ela própria se defenda: obrará maiores prodígios do que se a cumularmos de remédios. O nosso corpo é semelhante a um relógio perfeito com corda para um certo tempo; o relojoeiro não tem o poder de o abrir, mas apenas de o manusear às apalpadelas e de olhos vendados... O nosso corpo é uma máquina de viver, eis tudo. E embalado nas definições, coisa tão do seu agrado, logo ali deu outra. — Sabe o que é a arte da guerra, Rapp? — perguntou. — É a arte de ser mais forte do que o inimigo em determinado momento. Eis tudo. Rapp não respondeu. — Amanhã teremos de nos haver com Koutouzoff! — exclamou Napoleão. — Vamos a ver. Lembre-se: era ele quem comandava em Braunau e nem uma só vez em três semanas montou a cavalo para inspeccionar as fortificações. Vamos a ver! Voltou a olhar para o relógio. Eram apenas quatro horas. Não tinha sono,bebera o ponche e não havia mais que fazer. Levantou-se, pôs-se a passear de um lado para o outro, e, depois de vestir um redingote mais espesso, pegou no chapéu e saiu. A noite estava escura e húmida; do céu caía uma imperceptível cacimba. As fogueiras dos regimentos da Guarda, mesmo — ali, despediam uma luz ténue, e na distância, através da fumarada, viam-se brilhar as fogueiras das linhas russas. Tudo estava sossegado, ouvindo-se distintamente o ruído surdo e o tropear das tropas francesas já em marcha a caminho das suas posições. Napoleão deu alguns passos, observou as fogueiras, apurou o ouvido ao tropear dos soldados e ao passar por diante de uma grande praça da Guarda, com a sua barretina de pelo, que fazia sentinela diante da sua tenda e se imobilizara como um poste negro assim que sentira chegar o imperador, parou diante dela. — Há quanto tempo estás de serviço? — inquiriu nesse tom afectuoso, entre brusco e afável, que lhe era habitual sempre que se dirigia aos soldados. A praça respondeu. — Ah, um dos antigos! E arroz? Receberam arroz no regimento? — Recebemos, majestade. Napoleão moveu a cabeça e afastou-se. Às cinco horas e meia, o imperador dirigia-se a cavalo para a aldeia de Chevardino. Começava a clarear, o céu iluminava-se, havia apenas uma nuvem para este, As fogueiras abandonadas apagavam-se na débil claridade do amanhecer. A direita ressoou um tiro de canhão, abafado e solitário, que se Propagou e perdeu no silêncio geral, Decorreram alguns minutos. Ouviu-se uma segunda detonação, depois uma terceira, estremecendo o ar. Uma quarta e uma quinta mais majestosas se ouviram mais perto, algures, para a direita. Ainda as primeiras detonações se não haviam esbatido já outras se lhe sucediam, fundindo-se num reboar contínuo. Napoleão chegara com o seu séquito ao reduto de Chevardino e desmontara do cavalo. Principiara a partida. [XXX] Ao regressar a Gorki, depois de deixar o príncipe André, Pedro deu ordens aoescudeiro para preparar os seus cavalos e acordá-lo às primeiras horas da madrugada, adormecendo acto contínuo, atrás de um biombo, no cantinho que Bóris lhe cedera, Quando acordou, no dia seguinte, ninguém mais havia na isbá. Os vidros das janelas estremeciam, O escudeiro abanava-o. — Excelência! Excelência!... — repetia este, obstinado, abanando-o pelos ombros, sem o olhar, como se tivesse perdido a esperança de o acordar. — Hem? Já principiou? São horas?! — exclamou ele, finalmente. — Ouvem-se os tiros — disse o escudeiro, antigo soldado. — Os outros senhores já se foram embora, e até o Sereníssimo passou há muito. Pedro vestiu-se apressadamente e veio para o alpendre. A manhã estava clara e alegre. Havia frio e sentia-se a humidade da cacimba da noite. O Sol, que acabava de despontar, rompendo cortina de nevoeiro, projectava os seus raios, ainda entre nuvens, pelos telhados em frente, pela poeira da rua humedecida de orvalho, pelas paredes das casas, pelas aberturas da sebe, pelos cavalos de Pedro, que o aguardavam diante da isbá. O troar do canhão tornou-se mais distinto, Um ajudante-de-campo passou a trote acompanhado de um cossaco. «São horas, conde, são horas!», gritou ele. Depois de dar ordem ao criado para o seguir com o cavalo. Pedro meteu pelo caminho que conduzia ao cabeço donde examinara na véspera o campo de batalha. Um rancho de militares ali estava reunido, ouviam-se as conversas em francês dos oficiais do estado-maior, no meio dos quais alvejava a cabeça branca de Kutuzov, com a sua barretina alvadia, de banda vermelha, e a sua espessa nuca enterrada nos largos ombros. Perscrutava o horizonte com um binóculo, para os lados da estrada real. Ao subir os degraus que davam acesso ao cabeço, Pedro olhou lá para baixo e quedou extasiado diante do espectáculo que se lhe oferecia. Era o mesmo panorama que contemplara na véspera, mas agora toda a campina estava coberta de soldados e de fumo, e os raios oblíquos do Sol, que se erguia por detrás e à esquerda de Pedro, inundavam-no, através da atmosfera diáfana da manhã, de uma deslumbrante luz dourada com resplendor rosado e grandes sombras negras. Os bosques longínquos que fechavam o panorama pareciam talhados numa pedra preciosa verde— amarelada e as suas encostas recortavam-se em linhas ondulosas, interceptadas por detrás de Valuieva pela estrada real de Smolensk,toda coberta de tropas. Mais perto resplandeciam campos dourados e matas novas. Por toda a parte havia soldados: em frente, à direita, à esquerda. Tudo aquilo estava cheio de movimento, de majestade, de imprevisto, mas o espectáculo que mais chamou a atenção de Pedro foi o próprio campo de batalha, Borodino e o vale de Kolotcha, numa e noutra margem do rio. Em Borodino, em ambas as margens do rio, e sobretudo a esquerda, na confluência de Voina, de margens alagadiças, desdobrava-se um véu de neblina, que se dissipava e se vaporizam ao calor do sol, imprimindo cores e contornos mágicos a tudo que deixava a descoberto. A este nevoeiro misturava-se a fumarada da pólvora, e por toda a parte, por cima dessas nuvens, se reflectiam os lampejos furtivos da luz matinal, dardejando a água, o orvalho e as pontas das baionetas que se acumulavam ao longo dos rios e na povoação. Através da neblina surgiam a branca igreja, aqui e ali os telhados das isbás, a espaços massas compactas de soldados, e, de onde em onde, armões pintados de verde e peças de artilharia. Tudo isto remexia, ou parecia remexer, emergindo da névoa que se estendia sobre essa vasta área. Tanto nos lugares baixos cobertos de neblina, nas imediações de Borodino, como fora daí, mais para cima, e sobretudo mais à esquerda das linhas, pelas matas, pelos campos, pelos vales e nos altos dos cabeços, apareciam a todo o momento novelos de fumo, umas vezes isolados, outras em turbilhões, agora mais longe, logo mais perto, inchando, engrossando, turbilhonando, misturando-se, enchendo o espaço. Aqueles novelos de fumo e, por estranho que pareça, as detonações que os acompanhavam constituíam a beleza principal do espectáculo. «Paf!», e de súbito lá surgia um circulo de fumo compacto, que se tingia de violeta, de cinzento e de um branco-leitoso. E um segundo depois «Bum!», ouvia-se o estampido. «Paf! Paf!» Dois círculos de fumo se projectavam no ar, se entrechocavam, se confundiam. «Bum! Bum!» ouvia-se em seguida, e os estampidos confirmavam o que os olhos viam. Pedro viu a fumarada redonda, suspensa no ar como um balão compacto, e logo, no seu lugar, mais balões que se alongavam. «Paf!... » E daí a pouco, outra vez: «Paf! Paf!» Lá vinham mais três, quatro, com intervalos igualmente regulares: «Buum! Buum... Buum!» ecoavam, plenas e seguras, as majestosas detonações. Os novelos de fumo ora pareciam fugir ora dir-se-ia imóveis, e então eram as matas, os campos, as baionetas faiscantes que fugiam. A esquerda, nos campos de lavoura e nas moitas, lá iam surgindo continuamente estes grossos novelos de fumo, acompanhados do seu estrondear solene, enquanto mais perto, junto das colinas e das matas, rebentava o fumozinho das espingardas, que não tinha tempo de se estender, formando bolas, e logo era seguido de breve crepitar. «Trá... tá, tá, tá... » matraqueava a fuzilaria, com intervalos rápidos mas irregulares e relativamente raros comparados com a detonação das peças de artilharia. Pedro sentiu desejos de estar ali onde se viam esses novelos de fumo, essas baionetas faiscando, aquele movimento, aquele ruído. Relanceou os olhos a Kutuzov e ao seu séquito, como que a comparar as suas impressões com as deles. Todos estavam de olhos fitos no espectáculo do campo de batalha, tal como ele, e pensou que todos sentiam o que ele estava a sentir. Em todos os rostos resplandecia esse calor latente, que ele já tivera ocasião de ver na véspera, e que plenamente compreendera depois da sua conversa com o príncipe André. «Vai, meu amigo, vai, que Cristo te acompanhe!», dizia Kutuzov, sem tirar os olhos do campo de batalha, para um general que estava a seu lado. O general a quem fora dada esta ordem passou diante de Pedro, dirigindo-se para o fundo do cabeço. «Ao vau!», exclamou fria e severamente o general a um dos oficiais do estado- maior que lhe perguntava aonde ia. «E eu também, eu também vou», disse Pedro de si para consigo, e foi no encalço do general. Este montou no cavalo que um cossaco lhe apresentou. Pedro abeirou-se do seu escudeiro, que mantinha os cavalos pela arreata. Perguntou-lhe qual deles era o mais manso, montou, agarrou-se-lhe às crinas, firmou-se na sela e deixou-se levar a galope, no meio da comitiva do general, provocando sorrisos entre os oficiais do estado-maior que o olhavam do alto do cerro. [XXXI] O general que Pedro seguia, depois de descer a encosta, voltou bruscamentepara a esquerda, e Bezukov, tendo-o perdido de vista. Precipitou-se no meio das fileiras dos soldados de infantaria que marchavam na sua frente. Tratou de se escapar no meio deles, primeiro avançando, depois voltando para a esquerda e em seguida para a direita, Para onde quer que se voltasse, só via soldados com a mesma expressão preocupada, entregues a um labor invisível, mas muito importante sem dúvida, Todos olhavam para aquele homem corpulento, de chapéu branco, que, sem necessidade, os atropelava com o seu cavalo, com um olhar ao mesmo tempo interrogador e descontente. «Que vens tu fazer a cavalo para o meio do batalhão?», gritou-lhe um dos soldados. Outro assentou uma coronhada no animal e Pedro, firmando-se no arção da sela, dominando a custo o cavalo, que tomara e, freio nos dentes, lá conseguiu desenvencilhar-se dos soldados, ganhando o espaço livre. Na sua frente estava uma ponte junto da qual outros soldados disparavam. Aproximou-se. Sem saber, estava na ponte do no Kolotcha, entre Gorki e Borodino, ponte que os Franceses, depois de tomarem esta última povoação durante a primeira fase da batalha, acabavam de atacar. Viu na sua frente a ponte e os soldados que faziam fosse o que tosse, de ambos os lados do no e na campina, no meio da fumarada, por entre as medas de palha em que não reparara na véspera. No entanto, não obstante o tiroteio intenso, não lhe veio à mente que se encontrava em plena batalha. Não ouvia as balas que assobiavam de todos os lados nem as granadas que lhe passavam por cima da cabeça; não via o inimigo na outra margem do rio, e levou tempo a perceber que eram mortos e feridos que caíam a seu lado. Olhava para tudo com o sorriso que lhe não saía dos lábios. «Que anda aquele a fazer no meio das linhas?», gritou uma voz. «A direita, à esquerda!», exclamaram outras vozes. Pedro meteu pela direita e viu-se inopinadamente diante de um ajudante-de- campo do general Raievski, seu conhecido. O oficial mirou-o colérico e ia cobri-lo de injúrias quando o reconheceu, dirigindo-lhe um aceno de cabeça. — Que está aqui a fazer? — interrogou ele, e continuou galopando. Pedro, que sentia estar ali deslocado e que para nada servia, receoso de embaraçar ainda mais aquela gente seguiu a galope o ajudante-de-campo. — Que aconteceu? Posso acompanhá-lo? — perguntou. — Espere, espere! — replicou o ajudante-de-campo, e, depois de se dirigir aum coronel gordanchudo parado no meio da campina, transmitiu-lhe uma ordem e voltou para junto de Pedro. — Que veio aqui fazer, conde? — disse-lhe, sorrindo. — Por simples curiosidade? — Pois, pois — disse Pedro. O ajudante-de-campo fez meia volta e seguiu o seu caminho, — Graças a Deus, isto aqui não é nada — disse ele —, mas no flanco esquerdo, o de Bagration, a coisa está feia. — Realmente? — exclamou Pedro. — Onde é isso? — Venha comigo ao cabeço. Lá de cima vê-se tudo muito bem, Na nossa bateria as coisas não vão mal. Bom, quer vir? — Vou, vou consigo — replicou Pedro, olhando à volta a procura do escudeiro. Foi então que pela primeira vez viu soldados feridos arrastando-se por seu pé ou levados em padiolas. Naquele mesmo prado, com as suas cheirosas medas de palha, por onde ele passara na véspera, jazia um soldado imóvel, com a cabeça voltada de forma estranha e cuja barretina rolara por terra. «Porque não levaram este?», ia ele dizer, mas calou-se, reparando na severa expressão do ajudante-de-campo, que olhara para o mesmo sítio, Não foi capaz de descobrir o escudeiro, e na companhia do ajudante-de-campo meteu pelo talude para atingir a encosta de Raievski. O seu cavalo, no rasto do do companheiro, balouçava-o cadenciadamente. — Bem se vê que não está habituado a montar, conde — disse o ajudante-de- campo. — Estou, mas este cavalo tem um trote muito duro — tornou Pedro, embaraçado. — Oh!, espere... Está ferido na perna direita, acima do joelho. Naturalmente foi uma bala. Os meus parabéns, conde: o baptismo do fogo. Ultrapassaram o sexto corpo no meio da fumarada, na retaguarda da artilharia, que, instalada na vanguarda, disparava ininterruptamente, com um matraquear ensurdecedor. E assim penetraram numa matazinha. Estava fresco ali, havia uma grande serenidade e sentia-se no ar esse cheiro especial do Outono. Pedro e o ajudante-de-campo desmontaram e subiram a pé a encosta. — Está o general? — perguntou o ajudante-de-campo ao chegar ao cabeço. — Ainda há pouco aí estava, mas foi para aquele lado — responderam-lhe,apontando para a direita, O ajudante-de-campo voltou-se para Pedro, como se não soubesse que destino dar-lhe. — Não se preocupe — disse-lhe este — Se não há inconveniente, vou instalar- me lá em cima, no cabeço. — Está bem, vá. Dali vê-se tudo e não é muito perigoso. Depois irei buscá-lo. Pedro encaminhou-se para a bateria e o ajudante-de-campo prosseguiu o seu caminho, Nunca mais se viram e muito tempo depois Pedro veio a saber que nesse mesmo dia o seu companheiro ficara sem um braço. O cabeço a que Pedro trepou veio a ser um lugar célebre — mais tarde conhecido entre os Russos pela «bateria de Raievski» e entre os Franceses por o grande reduto, o reduto fatal, o cabeço do centro —, e a sua volta tombaram dezenas de milhares de homens, considerando-o os Franceses como tendo sido a chave da posição. O reduto era formado por trincheiras abertas nos três lados do cabeço. Dentro dessas trincheiras disparavam dez peças de artilharia que cuspiam metralha pelas canhoneiras abertas no parapeito. Alinhadas de cada lado do cabeço havia outras peças que não cessavam de disparar. Um pouco à retaguarda estavam as tropas de infantaria. Quando Pedro ali chegou, nem por sombras lhe passou pela cabeça que aquelas trincheiras com aquele punhado de peças de artilharia representavam o ponto mais importante de toda a batalha. Pelo contrário, precisamente porque ele ali se encontrava, pensava que devia ser uma das posições mais insignificantes. Assim que chegou instalou-se na extremidade da trincheira que contornava a bateria e pôs-se a observar, sorrindo, entre inconsciente e divertido, o que se passava à sua volta. Levantava-se, de tempos a tempos, sem deixar de sorrir. Fazia por não incomodar os soldados que carregavam as peças e as punham em posição, continuamente passando diante dele com sacos e projécteis. E por ali andava de passeio no meio da bateria. Os canhões continuavam a disparar, uns atrás dos outros, com um ronco ensurdecedor e enchendo tudo de fumo. Enquanto entre as tropas de infantaria encarregadas de proteger aquela posição se sentia uma espécie de mal-estar, ali, onde um pequeno número de homens, separados por um fosso de todos os demais, se entregava à sua tarefa, a animação era geral e comum, como se se tratasse de uma família.A aparição de Pedro. à paisana e de chapéu branco, principiou por causar desagradável impressão naquela gente. Ao passarem diante dele olhavam-no de soslaio, com grande espanto e até com uma espécie de receio. Um oficial de artilharia, homem alto, trangalhadanças, aproximou-se de Pedro, fingindo querer verificar o funcionamento da peça do extremo, e fitou-o cheio de curiosidade. Outro oficialzito, de cara redonda, pouco mais que uma criança, sem dúvida acabado de sair da escola militar, que andava a inspeccionar, cheio de zelo, as duas peças que lhe haviam sido confiadas, dirigiu-lhe a palavra, muito severo: «Faça o favor de se afastar daqui. Não é permitido.» Os soldados continuavam a abanar a cabeça, pouco satisfeitos. A verdade, porém, é que quando se convenceram de que aquele indivíduo de chapéu branco não estava ali a fazer mal algum, que apenas queria estar muito sossegado, sentado no barranco ou a passear na bateria com um sorriso tímido nos lábios, afastando-se delicadamente dos soldados para os não embaraçar, e tão calmo sob a metralha como se estivesse numa avenida, o sentimento de hostilidade que sentiam principiou a transformar-se numa simpatia afectuosa e levemente prazenteira, como a que os militares costumam mostrar por todos os animais Que aparecem junto do campo de batalha: cães, galos e bichos quejandos. Imediatamente os soldados acolheram Pedro como um dos seus e até desde logo lhe puseram uma alcunha, chamando-lhe «Nosso Senhor» e troçando dele amigavelmente. Um projéctil rasgou o solo a dois passos de Pedro, o qual, sacudindo a poeira que lhe manchara o fato, olhou em volta de si, sorrindo. — Com que então o senhor não tem medo? — exclamou um soldado, de ombros largos e cara vermelha, mostrando os seus grandes dentes brancos. — E tu, tens medo, tu? — volveu-lhe Pedro. — Mas é que... — tornou o soldado. — As balas não trazem endereço. Quando caem, até as tripas se nos arrepanham. — Ninguém há que não tenha medo — acrescentou, rindo. Alguns soldados, de alegre e prazenteiro parecer, tinham-se-lhes juntado. Dir-se-ia esperarem que aquele senhor não falasse como toda a gente, e ao darem pelo engano rejubilavam. «Nós, é a nossa obrigação. Mas ele, o senhor, caramba! Isto é que é um cavalheiro!»— Para os seus postos —, gritou o oficialzito para os soldados que se tinham juntado em volta de Pedro. Via-se que era a primeira ou a segunda vez que desempenhava as funções de oficial, por isso estava a ser tão exacto e formalista com as suas praças e diante dos seus superiores. O troar dos canhões e a fuzilaria iam crescendo em todo o campo de batalha, especialmente à esquerda, onde ficavam as flechas de Bagration, mas do local onde Pedro estava quase nada se via por causa do fumo da pólvora que pairava no ar, Além disso, aquele pequeno grupo dos homens da bateria, por assim dizer uma pequena família isolada do resto das tropas, absorvia-lhe por completo a atenção. A primeira emoção, entre inconsciente e alegre, que lhe provocara o troar do canhão e o espectáculo que tinha diante dos olhos desaparecera e o que sentia agora era completamente diferente, sobretudo depois de ter visto aquele soldado solitário prostrado no meio do terreno. Do talude onde estava sentado deixava-se agora absorver de todo na contemplação dos seres humanos que o rodeavam. Pelas dez horas, duas dezenas de homens tinham sido levados da bateria; duas peças haviam sido desmanteladas; e eram cada vez em maior número os projécteis que caiam ali e as balas perdidas que passavam zumbindo e assobiando. Os artilheiros, porém, dir-se-ia não darem por coisa alguma, continuando a trocar entre si ditos e zombarias. «Aí vem uma de arromba!», gritou um deles ao ver aproximar-se um obus, que passou sibilando. «Não é para nós, é para os da infantaria!», exclamava outro, soltando uma gargalhada, ao ver que o obus lhes passara por cima da cabeça e ia cair no meio das tropas de cobertura. «Hem! Parece das tuas relações!», acrescentou um terceiro, dirigindo-se a um camponês que se atirara para o chão quando o projéctil se aproximou. Alguns soldados vieram debruçar-se no parapeito perscrutando o que se passava diante deles. «Estás a ver? Romperam as linhas. Recuaram!», diziam eles. «Tratem das vossas obrigações, rapazes!», gritou-lhes um velho sargento. «Se andaram para trás, é porque têm lá qualquer coisa que fazer.» E o sargento, agarrando um deles pelo ombro, despediu-lhe uma joelhada. Romperam gargalhadas.«Quinta peça! A postos!», soou uma voz de comando. «Todos à uma! Arriba!», gritaram alegremente os que punham a peça em posição. «Caramba! Por pouco lá ia o chapéu do Nosso Senhor!», gracejou o farsista de ventas coradas, mostrando os dentes brancos, ,Aquilo é que é um animal!», acrescentou, furioso, dirigindo-se a uma bala que acabava de atingir ao mesmo tempo uma roda e a perna de um homem. «Eh!, cachorros!», vociferou outro ao ver os milicianos todos curvados que penetravam na bateria para levar o ferido. «As papas não estão de apetecer, hem? Eh, caguinchas, isso é que são dores de barriga!», gritavam para os mujiques especados diante do soldado com a perna decepada. «Em que estado te puseram, meu rapaz!», acrescentavam, arremedando-os. «Disto é que eles não gostam!» Pedro notava que quanto mais balas caíam e quanto maior o número de mortos e feridos mais crescia a excitação dos artilheiros. Como se a tempestade se aproximasse, todos aqueles rostos estavam cada vez mais iluminados, num desafio de raios e coriscos, por um fogo oculto e esbraseante. Pedro deixara de olhar para o campo de batalha e parecia não se importar já com o que se estava ai a passar. Aquela chama cada vez mais viva que lhe ia queimando a alma, a ele também, mais e mais se assenhoreava dele. Às dez horas a infantaria que alinhava diante da artilharia nas bouças e nas margens do Karnenka bateu em retirada. Lá de cima, daquele posto, via-se toda aquela gente fugir, levando consigo os soldados feridos em cima das espingardas ensarilhadas. Então um general, acompanhado da sua comitiva, apareceu no cabeço. Disse qualquer coisa ao coronel e, lançando um olhar irritado a Pedro, voltou a retirar-se depois de ter dado ordem às tropas de cobertura, alinhadas atrás da bateria, para que se deitassem de barriga no chão, única forma de estarem menos expostas à fuzilaria. Pouco depois ouviu-se rufar o tambor nas fileiras da infantaria, à direita da bateria. Vozes de comando ressoaram e a coluna pôs-se em marcha para a frente. Pedro lançou os olhos por cima do parapeito. Impressionou-o sobretudo a expressão de uma das caras: a do oficial que marchava de costas para os seushomens, o rosto imberbe muito pálido, a espada baixa, olhando inquieto à sua volta. A infantaria desapareceu no meio da fumarada e nada mais se ouviu além de prolongados clamores e tiroteio intenso, Alguns minutos depois surgiram dali muitos feridos, uns a pé, outros em padiolas. Os projécteis cada vez caíam mais numerosos sobre a bateria. Havia homens por terra, abandonados. Os artilheiros não tinham mãos a medir em volta das peças. Ninguém dava já pela presença de Pedro. Por duas ou três vezes vozes coléricas lhe gritaram que se afastasse. O comandante, de sobrancelhas franzidas, em grandes passadas precipitadas, ia de uma peça para outra. O oficialzito, cada vez mais corado, dava ordens, ainda mais zeloso. Os soldados passavam com os projécteis, carregavam as peças, cumprindo a sua tarefa com admirável bravura, para um lado e para o outro, dir-se-ia impelidos por molas. A nuvem tempestuosa aproximava-se e em todos os rostos ardia esse fogo intenso que Pedro via crescer, Estava ao lado do comandante. Entretanto, o oficialzito, com a mão na pala da barretina, aproximou-se do superior: — Tenho a honra de o prevenir, meu coronel, de que apenas dispomos de oito cargas. Devemos continuar a fazer fogo? «Metralha!», gritou o coronel, que continuou a olhar para o parapeito, sem responder directamente ao subordinado. Subitamente, qualquer coisa de inesperado aconteceu. O oficialzito soltou um gemido rodopiando sobre si mesmo e caiu no chão como uma ave atingida em pleno voo, Diante dos olhos de Pedro correu uma cortina estranha, vaga e sombria. Os projécteis assobiavam uns atrás dos outros, crivando o parapeito, os artilheiros e as peças. Pedro, que até ali não prestara a mais pequena atenção a esse ruído, agora não podia ouvir outra coisa. De um dos lados da bateria. à direita, corriam soldados gritando: «Hurra!», mas não marchavam em frente, antes retrocediam, segundo se afigurava a Pedro. Um projéctil atingiu o rebordo do parapeito onde ele estava, cobrindo-o de terra. Uma bola negra lhe passou diante dos olhos e no mesmo instante ouviu-se uma pancada mole, Os milicianos que penetravam na bateria debandaram. «Metralha em todos os canhões!», gritou o oficial, Um sargento aproximou-se dele a correr e murmurou-lhe ao ouvido, cheio de pânico, que as munições tinham acabado. Dir-se-ia um mordomo anunciando aodono da casa, no meio de um banquete, não haver mais vinho para os convidados. «Bandidos! Que estão eles aqui a fazer?», gritou um oficial, virando-se para Pedro. Tinha o rosto corado e coberto de suor; os olhos, cavados nas órbitas, cintilavam-lhe. «Corre às reservas, Que tragam as caixas de munições!», acrescentou, dirigindo-se a um artilheiro, enquanto relanceava a Pedro um olhar iracundo. «Eu vou», disse este. Sem lhe responder, o oficial afastou-se a passos largos. «Cessar fogo! Esperem!», ordenou o oficial. O artilheiro que recebera ordem para ir buscar munições tropeçou com Pedro. «Eh, senhor! O seu lugar não é aqui!», gritou-lhe, enquanto descia a encosta a correr. Pedro seguiu-o contornando o local onde tombara o oficialzito. Um, dois, três projécteis lhe passaram por cima da cabeça, caindo à sua volta. Pedro galgou o parapeito. «Aonde vou eu?», disse, de súbito, de si para consigo, ao chegar junto das caixas pintadas de verde. Parou, indeciso, sem saber se havia de voltar para trás ou prosseguir no seu caminho— De súbito uma pancada por detrás o atirou para o chão. Acto contínuo uma grande labareda o envolveu, enquanto o estampido de um trovão ensurdece— dor, à mistura com agudos silvos, lhe abalava os tímpanos. Quando voltou a si, encontrou-se sentado no chão, as mãos apoiadas no solo. Do armão junto do qual ele se encontrava não havia vestígios. Apenas se viam, aqui e ali, pranchas verdes, calcinadas, e sobre a erva requeimada alguns trapos. Um cavalo arrastando atrás de si uns varais em estilhas partiu a galope: outro jazia por terra, como ele próprio, soltando prolongados relinchos de dor. [XXXII] Pedro, aterrorizado, sem saber o que fazia, pôs-se de pé e correu para a bateria, como se fosse aquele o único refúgio contra todos os horrores de que estava rodeado.Ao penetrar na trincheira notou, surpreendido, que se não ouviam as peças e que outros soldados ocupavam a bateria. Não teve tempo de se dar conta de quem era aquela gente. Viu o velho coronel de barriga contra o parapeito, como se estivesse debruçado a ver o que se passava em baixo, e um soldado, que já notara antes, debatendo-se no meio de uns homens que o seguravam pelos braços e gritava: «Irmãos!» E ainda viu mais coisas estranhas. Não teve tempo de compreender que o coronel estava morto, que o soldado fora feito prisioneiro e que outro homem, diante dos seus olhos, acabava de ser trespassado pelas costas por uma baioneta. Assim que penetrara no reduto, um homem, de uniforme azul, magro, amarelo, coberto de suor, veio sobre ele, de espada na mão, gritando, Pedro, instintivamente, furtou o corpo, para evitar o embate, já que ambos corriam um para o outro sem se terem visto. Estendeu os braços e agarrou esse alguém, que era um oficial francês, lançando-lhe uma mão a um ombro e a outra à garganta. O oficial, deixando cair a espada, apanhou-o pelo pescoço. Por instantes cravaram os olhos um no outro, assustados, perplexos, sem saber o que tinham feito nem o que deviam fazer. Cada um deles se perguntava a si próprio: «Sou eu ou ele quem está prisioneiro?» O oficial francês parecia mais inclinado para primeira hipótese, pois a mão vigorosa de Pedro, compelida por um terror involuntário, cada vez lhe apertava mais a garganta. Afigurou-se-lhe que ele queria dizer qualquer coisa quando uma bala lhes passou rente ao crânio, deixando atrás de si um silvo sinistro, e tão perto que Pedro julgou que a cabeça do francês lhe fora decepada, tão rapidamente ele a abaixara. Também Pedro, por sua vez, se agachou ao soltar o desconhecido, Sem se preocupar em saber qual deles era o prisioneiro, o oficial correu para a bateria e Pedro rolou do cabeço, tropeçando nos mortos e nos feridos com a sensação de eles se lhe agarrarem às pernas. Ainda não chegara, porém, ao fundo do barranco quando se viu no meio de uma massa compacta de russos que corriam direitos à bateria, soltando gritos de alegria e atropelando-se uns aos outros. Era o ataque de que Ermolov se vangloriou, dizendo que fora graças à sua bravura e boa sorte que pudera dar-se aquele prodígio e acrescentando que distribuíra às mãos-cheias, no alto do cabeço, quantas cruzes de S. Jorge levava na algibeira. Então os franceses que ocupavam a bateria debandaram. E os russos, soltando hurras, lançaram-se atrás deles com tal entusiasmo que muito a custo osdetiveram na perseguição. Na bateria fizeram-se alguns prisioneiros, entre os quais um general francês ferido, que logo se viu rodeado por oficiais russos. Um nunca acabar de feridos, russos e franceses, conhecidos e desconhecidos de Pedro, de feições transtornadas pelo sofrimento, passavam, arrastando-se penosamente pelo seu pé ou levados em padiolas. Voltou a subir ao reduto, onde permaneceu mais de uma hora, e nem um só dos homens daquele grupo de amigos que momentaneamente o tinham chamado a si restava com vida, No monte de mortos havia alguns seus conhecidos. O oficialzito lá estava, todo contorcido, sobre o parapeito, num lago de sangue. O soldado de cara afogueada ainda fazia alguns movimentos convulsivos, mas ali o tinham deixado ficar. Pedro abalou a correr pelo talude abaixo. «Ah, agora vão acabar com isto, naturalmente. Já devem estar satisfeitos com o que fizeram!», pensava ele, seguindo sem destino a fileira interminável de padiolas vindas do campo de batalha. O Sol, porém, velado pela fumarada, ainda ia alto no céu, e lá adiante, principalmente à esquerda, dos lados de Semionovskoie, qualquer coisa se agitava por entre o fumo. Não só se não aplacavam, antes pareciam mais desesperadamente intensos o ribombar das peças e a fuzilaria das espingardas. Dir-se-ia um homem que quase sem forças solta o seu ultimo grito. [XXXIII] A acção principal da batalha desenrolou-se numa área de mil sagenas, entre Borodino e as linhas de Bagration. Para além deste espaço, por um lado, a cavalaria de Uvarov, à volta do meio-dia, fez uma demonstração e, pelo outro, para os lados de Utitsa, houve um recontro entre Pomatowski e Tulchkov, nada mais, porém, que insignificantes operações parciais quando compara— das com o que acontecera no centro. Foi entre Borodino e as linhas junto da floresta, num espaço livre e aberto dos dois lados, que se travou a verdadeira batalha, da maneira mais simples e sem qualquer ardil. De princípio apenas houve o canhoneio recíproco de centenas de bocas de fogo.Depois, quando a fumarada principiou a, encobrir todo o campo de batalha, puseram-se em marcha, à direita, do lado francês, as duas divisões Dessaix e Compans, que avançaram sobre as linhas, e, à esquerda, os regimentos do vice-rei, que inflectiram sobre Borodino. Do reduto de— Chevardino, onde se encontrava Napoleão, até às linhas distava apenas uma versta, mas daí a Borodino, em linha recta, seriam pouco mais de duas. Eis porque o imperador não podia ver o que se passava aí, tanto mais que o fumo, de mistura com a neblina, se estendia por cima de todo o terreno. No que diz respeito às tropas da divisão Dessaix, essas só foram visíveis quando apareceram por detrás da ravina que as separava das flechas. Assim que entraram aí, o fumo dos canhões e da fuzilaria tão densamente cobriu as flechas que ocultou toda a vertente da ravina oposta, Através da espessa nuvem apenas se divisava qualquer coisa com a vaga configuração de soldados e de longe em longe o faiscar de uma baioneta. Mas de Chevardino era completamente impossível saber se se moviam ou permaneciam imóveis, se se tratava de franceses ou de russos. O Sol erguia-se brilhante no céu e os seus raios vinham banhar directamente o rosto de Napoleão, que para observar as linhas se via obrigado a proteger os olhos com a mão. A fumarada cobria o terreno e ora parecia deslocar-se ora dava a impressão de que eram as tropas que se moviam. As vezes, entre as detonações, ouviam-se gritos, mas não era possível saber-se o que se passava. Napoleão, de pé, no cômoro, estava de óculo assestado, e o limitado campo da objectiva deixava-lhe ver fumo e soldados, ora o fumo e os soldados franceses ora o fumo e os soldados russos. Assim que observava, porém, o terreno à vista desarmada já lhe não era possível situar exactamente o que acabara de ver. Desceu do cabeço e começou a passear de um lado para o outro. A verdade é que nem do lugar em que estava Napoleão nem do alto da eminência onde tinham ficado vários dos seus generais, nem mesmo das próprias linhas agora ocupadas umas vezes pelos Franceses, outras pelos Russos, soldados mortos, feridos, vivos, aterrorizados ou meio loucos, em parte alguma podia saber- se o que se estava a passar naquele local. Durante muitas horas, naqueles sítios, no meio do ininterrupto troar das peças de artilharia e da fuzilaria das espingardas, tão depressa apareciam os Russos como os Franceses e ora eram soldados de infantaria ora de cavalaria que caíam, disparavam, tropeçavam uns nos outros, gritando e fugindo sem saber o que deviam fazer.Dos diversos pontos do campo de batalha estavam sempre a chegar ajudantes- de-campo expedidos ao imperador, oficiais de ordenança dos marechais encarregados de trazer informações sobre a marcha da batalha, mas tudo o que diziam era falso, pois no calor da batalha não se podia dizer o que estava a passar- se num determinado momento e, aliás, muitos destes oficiais não Podiam atingir sequer os pontos designados, limitando-se a repetir o que ouviam. Além disso, enquanto eles percorriam as duas ou três verstas que os separavam de Napoleão, as coisas modificavam-se e as notícias por eles trazidas deixavam de corresponder à situação. Assim, um ajudante-de-campo do vice-rei veio anunciar que Borodino fora tomada e que a ponte do Kolotcha estava nas mãos dos Franceses, perguntando a Napoleão se dava ordem para as tropas atravessarem o rio, ao que lhe foi respondido que se mandassem alinhar as tropas na outra margem e que esperassem aí. No momento, porém, em que era dada esta ordem, melhor ainda, mal o ajudante-de-campo saíra de Borodino, a ponte fora retomada e queimada pelos Russos, feito a que Pedro assistira no princípio da batalha. De regresso das flechas, um ajudante-de-campo, muito pálido, o terror pintado no rosto, anunciou ao imperador que o ataque fora repelido, que Compans estava ferido e Davout fora morto. Enquanto, todavia, ele comunicava estas notícias, as fortificações haviam sido de novo ocupadas por outras tropas e Davout continuava vivo, pois apenas fora ligeiramente ferido. Guiando-se por estas informações, evidentemente falsas, Napoleão dava ordens já cumpridas ou que teriam sido impossíveis de executar. Os marechais e os generais que se encontravam mais perto dos acontecimentos, mas que, tal como Napoleão, não participavam da batalha e raramente penetravam na zona de fogo, tomavam as suas disposições sem consultar o imperador e transmitiam as suas ordens sobre onde devia incidir o fogo e como a cavalaria e a infantaria deveriam intervir. Mas estas ordens, bem como as do imperador, só em pequena escala eram executadas e muito raramente, a maior parte das vezes ao contrário das circunstâncias. As tropas que recebiam ordem para avançar, surpreendidas pela metralha, debandavam; aquelas que recebiam ordem para permanecer no seu lugar, ao verem surgir o inimigo inopinadamente, punham-se em fuga ou então atacavam-no, e a cavalaria, sem ter recebido ordem para isso, lançava-se na perseguição dos russos em debandada. Assim, dois regimentos de cavalaria que atravessaram a ravina de Semionovskoie,mal atingiram o cume viraram de rédea, regressando ao mesmo sítio a galope. E outro tanto aconteceu com a infantaria, que muitas vezes se precipitou sobre pontos que não estavam prescritos. Todas as ordens relativas às deslocações das peças de artilharia, dos batalhões de fuzileiros e das tropas montadas, com o objectivo de carregar sobre a infantaria russa, quem as deu foram os comandantes mais próximos das fileiras, sem pedirem conselho nem a Ney, nem a Davout, nem a Murat, quanto mais a Napoleão. Não receavam ser castigados por não haverem executado o que estava prescrito ou por terem agido de moto próprio, pois a verdade é que numa batalha ninguém pensa senão no que tem de mais precioso, ou seja, na própria vida, e o que pode acontecer é Que umas vezes a salvação esteja na fuga para a retaguarda e outras na marcha avante. Estes homens, no calor da refrega, agiam segundo as circunstâncias. Na verdade, todos estes movimentos para a frente ou para trás não aliviavam nem modificavam a posição das tropas. Esses ataques, quer a pé, quer a cavalo, não produziam grande mortandade; o que semeava os ferimentos, as mutilações e a morte eram os projécteis, as balas que voavam por todos os lados na área onde se moviam as tropas. Logo que os homens atingiam a zona a que os projécteis não chegavam, os comandantes, na retaguarda, obrigavam-nos a cerrar fileiras, restabelecendo a disciplina, e, graças a esta disciplina, voltavam a expedi-los para aquele círculo de fogo onde o medo da morte os fazia perder de novo o sangue- frio, entregando-os ao cego instinto das multidões. [XXXIV] Os generais de Napoleão, Davout, Ney, Murat, encontravam-se perto da linha de fogo e inclusivamente chegaram até ela algumas vezes conduzindo massas enormes de tropas bem disciplinadas. Mas, ao contrário do que acontecera invariavelmente nas precedentes batalhas, em vez da esperada notícia da fuga do inimigo, as tropas formadas voltavam da linha de fogo em massas desorganizadas e tomadas de pânico. De novo reorganizadas, cada vez era menor o número dos seus efectivos. Cerca do meio-dia, Murat mandou o ajudante-de-campo pedir reforços aNapoleão. O imperador estava sentado no sopé do cabeço bebendo ponche quando o ajudante-de-campo chegou com a notícia de que os Russos seriam esmagados se Sua Majestade enviasse mais uma divisão, — Reforços?! — exclamou Napoleão, entre severo e surpreso, como se não compreendesse o sentido das palavras, enquanto fitava aquele moço bonito com os cabelos negros, compridos e encaracolados, à maneira de Murat. «Reforços!», pensou, «Que reforços querem eles quando têm na mão metade do exército para atacar uma ala russa fraca e nem sequer fortificada?» — Diga ao rei de Nápoles — articulou ele severamente — que ainda não é meio-dia... que ainda é cedo para eu calcular com clareza a minha jogada. Ide... O ajudantezinho-de-campo dos lindos caracóis, sem retirar a mão da pala da barretina, despediu um profundo suspiro e galopou de novo em direcção ao local onde os homens se matavam. Napoleão ergueu-se e, chamando Caulaincourt e Berthier, principiou a falar-lhes de coisas absolutamente estranhas à batalha. No meio desta conversa, que principiava a interessar o imperador, os olhos de Berthier dirigiram-se para um general com a sua comitiva, que, montado num cavalo coberto de suor, se encaminhava para o cabeço. Era Belliard. Logo que desmontou, dirigiu-se em passo rápido para o imperador e com firmeza e em voz alta começou a expor-lhe a necessidade que havia de reforços. Jurava pela sua honra que os Russos estariam perdidos se o imperador lhes desse mais uma divisão. Napoleão encolheu os ombros e continuou a passear sem responder. Belliard, sempre em voz alta e com veemência, prosseguiu falando para os generais que o cercavam. — O senhor é muito impetuoso, Belliard — disse Napoleão, aproximando-se do general. — Qualquer se pode enganar no meio da luta. Examine outra vez a situação e volte a aparecer por aqui. Mal se afastara Belliard, um novo enviado chegava, por outro lado, vindo do campo de batalha. — Então? O que há? — disse o imperador no tom de quem se sente exasperado por só ver obstáculos diante de si. — Sire, o príncipe... — principiou o ajudante-de-campo. — Pede reforços?! — exclamou Napoleão com um gesto colérico.O oficial disse que sim com a cabeça e pôs-se a transmitir a sua mensagem. O imperador afastou-se, deu dois ou três passos, depois voltou a aproximar-se e mandou chamar Berthier. — Temos de lhes dar as reservas — decidiu, com gesto enérgico. — Que lhes devemos mandar? Que acha? — perguntou a Berthier, a esse «ganso que transformei em águia», como disse mais tarde. — Sire, mandemos a divisão Claparède — respondeu Berthier, que conhecia como os seus dedos todas as divisões, todos os regimentos e todos os batalhões. Napoleão, com um aceno de cabeça, aprovou, O ajudante-de-campo galopou ao encontro da divisão Claparède. Alguns minutos mais tarde, a Guarda nova, concentrada, na retaguarda do cabeço, punha- se em movimento. Napoleão olhava silenciosamente naquela direcção. — Não — ordenou, subitamente, voltando-se para Berthier. — Não quero a Claparède. Mandem a divisão Friant. Embora não houvesse qualquer vantagem especial em mandarem a 2ª em vez da 1ª e existisse, pelo contrário, o inconveniente da perda de tempo que resultava do facto de se ter de deter a divisão que se pusera em movimento para a substituir pela Friant, a ordem foi executada fielmente. Napoleão não se dava conta de que estava a proceder para com as suas tropas como o médico cujos remédios resultam mais perniciosos que a doença, maneira de agir aliás que ele muito bem sabia ver e criticar nos outros. A divisão Friant, como sucedera com as demais, desapareceu no meio da fumarada do combate. Os ajudantes-de-campo continuaram a afluir de vários lados e todos eles, como se passassem palavra, repetiam a mesma coisa. Todos pediam reforços, todos diziam que os Russos não abandonavam as suas posições e mantinham as tropas francesas sob um fogo infernal. Napoleão, sentado no seu banco portátil, estava pensativo. Monsieur de Beausset, o amador de viagens, que morria de fome desde manhã, aproximou-se do imperador e respeitosamente lembrou a Sua Majestade o almoço. — Espero poder felicitar Vossa Majestade desde já pela vitória sobre o inimigo — disse ele. Napoleão, em silêncio, moveu negativamente a cabeça. Interpretando esse gesto como referindo-se à vitória, e não ao almoço, Monsieur de Beaussetpermitiu-se, num tom ao mesmo tempo frívolo e respeitoso, observar-lhe que nada neste mundo o podia impedir de almoçar desde que houvesse oportunidade para isso. — Olhe, vá... — exclamou, de súbito, o imperador, carrancudo, voltando-lhe as costas. Um sorriso hipócrita, ao mesmo tempo de compaixão, desdita e admiração, perpassou pelo rosto de Monsieur de Beausset, que se dirigiu, sorrateiro, para junto dos outros generais. Napoleão estava sentindo essa penosa sensação de jogador venturoso que atirou para a mesa de jogo, num desvario, todo o seu dinheiro, habituado que estava a ganhar sempre, e de súbito, precisamente quando calculou todos os azares da partida, pressente que quanto mais reflectir sobre a jogada tanto mais certa será a perda. As suas tropas eram as mesmas, os mesmos os seus generais, análogas as medidas tomadas, o plano de batalha era o mesmo, mesmíssima a sua proclamação breve e enérgica. Ele próprio não mudara, tinha a certeza. Pensava, até, dispor de muito mais experiência e habilidade que outrora. O inimigo, por sua vez, também era o mesmo de Austerlitz e de Friedland. E, não obstante a marretada tremenda que lhe dera, resultava impotente. Parecia bruxedo. Empregou todas as suas medidas outrora invariavelmente coroadas de êxito — concentração do fogo das baterias sobre um mesmo ponto, ataque das reservas para romper as linhas, assalto da cavalaria dos homens de ferro —, todas empregara agora e não só não conseguia a vitória, como eram sempre as mesmas as notícias que continuamente vinham até ele: generais mortos ou feridos, necessidade urgente de reforços, impossibilidade de vencer a resistência dos Russos, desorganização das tropas francesas. Anteriormente, duas ou três disposições que tomasse, duas ou três frases que pronunciasse, logo apareciam, de riso feliz nos lábios e alegria no rosto, marechais e ajudantes-de-campo que anunciavam como troféus grandes massas de prisioneiros, feixes de bandeiras e de «cíquias» inimigas, canhões e comboios de abastecimentos, contentando-se Murat em pedir autorização para enviar a sua cavalaria pilhar os carros. Assim acontecera em Lodi, em Marengo, em Arcole, em Iena, em Austerlitz, em Wagram, etc, Mas agora estavam a passar-se, realmente, coisas estranhas.Apesar da notícia que correra de que as trincheiras haviam sido tomadas, Napoleão dava-se conta de que não era a mesma coisa, que se não passava agora o que acontecera em todas as batalhas anteriores. E as impressões que sentia, via- o perfeitamente, eram as que estavam sentindo todos os da sua comitiva, homens experimentados na guerra. Havia tristeza em todos os rostos, os olhos evitavam encontrar-se. Só Beausset não podia compreender a gravidade do que se passava. O imperador, por virtude da sua grande experiência, sabia de sobra o que significava uma batalha de oito horas, batalha em que empregara todos os esforços e em que o atacante ainda não levara a melhor. Para ele era quase uma batalha perdida e, no ponto instável em que a luta se encontrava, o mais pequeno incidente podia perdê-los — a ele e ao exército. Ao rememorar toda aquela estranha campanha da Rússia em que não obtivera qualquer vitória, onde, em dois meses, não tomara nem bandeiras, nem canhões, nem qualquer corpo de exército, ao evocar as expressões que o cercavam, secretamente preocupadas, ouvindo as referências à resistência obstinada do inimigo, sentia-se tomado de uma angústia no género das que se sentem nos pesadelos, e ao espírito acorriam-lhe, de súbito, todas as circunstâncias infelizes que o podiam perder. Os Russos podiam atacar a sua ala esquerda; podiam perfurar-lhe o centro; um projéctil perdido podia matá-lo. Tudo era possível. Em todas as batalhas anteriores apenas pensara nas possibilidades de êxito: agora só esperava e pressentia circunstâncias funestas. Sim, parecia um pesadelo em que um homem, atacado por um malfeitor, por mais esforços que faça para brandir uma arma e atingir o adversário, sente que a mão lhe cai, mole e impotente, como um trapo, enquanto o sentimento horrível de uma morte inevitável se apodera do desventurado indefeso. A notícia de que os Russos atacavam o flanco esquerdo do exército francês acordou em Napoleão idêntico horror. Ali estava, calado, sentado no seu banco portátil, no sopé do cabeço, com a cabeça entre as mãos. Berthier aproximou-se dele e propôs-lhe uma visita às linhas para ter uma noção exacta da situação. — Quê? Que está a dizer?! — exclamou o imperador. — Sim, mande que me tragam um cavalo. Montou e dirigiu-se a Semionovskoie. Por entre o fumo da pólvora que lentamente se ia dissipando, jaziam, no meio de poças de sangue, cavalos e soldados, ora isolados ora aos montes. NemNapoleão nem nenhum dos seus generais vira ainda espectáculo tão horroroso, tanto cadáver em tão pequeno espaço. O troar dos canhões que ribombavam havia dez horas ininterruptamente martelava os tímpanos, formando como que um acompanhamento sinistro desse espectáculo, como a música nos quadros vivos. Ao atingir o alto de Semionovskoie, e através da fumarada, Napoleão viu diante de si fileiras densas de soldados com uniformes cujas cores lhe não eram familiares. Eram os Russos. Formando filas compactas, concentrados por detrás da povoação e do cabeço que tem o mesmo nome, as suas bocas de fogo despejavam metralha sem desfalecimento, cobrindo de fumo toda a, sua linha. Já não era uma batalha. Era uma chacina, e esta chacina já não podia dar a vitória nem aos Russos nem aos Franceses. O imperador deteve-se e recaiu na meditação a que o arrancara Berthier. Não estava nas suas mãos fazer parar o que via desenrolar-se diante dos seus olhos, embora passasse por iniciador e responsável de semelhante obra, e pela primeira vez, perante o seu fracasso, essa obra lhe parecia inútil e horrível. Um dos generais que se aproximara de Napoleão permitiu-se propor-lhe que autorizasse a velha Guarda a entrar em acção. Ney e Berthier, que estavam junto do imperador, trocaram um olhar entre si e sorriram desdenhosamente ao ouvirem tão insensata proposta. Napoleão baixou a cabeça e permaneceu por muito tempo silencioso. — A oitocentas léguas de França não sacrificarei a minha Guarda — disse ele, e, dando meia volta, regressou a Chevardino. [XXXV] Kutuzov estava sentado, a cabeça branca inclinada e todo ele prostrado sob o peso do corpo, num banco coberto com um tapete, exactamente no mesmo sítio onde Pedro o vira pela manhã. Não dava qualquer ordem, contentando-se em anuir ao que lhe vinham propor ou simplesmente discordar. «Sim, sim, faça isso», respondia ele. «Sim, sim, vai ver», dizia ,u este ou àquele dos seus subordinados. Ou então: «Não, é inútil, é melhor esperar.» Ouvia as informações que lhe davam, não dando ordens senão quando os subordinados lhaspediam. Apurava o ouvido, sem parecer interessar-se pelo sentido das palavras que lhe diziam, embora observasse atentamente a expressão e o tom da voz das pessoas que lhe falavam. A sua larga experiência da guerra, a sua prudência de velho, diziam-lhe não ser possível a um só homem dirigir centenas de milhares de outros homens que lutam com a morte. Kutuzov sabia que o que decide do destino das batalhas não eram nem as medidas tomadas pelo general-chefe, nem as posições ocupadas pelos soldados, nem o número dos canhões e dos mortos, mas essa força inapreensível que se chama «o moral das tropas» e que ele procurava descobrir e dirigir na medida do possível. O rosto de Kutuzov denunciava uma atenção concentrada e serena, contenção que só a custo dominava a fadiga de um corpo enfraquecido e gasto pela idade. As onze horas vieram dizer-lhe que as flechas ocupadas pelos Franceses tinham sido retomadas, mas que o príncipe Bagration estava ferido. Kutuzov soltou uma exclamação e abanou a cabeça. — Vai imediatamente procurar o príncipe Piotre Ivanovitch e informa-te por miúdo do que se passa — disse ele a um dos seus ajudantes-de-campo; depois voltou-se para o príncipe de Wurtemberg, que estava por detrás dele: — Quererá Vossa Alteza assumir o comando do 2º exército? Pouco depois da partida do príncipe, antes mesmo de ter podido chegar a Semionovskoie, aparecia o seu ajudante-de-campo, que vinha comunicar ao Sereníssimo que o príncipe precisava de reforços. Kutuzov franziu as sobrancelhas e transmitiu imediatamente ordem a Dokturov para assumir o comando do 2º exército, rogando ao príncipe, ao qual dizia ser-lhe indispensável nas graves circunstâncias de momento, que voltasse para junto de si. Quando lhe disseram que Murat fora feito prisioneiro e lhe transmitiram as felicitações do estado-maior, Kutuzov sorriu. — Esperem, meus senhores — observou. — Que a batalha esteja ganha e Murat tenha sido feito prisioneiro não acho coisa extraordinária. Mas parece-me melhor não nos alegrarmos antes de tempo. Entretanto expedia um ajudante-de-campo com esta, notícia para as tropas. Quando Tcherbinine chegou do flanco esquerdo para comunicar que os Franceses haviam retomado as flechas e Semionovskoie, Kutuzov, adivinhando, pelos gritos que vinham do campo de batalha e pela expressão do emissário, que as coisas não estavam a caminhar bem, levantou-se, como se quisessedesentorpecer as pernas, e, travando do braço do oficial, afastou-se com ele. — Vai, meu amigo — disse então a Ermolov. — Vai ver se não haverá maneira de fazer mais alguma coisa. Kutuzov estava em Gorki, no centro das posições do seu exército. O ataque de Napoleão contra o flanco esquerdo dos Russos fora repelido por várias vezes. No centro, os Franceses não tinham ido além de Borodino. No flanco esquerdo a cavalaria de Uvarov obrigava o inimigo a fugir. As três horas os ataques dos Franceses cessaram. Na expressão dos que chegavam do campo de batalha, bem como na das pessoas da sua comitiva, podia ler o general-chefe uma tensão que atingira o mais alto grau. Estava satisfeito com o êxito da jornada, que ultrapassara o que ele esperava. Mas àquele velho faltavam as forças físicas. Por várias vezes já o tinham visto deixar descair a cabeça no peito e dormitar. Trouxeram-lhe o almoço. O ajudante-de-campo do imperador, Woltzogen, o mesmo a quem o príncipe André ouvira dizer ser preciso que a guerra se estendesse, e a quem Bagration odiava, apresentou-se a Kutuzov quando ele estava a comer. Vinha em nome de Barclay dar-lhe contas da situação no flanco esquerdo. O prudente Barclay, ao ver a vaga de feridos que afluía e a desorganização da retaguarda, e depois de pesar os prós e os contras, concluíra que a batalha estava perdida e enviara o seu oficial favorito levar a notícia ao general-chefe. Kutuzov mastigava nesse momento, não sem dificuldade, um pedaço de frango assado; fixou em Woltzogen o seu olho pisco, que se tornara alegre. Este, em passo negligente, um sorriso assaz desdenhoso nos lábios, aproximou- se, a mão algo frouxa na pala da barretina. Tratava o Sereníssimo com uma afectação descortês, como que a mostrar que ele, militar de altos méritos, deixava para os Russos o considerarem um ídolo aquele velho inútil, pois a verdade é que ele sabia muitíssimo bem com quem estava a lidar. «Der alte Herr», («do velho senhor» (N, dos T.) assim o tratavam os Alemães entre si, e «macht sich ganz bequern» («O velho senhor instalou-se comodamente.» (N, dos T.), pensou Woltzogen, lançando um olhar de reprovação aos pratos que Kutuzov tinha diante, e principiou o seu relatório sobre a situação do flanco esquerdo nos termos em que Barclay lhe ordenara que a expusesse e tal como ele próprio a vira e observara com os seus próprios olhos. — Todos os pontos da nossa posição estão nas mãos do inimigo e não temospossibilidades de os rechaçar por falta de tropas. Os nossos soldados debandam e é impossível detê-los — disse ele. Kutuzov pousou o talher e fixou Woltzogen, surpreendido, como se não compreendesse o que lhe estava a dizer. O oficial, ao notar a emoção «des alten Herr» («do velho senhor» (N, dos T.), disse-lhe, sorrindo: — Não me julgava no direito de ocultar o que vi a Vossa Excelência. As tropas estão completamente desorganizadas. — Foi o que o senhor viu? Foi o que o senhor viu?! exclamou Kutuzov, franzindo as sobrancelhas, erguendo-se rapidamente e avançando para Woltzogen. — Como se atreve?!... Como se atreve?!... — exclamou, fazendo gestos ameaçadores com as mãos trémulas, a voz embargada pela cólera. — Como se atreve, meu caro senhor, a falar-me a mim nesses termos? O senhor nada sabe. Vá dizer ao general Barclay, da minha parte, que as suas informações são falsas e que eu, general-chefe, conheço melhor do que ele o desenvolvimento da batalha. Woltzogen quis replicar, mas Kutuzov interrompeu-o: — O inimigo foi repelido no flanco esquerdo e vencido no direito. Se o senhor viu mal, não é razão para dizer o que ignora. Faça favor de voltar para junto do general Barclay e transmitir-lhe a minha ordem absoluta de atacar amanhã o inimigo acrescentou num tom severo. Todos os presentes se conservavam calados e ouvia-se apenas a respiração ofegante do velho general. — Os Franceses foram repelidos em toda a parte, e disso dou graças a Deus e ao nosso valoroso exército. O inimigo está vencido e amanhã expulsá-lo-emos do sagrado solo da Rússia — prosseguiu Kutuzov, persign4ndo-se, e de súbito as lágrimas inundaram-lhe os olhos. Woltzogen encolheu os ombros, esboçou uma careta e afastou-se, surpreendido com uber die Eigenommenheit des alten Herr («...essa obstinação do velho senhor.» N, dos T.). — E aqui tem o meu herói — disse Kutuzov, apontando para um general, um belo e entroncado mancebo de cabelos pretos que acabava de chegar ao cabeço. Era Raievski, que passara o dia inteiro no ponto principal da batalha. Raievski informou o Sereníssimo de que as tropas se mantinham firmes nas suas posições e que os Franceses não se atreviam a atacá-las de novo. Ao ouvir estas palavras. Kutuzov exclamou em francês:— Então não pensa como os outros que somos obrigados a retirar? — Ao contrário, Alteza, nos assuntos indecisos é sempre o mais tenaz que sai vitorioso — replicou Raievski. — E na minha opinião... — Kaissarov! — chamou Kutuzov. — Assenta-te ali e redige a ordem do dia para amanhã. E, tu — acrescentou, dirigindo-se a outro ajudante-de-campo vai percorrer as linhas e comunicar que amanhã atacaremos. Entretanto, Woltzogen regressava, enviado por Barclay, para dizer que este desejava uma confirmação por escrito da ordem que o marechal acabava de dar. Kutuzov, sem se dignar olhar para ele, mandou redigir a ordem que o ex- general-chefe exigia com razão para se ilibar de qualquer responsabilidade. E graças a essa cadeia indefinida e misteriosa que mantinha em todo o exército o mesmo estado de espírito a que se costuma chamar «moral das tropas» e que constitui o nervo vital da guerra, as palavras de Kutuzov e a sua ordem do dia anunciando a batalha para a manhã seguinte imediatamente se transmitiram a todos os pontos do corpo do exército. Não foram os termos da própria ordem que se transmitiram até aos últimos anéis dessa cadeia. No que cada um contava ao vizinho nada havia mesmo que se parecesse com o que Kutuzov dissera, mas pelo menos era o sentido das suas palavras que se transmitia, pois essas palavras emanavam, não de considerações mais ou menos astuciosas, mas dos sentimentos profundos que animavam a alma do general-chefe, como, aliás, a alma de todos os russos. Ao inteirar-se de que no dia seguinte atacaria o inimigo, ao ouvir nas esferas superiores do exército a confirmação daquilo em que queria crer, toda aquela gente extenuada e hesitante se sentiu consolada e ganhou confiança. [XXXVI] O regimento do príncipe André conservou-se entre as reservas inactivas na retaguarda de Semionovskoie, debaixo de um intenso fogo de artilharia, até cerca das duas horas. A essa hora o regimento, que já perdera mais de duzentos homens, avançara, por um campo de aveia espezinhada, para o espaço que mediava entre Semionovskoie e a bateria do cabeço, aquela em que durante amanhã haviam caído milhares de soldados e para onde precisamente às duas horas acabava de ser dirigido o fogo violento e convergente de muitas centenas de peças inimigas. Sem se mover do mesmo lugar e sem haver disparado um único tiro, o regimento perdeu ali um terço dos seus efectivos. Mesmo em frente, e sobretudo à sua direita, no meio da fumarada que se não dissipava, os canhões metralhavam- no, e dessa misteriosa região envolta em fumo que se estendia ao longo de todo o terreno que lhe fazia face, sem tréguas, acompanhados de assobios rápidos e prolongados, chegavam as granadas, voavam os obuses. Por vezes, como para conceder um breve descanso, durante um quarto de hora, balas e obuses iam cair mais adiante, mas outras vezes não se passava um minuto sem que vários homens caíssem atingidos e continuamente se retiravam cadáveres ou se levavam feridos. A cada nova descarga os que ainda estavam vivos menos probabilidades tinham de se salvar. O regimento formava em colunas de batalhão, com trezentos passos de intervalo entre cada batalhão. No entanto, todos os homens se encontravam no mesmo estado de espírito. Todos estavam igualmente silenciosos e taciturnos. Poucas palavras se trocavam entre eles, e essas mesmas eram interrompidas de cada vez que caía um projéctil e ressoava o grito: «Padiola!» A maior parte do tempo os homens, por ordem dos comandantes, estavam sentados no chão. Este, tirando a barretina, entretinha-se, com toda a minúcia, a fazer e a desfazer a corrediça; aquele limpava a baioneta com argila seca que se lhe esfarelava nas mãos: havia os que desmanchavam o correame e voltavam a afivelar os seus equipamentos; e ainda os que desenrolavam as grevas e voltavam a enrolar. Alguns construíam abrigos com caniços ou entrançavam esteiras com palha dos campos, Todos pareciam absortos nestas ocupações. Quando os seus camaradas caíam mortos ou feridos e eles viam passar as padiolas, quando os Russos recuavam, ou através da fumarada se desenhavam as massas compactas dos soldados inimigos, ninguém entre eles prestava a mais pequena atenção a qualquer dessas coisas. Em compensação, desde que a artilharia, ou a cavalaria russas se punham em marcha, de todos os lados rompiam gritos de encorajamento. Mas a verdade é que eram os incidentes absolutamente acessórios e que nada tinham com a batalha que mais chamavam a atenção geral. Dir-se-ia que aquela gente, moralmente esgotada, encontrava repouso nas ocupações habituais da vida quotidiana. Uma bateria de artilharia passou diante do regimento. Um cavalo devaras enredou os arreios num dos armões. «ó tu! Não vês? Olha o cavalo!... Vai cair... Parece impossível... Então não vês?...» E por toda a parte no regimento se soltaram idênticas exclamações, De outra vez todas as atenções se fixaram num cãozito amarelado, de rabo arqueado, que, aparecendo ali por acaso, se pôs a correr, cheio de medo, por entre as fileiras dos homens. Só Deus sabe donde viria! De súbito, ao rebentar um obus ali perto, soltou um ganido e com o rabo entre as pernas desapareceu por um dos lados. Gritos e risos se ouviram por toda a parte, Mas essa, espécie de distracções durava apenas alguns minutos e havia já mais de oito horas que estavam inactivos e sem nada comer sob o contínuo horror da morte. Os seus rostos pálidos e taciturnos cada vez empalideciam e se carregavam mais. O príncipe André, como todos os homens do seu regimento, pálido e de sobrancelhas franzidas, ia e vinha, no prado que confinava com o campo de aveia, de um rego a outro, a cabeça baixa e as mãos atrás das costas. Nada tinha a fazer nem nenhuma ordem a dar. Tudo se fazia por si mesmo. Os mortos eram arrastados para detrás das linhas, os feridos levados, as fileiras voltavam a refazer-se. Se os soldados se afastavam, não tardavam a voltar apressadamente. De princípio julgara de seu dever excitar a coragem dos soldados e dar-lhes o exemplo passando por entre as fileiras, mas em breve reconheceu que nada tinha a ensinar-lhes. Todas as forças da sua alma, como as forças da alma de cada um dos seus soldados, não tendiam inconscientemente a outra coisa senão a não pensar no horror da situação em que estavam. E lá ia passeando no prado, arrastando os pés, pisando a erva, examinando a poeira que lhe cobria as botas. Ora dava grandes passadas, tentando pôr os pés nos trilhos deixados pelos ceifeiros, ora contava os seus passos, calculando o número de vezes que teria de ir de um rego ao outro para perfazer uma versta. Outras vezes ainda arrancava, ao passar, as artemisas que cresciam nos regos, esfregava-as entre as mãos e respirava o seu aroma forte e amargo. Nada restava do labor dos seus pensamentos da véspera. Em nada pensava. Com seus ouvidos cansados ouvia sempre os mesmos sons, procurando distinguir no ar o silvo dos projécteis, do estampido das descargas, e examinava os rostos, que bem conhecia, dos soldados do primeiro batalhão, e esperava. «Lá vai mais um... Ainda para nós», dizia de si para consigo ao perceber o assobio, que se aproximava, de um projéctil que emergia da zona de fumo. «Lá vem outro! Agora! Já está.» Calou-se e olhou as fileiras dos soldados. «Não,aquele passou longe. Mas agora é a nossa vez.» E de novo se pôs a passear, procurando alargar o passo de molde a alcançar o rego em dezasseis passadas. De súbito um silvo e depois uma pancada; ali, a cinco passos, um projéctil faz voar a terra seca de todos o, lados e enterra-se no chão, Um arrepio involuntário percorre-lhe as costas. De novo lança um olhar aos seus soldados. Há muitos atingidos, naturalmente: no segundo batalhão ouve-se tumulto. — Senhor ajudante-de-campo — grita ele — irão permita que se formem ajuntamentos. Este executa a ordem e aproxima-se do príncipe André. De outro lado chega a cavalo o comandante do batalhão. — Cuidado! — grita um soldado, espavorido, e silvando, num rápido voo, uma granada caiu a dois passos do príncipe André, próximo do cavalo do comandante do batalhão. O cavalo empina-se relinchando, com risco de jogar por terra o cavaleiro, e recua. O terror do animal apodera-se dos homens. — Deitem-se! — grita a voz do ajudante-de-campo que se atirara ao chão. O príncipe continuava de pé, irresoluto. O obus, fumegando, girava no solo como um pião entre ele e o ajudante-de-campo no limite da seara de aveia e do prado, junto de uma pernada de artemisa. «Será a morte?», pensou, olhando, com um olhar absoluta— mente novo e como que invejoso, a erva, a pernada de artemisa, o fio de fumo que se desprendia da bola negra em movimento. «Não posso, não quero morrer, gosto da vida, gosto desta erva, desta terra, do ar que respiro...» Dizia isto de si para consigo e ao mesmo tempo pensava nos que estavam a olhar para ele. — Não tem vergonha, senhor oficial? — disse para o ajudante-de-campo. — Que... Não pôde concluir. Nesse mesmo instante ressoou a explosão, houve um retinir, como de vidros quebrados, uma baforada de fumo e o príncipe André, projectado de lado, ergueu um braço ao ar e foi cair de cara contra o chão. Alguns oficiais acorreram. Do flanco direito escorria-lhe pela erva um grande rego de sangue. Os milicianos, logo chamados, detiveram-se com a sua padiola na retaguarda dos oficiais. André estava estendido sobre o ventre, o rosto na erva, e estremecia com grandes soluços.— Vamos, que estão aí a fazer, aproximem-se! Os camponeses chegaram, pegaram-lhe pelos ombros e pelas pernas, mas ele gemia dolorosamente e, depois de se entreolharem, voltaram a pô-1o no chão. — Peguem-lhe, ponham-no na padiola, pouco importa! — gritou uma voz. — Oh. Deus!, oh, Deus! Será possível?... No ventre. É a morte! Oh!, meu Deus! — exclamaram vários oficiais. — Roçou-me por uma orelha — disse o ajudante-de- campo. Os camponeses, depois de terem posto a padiola aos ombros, meteram a toda a pressa pelo atalho que conduzia à ambulância. — A passo! — Eh, camponeses! — gritou-lhes um oficial detendo pelo ombro um dos milicianos, que caminhavam em passo irregular e agitavam a maca, — Tem cuidado, hem, Kvedor! Eh, Kvedor! — exclamou o que ia à frente. — Assim está bem! — respondeu, jovial, o que ia atrás, acertando o passo. — É Sua Excelência? É o príncipe? — disse Timokine em voz trémula, correndo para a padiola. O príncipe André abriu os olhos e do alto da padiola onde a cabeça lhe descaíra lançou um olhar àquele que lhe falava, voltando a cerrar as pálpebras, Os milicianos levaram o príncipe André para a mata onde estavam os carros e a ambulância. Esta era formada por três tendas de campanha separadas, e de lonas abertas, na orla de uma inata de álamos. Os carros e os cavalos estavam debaixo das árvores. Os animais comiam a sua aveia nos respectivos sacos e os pardais cirandavam em volta deles na esperança de apanhar os grãos espalhados. Corvos, atraídos pelo sangue, grasnavam, impacientes, por entre os álamos. Em volta das tendas, numa área de umas duas dessiatinas, viam-se deitados, sentados ou de pé soldados ensanguentados, envergando os mais diversos uniformes. Na vizinhança dos feridos estacionava uma multidão de maqueiros de expressões tristes e atentas, que os oficiais encarregados de manter a ordem procuravam debalde afastar dali. Sem lhes dar ouvidos, estes soldados ali continuavam, encostados às suas padiolas, olhando fixamente tudo que se passava à sua volta, como que a procurarem compreender o terrível significado de semelhante espectáculo. Ouviam-se nas tendas ora gritos lancinantes e selvagens ora gemidos dolorosos. De tempos a tempos saíam de lá correndo enfermeiros que iam buscar água e designavam os feridos que deviam ser transportados. Estes, que esperavam a sua vez à entrada das tendas, gemiam, choravam, gritavam, proferiam injúrias, pediam que lhes dessem vodka, sentia-se-lhes o estertor.Alguns deliravam. Deixando para trás os feridos que ainda não tinham sido pensados, levaram o príncipe André, na sua qualidade de comandante de regimento, até à entrada de uma das tendas e aí se detiveram os seus maqueiros, aguardando ordens. André abriu os olhos e esteve assim muito tempo sem ser capaz de compreender o que se passava, O prado, as artemisas, o campo de aveia, a bola negra, girando e o seu arrebatamento de amor pela vida, tudo isto lhe veio ao espírito. A dois passos da sua padiola um sargento alto e moreno, a cabeça atada, encostado ao tronco de uma árvore, falava em voz alta, chamando a atenção de toda a gente, Fora ferido na cabeça e numa perna. A sua volta agrupava-se uma chusma de feridos e de maqueiros que escutava, avidamente o que ele dizia. «Quando corremos com eles dali, deixaram lá tudo, e até o rei deles fizemos prisioneiro», gritava o sargento, com os seus olhos negros resplandecentes e miradas de orgulho à sua roda. «Se ao menos naquele momento as reservas têm chegado, podem crer, rapazes, não tinha escapado um, tão certo como eu estar aqui.. » O príncipe André, como todos os que rodeavam o narrador, olhava para ele com os olhos brilhantes, e um sentimento de alívio o percorria. «Mas que me importa agora», dizia de si para consigo, «que tenho eu a ver com o que acontecerá ali e com o que aconteceu aqui? E porque será que me custa tanto deixar esta vida? Há de facto nela qualquer coisa que eu não compreendia e que continuo sem compreender.» [XXXVII] Um dos médicos saiu da tenda de campanha. Tinha um avental ensanguentado, e nos seus pequenos dedos, também cheios de sangue, entre o polegar e o anelar, equilibrava um charuto que procurava não sujar, Ergueu a cabeça e olhou para os dois lados por cima dos feridos. O que ele queria, evidentemente, era respirar um pouco de ar puro. Depois de olhar à direita e à esquerda, suspirou e baixou a cabeça. «Sim, é já», respondeu ao enfermeiro que lhe apontava o príncipe André, eordenou que o levassem para a tenda. «Pelos vistos até no outro mundo a vida é melhor para estes senhores», disse um dos feridos. Transportaram o príncipe André para dentro da tenda e colocaram-no sobre uma, mesa que acabava de ficar livre e que um enfermeiro limpava. André não pôde distinguir coisa por coisa o que havia dentro da tenda. Os gemidos lancinantes que se ouviam por todos os lados, as dilacerantes dores que sentia na anca, no abdómen e nas costas tomavam-no por completo. O espectáculo que tinha diante dos olhos confundia-se numa única impressão geral de corpos humanos nus e ensanguentados que pareciam encher por completo toda aquela tenda de tecto baixo, exactamente como, semanas atrás, num cálido dia de Agosto, os corpos que vira dentro do tanque lodoso na estrada de Smolensk. Sim, era a mesma carne, precisamente essa carne para canhão, cujo espectáculo então, como se previsse o que estava a ver agora, o enchera de horror. Na tenda havia três mesas. Duas delas já estavam ocup4 das: puseram o príncipe André na terceira. Deixaram-no só por instantes e pôde então, mesmo sem querer, ver o que se passava nas outras. Na que lhe ficava mais próxima estava sentado um tártaro, cossaco, sem dúvida, a avaliar pelo capote a seu lado. Quatro soldados o agarravam. Um médico de óculos retalhava-lhe as costas trigueiras e musculosas. «Ai, ai, ai!», berrava o tártaro, como um cevado no matadouro, e de súbito, retesando a cara bronzeada, de malares salientes e nariz chato, rangendo os dentes brancos, principiou a estrebuchar, a soltar gritos prolongados e pungentes. Na outra mesa, à volta da qual havia muitas pessoas, estava deitado de costas um homem forte e de grande estatura, com a cabeça caída para trás. Os seus cabelos encaracolados, a cor do cabelo e a forma da cabeça não pareceram desconhecidos ao príncipe André. Vários enfermeiros mantinham-no imobilizado, segurando-o fortemente. Uma das suas pernas, branca e gorda, era constantemente agitada por estremecimentos convulsivos. O homem soltava soluços entrecortados e sufocava. Dois médicos, silenciosos, um deles muito pálido e trémulo, ocupavam-se da outra perna, muito vermelha. O médico dos óculos, depois de dar por finda a sua tarefa junto do tártaro, a quem cobriram com um capote, aproximou-se do príncipe André enxugando as mãos. «Dispam-no! Que estão aí a fazer?», gritou, furioso, para os enfermeiros. O príncipe André recordou-se da sua longínqua e tenra infância, quando oenfermeiro, de mangas arregaçadas, o desabotoara rapidamente e o despira. O médico debruçou-se sobre o seu ferimento, e depois de o palpar suspirou profundamente. Em seguida fez um sinal a alguém. A dor atroz que sentiu no abdómen fez perder os sentidos ao ferido. Quando voltou a si, haviam-lhe extraído os fragmentos do fémur quebrado, tinham-lhe cortado grandes pedaços de carne e a ferida fora envolta em ligaduras. Espargiam-lhe a cara com água. Assim que abriu os olhos, o médico debruçou-se para ele, beijou-o nos lábios, sem dizer palavra, e afastou-se precipitadamente. Depois do sofrimento que suportara, André sentiu um bem-estar que desconhecia há muito. Pela imaginação perpassavam-lhe todos os melhores e mais felizes momentos da sua vida, especialmente a sua mais longínqua infância, quando o despiam e o deitavam na sua caminha, e a sua ama, embalando-o, cantava para o adormecer ou, quando, a cabeça pousada na almofada, era feliz por se sentir viver. E todas estas impressões não se lhe afiguravam passadas, mas uma realidade presente. Os médicos continuavam de volta do ferido cujos traços lhe não pareceram desconhecidos. Solevavam-no e esforçavam-se por acalmá-lo. «Mostrem-ma!... Ai!, ai!, ai!», gemia ele, numa voz entrecortada de soluços, apavorada e como que quebrada pelo sofrimento. Ao ouvir esses gritos, André sentia vontade de chorar. Seria por ver-se morrer sem glória? Seria por causa das recordações de infância para sempre desaparecida? Ou seria por ver sofrer os outros e ouvir aquele homem soltar diante dele gemidos tão lamentosos? Fosse como fosse, tinha vontade de chorar, de chorar lágrimas de criança, por assim dizer lágrimas suaves de alegria. Mostraram ao ferido a perna cortada, com sangue coagulado e ainda com a bota calçada. «Ai! Ai!», gemeu, rompendo a chorar como uma mulher. O médico que estava diante do ferido e lhe ocultava a cara afastou-se. «Meu Deus! Que é isto? Que está ele aqui a fazer?», disse para si mesmo o príncipe André. Naquele desgraçado que chorava, sem forças, e a quem acabavam de amputar uma perna, reconhecera Anatole Kuraguine. Amparavam-no por debaixo dos braços e chegavam-lhe um copo de água, que ele não conseguia atingir com a extremidade dos lábios tumefactos e trémulos. Continuava a soluçar. «Sim, é ele; aquele homem está ligado a mim por laços íntimos e dolorosos», disse de si paraconsigo o príncipe André, sem ter ainda uma ideia nítida, do que lhe estava a acontecer. «Que laços ligam aquele homem à minha infância, à minha existência?», perguntava sem conseguir obter resposta, E de súbito despertou-o um novo apelo inesperado: uma figura desse mundo da infância, cheia de pureza e de amor. Lembrou-se de Natacha, tal como ela lhe aparecera pela primeira, vez nesse baile e 1810, com o pescoço e os braços delgados, a sua expressão assombrada e feliz, tão pronta a entusiasmar-se, e o seu amor e a sua ternura por ela acordaram-lhe no fundo do coração mais vivos e fortes do que nunca. Compreendia agora o laço que existia entre ele e aquele, homem que através das lágrimas que lhe embaciavam os olhos o fitava com o seu olhar nublado. André lembrou-se de tudo, e uma imensa piedade, um apaixonado amor por aquele homem lhe encheu o coração feliz, Não podendo conter-se por mais tempo, pôs-se a chorar mansas lágrimas de amor pelos outros em geral, por ele próprio, pelos desvarios dos homens e pelos seus próprios desvarios. «Sim, a piedade, o amor dos nossos irmãos, daqueles que nos amam, o amor dos que nos odeiam, o amor dos nossos inimigos, sim, esse amor que Deus veio pregar sobre a Terra, esse amor de que me falava a princesa Maria e que eu não compreendia, eis o que me faz ter pena da vida, eis a única coisa que me restaria se ainda tivesse vida para viver. Mas agora é tarde, tarde de mais, Eu bem sei.» [XXXVIII] O aspecto aterrador do campo de batalha, coberto de mortos e moribundos, o peso que sentia na cabeça e a nova de que vinte dos ,seus generais tinham sido mortos ou postos fora de combate, tudo isto e o reconhecimento, a que se via obrigado, da impotência do seu pulso, outrora todo poderoso, produziu um efeito inesperado em Napoleão, que ordinariamente gostava de ver os mortos e os feridos no intuito de pôr à prova a sua força moral, como costumava dizer. Naquele dia o pavoroso aspecto do campo de batalha vencera a sua força moral, coisa em que estribava o seu mérito e a sua grandeza, Retirou-se precipitadamente e regressou ao reduto de Chevardino. Sentado no banco portátil, amarelento, inchado, pesado, os olhos embaciados, o nariz vermelho e avoz rouca, ouvia o tiroteio involuntariamente, de cabeça baixa. Era com febril inquietação que aguardava o fim daquela obra em que participava embora sem a poder dar por finda. Por momentos prevalecia nele, sobre a miragem em que vivera e de que por tanto tempo fora escravo, um puro sentimento de humanidade. Sentia pesar-lhe na alma o sofrimento e as mortes de que tivera a visão ao percorrer o campo de batalha. O peso na cabeça e a opressão que lhe tomava os pulmões faziam-no pensar que também podia sofrer e morrer. Naquele momento não desejava nem Moscovo, nem a vitória, nem a glória. Para que queria a glória? Nada mais desejava naquele momento além do repouso, da serenidade e da liberdade. Quando estivera, porém, no cabeço de Semionovskoie, o comandante da artilharia propusera-lhe instalar ali algumas baterias para reforçar o fogo sobre as tropas russas concentradas diante de Kniazkovo. Napoleão concordara, determinando que lhe comunicassem o resultado obtido. Um ajudante-de-campo veio anunciar-lhe que duzentas peças de artilharia tinham aberto fogo contra os Russos, mas que estes continuavam a resistir. — O nosso fogo ceifa-os, fileira a fileira, e apesar disso permanecem firmes — disse o ajudante-de-campo. — Ainda querem mais! — exclamou Napoleão com voz rouca. — Sire? – perguntou o oficial, que não ouvira bem. — Querem mais — repetiu ele, com a mesma rouquidão na voz e franzindo as sobrancelhas. — Dêem-lhes o que estão a pedir. E sem que disso tivesse a iniciativa, o que ele realmente não queria realizava- se, não dando ordens senão por pensar que esperavam que ele as desse. De novo se deixou mergulhar nesse mundo fictício, povoado de visões de grandeza, e de novo, como um cavalo que, movendo uma nora, julga realizar uma tarefa útil para si, cumpria, docilmente, o cruel, doloroso, inumano e penoso Papel para que estava predestinado. E não foi só naquela hora e naquele dia que o espírito e a consciência se lhe obscureceram, àquele homem sobre quem pesava mais do que sobre qualquer outro ser humano a responsabilidade do que se estava a passar. Nunca, até ao último dos seus dias, pôde compreender o que era o bem, o que era a beleza, o que era a verdade, nem jamais compreendeu a significação dos seus próprios actos por de mais opostos à verdade e ao bem para que ele pudesse compreender-lhes o significado. Nunca pôde renegar os seus próprios actos, tão louvados por meiomundo, e assim se viu forçado a renegar a verdade e o bem e tudo o que era verdadeiramente humano, Não foi só naquele dia que ele, percorrendo o campo de batalha juncado de soldados mortos ou mutilados — por obra e graça da sua vontade, assim pensava —, pôde calcular quantos eram os mortos russos por cada morto francês, e, enganando-se a si próprio, achara razões para rejubilar, pois, segundo ele, por cada um dos seus tinham caído cinco do inimigo. Não foi só naquele dia que ele disse, como escreveu numa carta para Paris: «O campo de batalha estava soberbo», por haver mais de cinquenta mil cadáveres. Também na ilha de Santa Helena, no silêncio da solidão, onde, segundo declarara, pensava consagrar os seus ócios a relatar as obras que levara a cabo, escreveria: A guerra da Rússia devia ter sido a guerra mais popular dos tempos modernos: era a guerra do bom senso e dos verdadeiros interesses, a guerra do repouso e da segurança geral; era puramente pacífica e conservadora. Era pela grande causa, pelo fim dos acasos e pelo princípio da segurança. Um horizonte novo, novos trabalhos iam, desenrolar-se, cheios do bem-estar e da prosperidade de todos. Estava fundado o sistema europeu; restava apenas organizá-lo. Satisfeitos que fossem estes grandes objectivos e tranquilo que me visse em toda a parte, teria tido também o meu Congresso e a minha Santa Aliança. Ideias que me roubaram. Nessa reunião de grandes soberanos teríamos tratado dos nossos interesses em família e contaríamos então, de amo a servidor, com todos os povos. Deste modo teria chegado a ser a Europa verdadeiramente um único povo e toda a gente por onde quer que viajasse encontrar-se-ia sempre na pátria comum. Teria obtido o livre trânsito em todos os rios navegáveis, a comunidade dos mares, e que os grandes exércitos permanentes fossem reduzidos daí para o futuro à escolta dos soberanos.De regresso a França, no seio da pátria, grande, forte, magnífica, tranquila, gloriosa, teria proclamado os seus limites imutáveis; teria declarado todas as guerras futuras puramente defensivas e qualquer engrandecimento novo antinacional. Teria associado meu filho ao império, a minha ditadura acabaria, e teria começado um reinado constitucional... Paris teria sido a capital do mundo e os Franceses a inveja das nações!... Os meus ócios e os dias da minha velhice teriam sido consagrados, na companhia da imperatriz e enquanto durasse o aprendizado real de meu filho, a visitar, vagarosamente, e como um verdadeiro casal de aldeões, com os nossos próprios cavalos, todos os recantos do Império, ouvindo as queixas, fazendo justiça, semeando por toda a parte monumentos e boas obras. (Em francês no texto original. (N, dos T.) Destinado pela Providência para desempenhar o papel lamentável e servil de carrasco das nações, queria convencer-se de que o seu objectivo era o bem dos povos e que podia orientar o destino de milhões de seres fazendo a sua felicidade. Dos 400 mil homens que atravessaram o Vístula — escreveria mais adiante a propósito da campanha da Rússia — metade eram austríacos, prussianos, saxões, polacos, bávaros, wurtem, burgueses, espanhóis, italianos, napolitanos. Um terço do exército imperial propriamente dito era formado por holandeses, belgas, naturais das margens do Rena, piemonteses, suíços, genebrinos, toscanos, romanos, componentes da 32ª divisão militar, habitantes de Brémen, Hamburgo, etc.; nele apenas 140 mil homens falavam francês. A expedição da Rússia custou menos de 50 mil homens à França actual; o exército russo, na retirada de Vilna para Moscovo e nas diversas batalhas que se travaram perdeu quatro vezes mais homens que o exército francês; no incêndio de Moscovo perderam a vida 100 mil russos, mortos de frio e de fome nas florestas; e por último, na sua marcha de Moscovo até ao Óder, o exército russo foi também castigado pelas intempéries da estação; quando chegou a Vilna, apenas contava 50 mil homens e em Kalisch tinhamenos de 18 mil!. Napoleão pensava, pois, que esta guerra contra a Rússia era obra sua, e o horror do que acontecera não lhe causava a mais pequena emoção. Assumia toda a responsabilidade dos acontecimentos e a sua mente ofuscada achava justificação no facto de entre as centenas de milhares de homens sacrificados haver menos franceses do que bávaros ou habitantes do Hesse. [XXXIX] E eis como algumas dezenas de milhares de homens dos mais diversos uniformes jaziam mortos, à mistura, naqueles campos e pradarias, propriedade de um tal Sr. Davydov e dos mujiques da coroa, campos e pradarias onde, durante centenas de anos, os habitantes de Borodino, Gorki, Chevardino e Semionovskoie, todas as estações, invariavelmente, procediam às suas colheitas e levavam os seus rebanhos a pastar. Nas ambulâncias, na área de uma dessiatina, erva e terra estavam empapadas de sangue. Multidões de soldados de diversas armas, feridos ou válidos, o pânico escrito na cara, iam refluindo, uns sobre Mojaisk, outros sobre Valuieva. Massas de homens esgotados de fadiga e mortos de fome, conduzidos pelos seus chefes, continuavam a marchar. E por último outros havia que se mantinham no seu lugar disparando sempre. Por cima do campo de batalha, tão formoso e alegre algumas horas antes, quando resplandeciam as baionetas ou se esgarçavam os vapores do sol matinal, estendia-se agora um nevoeiro húmido à mistura com fumo donde se desprendia um cheiro estranho e acre a salitre e a sangue. Enevoara-se o céu e uma chuva fina caía sobre os mortos, sobre os feridos, sobre aqueles homens extenuados, tornados de pânico, que principiavam a duvidar. Parecia gritar-lhes: «Basta, basta, infelizes! Cessai... Tomai tento! Que estais a fazer?» Os soldados de ambos os exércitos, cansados e esfomeados. Principiavam a perguntar-se a si próprios se valeria a pena continuarem a matar-se uns aos outros, e rios seus rostos lia-se a hesitação e em cada alma surgia esta pergunta: «Porquê, por quem devo eu matar ou deixar-me matar? Matai, vós, a quem quiserdes; fazei o que quiserdes; por mim, não quero mais!» Ao entardecer estaideia amadurecera em todas as almas. De um momento para o outro estes homens podiam vir a sentir horror pelo que estavam a fazer e abandonar tudo e fugir fosse para onde fosse. Sem embargo, ainda que no final da batalha estes sentimentos tivessem surgido na alma de todos os combatentes, ainda que todos se tivessem sentido felizes por acabar, uma força incompreensível e misteriosa obrigava-os a, continuar, e, cobertos de suor, negros de pó, sujos de sangue, reduzidos a um terço, extenuados e sem poderem mais, os artilheiros continuavam a transportar as cargas, a carregar as peças, a apontá-las, a inflamar as mechas, e os projécteis, com a mesma velocidade e a mesma crueldade, voavam quer de um lado, quer do outro, rasgando os corpos humanos, continuando a mesma terrível tarefa que se cumpre não graças a vontade do homem, mas graças à vontade d’Aquele que rege os destinos do mundo inteiro. Quem quer que tivesse visto as fileiras desorganizadas da retaguarda do exército russo teria pensado que bastava um pequenino esforço dos Franceses para esmagar esse exército. E quem quer que tivesse visto a desorganização dos Franceses teria podido raciocinar da mesma maneira. Mas a verdade é que nem os Franceses nem os Russos faziam esse esforço e o fogo da batalha ia-se apagando pouco a pouco, Os Russos não faziam esse esforço porque não tinham sido eles quem atacara. De princípio haviam-se limitado a ocupar a estrada de Moscovo, interceptando-a ao inimigo, e nesse posto continuaram até ao fim. Aliás, ainda que o seu objectivo fosse derrotar os Franceses, eram incapazes deste último esforço, uma vez que todo o seu exército estava desorganizado, que todos sofreram com a batalha e que para se manterem nos seus postos tinham perdido metade dos seus efectivos. Os Franceses, amparados pela recordação de quinze anos de vitórias, certos de que Napoleão era invencível, cientes de que se tinham apoderado de uma parte do campo de batalha, que não haviam perdido senão a quarta parte dos seus homens e que atrás deles ainda, intactos, estavam os vinte mil homens da Guarda, teriam podido facilmente fazer esse esforço. Eram os Franceses, que tinham atacado o exército russo com o objectivo de o desalojar das suas posições, quem devia fazer esse esforço, uma vez que enquanto os Russos continuassem, como no princípio da batalha, a interceptar-lhes a estrada para Moscovo, o seu alvo não fora atingido e inúteis deviam considerar-se todos os seus esforços e todas as suasperdas. A verdade, porém, é que não fizeram esse esforço. Alguns historiadores foram de parecer de que bastaria, Napoleão ter mandado avançar a sua velha Guarda para a batalha ser ganha. Mas quem assim se exprime parece supor que o Outono pode de súbito transformar-se em Primavera, coisa impossível. Se Napoleão não ofereceu a sua Guarda, não foi porque o não quisesse, mas por lhe ser impossível. Tanto os generais, como os oficiais, como os soldados, sabiam que assim era: o estado de desmoralização do exército não o permitia. Não foi só Napoleão quem sentiu que o seu braço terrível tombava sem força: todos os generais, todos os soldados do exército francês, quer combatentes, quer não combatentes, depois do que tinham visto nas batalhas precedentes, em que o inimigo costumava debandar após uma resistência de um contra dois, haviam sido tomados de um pavor geral na presença de adversário que, após haver perdido metade dos seus efectivos, ali continuava tão ameaçador no fim como no princípio da batalha. A força moral do exército francês atacante estava exausta. A vitória que os Russos obtiveram em Borodino não foi uma dessas vitórias que se proclamam com trapos hasteados em paus, à maneira de troféus, uma dessas vitórias que se medem pela extensão do território conquistado, mas uma vitória moral, uma dessas vitórias que convencem o adversário da superioridade moral que se lhe opõe e da inutilidade dos seus próprios esforços. A invasão francesa. à semelhança de uma fera enraivada mortalmente ferida na sua carreira, pressentia estar perdida, mas assim como o exército russo, duas vezes mais fraco, não podia ceder, a invasão não podia deter-se. Graças à velocidade adquirida, os Franceses ainda iriam até Moscovo, mas seria aí, sem que as forças russas tivessem de fazer novos sacrifícios, que soçobrariam, perdido que fora todo o seu sangue pela ferida mortal que receberam em Borodino, Uma das consequências directas da batalha foi obrigar Napoleão, sem qualquer motivo definido, a fugir de Moscovo, a bater em retirada pela velha estrada de Smolensk, suportando a perda de um exército invasor de quinhentos mil homens e assistindo à destruição da França napoleónica, sobre a qual, pela primeira vez, em Borodino, se abatera o braço de um adversário com força moral superior. TERCEIRA PARTE [I] [II] [III] [IV] [V] [VI] [VII] [VIII] [IX] [X] [XI] [XII] [XIII] [XIV] [XV] [XVI] [XVII] [XVIII] [XIX] [XX] [XXI] [XXII] [XXIII] [XXIV] [XXV] [XXVI] [XXVII] [XXVIII] [XXIX] [XXX] [XXXI] [XXXII] [XXXIII] [XXXIV] [I] A inteligência humana não compreende a continuidade absoluta do movimento. As leis de um movimento qualquer só são inteligíveis ao homem quando lhe é dado examinar separadamente as unidades que o compõem. A verdade porém é que é desta divisão arbitrária do movimento ininterrupto em unidades isoladas que resulta ao mesmo tempo a maior parte dos erros humanos. Quem há aí que não conheça o sofisma dos antigos segundo c! qual Aquiles nunca apanharia a tartaruga ainda que caminhasse dez vezes mais depressa do que ela? Enquanto Aquiles percorre a distância que o separa da tartaruga, esta ter-se-lhe-á adiantado a décima parte desse espaço e quando Aquiles tiver percorrido essa décima parte, a tartaruga ter-se-lhe-á adiantado a centésima e assim por diante até ao infinito. Este problema afigurava-se insolúvel aos antigos, quando o absurdo da conclusão dada resulta apenas do facto de se decompor o movimento arbitrariamente em unidades, quando o certo é que o movimento de Aquiles e o da tartaruga se produzem ininterruptamente. Ao tomarmos as unidades de um movimento nas suas parcelas cada vez mais pequenas, não fazemos mais do que aproximarmo-nos de uma solução sem nunca a podermos atingir. Só admitindo as grandezas infinitesimais e a sua progressão ascendente até à décima e depois somando esta progressão geométrica podemos obter a solução do problema. O novo ramo das matemáticas, que é a ciência dos infinitesimais, como sucede com os mais complicados problemas do movimento, resolve agora questões outrora consideradas insolúveis. No exame destes problemas, admitindo os números infinitesimais, esta nova ciência restabelece as condições fundamentais do movimento, isto é, a sua continuidade absoluta, e por essa razão corrige o erro que a inteligência humana não pode evitar quando estuda as unidades parcelares do movimento em vez do movimento contínuo.No que diz respeito ao estudo das leis do movimento histórico, a mesma coisa acontece. O movimento da Humanidade, consequência de inúmeras vontades humanas parcelares, não sofre interrupções. A finalidade da História é a compreensão das leis deste movimento. Mas, para compreender as leis do movimento contínuo resultante da sorna de todas as vontades humanas, a inteligência tem de admitir unidades parcelares e arbitrárias, O primeiro processo usado pelos historiadores consiste em tornar uma série de acontecimentos que se sucedem e examiná-los separadamente, quando é certo que não há e não pode haver princípio para nenhum acontecimento, pois todos dependem invariavelmente uns dos outros. O outro processo consiste em se considerarem os actos de um homem, rei ou grande general, como a soma das vontades de todos, quando o que acontece é que essas vontades nunca se traduzem na actividade de uma só personagem histórica, seja ela qual for. A ciência histórica, na sua evolução, admite unidades cada vez menores, procurando deste modo aproximar-se da verdade. Mas, por mais pequenas que elas sejam, chegamos à conclusão de que conceber uma unidade separada das outras, aceitar o começo de um fenómeno qualquer, admitir que a vontade de todos se exprima nos actos de uma só pessoa, é caminho errado. Toda a conclusão histórica se desfaz em pó, sem deixar rasto atrás de si, sob a pressão de qualquer ínfimo esforço crítico, desde que esta crítica eleja como medida de observação uma unidade maior ou mais pequena, coisa a que tem inteiro direito, visto ser sempre arbitrária a unidade histórica. Só podemos esperar compreender as leis históricas tomando para base das nossas observações a unidade infinitesimal, os diferenciais da História, quer dizer, as tendências uniformes dos homens, e integrando-as, isto é, somando-as umas às outras. Nos quinze primeiros anos do século XIX milhões de homens se movimentam na Europa. Todos abandonam as suas preocupações habituais, deslocando-se de um lado para o outro do continente, e é vê-los saquear, matar, vencer e desesperarem. Durante estes anos a vida muda, arrastada num movimento de princípio intenso, para depois declinar, Qual a causa de semelhante fenómeno ou quais as leis que o produziram? — pergunta a razão humana. Os historiadores respondem a esta pergunta expondo-nos os actos e os discursos de uma dezena de homens reunida num edifício da cidade de Paris, e dãoa esses actos e a esses discursos o nome de «revolução». Depois oferecem-nos a biografia, em todos os seus pormenores, de Napoleão e de várias outras personalidades simpáticas ou hostis para com essa revolução, referindo-nos as influências que exercem uns sobre os outros, para nos dizerem em seguida: eis aqui a causa desse movimento, e ali as suas leis. A verdade, porém, é que a nossa razão não só se recusa a admitir esta explicação como declara abertamente ser errónea, uma vez que as causas apresentadas são demasiado débeis para explicar semelhante fenómeno. Foi a soma das vontades humanas que fez a revolução e que tornou possível Napoleão, e só ela os manteve e aniquilou. «No entanto», dirá o historiador, «sempre que houve conquistas houve conquistadores; sempre que houve rima revolução houve grandes homens.» De facto, responde a razão, onde houve conquistadores houve guerras, o que não quer dizer que os conquistadores fossem a causa das guerras e que seja possível descobrirem-se as leis a, que essas guerras obedecem nos actos individuais de um único homem. Sempre que olho para o mostrador do meu relógio, quando o ponteiro se aproxima das dez, ouço badalar os sinos da igreja vizinha. Não tenho, porém, o direito de concluir que a posição do ponteiro do meu relógio seja a causa do badalar dos sinos. Sempre que vejo deslocar-se uma locomotiva, sempre que lhe ouço o apito e vejo mover-se-lhe o êmbolo, não tenho o direito de concluir que o silvo e o movimento das rodas sejam a causa da marcha da locomotiva. Os camponeses estão convencidos de que o vento gelado que sopra no fim da Primavera é provocado pelo rebentar dos renovos do carvalho, e efectivamente, quando na Primavera começam a rebentar os renovos do carvalho, sopra um vento frio. E conquanto eu ignore a razão desse fenómeno, não me é permitido estar de acordo com os camponeses, pois é evidente que o vento não pode depender dos renovos do carvalho. O fenómeno que observo é o resultado da coincidência de dois factos, o que aliás se verifica em numerosas manifestações naturais, e sou levado a concluir que, por mais que eu estude atentamente a marcha dos ponteiros do meu relógio, o movimento do êmbolo e das rodas da locomotiva ou os renovos do carvalho, não me é possível reconhecer nisso a razão do badalar dos sinos, do movimento da máquina ou do vento da Primavera. Para chegar a uma conclusão aceitável sinto-me na obrigação de modificar inteiramente o meu ponto de vista de observador, estudando as leis do vapor, as leis do som e as do vento. Eis o que o historiador tem de fazer. E o certo é que já se empreenderam ensaios nesse sentido. No estudo das leis da história é o objecto das nossas observações que precisa de ser modificado, É preciso deixar em paz os reis, os ministros e os generais e procurarem-se os elementos homogéneos e infinitesimais que dirigem as massas. Ninguém pode dizer até que ponto por esse meio se podem chegar a conhecer essas leis, mas não lia duvida de que apenas por esse lado elas se podem apreender e que nesse caminho o espírito humano não fez a milésima parte dos esforços que empregou para descobrir os actos de tantos reis, de tantos chefes militares e de tantos ministros e desenvolver as considerações que esses actos sugerem. [II] Exércitos de «doze povos diferentes» da Europa se tinham lançado sobre a Rússia. As tropas e as populações russas batem em retirada, evitando o contacto com o inimigo, em direcção a Smolensk e de Smolensk a Borodino. Os Franceses, animados por uma força propulsora cada vez maior, lançam-se sobre Moscovo, objectivo de todo o seu esforço. Esta força, à medida que, se aproxima do fim, aumenta de volume, de acordo com as leis que regem o movimento de aceleração na queda dos corpos. Na retaguarda do exército, milhares de verstas de um país devastado e, inimigo; na sua vanguarda, dezenas de verstas separando-o do seu destino. Eis o que cada soldado francês pensa, e a invasão continua por si mesma, graças à força deste impulso. No exército russo, quanto mais se recua mais se inflama nos corações o ódio contra o inimigo: a retirada concentra e exaspera esse ódio. Em Borodino dá-se o choque. Nenhum dos exércitos cede terreno diante do outro, mas, após o embate, os Russos têm, fatalmente, de continuar a recuar. Como acontece a uma bola, que, jogada contra outra, animada de maior velocidade, tem forçosamente de recuar, assim a bola da invasão, conquanto haja perdido a sua força no embate, tem necessariamente de continuar a rolar por algum tempo.Os Russos recuam para cento e vinte verstas além de Moscovo, os Franceses avançam até Moscovo e detêm-se aí. Nas cinco semanas seguintes, todos os combates cessam. Os Franceses não se mexem. A semelhança de uma fera mortalmente ferida que vai perdendo sangue enquanto lambe os seus ferimentos, ei-los ali imóveis durante cinco semanas, sem tentarem seja o que for, até que por fim, de súbito e independentemente de qualquer motivo, retrocedem. Precipitam- se pela estrada de Kaluga, e embora vitoriosos, pois no combate que se trava em MaloIaroslavetz ficam senhores do campo de batalha, sem travar qualquer combate sério, debandam cada vez mais depressa em direcção a Smolensk e de Smolensk direitos a Vilna, atravessando o no Beresina e assim por diante. Na noite de 26 de Agosto, Kutuzov, bem como todo o exército russo, estavam persuadidos de que a batalha podia considerar-se ganha. O Sereníssimo comunicou-o mesmo, por escrito, ao imperador. E ordenou que se preparassem para um novo combate com o propósito de dar o golpe de morte ao adversário, não por ser intenção sua enganar quem quer que fosse, mas apenas por estar persuadido de que o inimigo podia considerar-se vencido, persuasão, aliás, partilhada por todos os actores do drama. Mas naquela mesma noite e no dia seguinte receberam-se notícias de perdas incríveis: podia considerar-se perdida quase metade do exército, e uma nova batalha era, praticamente, impossível. Impossível pensar noutra batalha enquanto se não reunissem todas as informações necessárias e os feridos não estivessem recolhidos, as munições renovadas, contados os mortos, os novos comandantes nomeados para substituir os desaparecidos e os homens fortalecidos e devidamente refeitos. E, no entanto, imediatamente após a batalha, na manhã seguinte, o exército francês, accionado por uma força propulsora na razão inversa do quadrado da distancia, põe-se por si mesmo em marcha contra o exército russo. Kutuzov teria querido atacar logo na manhã seguinte e esse era o desejo unânime das suas tropas. Mas para tal se conseguir o desejar não bastava, era preciso o poder também, e essa possibilidade não existia. Era impossível não retroceder uma etapa, depois outra e outra ainda, e, por fim, no dia 1º de Setembro, quando as tropas chegaram a Moscovo — e apesar do animo que se apoderara dos soldados —, o estado das coisas exigiu que retirassem ainda mais. E o exército recuou mais uma etapa, a, última, e a capital rendeu-se ao inimigo.Aqueles que estão persuadidos de que os chefes militares traçam os seus planos de guerra e a disposição das batalhas, como qualquer de nós, sentado diante de um mapa, pode decidir das medidas a tomar nesta ou naquela circunstância, esses não deixarão de perguntar porque não procedeu Kutuzov, na sua retirada, desta ou daquela maneira, porque não ocupou posições antes de Fili, porque não recuou de uma vez só pela estrada de Kaluga, ao deixar Moscovo, etc. Esquecem ou ignoram as circunstâncias inevitáveis nas quais qualquer chefe militar tem de agir. O comandante de um exército é obrigado a proceder em condições absolutamente diferentes daquelas que concebemos no silêncio de um gabinete ao elaborarmos, com o mapa diante de nós, os planos de uma campanha, dispondo aqui e ali de forças determinadas e dando início às nossas operações num momento definido. O general-chefe nunca pode estar no «princípio» de um acontecimento, como acontece connosco, teóricos que somos. Vê-se sempre colocado no meio de uma série móvel de circunstâncias, de tal modo que nunca, em momento algum, é capaz de encarar exactamente o valor dos acontecimentos. O facto realizado toma, insensivelmente, pouco a pouco, o relevo que corresponde à importância que tem, e durante o tempo necessário para assim se desenvolver e colocar-se em evidência encontra-se o chefe mergulhado num jogo complicado de intrigas, de preocupações, de conflitos de poder, de projectos, de conselhos, de ameaças, de fraudes, tendo de responder, a todo o momento, a uma infinita quantidade de perguntas, sempre contraditórias. Os entendidos em assuntos militares dizem-nos, muito a sério, que Kutuzov teria podido evacuar as suas tropas pela estrada de Kaluga muito antes de Fili e que até mesmo alguém lhe propôs esta solução. Efectivamente, sobretudo nos momentos cri— ticos, o general-chefe tem sempre à sua disposição, em vez de um, dúzias de projectos, E cada um desses projectos, conquanto baseados na estratégia e na técnica, está em contradição com os outros. Dir-se-ia que lhe bastava escolher um deles. Mas até isso lhe é impossível. Tanto os acontecimentos como o tempo não esperam. Propuseram-lhe, suponhamos, no dia 28, seguir pela estrada real de Kaluga, mas eis que ao mesmo tempo chega um ajudante-de-campo de Miloradovitch, que vem perguntar-lhe se se devem atacar imediatamente os Franceses ou se é melhor recuarem, É preciso logo, naquele mesmo instante, transmitir ordens. Ordenar a retirada será condenar-se a um desvio para atingir aestrada de Kaluga. Depois do ajudante-de-campo chega o intendente, que pede instruções sobre o local para onde deve encaminhar os abastecimentos, enquanto o comandante das ambulâncias pergunta para onde deve dirigir os feridos. Entretanto chega um correio de Petersburgo com uma carta do imperador, em que se diz não admitir que se possa abandonar Moscovo. Em seguida, um dos rivais de Kutuzov, que move contra ele uma intriga — há sempre pessoas para tal e muitas vezes mais do que uma —, propõe um novo projecto, diametralmente oposto ao da retirada pela estrada de Kaluga. Aliás, o general-chefe tem necessidade de dormir para reparar as suas forças, mas eis que um digno general se lhe vem queixar de ter sido preterido na atribuição das condecorações, que uns civis lhe vêm implorar protecção, que um oficial enviado para examinar o terreno chega com informações absolutamente opostas às do oficial que o precedera. Um espião, um prisioneiro, bem como o general que fez o reconhecimento, descrevem de maneira completamente diferente posição do exército inimigo. As pessoas que fingem não compreender ou que esquecem as condições em que deve trabalhar o general-chefe desenham-nos um quadro, por exemplo, da posição das tropas em Fili e supõem então que Kutuzov teria podido no dia 1º de Setembro resolver livremente o problema do abandono ou da defesa de Moscovo, quando com o exército a cinco verstas da capital semelhante questão não era de formular. E quando foi essa questão resolvida? Em Drissa, em Smolensk e mais claramente do que nunca no dia 24, em Chevardino, e em 26 , em Borodino, e depois, dia a dia, hora a hora, minuto a minuto, na retirada de Borodino para Fili. [III] Quando Ermolov, enviado por Kutuzov para a posição, lhe veio dizer ser impossível travar batalha naquele local, em frente dos muros de Moscovo, e que era preciso recuar, o marechal olhou silencioso para ele. — Dá cá a tua mão — disse-lhe, ele relendo-a entre as suas para lhe tomar o pulso, acrescentou: — Estás doente, meu amigo. Pensa bem no que dizes. Ainda não podia compreender ser possível abandonar Moscovo sem combate. Apeou-se do carro, na colina de Poklonaia, a seis verstas da barreira deDorogomilov, e sentou-se num banco à beira da estrada. A sua volta juntaram-se muitos generais. O conde Rostoptchinp, chegado de Moscovo, juntara-se-lhes. Esta brilhante reunião, dividida, em vários grupos, discutia as vantagens e os inconvenientes da posição, o estado das tropas, os planos propostos, o espírito que reinava na cidade e outras questões militares. Embora ninguém o dissesse, e conquanto não tivessem sido convocados para isso, todos sentiam tratar-se de um conselho de guerra. As conversas mantinham-se à volta de problemas de ordem geral. Se se comunicava ou se se tomava conhecimento de casos particulares era em voz baixa e logo se voltava aos assuntos de ordem geral. Não havia nem conversas, nem gracejos, nem risos, nem sequer sorrisos. Era evidente todos procurarem estar à altura das circunstâncias. E conquanto cada um dos grupos se entretivesse em conversas entre os seus componentes, todos procuravam conservar-se não muito longe do general-chefe, cujo banco constituía o ponto de mira geral, todos falando de modo que ele os ouvisse. Kutuzov ouvia e por vezes informava-se sobre o que se estava a dizer perto dele, sem intervir nas conversas nem emitir qualquer opinião. Geralmente, depois de apurar o ouvido, desviava a atenção, desapontado por não ter podido ouvir aquilo que queria saber. Uns, a propósito da posição escolhida, criticavam menos essa posição em si mesma que a competência de quem a escolhera. Outros sustentavam que o erro vinha de mais longe e que já na antevéspera se devia ter aceitado a batalha. Havia ainda quem se referisse à batalha de Salamanca, cujos pormenores haviam sido conhecidos através de um francês de uniforme espanhol que dava pelo nome de Crossart. Este Crossart discutia com um príncipe alemão que prestava serviço no exército russo o cerco de Saragoça, na previsão de a defesa de Moscovo lhe seguir as pisadas. Num quarto grupo. Rostoptchine declarava estar pronto a morrer com a milícia moscovita defendendo a capital, embora acrescentasse que não podia deixar de lamentar a ignorância em que o tinham conservado e que, noutras circunstâncias, as coisas teriam corrido de outra maneira... Num quinto grupo, num alarde de profundo conhecimento estratégico, falava- se da direcção que as tropas deviam ter tomado. E havia ainda quem não dissesse senão tolices. Kutuzov cada vez parecia mais preocupado e mais triste, Em todo aquele linguajar apenas via uma coisa: tamanha era a impossibilidade material de defender Moscovo, no sentido literal da palavra, que, se houvesse um general-chefe tão louco capaz de dar ordem de combate, em vez de uma batalha apenas se veria uma desordem tremenda. Essa batalha não se travaria, pois todos os altos postos eram unânimes em considerar a posição impossível e não falavam noutra coisa senão no que viria a dar-se depois do abandono inevitável daquela posição. Como haviam aqueles generais de dirigir o exército num campo de batalha que eles próprios consideravam impraticável? Os oficiais subalternos f— os próprios soldados, pois todos discutiam o caso, reconheciam também a posição insustentável: não podiam bater-se de antemão certos de que se daria um desastre. É certo que Bennigsen teimava em que se defendesse essa posição, quando outros a criticavam, mas isso não linha importância alguma em si: não passava de pretexto para discussões e intrigas. Kutuzov compreendido perfeitamente. Bennigsen, que escolhera a posição em causa, vangloriava-se do seu patriotismo, e Kutuzov não o podia ouvir sem franzir o sobrolho. Teimava na defesa de Moscovo. O general-chefe percebia claramente o seu estratagema. Se houvesse um desastre, alijaria sobre ele, que teria conduzido as tropas sem darem batalha até aos montes Vorobi, toda a responsabilidade: no caso contrário, teria o cuidado de chamar a si toda a glória: e, se se recusassem a ouvi-lo, lavaria as suas mãos do crime de ter abandonado a cidade. Estas intrigas, porém, não apoquentavam por então o velho general. Só um problema terrível se lhe formulava e ninguém estava em condições de lhe proporcionar uma solução. Esse problema era o seguinte. «Teria sido eu quem deixou chegar Napoleão até às portas de Moscovo? E quando o teria feito? Quando? Ontem, quando enviei a Platov ordem de recuar, ou anteontem à noite, quando, meio adormecido, disse a Bennigsen que tornasse, as suas disposições? Ó teria sido ainda antes... Quando, quando é, que se decidiu esta coisa tremenda: Moscovo ter de sido abandonada? O exército tem de bater em retirada e essa ordem tem de ser transmitida. Dar uma tal ordem afigurava-se-lhe tão espantoso como demitir-se do comando do exército. Além de amar o poder, a que estava habituado, tivera inveja das honras tributadas ao príncipe Prozorovski, de cujo quartel-general foi agregado na Turquia, e estava convencido de que o destino o escolhera para salvar a Rússia, pois, contra a vontade do imperador, e apenas por virtude da vontade do povo, fora escolhido para o comando supremo. De facto, estava persuadido de que sóele, naquelas críticas circunstâncias, podia encontrar-se à frente do exército, e só ele neste mundo seria capaz de enfrentar o invencível Napoleão, sentindo-se horrorizado com a ideia da ordem que tinha de dar. A verdade, porém, é que era preciso tomar uma decisão: era mister pôr ponto final às conversas daquela gente, que principiavam a adquirir um tom demasiado livre. Chamou os generais mais antigos. — Boa ou má, a minha cabeça só comigo pode contar – disse, levantando-se para se dirigir a Fili, onde estavam as carruagens. [IV] As duas da tarde reuniu-se o conselho de guerra na espaçosa e confortável isbá do camponês André Savostianov. Os homens, as mulheres e as crianças daquela numerosa família tinham-se ido acolher na dependência sem estufa do outro lado do vestíbulo. Apenas ficara empoleirada na estufa uma pequenita de seis anos, a filha de André, Malacha, a quem o Sereníssimo conquistara, quando tomava chá, oferecendo-lhe um pedaço de açúcar, Malacha, tímida e risonha, ia olhando do alto do seu observatório aquelas figuras, aqueles uniformes, aqueles generais, com o peito constelado de medalhas, que entravam uns atrás dos outros e se instalavam no recanto sagrado, nos grandes bancos, debaixo dos ícones. O «avô», como Malacha, mentalmente, chamava a Kutuzov, estava sentado sozinho no recanto escuro da estufa. Esbarrondado numa poltrona, não fazia senão gemer, passando a mão pela gola do dólman, o qual, embora desabotoado, parecia afogar-lhe o pescoço. Os que iam entrando aproximavam-se dele, um de cada vez: a uns apertava a mão, a outros limitava-se a fazer-lhes um aceno com a cabeça. Kaissarov, o ajudante-de-campo, fez menção de afastar a cortina da janela que lhe ficava diante, mas o marechal teve um gesto de impaciência e ele compreendeu que o Sereníssimo não queria que lhe vissem a cara. Em torno da rústica mesa de pinho, cujo tampo estava coberto de mapas, planos, lápis, papéis, tanta gente se juntou daí a pouco que as ordenanças se viram obrigadas a trazer outros bancos. Neles se sentaram os recém-chegados, Ermolov, Kaissarov e Toll. Precisamente debaixo dos ícones, no lugar de honra,estava Barclay de Tolly, com a cruz de S. Jorge ao peito, o rosto pálido e enfermiço e a grande testa que lhe prolongava a cabeça calva. Estava com febre há dois dias e naquele momento, precisamente, arrepios o faziam estremecer, sentindo-se prostrado. A seu lado. Uvarov, com gestos bruscos, contava-lhe qualquer coisa em voz baixa. Todos, aliás,, falavam da mesma maneira. Dokturov, baixinho e reboludo, de sobrancelhas franzidas e mãos cruzadas sobre o ventre, ouvia em toda a atenção. Do outro lado, o conde Ostermann-Tolstoi apertando entre as mãos a sua grande cabeça de ousada expressão e olhos brilhantes, parecia mergulhado nos seus pensamentos. Raievski, impaciente, alisando os frisados cabelos com um gesto habitual, ora olhava para Kutuzov ora para a porta de entrada. O belo rosto firme e bondoso de Konovnitsine abria-se num sorriso terno e malicioso. Os seus olhos e os de Malacha tinham-se encontrado e fazia-a rir com trejeitos. Todos esperavam por Bennigsen, que, a pretexto de examinar novamente a posição, se estava refazendo com um bom repasto. Entre as quatro e as seis horas conversou-se, em voz baixa, sobre assuntos particulares, sem se dar início à discussão. Só quando Bennigsen apareceu na isbá Kutuzov saiu do seu canto e se aproximou da mesa, mas de modo a que a luz das velas trazidas entretanto lhe não desse em cheio no rosto. Bennigsen abriu imediatamente a sessão, perguntando se «se ia abandonar sem combate a santa e antiga capital da Rússia ou se, pelo contrário, se ia defendê-la». Seguiu-se um longo e absoluto silêncio. Em todos os rostos surgiu uma expressão carregada, e ouviu-se Kutuzov tossir, resmoneando, irritado, fosse o que fosse. Todos os olhares convergiam para ele. Até Malacha olhava para o «avô». Era ela quem, de mais perto, podia ver contrair-se-lhe o rosto: parecia ir chorar. Foi coisa de segundos. — A santa, a antiga capital da Rússia! — exclamou, subitamente, repetindo, colérico, as palavras de Bennigsen, como a frisar quanto essas palavras destoavam. — Permita que lhe diga, Excelência, que esta pergunta não tem o mais pequeno sentido para um coração russo. — E enquanto assim falava, o corpo maciço inclinava-se-lhe para a frente. — Não se pode fazer semelhante pergunta e uma pergunta dessas não tem o mais pequeno sentido. Foi por motivos de ordem puramente militar que eu convoquei estes senhores. Ei-los: «A salvação da Rússiaestá no exército. Qual será mais vantajoso, arriscarmo-nos a perdê-lo, e com ele Moscovo, aceitando a batalha, ou entregar Moscovo sem combate?» Eis o ponto sobre que eu quero conhecer a vossa opinião. E voltou a enterrar-se na sua poltrona. A discussão tomou calor. Bennigsen ainda se não considerava vencido. Admitindo a opinião de Barclay e de outros, segundo a qual era impossível travar uma batalha defensiva em Fili, propunha, dominado, dizia, por sentimentos patrióticos e de amor a Moscovo, fazer passar as tropas, durante a noite, do flanco direito para o esquerdo, lançando-se na manhã seguinte sobre a ala direita francesa, As opiniões estavam divididas; discutiram-se os prós e os contras. Ermolov, Dokturov e Raievski estavam com Bennigsen. Ou guiados pela ideia de que era necessário um sacrifício antes do abandono da cidade ou por outra qualquer razão de ordem pessoal, fosse pelo que fosse, pareciam não compreender que aquela reunião não podia alterar a marcha inevitável dos acontecimentos e que Moscovo já estava de facto abandonada. Eis o que compreenderam muito bem os demais, que, deixando de lado a questão de Moscovo, apenas discutiram a direcção que os exércitos deviam seguir na retirada. Malacha que seguia atentamente o espectáculo, interpretava de maneira muito diferente o que estava a passar-se. Para ela tratava-se apenas de uma luta pessoal entre o «avô» e o «homem das grandes abas», como chamava a Bennigsen. Via muitíssimo bem que se dirigiam um ao outro iracundos e lá no fundo do seu coraçãozinho tornava o partido do «avô». No decorrer da conversa surpreendeu o olhar rápido e malicioso que este lançara a Bennigsen, e imediatamente percebeu, com grande satisfação, que o «homem das grandes abas» fora posto no seu lugar: Bennigsen corara, subitamente e, furioso, pusera-se a andar de um lado para o outro. As palavras que sobre ele tinham produzido tão grande efeito eram as que Kutuzov pronunciara, numa voz mansa e tranquila, acerca das vantagens e dos inconvenientes da proposta relativa ao ataque da ala direita dos Franceses. — Não posso, meus senhores — dissera Kutuzov —, aprovar o plano do conde. Movimentos de tropas nas vizinhanças do inimigo são sempre perigosos e a história militar aí está para confirmar o facto. Assim, por exemplo... — Pareceu querer reflectir e lançou um olhar ingénuo e claro ao antagonista, como se procurasse um exemplo ali bem próximo. — É o caso da batalha de Friedland, que,como o conde se deve lembrar muito bem, assim o espero, não foi... o que se pode dizer um êxito, apenas porque as nossas tropas se tinham reagrupado a uma distancia demasiado próxima do adversário... Seguiu-se um breve silêncio que a todos pareceu muitíssimo longo. A discussão recomeçou, entrecortada de frequentes interrupções: sentia-se que, já não havia matéria para mais dissertações. Durante uma destas interrupções, Kutuzov soltou um grande suspiro: parecia querer falar. Todos voltaram para ele os olhos. — Bem, meus senhores, já vi que eu é que tenho de pagar os vidros partidos! — disse ele. E, erguendo-se com dificuldade, aproximou-se da mesa. — Meus senhores, ouvi o que cada um pensa. Alguns dos senhores não são, com certeza, da minha opinião. Mas eu — acrescentou, depois de uma ligeira pausa — mercê dos poderes que me foram conferidos pelo imperador e pela Pátria, ordeno a retirada. Pouco depois os generais separavam-se, com essa circunspecção solene e calada com que se costumam separar as pessoas que assistiram a um funeral. Alguns deles, em voz baixa, e num tom muito diferente daquele que tinham durante o conselho, dirigiram algumas palavras ao general-chefe. Malacha, que esperava havia muito pelo jantar, deixou-se deslizar do seu miradouro, cautelosamente, de costas, fixando os seus pèzinhos descalços nas saliências da estufa, e desapareceu pela porta, esgueirando-se por entre as pernas dos militares. Depois de se despedir dos generais, Kutuzov deixou-se ficar, por muito tempo, sentado, com os cotovelos em cima da mesa, pensando sempre na mesma tremenda pergunta: «Quando é que se decidiu então que Moscovo seria abandonada? Quando ficou isso resolvido e quem era o responsável?» — Ah! Não era isto que eu esperava! — disse para o ajudante-de-campo, Schneider, que viera vê-lo já noite adiante. — Não esperava isto! Nunca julguei que se desse uma coisa destas! — É melhor ir descansar, Excelência — disse-lhe Schneider — Pois bem, já que assim querem, obrigá-los-ei a comer carne de cavalo, como aos Turcos — exclamou, de súbito, sem responder ao ajudante-de-campo, deixando cair o grosso punho em cima da mesa— Sim, também a hão-de comer, ou então... [V] Entretanto, e num caso ainda mais grave que o da retirada do exército sem combate, o do abandono e incêndio de Moscovo, Rostoptchine, que aparece como o agente executor desse acontecimento, agia de forma muito diversa de Kutuzov. Este grave acontecimento — o abandono e o incêndio de Moscovo — era tão inevitável como a retirada das tropas para além de Moscovo depois da batalha de Borodino. Nenhum russo houve, não por dedução lógica, mas em virtude desse sentimento que lhe enchia o coração, como já acontecera com os seus antepassados, que não previsse o que ia suceder. Depois da tomada de Smolensk, em todas as cidades e povoações russas, sem ser precisa a intervenção do conde Rostoptchine nem das suas proclamações, aconteceu precisamente o mesmo que em Moscovo. O povo esperou calmamente o inimigo, sem se revoltar, sem se agitar, sem atentar contra a vida de ninguém: esperou tranquilamente a sua hora, certo de que, nas circunstâncias mais trágicas, saberia achar a decisão que convinha. A medida que o inimigo se aproximava, as classes mais abastadas retiravam-se, abandonando os seus haveres; as mais pobres ficaram e incendiaram e destruíram o que restava. Todos os russos sentiam que tinha de ser assim e que assim seria sempre. Esta convicção, sobretudo o pressentimento de que Moscovo seria tomada, espalhara- se por toda a sociedade moscovita de 1812. Aqueles que, a partir de Julho e do começo de Agosto, largaram da cidade mostraram esperar isso mesmo. Os que abalaram levando consigo o que podiam e abandonando as suas casas e grande parte dos seus haveres agiram desse modo impelidos por um patriotismo latente que se não traduz nem em frases nem no assassínio dos filhos em nome da salvação da Pátria ou quejandos actos antinaturais, mas se exprime sem alarde, simplesmente, de maneira natural, e que por isso mesmo dá sempre os melhores resultados. «É uma vergonha fugir do perigo, só os cobardes procedem assim», diziam-lhes. Rostoptchine, nas suas proclamações, dava-lhes a entender que esse procedimento era uma desonra. Apesar de mortificados por se verem tratados como poltrões e lhes custar partirem, mesmo assim abalavam, pois sabiam que tinha de ser. Eporque se iam embora? Não, com certeza, por se sentirem alarmados pelo que dissera Rostoptchine sobre as atrocidades que Napoleão praticava nos países conquistados. Abalavam, e os ricos, as pessoas cultas, eis quem partia primeiro, eles, que sabiam perfeitamente que Viena e Berlim estavam intactas e que durante a ocupação os habitantes passavam o seu tempo muito divertidos na companhia desses franceses, gente sedutora, de quem os Russos tanto gostavam, especialmente as mulheres. Partiam porque, para os Russos, não se punha a pergunta de se seria bom ou mau viver sob a administração francesa, Não era possível ali ficar: para eles, seria o pior que lhes podia acontecer. Partiam mesmo antes de Borodino e ainda mais depressa depois desta batalha, sem quererem saber das proclamações relativas à defesa da cidade, apesar de o governador de Moscovo ter anunciado a «saída» da Virgem Iverskaia e a sua intenção de se alistar, e dos balões que deviam matar todos os franceses, e, de todos os despautérios que Rostoptchine proclamava nos seus editais. Sabiam muitíssimo bem que era o exército que devia bater-se e que se este se mostrava incapaz não era com as filhas dos criados que eles podiam enfrentar Napoleão em Tri Gori, e que o que havia a fazer era partir, por mais que lhes custasse abandonar os seus haveres. E lá iam, sem se deterem a pensar na majestade daquela enorme e rica capital abandonada pelos seus habitantes e destinada, sem dúvida, a ser pasto das chamas, pois não destruir ou reduzir a cinza casas vazias eis coisa extraordinária para a gente russa. Iam por iniciativa individual e, apesar disso, graças ao facto de partirem, cumpria-se esse acto magnífico que ficará para todo o sempre com a maior gloria do povo russo. Até aquela senhora que já no mês de Junho, seguida dos seus negros e dos seus bobos, abandonava Moscovo, para se refugiar nas suas propriedades de Saratov, sentia confusamente que nunca poderia ser criada de Bonaparte. E apesar do receio de ser presa às ordens de Rostoptchine, realizava simples e naturalmente a grande obra que salvaria a Rússia. E o conde Rostoptchine, que tão depressa envergonhava os que fugiam como ordenava que se fechassem as repartições públicas; que umas vezes distribuía entre o povo embriagado armas que para nada serviam, organizando procissões pelas ruas, outras proibia o metropolita Augustin de o fazer: que requisitava agora todos os carros particulares existentes na cidade e logo utilizava cento e trinta e seis carroças para transportar o famigerado balão de Leppich; que tanto declarava ir deitar fogo a Moscovo como que incendiara asua própria casa enquanto numa proclamação aos Franceses os censurava solenemente por haverem saqueado o asilo de crianças por ele fundado; que ora, se vangloriava do incêndio de Moscovo ora o reprovava; que ora dava instruções ao povo para deitar a mão aos espies e trazer-lhos ora o condenava por o ter feito: que ora expulsava de Moscovo todos os franceses ora deixava em paz Madame Aubert-Chalmé, sob cujo tecto se reunia toda a colónia daquele país, quando, sem qualquer motivo especial, mandava prender e deportar o velho e venerando director dos correios, Kliutcharev; que ora mandava convocar o povo para se reunir em Tri Gori e marchar contra os Franceses ora, para se ver livre da multidão, lhe entregava um homem para que ela o liquidasse enquanto ele próprio fugia pela porta das traseiras; que ora dizia que não sobreviveria às desgraças de Moscovo ora escrevia num álbum, em francês, uma quadra sobre o pape’ que então estava a desempenhar (1), esse homem nada percebia dos acontecimentos que estavam a dar-se, apenas queria fazer fosse o que fosse, pôr- se em evidência, realizar um feito patriótico, brincando como uma criança enquanto se cumpria esse acto formidável e fatal que foi a, evacuação e o incêndio de Moscovo. Com os seus bracinhos de criança, ora tratava de espicaçar ora de deter essa imensa torrente popular que tudo arrastava no seu curso. (1) Je suis ne Tartare Je voutus étre Romain. Les Français m’appelèient barbare, Les Russes. Georges Dardin, (Nasci tártaro Quis ser romano. Os Franceses chamaram-me bárbaro Os Russos, Georges Dandin.) (Nota de Tolstoi.) [VI] Helena, que regressara de Vilna a Petersburgo com a corte, encontrava-se numa situação embaraçosa. Em Petersburgo gozava da protecção muito especial de um magnate que ocupava um dos mais altos postos do Estado. Em Vilna tornara-se íntima de um jovem príncipe estrangeiro. No seu regresso encontrou-se com o príncipe e o magnate, e ambos quiseram fazer valer os seus direitos, o que a obrigou a resolver um problema inédito na sua carreira: manter relações intimas com os dois sem ofender qualquer deles. Isto, que teria parecido difícil e até impossível a qualquer outra, não obrigou a condessa Bezukov a um momento sequer de reflexão, ou não tivesse ela fama de mulher superior. Se tem dissimulado o seu procedimento, servindo-se de subterfúgios para evitar complicações, teria deitado tudo a perder, pois seria como confessar-se culpada. Pelo contrário, procedendo como um grande homem capaz de conseguir tudo o que quer, imediatamente se colocou na situação de quem tem razão, razão em que ela, aliás, acreditava sinceramente, atribuindo a culpa aos outros. A primeira vez que o mancebo estrangeiro se permitiu censurá-la, ela ergueu altivamente a sua bela cabeça e, meia voltada para ele, disse-lhe: — Aqui têm o egoísmo e a crueldade dos homens! Não contava com outra coisa. Sacrifica-se uma mulher, e aqui têm a recompensa. Que direito tendes vós, monsenhor, de me pedirdes contas das minhas amizades, dos meus afectos? Esse homem foi um verdadeiro pai para mim. O príncipe quis dizer fosse o que fosse, mas ela interrompeu-o: — Sim, está bem — prosseguiu — pode ser que ele alimente por mim sentimentos que não são propriamente de um pai, mas isso não é razão para eu lhe dar com as portas na cara. Não sou homem para ser ingrata. Fique sabendo, monsenhor, que em tudo que diz respeito aos meus sentimentos íntimos só a Deus e à minha consciência presto contas.— E dizendo o que, pousou a mão sobre o seu belo seio, que se soerguia emocionado, ao mesmo tempo que levantava os olhos para o céu. — Mas ouça-me, por amor de Deus. Case comigo, e eu serei sua escrava. — Mas é impossível. — Não quer descer até mim, bem vejo... — E rompeu a chorar.O príncipe procurou consolá-la. Helena, chorando sempre, disse-lhe— como se, não desse conta das suas palavras, que nada a podia impedir de se casar, pois havia casos de divórcio (não eram muitos os que então havia, mas Helena citou o de Napoleão e outras grandes personalidades), que nunca fora mulher do seu marido, que era, apenas a sua vítima. — Mas as leis, a religião... — replicou o moço, que principiava a transigir. — As leis, a religião... Mas para que teriam elas sido feitas se, não servissem para isso? O príncipe, surpreendido com o facto de ainda não ter pensado no caso, coisa tão simples e razoável, foi dali pedir conselho aos reverendos padres da Companhia de Jesus, com quem mantinha estreitas relações. Alguns dias depois, numa dessas encantadoras festas que Helena costumava oferecer na sua residência de Kamenn! Ostrov, apresentaram— lhe uma personagem de certa idade, de cabelos brancos como neve e brilhantes olhos pretos, o sedutor Monsieur de Jobert, um jesuíta de sotaina curta. No jardim iluminado e enquanto a orquestra tocava, por muito tempo este padre falou a Helena do amor de Deus e de Cristo, do Sagrado Coração de Maria e do consolo que nesta vida e na outra promete a religião católica. Helena comoveu-se, por várias vezes sentiu as lágrimas nos olhos, como, aliás, o próprio Monsieur de Jobert, e a voz tremeu-lhe. Alguém se aproximou de Helena convidando-a para dançar e interrompeu esta conversa com o seu futuro director espiritual; mas no dia seguinte Monsieur de Jobert passou o serão em casa de Helena e daí para o futuro tornou-se íntimo da condessa. Um dia acompanhou Helena à igreja católica e Helena ajoelhou diante do altar que ele lhe indicara. O insinuante velho pousou-lhe as mãos na cabeça e ao sentir este contacto, assim ela o contaria mais tarde, foi como se um sopro de ar fresco lhe Perpassasse pela alma. Explicaram-lhe que era a graça. Depois enviaram-lhe um sacerdote de sotaina comprida, que a confessou e lhe deu a absolvição. No dia seguinte trouxeram-lhe a comunhão numa caixa que lhe deixaram em casa à disposição. Alguns dias depois veio a saber, com grande alegria sua, ter dado entrada na verdadeira igreja católica, que o próprio papa ia ser posto ao corrente desse facto e que lhe enviaria, tal propósito, um documento autêntico. Tudo o que estava a acontecer por esse tempo, a atenção que lheconsagravam pessoas tão inteligentes, exprimindo-se de uma forma tão agradável e tão distinta, e a sensação de se sentir pura como uma pomba — por então usava vestidos brancos enfeitados com laços da mesma cor —, tudo isso lhe dava um grande prazer, mas a verdade é que, apesar de tudo, nem por um só momento desistia do seu objectivo. E como sempre acontece quando entra em cena, a malícia, que é o mais néscio quem vergar, o mais inteligente, percebendo que o objectivo de todas aquelas palavras e preocupações consistia principalmente em arrancarem-lhe dinheiro em benefício dos Jesuítas, depois de a terem convertido ao catolicismo, insinuação que já lhe fora feita. Helena, antes de entregar a importância, insistiu em submeter-se a todas as operações que pudessem libertá-la do marido. Segundo ela, a religião devia servir para manter certas conveniências na satisfação dos desejos humanos. E foi assim que numa das suas conversas com o confessor exigiu que ele lhe dissesse formalmente até que ponto ela estava ligada pelo matrimónio. Estavam ambos sentados no salão, ao pé da janela, Caía a tarde. O perfume das flores penetrava pela vidraça aberta. Helena tinha um vestido branco que não lhe tapava o colo e os ombros. O padre, bem alimentado, as faces cheias, barbeadas de fresco, a boca agradável e firme, as brancas mãos cruzadas sobre os joelhos, em atitude beata, estava sentado ao lado de Helena, e com um fino sorriso nos lábios olhava para ela de tempos a tempos, embriagado pela sua beleza, enquanto lhe expunha o seu ponto de vista sobre a questão que a interessava. A condessa, sorrindo, com inquietação, ia olhando para aquele homem de cabelo encaracolado, faces cheias e sombreadas depois da recente passagem da navalha, esperando a todo o momento que a conversa tornasse um rumo novo. O sacerdote, porém, embora visivelmente perturbado com os encantos da interlocutora, abandonava-se ao prazer de expor com arte o seu pensamento. O director espiritual raciocinava nestes termos: «Ignorando os deveres que assumia, jurou fidelidade a um homem que, pela sua parte, contraindo o matrimónio sem pensar na importância religiosa desse sacramento, cometeu um verdadeiro sacrilégio. Este casamento não teve o carácter recíproco que lhe é próprio. Não obstante, o seu juramento conta. Se amanhã o vier a quebrar, qual será o seu pecado? Um pecado venial ou um pecado mortal? Um pecado venial, pois não houve da sua parte má intenção ao praticá-lo. Se agora viesse a contrair novo casamento, na esperança de ter filhos, o seu pecado podia ser-lhe perdoado.Mas o problema assume agora duplo aspecto, o primeiro...» — Eu pensava — disse, de súbito, Helena, enfadada com todos aqueles discursos, e com o mais sedutor dos seus sorrisos —, eu pensava que, desde o momento em que abracei a verdadeira religião, deixaria de estar ligada pelas obrigações impostas pela falsa religião. Surpreendeu-se o director espiritual ao ver apresentar-se-lhe com tanta simplicidade o problema do ovo de Colombo. Entusiasmado com os rápidos e imprevistos progressos da discípula, não quis, porém, renunciar à exposição dos seus argumentos sérios e bem fundamentados. — Entendarno-nos, condessa — exclamou, sorrindo, e pôs-se relutar os raciocínios da sua filha espiritual. [VII] Helena compreendeu que a questão do ponto de vista religioso era muito fácil e simples, mas que os seus guias espirituais apenas levantavam dificuldades receosos da maneira como as autoridades laicas acolheriam estes projectos. E nestas condições decidiu ser preciso preparar a opinião pública. Provocou ciúmes no seu velho protector, dizendo-lhe pouco mais ou menos o mesmo que dissera ao primeiro pretendente, isto é, apresentou-lhe as coisas de tal modo que a conclusão a tirar era que para ter sobre ela quaisquer direitos seria preciso desposá-la. No primeiro momento, a surpresa do ancião perante a proposta de se casar com uma senhora que tinha marido foi tão grande como a do jovem, mas a imperturbável segurança de Helena, dizendo-lhe que o caso era tão simples e natural como se se tratasse de uma donzela, acabou por influenciá-lo da mesma maneira. Se ela tivesse tido a menor hesitação, se tivesse mostrado a mais ligeira vergonha ou o mínimo escrúpulo, a partida estaria perdida para ela. Mas foi com toda a sinceridade e a mais cândida bonomia que contou aos seus amigos íntimos, isto e, a Petersburgo inteira, que o príncipe e o magnate se lhe tinham declarado os dois e que ela não queria magoar nem um nem o outro. Instantaneamente, espalhou-se por Petersburgo que Helena pensa divorciar- se. Semelhante notícia teria provocado reparos se se não tivesse sabido ao mesmotempo que a infeliz e interessante Helena estava perplexa sem saber qual dos dois pretendentes escolher. Não se tratava já de saber se isso seria possível, mas apenas qual seria o partido mais vantajoso e como encararia a corte o casamento. É certo que, havia pessoas de ideias retrógradas, incapazes da elevação de espírito suficiente para estarem à altura da questão, pois encaravam esse projecto como uma verdadeira profanação do sacramento do matrimónio, mas eram poucas e não faziam comentários, enquanto a maioria não pensava senão na felicidade de Helena e na escolha que ela faria. Nem uma palavra, porem, no que dizia respeito a considerar-se legítimo ou reprovável o facto de ela se casar estando vivo o marido, pois, dizia-se, o assunto já fora resolvido por pessoas «mais instruídas do que qualquer ele nós», e por em dúvida a sensatez de uma tal resolução seria arriscarmo-nos a fazer figura de parvos ou descorteses. Só uma pessoa ousou pronunciar francamente a sua opinião, contrária à de todos os demais: Maria Dmitrievna Akrossimova, que viera a Petersburgo visitar um dos seus filhos. Tendo encontrado Helena num baile, deteve-a no meio do salão e, na sua voz rude disse-lhe em voz alta, quando à roda o silêncio era geral: «Com que então cá por estes sítios é costume agora as pessoas casarem com os maridos vivos? Julgas que inventaste, alguma coisa nova? Estás atrasada, minha amiga. Há muito que isso se inventou. Fazem-no todas...» E dizendo o que. Maria Dmitrievna arregaçou as largas mangas do seu vestido, num gesto ameaçador que lhe era habitual, e, depois de a olhar severamente, continuou o seu caminho. Conquanto a temessem, Maria Dmitrievna em Petersburgo gozava da fama de meio doida e foi assim que da sua algaraviada apenas ficou no ouvido dos que assistiram à cena a palavra grosseira que ela empregou no fim. Repetiam-na em voz baixa e só nessa palavra lhe saboreavam o sal da peroração O príncipe Vassili, que nos últimos tempos se esquecia muito e estava sempre a repetir a mesma coisa, dizia sempre a filha quando acontecia encontrá-la: — Helena, tenho ama palavra a dizer-te. — E, travando-lhe do braço, afastava- se com ela para um canto. — Chegaram-me aos ouvidos certos projectos relativos a... Sabes. Pois bem, minha querida filha, fica sabendo que o meu coração de pai se regozija de te saber... Tens sofrido tanto... Mas, querida filha, só deves ouvir o teu coração. É tudo quanto tenho a dizer-te. E, escondendo a emoção de encomenda, esfregava a cara de encontro à da filha, afastando-se.Bilibine, sempre com a reputação de homem extremamente espirituoso e amigo desinteressado de Helena, amigo no género costumado entre as mulheres da moda, um amigo que nunca se enamora da sua amiga, Bilibine exprimiu um dia, numa pequena reunião, à sua íntima, tudo quanto pensava do seu caso. — Ouça, Bilibine — disse-lhe Helena, que tratava sempre os seus amigos desta categoria pelo apelido de família; e enquanto ia falando pousava a sua branca mão cheia de anéis na manga do fraque de Bilibine. — Diga-me como se fosse a uma irmã, que devo eu fazer? Qual dos dois? Bilibine franziu a testa e com um sorriso nos lábios pôs-se a reflectir. — Não me apanha desprevenido, sabe — replicou ele.— Como seu verdadeiro amigo, estou farto de pensar no seu caso, Aqui tem, se casar com o príncipe — (isto é, o rapaz) e principiou a contar pelos dedos —, perderá para sempre a possibilidade de casar com o outro, e depois descontentará a Corte. (Como sabe, há uma espécie de parentesco.) Mas, se casa com o velho conde, fará a felicidade dos seus últimos dias, e depois, como viúva do grande... o príncipe já não faz um casamento desigual casando consigo. — E Bilibine desfranziu a testa. — Chama-se a isto um verdadeiro amigo — exclamou Helena, radiante, pousando de novo a mão na manga do fraque do amigo. — Mas eu gosto de um e de outro, não queria causar-lhes pena. Dava a vida pela felicidade dos dois. Bilibine encolheu os ombros, com o que queria dizer que nada podia contra semelhante dor. «Uma mulher às direitas! Chama-se a isto pôr as cartas na mesa. Gostaria de casar com os três ao mesmo tempo», pensou ele com os seus botões. — Mas, diga-me uma coisa, como vai o seu marido encarar o problema? — interrogou ele, partindo do princípio de que a sua sólida reputação lhe permitia formular uma tão ingénua pergunta. — Consentirá ele? — Ah, ele gosta tanto de mim! — exclamou Helena, que se julgava também amada por Pedro.— Fará tudo por mim. A testa de Bilibine sulcou-se de rugas, o que queria dizer que estava preparando um mot. — Até divorciar-se — comentou, Helena soltou uma gargalhada. A mãe de Helena, a princesa Kuraguina, pertencia ao número das pessoas que se permitiam duvidar da legalidade do casamento projectado. Sempre tivera ciúmes da e agora, sobretudo, não podia resignar-se à ideia de que os desejosdesta se realizassem plenamente. Foi junto de um sacerdote russo aconselhar-se e perguntou-lhe até que ponto seria possível uma mulher divorciar-se e voltar a casar estando vivo o marido— O padre, respondeu-lhe que tal coisa não era possível e com grande satisfação sua mostrou-lhe o texto do Evangelho que nega terminantemente toda a viabilidade do casamento em semelhantes condições. Munida destes argumentos, que se lhe afiguravam irrefutáveis, a princesa apresentou-se em casa da filha logo pela manhã muito cedo, de modo a encontrá- la só. Após ter ouvido as objecções da mãe, um sorriso tranquilo e zombeteiro lhe perpassou pelos lábios. — Sim, está lá escrito formalmente: «Aquele que casar com mulher divorciada...» — repetia a velha princesa. — Oh, mãezinha, não diga tolices. Não percebe nada. Na minha posição tenho deveres. — retorquiu-lhe Helena, transpondo a conversa do russo para o francês, pois, quando falava russo, afigurava-se-lhe sempre que havia fosse o que fosse de pouco claro naquela história. — Mas, minha amiga — Oh, mãezinha, como assim? Então não compreende que o Santo Padre tem o direito de conceder dispensas... Nesse momento, a dama de companhia de Helena veio anunciar-lhe que Sua Alteza o príncipe estava no salão e desejava vê-la. — Não, diga-lhe que o não quero ver, que estou furiosa com ele, porque faltou à sua palavra. — Condessa, todo o pecado tem perdão — exclamou um jovem louro, alto, esguio e de grande nariz, que aparecera a porta. A velha princesa ergueu-se e fez uma respeitosa reverência. O recém-chegado nem mesmo se dignou reparar nela. Com um aceno de cabeça à filha, a princesa dirigiu-se para a porta. «Sim, ela tem razão», dizia de si para consigo, pois, ao ver surgir Sua Alteza, todos os seus escrúpulos haviam desaparecido. «Tem razão. Como foi possível que ignorássemos isto quando éramos novas? E no entanto é tão simples...», pensava ela, ao subir para a carruagem. No princípio de Agosto, o caso de Helena estava inteiramente concluído e estaescreveu ao marido, que a amava tanto, como ela pensava, a participar-lhe estar na intenção de se casar com N. N, e que se convertera à única religião verdadeira. Pedia-lhe que satisfizesse todas as formalidades necessárias para o divórcio consoante a indicação do portador da carta. «Posto isto, rogo a Deus que o tenha sob a Sua poderosa e santa guarda. Sua amiga, Helena.» Esta carta chegou a casa de Pedro quando ele se encontrava no campo de Borodino. [VIII] Para o fim da batalha, depois de abandonar pela segunda vez a, bateria de Raievski, Pedro dirigiu-se, entre massas de soldados, através de um barranco, para Kniaskovo, chegando ao posto de socorros, Porém, ao ver sangue e ao ouvir gemidos, deu-se pressa em continuar o seu caminho, misturando-se à soldadesca, que lhe embaraçava os movimentos. Só desejava uma coisa e com toda a sua alma: afastar-se o mais depressa possível das terríveis impressões de todo aquele dia, retomar a sua vida normal e dormir tranquilamente na sua cama. Dava-se conta de que só depois de regressar às condições de vida normal seria capaz de se compreender a si mesmo e tudo o que vira e experimentara, Mas ainda não obtivera essas condições de vida. Embora as granadas e as balas houvessem deixado de sibilar no caminho que tomara, por toda a parte se via o que observara no campo de batalha. Viam-se as mesmas caras dolorosas, extenuadas de cansaço e por vezes com uma expressão de estranha indiferença, havia sangue por toda a parte, por toda a parte se viam os mesmos capotes de soldados e se ouviam descargas, que, embora longínquas, causavam medo, e por cima de tudo isto pairava uma poeira e uma fumarada asfixiantes. Depois de ter andado cerca de três verstas ao longo da estrada de Mojaisk. Pedro sentou-se à beira do caminho. Escurecia e deixara de se ouvir o troar do canhão. Apoiando-se num braço, Pedro estendeu-se e por muito tempo assim permaneceu, seguindo com a vista as sombras que passavam diante dele no meio das trevas. A cada momento tinha asensação de que uma granada lhe ia cair em cima com um silvo tremendo. Estremecia então e punha-se direito. Não teria sido capaz de dizer quanto tempo ali estivera. Lá pela noite adiante, apareceram três soldados com braçadas de ramos secos e sentaram-se perto dele para acenderem uma fogueira. Depois de terem olhado desconfiados para Pedro, acenderam o lume, puseram- lhe em cima uma panela e migaram-lhe dentro biscoitos e um pedaço de toucinho. O cheiro agradável daquela sopa gordurosa espalhou-se no ar, misturando-se ao do fumo. Pedro levantou-se com um suspiro. Os três soldados começaram à comer sem olhar para ele, conversando entre si. — E tu, a que regimento pertences? — perguntou-lhe, de súbito, um deles, com o que queria dizer, assim o pensou Pedro: «Se queres comer, conta connosco, mas, antes, diz-nos se és pessoa de bem.» — Eu? Eu? — murmurou Pedro, sentindo que devia descer até ao nível daqueles soldados para mais perto estar deles e mais facilmente se fazer compreender. — Eu, por agora, sou oficial das milícias, mas o meu destacamento não está para estes lados. Estive no campo de batalha e perdi-me dos meus homens. — Caramba! — exclamou um deles. O outro abanou a cabeça. — Bom, come, se te apetece, gostas de kavardak? — voltou e primeiro, oferecendo a Pedro a colher de pau, depois de a ter lambido. Pedro foi sentar-se junto da fogueira e pôs-se a comer. Parecia-lhe nunca ter comido coisa tão boa! Enquanto se agachava junto da panela, engolindo avidamente, umas atrás das outras, grandes colheradas de sopa, tinha o rosto iluminado pela fogueira e os soldados olhavam-no em silêncio. — E para onde vais agora? Hem? — perguntou ainda um deles. — Vou para Mojaisk. — És um senhor, não és? — Sou. — E como te chamas? — Piotre Kirilovitch. — Pois bem, Piotre Kirilovitch, anda daí. Nós te acompanharemos. No meio da mais negra escuridão, os soldados e Pedro meteram pés a caminho, na direcção de Mojaisk.O galo já tinha cantado quando eles chegaram a esta cidade e se puseram a subir a íngreme ladeira que a ela conduz. Pedro, seguindo os soldados, esquecera- se por completo de que a sua estalagem ficava lá no fundo da encosta e que a ultrapassara já. Não teria dado mesmo por isso, tão preocupado ia, se a meio da ladeira não se lhe tivesse deparado o escudeiro, que andara à procura dele pelas ruas da cidade e regressava à estalagem. Reconhecera o amo no meio das trevas graças ao chapéu alvadio. — Excelência — exclamou ele —, tínhamos perdido as esperanças de o encontrar. Vem a pé? Venha daí! — Pois sim — murmurou Pedro. Os soldados estacaram. — Bem, pelo que vemos, encontraste a tua gente! — exclamou um deles. — Então, adeus! Piotre Kirilovitch, não é? — Adeus, Piotre Kirilovitch! — repetiram os outros. — Adeus! — disse Pedro. E, acompanhado do escudeiro, dirigiu-se para a estalagem. «É preciso dar-lhes qualquer coisa!», pensou, levando a mão à algibeira. «Não! É melhor não o fazer!», respondeu-lhe uma voz interior. Na estalagem não havia lugar: todos os quartos estavam ocupados. Pedro dirigiu-se ao pátio e deitou-se na carruagem, cobrindo a cabeça com o capote. [IX] Mal pousara a cabeça na almofada, sentiu que ia cair no sono, mas, de súbito, com uma nitidez que parecia real, pôs-se a ouvir os «buum, buum» dos canhões, os gemidos, os gritos, o estampido das granadas, sentia o cheiro da pólvora e do sangue derramado e um terrível sentimento de horror e medo da morte se apossou dele. Apavorado, abriu os olhos e levantou a cabeça. Tudo estava em sossego à sua volta. Apenas, no alpendre, um impedido falava com o estalajadeiro, para cá e para lá, patinhando na lama. Debaixo do telheiro, por cima da sua cabeça, abrigados no escuro do tecto ripado, um bando de pombos agitou-se assustado com o ruído que ele fizera ao levantar-se. Todo e pátio rescendia àquelearoma de que Pedro tanto gostava a essa hora, a esse cheiro das estalagens, misto de palha, de estrume e alcatrão. Pelo intervalo de duas tábuas negras via-se o céu límpido picado de estrelas. «Louvado seja Deus por tudo ter acabado», disse ele para si mesmo, tornando a cobrir a cabeça. «Oh! É horrível uma pessoa ter medo! Que vergonha não me ter sabido dominar! Enquanto eles... eles, até ao fim, ali firmes e tranquilos.» «Eles» eram os soldados, os da bateria e também os que lhe tinham dado de comer e os que rezavam diante do ícone. «Eles» era aquela gente estranha que desconhecera até então e que no seu pensamento fazia esquecer agora todas as demais pessoas que conhecia. «Ser soldado, soldado raso», pensava enquanto pegava no sono. «Aderir com todo o nosso ser a esta vida comum, penetrar nos sentimentos que assim os fizeram, Como hei-de eu ver-me livre de todo este fardo supérfluo, diabólico, que é a vida exterior? Houve tempo em que teria podido consegui-lo, em que teria podido vir a ser um simples soldado. Podia ter fugido de casa de meu pai, como era meu desejo. E também me podiam ter mandado assentar praça depois do duelo com Dolokov.» E pela imaginação perpassaram-lhe o jantar no clube, em que provocara Dolokov, e a imagem do Benfeitor em Torjok. E ei-lo que se põe a ver a sessão solene na loja maçónica. Por acaso é no clube inglês. Alguém que ele muito bem conhece, um amigo querido e íntimo, está sentado no extremo da mesa. Mas é ele! É o Benfeitor. «Mas então não morreu?», pergunta-se a si próprio. «Sim, morreu. E não sabia que ele estava vivo. Que pena eu tinha que ele tivesse morrido e que grande alegria sinto ao ver que ressuscitou!» A um dos lados da mesa sentavam-se Anatole, Dolokov, Nesvistski, Denissov e outras pessoas mais, e os traços de cada um pareciam-lhe tão nítidos em sonho como os dos soldados em que acabara de pensar. E aquela gente, Anatole, Dolokov, gritava muito alto e bebia. Sobrepujando as suas vozes ouvia-se, porém, do Benfeitor, que se não calava, e a sua palavra era tão potente e contínua como o fragor do campo de batalha, embora agradável e consoladora. Pedro não compreendia o que ele dizia, mas, porque no sonho os pensamentos eram de uma grande nitidez, estava certo de que falava do bem, da possibilidade de se ser o que «eles» eram, esses soldados. E «eles», com as suas caras, bondosas e firmes, rodeavam o Benfeitor. Conquanto fossem, porém, muito bons, não olhavam para Pedro, não o conheciam. Quis chamar-lhes a atenção para si e dirigir-lhes a palavra. Ergueu-se, e no mesmoinstante sentiu frio nas pernas descobertas. Perpassou-o uma impressão desagradável e puxou o capote: efectivamente, o capote escorregara-lhe para o chão. Por um momento, enquanto o ajeitava, abriu os olhos e viu as mesmas tábuas, os mesmos barrotes, o mesmo pátio, mas agora tudo azulíneo, claro, palhetado de gotas de orvalho ou de geada. «Está a amanhecer», disse Pedro de si para consigo, «mas não se trata disso. Tenho de ouvir até ao fim e compreender as palavras do Benfeitor.» Voltou a embrulhar-se no capote, porém a sessão na loja e o Benfeitor tinham desaparecido. Nada mais lhe restava além de pensamentos claramente formulados em palavras que alguém pronunciara ou que ele próprio imaginara. Quando mais tarde se recordou destes pensamentos, embora eles lhe tivessem sido sugeridos pelas impressões do dia, foi como se alguém estranho lhos tivesse segredado. Afigurava-se-lhe que em estado de vigília nunca teria sido capaz de conceber semelhantes pensamentos e exprimi-los daquela maneira. «A guerra», dizia-lhe uma voz, «é a sujeição mais penosa que pode conceber-se da liberdade humana às leis de Deus. A simplicidade é a obediência a Deus; tudo depende d’Ele. E ‘eles’ são simples. Eles não dizem o que fazem. A palavra é de prata, mas o silêncio é de ouro. O homem nada pode possuir enquanto temer a morte. Só quem não teme a morte é senhor de tudo. Se u dor não existisse, o homem não conheceria os seus limites, não se conheceria a si mesmo. Nada mais difícil», pensava ele, continuando a sonhar, «que cada um saber reunir na sua própria alma o significado de todas as coisas. Reunir tudo? Não, não é essa a palavra. Não é possível unir todas as ideias, mas, sim, pô-las de acordo!», repetia, com uma espécie de entusiasmo interior, como se sentisse que essas palavras, e só elas, exprimiam perfeitamente o que ele queria dizer, resolvendo a questão que o atormentava. «Sim, é preciso pô-las de acordo, é tempo de harmonizar as coisas.» — É preciso atrelar, são horas de atrelar, Excelência! Excelência! — repetiu uma voz. — É preciso atrelar, são horas de atrelar... Era o escudeiro a acordá-lo. O sol batia-lhe em cheio na cara. Lançou um olhar para o pátio sujo da estalagem no meio da qual, num poço, os soldados davam de beber aos esqueléticos cavalos, enquanto carroças transpunham o portão. Pedro afastou os olhos, enojado, e, voltando a cerrar as pálpebras, deu-se pressa em se enterrar nas almofadas da sege.«Não, não quero ver isto, não quero ver nem compreender coisa alguma; só quero compreender o que me foi desvendado durante o meu sonho. Mais um bocadinho e teria compreendido tudo. Que hei-de fazer então? Harmonizar, sim, mas como harmonizar tudo?» E Pedro apercebeu-se, com espanto, de que o sentido profundo do que vira e concebera durante o sono desaparecera para sempre. O escudeiro, o cocheiro e o porteiro contavam-lhe que chegara um oficial com a notícia de que os Franceses se aproximavam de Mojaisk e os Russos batiam em retirada. Pedro levantou-se e, dando ordem para que logo que atrelassem viessem ter com ele, seguiu a pé ao longo das ruas da cidade. As tropas tinham-na evacuado, deixando na sua retaguarda perto de dez mil feridos. Havia feridos por toda a parte, nos pátios, nas janelas das casas, em grupos pelas ruas. Em volta das viaturas que os deviam levar só se ouviam gritos, injúrias, estrondear, Pedro ofereceu a sua sege, que viera ao seu encontro, a, um general ferido seu conhecido e ambos seguiram viagem até Moscovo. No caminho, Pedro soube da morte do cunhado e da perda do príncipe André. [X] Pedro chegou a Moscovo no dia 30. Perto das muralhas encontrou o ajudante- de-campo do conde Rostoptchine. — Andámos à sua procura por toda a parte — disse-lhe este. — O conde precisa, sem falta, de falar consigo. Pede-lhe Que o vá ver imediatamente por causa de um assunto urgente. Pedro, sem mesmo pensar em dirigir-se a casa, meteu-se num carro e dirigiu-se à residência do governador. O conde Rostoptchine acabava de chegar nessa mesma manhã da sua casa de campo de Sokolniki. A antecâmara e o salão de recepção estavam cheios de funcionários convocados ou que vinham receber ordens. Vassiltchikov e Platov já tinham visto o conde e já lhe haviam explicado ser impossível defender a cidade, que capitularia. Embora houvessem ocultado estas resoluções aos habitantes, osfuncionários, os chefes das diferentes administrações, sabiam que Moscovo ia cair nas mãos do inimigo, e o próprio Rostoptchine também o sabia. No intuito de alijarem responsabilidades, todos tinham vindo perguntar ao governador o que deviam fazer nos seus respectivos serviços. No momento em que Pedro penetrava no salão, um correio chegado do exército saía do gabinete do conde. Foi com um gesto pouco encorajador que respondeu às perguntas que lhe dirigiam no momento em que atravessava a sala. Enquanto esperava, Pedro pôs- se a olhar com os seus olhos fatigados para as diversas personalidades, novas ou velhas, militares ou civis, que estavam presentes, Em todos os rostos se via uma expressão inquieta e descontente. Aproximou-se de um grupo onde vira conhecidos seus. Depois de o cumprimentarem, prosseguiram nas suas conversas. — Demiti-lo e chamá-lo em seguida não seria mau, embora na actual situação ninguém possa responder por coisa alguma, — Sim, mas ele escreve... — acrescentou outro, exibindo um papel impresso que tinha na mão, — Ah! Isso é outra questão. Essas coisas são precisas para o povo — replicou o primeiro. — Que é isso? — perguntou Pedro. — Uma nova proclamação. Pedro pegou nela e pôs-se a lê-la: O Sereníssimo Príncipe, para se reunir mais depressa às tropas que vêm ao seu encontro, atravessou Mojaisk e instalou-se numa posição fortificada onde o inimigo não poderá atacá-lo facilmente. Foram-lhe enviadas daqui quarenta e oito peças de artilharia, com as respectivas munições, e o Sereníssimo afirma que defenderá Moscovo até à última gota de sangue e que está mesmo disposto a bater-se nas ruas. Não vos preocupeis, irmãos, com o facto de as repartições estarem fechadas: era preciso transferi- las para lugar seguro. Quanto a nós, nós cá estamos para ajustar contas com esse bandoleiro! Quando a hora soar, precisaremos de rapazes sólidos, tanto da cidade como docampo. Lançarei um apelo dentro de dois ou três dias, mas de momento, como é inútil, não falo nisso. É bom que cada um venha armado do seu varapazi e do seu machado e não será mau que traga o seu chuço, e se trouxer a sua forquilha de três dentes ainda melhor: um francês não pesa mais que um, feixe de centeio. Amanhã, depois do jantar, sairei em procissão com a Virgem Iverskaia para visitar os feridos do Hospital Catalina. Proceder-se-á à bênção da água: os feridos curar-se-ão assim mais depressa. Eu também estou curado. Tinha um olho doente, mas agora vejo com os dois. — Disseram-me uns militares — objectou Pedro — que era impossível lutar na cidade e que a posição... — Sim, era disso mesmo que nós estávamos a falar — disse o primeiro funcionário. — Que quer ele dizer com isto? — perguntou Pedro — «Tinha um olho doente, mas agora vejo com os dois»? — Tinha um terço! — respondeu o ajudante-de-campo, sorrindo — e mostrava- se atormentado quando eu lhe dizia que o povo vinha saber da sua saúde. E a propósito, conde — acrescentou, de súbito, dirigindo-se a Pedro —, ouvimos dizer que está sofrendo desgostos de família, que sua esposa, a condessa... — De nada, ouvi falar — replicou Pedro com indiferença. — Que se diz? — Ah! Bem sabe, às vezes as pessoas inventam. Repito o que ouvi dizer. — E que ouviu o senhor dizer? — Diz-se — prosseguiu o ajudante-de-campo, sempre com o mesmo sorriso — que a condessa sua esposa pensa partir para o estrangeiro. É natural que não passe de má-língua... — Naturalmente — repetiu Pedro, lançando à sua roda um olhar indiferente. — E aquele, quem é aquele? — perguntou, apontando para um velho pequenino, com um longo cafetã azul, a barba e as sobrancelhas brancas como neve e as bochechas rosadas. — Aquele? É um comerciante, ou antes um taberneiro, um tal Verechtchaguine. Se calhar, já ouviu falar nessa história da proclamação.— Ah!, sim! É realmente Verechtchaguine?! — exclamou Pedro, observando a fisionomia firme e serena do velho comerciante e procurando ver nela debalde a máscara de um traidor. — Não foi ele precisamente. É o pai do que escreveu a proclamação — continuou o ajudante-de-campo. — Esse, o filho, está na cadeia, e, se me não engano, as coisas não lhe vão correr bem. Um velhinho, com uma condecoração ao peito, e um alemão, velho também, funcionário com uma cruz pendente, aproximaram-se dos interlocutores. — É uma história muito complicada — dizia o ajudante-de-campo — A proclamação apareceu há uns meses. Vieram dizer ao conde, que mandou fazer um inquérito. Encarregaram disso Gravila Ivanitch. A proclamação tinha passado precisamente por sessenta e três mãos. Procuraram um dos detentores. «Quem lha deu?» Este diz que foi Fulano. Interrogam esse Fulano. «Quem lha deu?» E assim por diante. Até que chega a vez de Verechtchaguine... um comerciantezito, sem grande malícia, como vêem, um comerciantezito — acrescentou sorrindo — Interrogam-no. «Quem te deu isto?» E, note-se, nós sabíamos muitíssimo bem quem lha tinha dado. Só podia ter sido o director dos correios. Mas, está claro, estavam coniventes. Responde: «Ninguém. Fui eu quem a fez.» Ameaçam-no, insistem. Continua na sua: fora ele quem a escrevera. Apresentam o relatório ao conde. Este interroga-o: «Quem te deu a proclamação?» «Fui eu quem a fez.» Conhecem o conde! — prosseguiu, sorrindo, com um sorriso orgulhoso e divertido — Deu por paus e por pedras, como calculam, diante de tanta insolência, tanta mentira, tanta casmurrice. — Sim, já percebo, o conde queria que ele denunciasse Kliutcharev! — exclamou Pedro. — Não era preciso — deu-se pressa em responder o ajudante-de-campo —, Kliutcharev já tinha às costas outras acusações, por isso foi deportado. Mas o conde estava exaltadíssimo, «Como pudeste escrevê-la?», disse-lhe ele. Em cima da mesa estava a Gazeta de Hamburgo. Pegou nela, «Aqui a tens, Tu não a escreveste, traduziste-a, e traduziste-a muito mal, percebes, imbecil, pois não sabes uma palavra de francês.» Que acham? «Não», replica. «não a li em jornal algum, fui eu quem a escreveu.» — «Então, se assim é, és um traidor e vou entregar-te à justiça, que te mandará enforcar, Vamos, diz lá, quem ta deu?» — «Não vi jornal algum. Fui eu quem a escreveu.» E as coisas ficaram assim. O condemandou citar o pai: mas este não arreda pé. Foi levado ao banco dos réus e condenaram-no, segundo creio, a trabalhos forçados. E o pai ali está agora para interceder pelo filho. É má rês, o rapaz! É um desses filhos de comerciante, presumido e sedutor, que lá por ter frequentado umas aulas julga que sabe tudo. Sempre me saiu um menino! O pai tem uma taberna na Ponte Kaminii. Pois não querem saber? Na taberna havia uma grande imagem de Nosso Senhor com o ceptro numa das mãos e o globo terrestre na outra. Levou o quadro para casa, por uns dias, e sabem o que fez? Arranjou um pintor sem vergonha... [XI] Nesta altura, Pedro foi chamado à presença do governador. Penetrou no gabinete do conde Rostoptchine, quando este, de sobrancelhas franzidas, passava a mão pela testa e pelos olhos. Falava-lhe nesse momento um homenzinho de somenos estatura, que se calou e saiu. — Bons dias, ilustre guerreiro — disse Rostoptchine, assim que o homenzinho desapareceu — Ouvi falar das suas proezas! Mas não é disso que se trata. Meu caro, entre nós, diga-me uma coisa, é mação? — prosseguiu ele no mesmo tom severo, como se isso fosse motivo para censura, embora não quisesse ser impiedoso para com ele. Pedro ficou calado. — Meu caro, estou bem informado, mas sei perfeitamente que há mações e mações e espero que o senhor não pertença à categoria daqueles que a pretexto de salvar a Humanidade querem perder a Rússia. — Sim, sou mação — replicou Pedro. — Bem, meu amigo, suponho que não ignora que os senhores Speranski e Magnitski foram expedidos para onde pode calcular, e o mesmo aconteceu ao senhor Kliuteharev e ainda a outros, que, a pretexto de levantarem o templo de Salomão, tratavam de deitar abaixo o templo da Pátria. Como pode calcular, houve motivo para proceder assim e que eu não teria mandado deportar o director dos correios se este não fosse um homem perigoso. Acabo de saber agora que o senhor lhe mandou a sua carruagem para ele sair da cidade e que aceitou, inclusivamente, papéis que ele lhe confiou. Estimo-o e não lhe quero mal, mas,como tenho o dobro da sua idade, aconselho-o, na minha qualidade de mais velho, a que deixe de ter relações com essa gente e a que abandone Moscovo o mais depressa possível. — Mas de que acusam Kliutcharev? — perguntou Pedro. — Esse assunto é a mim que diz respeito, e não é o senhor que me deve fazer perguntas! — exclamou Rostoptchine. — Acusam-no de ter espalhado as proclamações de Napoleão, mas isso não está provado — prosseguiu Pedro, sem olhar para o seu interlocutor — e Verechtchaguine... — Cá estamos — exclamou o governador numa voz cada vez mais alta, franzindo as sobrancelhas e interrompendo Pedro. — Verechtchaguine é um traidor da pior espécie, que receberá o castigo que merece. — Nas suas palavras ressoava uma tal cólera que dir-se-ia terem-no ofendido pessoalmente.— Mas não foi para discutir os meus actos que o chamei aqui, foi para lhe dar um conselho, uma ordem, se assim quer. Peço-lhe que corte as suas relações com pessoas como Kliutcharev e que saia de Moscovo. Sim, estou disposto a acabar com todas estas tolices, sejam eles quais forem. — E ao notar, naturalmente, que elevava demasiado a voz para falar a Bezulcov, que ainda não era acusado de qualquer crime, acrescentou, pegando-lhe por um braço com maneiras amistosas: — Estamos em vésperas de um desastre público, e não tenho tempo para dizer coisas amáveis a todos os que se dirigem a mim. Há momentos em que sentimos a cabeça à roda. Pois bem, meu caro, que faz o senhor, sim, o senhor, pessoalmente? — Mas nada — replicou Pedro, que continuava de olhos baixos e que tinha um ar cismador. O conde franziu as sobrancelhas. — Um conselho de um amigo, meu caro. Desapareça, e quanto mais depressa melhor, é tudo quanto tenho a dizer-lhe. A bom entendedor! Adeus, meu caro. Ah! A propósito — gritou-lhe, quando Pedro já estava no limiar da porta — será verdade a condessa ter caído nas garras dos Santos Padres da Companhia de Jesus? Pedro não respondeu e saiu do gabinete de Rostoptchine com uma expressão preocupada e irritada: nunca estivera tão irado na sua vida. Quando regressou a casa, já era noite. Umas oito pessoas o aguardavam: o secretário da comissão, o coronel do seu batalhão, o intendente, o mordomo evários solicitadores. Todos tinham assuntos a expor-lhe, que ele precisava de resolver. Nada compreendia do que lhe diziam nem se interessava por aqueles assuntos e, a todas as perguntas que lhe faziam respondia de molde a ver-se livre de tudo aquilo o mais depressa possível. Finalmente, quando ficou só, abriu e leu a carta da mulher. «Eles, os soldados da bateria... o príncipe André morto... O velho... a simplicidade de espírito consiste na submissão a Deus... É preciso saber sofrer... O sentido de todas as coisas... É necessário harmonizá-las... A minha mulher vai tornar a casar... Tenho de desistir de compreender...» Aproximou-se da cama e sem se despir deixou-se cair sobre ela, adormecendo imediatamente. Quando acordou, na manhã seguinte, o mordomo veio informá-lo de que um polícia, enviado especialmente pelo conde Rostoptchine, viera informar-se sobre se o conde Bezukov partira ou ia partir. Duas dezenas de pessoas com assuntos a tratar com ele esperavam já no salão. Vestiu-se, arranjou-se à pressa e, em lugar de as receber, meteu pela escada de serviço e saiu pela porta das traseiras. Desde aquele momento e até ao fim da destruição de Moscovo nenhum dos seus familiares conseguiu tornar a vê-lo nem soube o que era feito dele, apesar de o terem procurado por toda a parte. [XII] Até ao 1º de Setembro, isto é, até à véspera da entrada do inimigo em Moscovo, os Rostov conservaram-se na cidade. Desde que Pétia fora incorporado nos cossacos de Obolenski e partira para Bielaia Tserkov, onde o regimento estava em formação, que a condessa vivia no maior terror. A ideia de que os seus dois filhos estavam na guerra, que ambos precisavam da sua protecção maternal, que hoje ou amanhã qualquer deles podia morrer, como acontecera aos três filhos de uma senhora das suas relações, eis a ideia que se lhe impunha pela primeira vez naquele Estio com uma nitidez cruel. Tentara fazer regressar Nicolau para junto de si, quisera ir ela própria buscar Pétia, mas tudo debalde, Pétia não podia vir senão quando voltasse o seuregimento ou pedindo transferência para outro regimento no activo. Nicolau estava algures no campo de batalha e desde a sua última carta, em que contara pormenorizadamente o seu encontro com a princesa Maria, nunca mais dera sinal de vida. A condessa deixara de dormir e quando porventura fechava os olhos era só para ver os filhos mortos. Depois de muito se ter aconselhado e de sobre o assunto ter trocado muitas impressões, o conde acabou por conceber uma maneira de a serenar. Conseguiu transferir Pétia do regimento Obolenski para o regimento de Bezukov, que estava a organizar-se nas imediações de Moscovo, Pétia continuava, claro está, ao serviço, mas a condessa tinha a satisfação de conservar perto dela pelo menos um dos seus filhos, na esperança de o instalar de tal maneira que ele não se afastasse mais e de lhe arranjar situações que lhe permitissem conservá-lo longe dos campos de batalha. Enquanto só Nicolau estivera em perigo, afigurava-se-lhe, a ela, e assim o dizia, querer ao seu filho mais velho acima de todos, mas quando o benjamim, esse garoto endiabrado, que estudava, pouco, partia tudo em casa, se metia com toda a gente, esse Pétia de nariz arrebitado, olhinhos pretos cheios de malícia, tez rosada e fresca, a cara coberta de penugem, quando ele partiu, também, para o meio desses homens corpulentos, terríveis e cruéis, que gostavam de lutar, pareceu-lhe querer-lhe mais a ele que a todos os seus outros filhos. A medida que se aproximava o momento do regresso de Pétia a Moscovo, maior era a inquietação da condessa. Afigurava-se- lhe que nunca esse momento venturoso chegaria. A presença não só de Sónia, mas até de Natacha, sua preferida, ou do próprio marido, apenas servia para irritá-la. «Que tenho eu que ver com eles? Não preciso de mais ninguém senão de Pétia!», pensava ela, Nos últimos dias de Agosto, os Rostov receberam uma segunda carta de Nicolau. Era datada da província de Voroneje, aonde fora em serviço de remonta. Essa carta não sossegou a condessa. Depois de saber que um dos seus filhos não estava em perigo, os seus cuidados cresceram por causa do outro. Desde 20 de Agosto que quase todas as pessoas conhecidas dos Rostov tinham deixado Moscovo e, embora todos insistissem com a condessa para abalarem o mais cedo possível, ela não queria ouvir falar em tal enquanto o seu tesouro, o seu Pétia adorado, não estivesse de volta. No dia 28, finalmente, chegava Pétia. A ternura apaixonada e doentia com que a mãe o recebeu não foi das coisas que mais agradaram a esse jovem oficial de dezasseis anos. Conquanto ela escondessea sua intenção de o conservar junto de si, o moço adivinhou-lhe os desejos e com receio instintivo de se deixar comover, de se efeminar, como ele dizia, junto da mãe, mostrava-se frio com ela, evitava-a, e durante todo o tempo da sua estada na capital manteve-se quase exclusivamente na companhia de Natacha, a quem sempre dedicara uma ternura fraternal muito sua. A negligência do conde era sempre a mesma e no dia 28 nada estava preparado para a partida: os carros que deviam chegar, vindos das suas propriedades de Riazan e dos arredores de Moscovo, e que se utilizariam no transporte dos móveis, só apareceram a 30. De 28ª 31 de Agosto toda a cidade andou numa agitação febril. Todos os dias entravam em Moscovo, pela porta de Dorogomilov, carros e carros cheios de milhares de feridos provenientes do campo de batalha enquanto pelas outras barreiras saíam caravanas e caravanas de viaturas carregadas de gente e de bagagens. Apesar das proclamações de Rostoptchine, ou precisamente por causa delas, corriam os boatos mais contraditórios e estranhos. Uns diziam que ninguém tinha licença de sair da cidade; outros, pelo contrário, faziam correr que os ícones das igrejas haviam sido todos retirados e que as pessoas eram afastadas à força de Moscovo. Este dizia que depois de Borodino houvera uma batalha em que os Franceses tinham sido derrotados: aquele anunciava, em contrapartida, que o exército russo fora completamente desbaratado. Havia quem dissesse que a milícia moscovita e o clero iriam bater-se em Tri Gori, e também se dizia à boca pequena que o metropolita Augustin fora proibido de sair da cidade, que tinham sido presos alguns traidores e que os camponeses, revoltados, assaltavam os que abandonavam Moscovo, etc— etc. Tudo falsos boatos. Na realidade, tanto os que partiam como os que ficavam, sem o dizerem a ninguém, embora ainda se não tivesse reunido o conselho de guerra de Fili, onde veio a decidir-se o abandono da cidade, todos sentiam que Moscovo teria de capitular e que o que havia a fazer era cada um tratar de se salvar e ao que era seu. Reinava o pressentimento de que tudo se desmoronaria e se transformaria de um momento para o outro. No entanto, até ao dia 1º de Setembro nada se modificara. Assim como o condenado a morte que é conduzido ao local do suplício, mesmo sabendo que vai morrer, olha à sua volta e compõe o boné, Moscovo, conquanto soubesse que a hora da sua perdição era chegada e que as condições de vida a que até então se submetera iam sofrer uma transformação, continuava, maquinalmente a sua vida de todos osdias. Durante os três dias que precederam a catástrofe andou a família Rostov atarefada nos preparativos da partida. O chefe da família, o conde Ilia Andreitch, corria de um lado para outro da cidade, sempre à cata de notícias, e as disposições que tomava para a partida eram vagas e precipitadas. Sempre descontente, procurando Pétia por todo o lado, o qual fazia o possível por evitá-la, cheia de ciúmes de Natacha, com quem o rapaz passava os dias, a condessa vigiava os preparativos de partida. A única pessoa pratica no seu trabalho era Sónia, embora rios últimos tempos andasse triste e silenciosa, A carta de Nicolau que falava da princesa Maria levara a condessa, que via nesse encontro o dedo da Providência, a fazer algumas alegres reflexões diante dela, — Nunca senti grande satisfação com o noivado de Bolkonski e de Natacha — dizia a condessa —, mas sempre sonhei ver Nikolenka casado com a princesa, e tenho o pressentimento de que é o que vai acontecer, Bom seria! Sónia, via-se obrigada a reconhecer que a única maneira de remediar o estado da fortuna dos Rostov seria um casamento rico e que a princesa era um bom partido. Eis o que era doloroso para ela. Apesar da sua tristeza, ou talvez até para esquecê-la, chamava a si todas as pesadas tarefas da mudança e tinha os dias todos ocupados. O conde e a condessa, quando se tratava de alguma ordem, a ela recorriam. Pelo contrário, Pétia e Natacha não só não ajudavam os pais como embaraçavam e enfadavam toda, a gente em casa. Andavam o dia inteiro em correrias loucas, rindo e gritando a todo o propósito. Não tinham, realmente, qualquer razão especial para rir ou para estar satisfeitos, mas, como ambos se sentiam alegres, tudo lhes servia para se divertirem. Pétia estava contente porque, tendo saído de casa garoto, voltara transformado, como toda a gente dizia, num homem e num herói. Sentia-se feliz por estar com a sua família e também porque, deixando Bielaia, Tserkov, onde lhe não seria fácil assistir tão depressa a qualquer batalha, viera para Moscovo e aí, dentro de pouco, teria oportunidade de entrar na luta. De resto estava alegre porque Natacha, que muito influía no seu estado de espírito, o estava também. Quanto a Natacha, essa sentia-se alegre porque estivera triste durante muito tempo e nada lhe lembrava agora a causa das suas penas, tendo recuperado a sua óptima saúde. E sentia-se alegre ainda porque alguém a adorava e a admiração dos outros lhe era um estimulante indispensável à sua actividade normal, sendoPétia esse alguém. Além disso ambos andavam em grande exaltação porque a guerra se travava agora às portas de Moscovo, ia haver luta nas barreiras da cidade, distribuíam-se armas, os habitantes fugiam por todos os lados, numa palavra, davam-se factos extraordinários, coisa sempre muito divertida para quem é novo. [XIII] Sábado. 31 de Agosto, ia grande confusão em casa dos Rostov. As portas estavam abertas, os móveis haviam sido tirados do seu lugar ou levados, os quadros e os espelhos tinham sido apeados. Havia malas, palha, papéis de embrulho, fios por todo o lado. Os camponeses e os criados andavam de um lado para o outro pisando os parquets pesadamente, carregados de embrulhos. No pátio estacionavam as carroças, unias já cheias até cima e amarradas, outras ainda vazias. Só se ouviam por toda a parte os passos e as vozes da criadagem e dos camponeses que tinham vindo com os carros, chamando-se uns aos outros. O conde desaparecera logo pela manhã. A condessa, a quem o ruído e a agitação faziam dores de cabeça, estava deitada na sua nova alcova com compressas de vinagre na testa. Pétia saíra: fora visitar um camarada com quem queria transferir-se da milícia para o exército activo, Sónia assistia no salão de festas ao trabalho de empacotamento das porcelanas e dos cristais. Natacha estava no seu quarto, sentada no sobrado, no meio de um montão de vestidos, de fitas, de xales, os olhos fitos num trajo de baile, fora de moda, que tinha nas mãos. Era o vestido que levara ao seu primeiro baile em Petersburgo. Natacha sentia-se envergonhada por nada fazer quando toda a gente estava ocupada, e por várias vezes já, desde manhã, tentara exercer qualquer actividade. Mas aquilo não a atraía. Era incapaz de se dedicar fosse ao que fosse desde que o não fizesse com toda a sua alma. Ali estava, ao pé de Sónia, que embrulhava as porcelanas, querendo ajudá-la, mas logo abandonando tudo para voltar ao seu quarto a emalar as suas coisas. Entreteve-se, primeiro, a distribuir pelas suas criadas de quarto vestidos e fitas, mas, quando chegou o momento de guardar oque restava, sentiu-se aborrecida. — Duniacha, anda, trata de guardar tudo isto, minha querida! Hem? E como Duniacha lhe prometeu ocupar-se de tudo. Natacha, sentou-se no chão, pegou no velho vestido de baile e pôs-se a pensar em coisas que nada tinham com as suas preocupações actuais. Despertou-a deste devaneio uma conversa das criadas na sala contígua e passos precipitados na escada de serviço. Levantou-se e foi espreitar pela janela. Um grande comboio de feridos estacionava na rua. Ao portão apinhavam-se as criadas, os lacaios, a governanta, a ama, os cozinheiros, os cocheiros, os postilhões, os moços da cozinha, que assistiam à passagem dos carros. Natacha amarrou um lenço branco à cabeça e apanhando-o nas pontas com as mãos desceu a escada. A antiga governanta, a velha Mavra Kuzminitchna, afastou-se da multidão dos curiosos e aproximou-se de um carro com um toldo de serapilheira, pondo-se a conversar com um jovem oficial, muito pálido e que nele ia deitado, Natacha deu alguns passos e deteve-se intimidada, segurando sempre as pontas do lenço, a escutar o que dizia a governanta. — Então ninguém conhecido tem em Moscovo? — perguntava Mavra Kuzminitchna.— Ficaria mais sossegado numa casa particular — Por exemplo, na nossa, Os amos vão partir. — Não sei se nos deixariam — respondeu o oficia, numa voz apagada. — Está ali o comandante. Pergunte-lhe. — E apontou para um major gordo que se dirigia para a retaguarda do comboio, ladeando a fila dos carros. Natacha olhou assustada para o rosto do ferido e encaminhou-se imediatamente para, o major. — Os feridos podem ficar em nossa casa? — perguntou. O comandante levou a mão, sorrindo, à pala da barretina. — Em que posso servi-la, menina? — disse, piscando os olhos e sorrindo. Natacha repetiu serenamente a sua pergunta: o seu rosto, todos os seus modos, conquanto continuasse a segurar o lenço na cabeça, ganharam uma expressão tão séria que o major deixou de sorrir e, depois de perguntar a si próprio se lhe seria lícito dar essa autorização, respondeu afirmativamente, — Porque não? Acho que sim – disse. Natacha inclinou ligeiramente a cabeça e aproximou-se, em passos rápidos, deMavra Kuzminitchna, que se debruçava para o ferido e conversava com ele cheia de comiseração. — Diz que sim, disse que podia ser! — murmurou Natacha em voz baixa, O carro do oficial penetrou no pátio dos Rostov e dezenas de outros carros, cheios de feridos, entraram igualmente nos pátios das casas da Rua Povarskaia. Este incidente, tão estranho ao que ela estava habituada, via-se que agradava muitíssimo a Natacha. Ajudada por Mavra Kuzminitchna, procurou fazer entrar no pátio da casa o maior número possível de feridos. — Era bom, no entanto, dizer alguma coisa ao pai — disse Mavra Kuzminitchna, — Não, não, não tem importância! Por um dia, mudar-nos-emos para o salão. Podemos ceder-lhes os nossos quartos. — Veja lá, menina, veja o que está a fazer. Até mesmo para os alojamentos nas camaratas, nos quartos de arrumação ou na dependência dos criados é melhor pedir licença. — Está bem, eu peço. Natacha entrou pela casa dentro e em bicos de pés, pela porta, que estava aberta, penetrou na alcova onde cheirava muito a vinagre e a gotas de Hoffmann. — Está a dormir, mãezinha? — Como queres que eu possa dormir? — exclamou a condessa, num sobressalto, pois acabava de passar pelo sono. — Mãezinha, mãezinha querida — disse Natacha, ajoelhando diante da mãe e juntando a sua cara à dela.— Perdoe, desculpe-me, não volto a fazê-lo. Acordei-a. Foi a Mavra Kuzminitchna quem me mandou cá. Estão lá fora feridos, oficiais. Dá licença? Eles não têm para onde ir. Tenho a certeza de que a mãezinha consente... — Falava muito depressa, sem tomar fôlego. — Que oficiais? De que estás tu a falar? Não percebo nada. Natacha pôs-se a rir, e aos lábios da mãe também aflorou um pálido sorriso. — Tenho a certeza de que a mãe consente... Vou dizer-lhes. Natacha beijou a mãe, levantou-se e precipitou-se para a porta. No salão encontrou o pai, que trazia más notícias. — Fizemo-la bonita esperando até à última hora! — disse contrariado. — O clube fechou e a polícia vai-se embora. — Paizinho, não te importas que eu tenha mandado entrar uns feridos? —perguntou Natacha. — Claro. Não faz mal — respondeu ele, distraidamente. — Mas não se trata disso. É melhor deixares-te de patetices e ajudares a arranjar as coisas para nos irmos embora, para nos irmos embora amanhã... O conde deu a mesma ordem ao mordomo e aos criados. Durante o jantar chegou Pétia, que contou também as novidades que sabia. Disse que àquela hora o povo estava a armar-se no Kremlin e que, não obstante os editais de Rostoptchine, em que este comunicava à população de Moscovo que soltaria o grito de alarme dois ou três dias antes, com certeza já se haviam tomado medidas para, a partir do dia seguinte, se reunirem armados em Tri Gori, onde se esperava uma grande batalha. A condessa mirava com um misto de timidez e horror o rosto excitado e jovial do filho enquanto ele falava. Tinha a certeza de que se dissesse uma palavra que fosse para pedir a Pétia que não tomasse parte nessa batalha — e esse combate iminente devia ser para ele uma grande alegria, pensava ela — teria de o ouvir falar na coragem, na honra, na pátria. Diria as coisas mais absurdas com uma decisão viril e obstinada, e ela nada poderia dizer contra isso, estragando tudo. Bis porque nada disse, na esperança de conseguir arranjar tudo para partir antes, levando Pétia como seu protector, e, findo que foi o jantar, chamou o conde de parte, a quem implorou, soluçando, que a levasse dali o mais depressa que pudesse, nessa mesma noite se fosse possível, Com a astúcia involuntária e bem feminina que lhe dava o amor maternal, ela, que até aí se mostrara completamente indiferente ao perigo, dizia agora que morreria de medo se não saíssem da cidade nessa mesma noite. E efectivamente a partir daquele momento o medo apossara-se dela. [XIV] Madame Schoss, que tinha ido visitar a filha, ainda agravou mais os terrores da condessa contando-lhe o que vira na Rua Miasilitskaia, diante de um depósito de bebidas. No regresso, não tinha podido passar por ali, tantos eram os bêbedos que alvoroçavam as vizinhanças. Viu-se obrigada a tornar um carro e a seguir porruas transversais, tendo-lhe o cocheiro contado que o povo arrebentara com as pipas de álcool, de acordo com as ordens que recebera para isso. Depois do jantar, todos se puseram a embalar as coisas com uma rapidez febril para acelerar a partida. O velho conde, que subitamente se pusera também a trabalhar, passava a vida para cá e para lá, ora no pátio ora em casa, arengando, a propósito e despropósito, à criadagem, para que as coisas se fizessem depressa. Pétia dirigia os trabalhos no pátio. Sónia perdia a cabeça com as recomendações contraditórias do conde e não sabia o que havia de fazer. A criadagem gritava, discutia, zaragateava correndo e esfalfando-se. Natacha, animada daquela paixão que ela sabia pôr em todas as coisas, deitou também mãos à obra. De princípio a sua intervenção foi acolhida com desconfiança. Não esperavam dela senão travessuras e ninguém queria dar ouvidos ao que ela dizia, mas ela exigiu com obstinação e ardor que lhe obedecessem, zangou-se, quase chorou porque a não queriam ouvir e acabou por conseguir o que queria. A primeira medida que tomou, e que grandes esforços lhe custara, assentando de vez a sua autoridade, foi o enrolar dos tapetes. O conde tinha preciosas tapeçarias de Gobelin e tapetes persas. Quando Natacha pôs mãos à obra, duas caixas estavam abertas no salão: uma quase cheia até cima de porcelanas, a outra, de tapetes. Ainda havia muitas peças de porcelana espalhadas pelas mesas e continuavam a trazer mais dos armários. Era preciso encher uma nova caixa e os criados foram por ela. — Sónia, espera. Podemos meter todo o resto ali — disse Natacha. — Não há forma, menina; já tentámos de todas as maneiras — replicou o moço da copa. — Qual quê? Querem ver? E principiou a tirar da caixa travessas e pratos embrulhados em papel. — Temos de pôr as travessas aqui, no meio dos tapetes — voltou ela. — Só para os tapetes serão precisas pelo menos três caixas — comentou o moço da copa. — Espera. Vais ver. — E Natacha pôs-se a extrair os objectos da caixa com toda a presteza — Estes não — dizia, mostrando os pratos de Kiev. — Estes, sim, ali, com os tapetes — acrescentava, apontando para as travessas de Saxe. — Deixa isso, Natacha, não te preocupes, nós conseguiremos tudo, seja como for — resmoneava Sónia. — Deixe, menina... — dizia o mordomo.Natacha não desistia. Desmanchou todos os embrulhos e principiou outra vez a fazê-los com grande celeridade, dizendo ser inútil levarem os tapetes usados e a louça suplementar. E quando chegou ao fim, voltou outra vez ao princípio. De facto, assim que retiraram tudo que era ordinário, que não valia a pena levar, as coisas de valor tiveram lugar nas duas caixas. No entanto, as tampas teimavam em não fechar. Era natural que ainda se pudesse encontrar qualquer coisa susceptível de ser posta de lado, mas Natacha não queria desistir do seu intento. Fazia, desfazia as caixas, enchia, dizia ao moço da copa e a Pétia, que arrastara consigo para a ajudarem, que comprimissem o tampo... ela própria fazia desesperados esforços. — Bem, pronto, Natacha — acabou por dizer Sónia. — Sim, bem veio que tens razão, mas no entanto tira esse tapete de cima. — Não quero — gritava Natacha, apartando da cara, coberta de suor, com uma das mãos, os cabelos desgrenhados, enquanto com a outra batia em cima dos tapetes. — Anda, Petka, força! Vassilitch, carrega! Os tapetes acabaram por se comprimir e a tampa fechou-se. Natacha bateu palmas, gritando de alegria, e lágrimas de satisfação orvalharam-lhe os olhos. Mas foi obra de segundos. Imediatamente se consagrou a outra tarefa, embora tivesse agora confiança em si. E o conde não se zangou quando lhe disseram que Natacha Ilinitchna desrespeitara as ordens que ele dera. E a ela é que os criados vieram pedir instruções para amarrar os embrulhos e carregar os carros. Graças a Natacha, o trabalho progrediu. As coisas banais foram postas de parte e as mais preciosas colocadas umas contra as outras. No entanto, quando a noite chegou, apesar do empenho de todos, ainda não se pudera emalar tudo. A condessa adormecera e o conde, adiando a partida para o dia seguinte, foi deitar-se. Sónia e Natacha estenderam-se vestidas na alcova. Nessa noite passou um carro com mais um ferido pela Rua Povarskaia e Mavra Kuzminitchna, que estava ao portão, mandou-o entrar para casa dos Rostov. Esse ferido, pelo que dissera Mavra Kuzminitehna, devia ser pessoa importante. Era transportado num carro fechado e ao pé do cocheiro sentava-se um criado velho de aspecto venerável. Atrás, noutro carro, vinham o médico e dois soldados. — Entrem aqui, para nossa casa, se fazem favor. Os patrões vão-se embora, a casa está vazia — disse a velha para o criado. — Ah! — suspirou o criado. — Julgámos que não chegasse até aqui. Temos anossa casa em Moscovo, mas é longe e não está lá ninguém. — Tenham a bondade de entrar. Na casa dos nossos amos há tudo que é preciso. Entrem. Está muito mal? — acrescentou ela. O criado fez um gesto vago. — Julgámos que não chegasse até aqui. Pergunte ao médico. O criado apeou-se e aproximou-se da carruagem. — Está bem — disse o médico. O criado voltou a primeira carruagem, espreitou para dentro e agitou a cabeça. Depois disse ao cocheiro que entrasse no pátio e veio de novo para junto de Mavra Kuzminitchna. — Meu Senhor Jesus Cristo! — exclamou ela. — Passem por aqui, os senhores nada dirão... — afirmou ela. Era preciso evitar que o ferido fosse transportado pela escada, por isso o levaram para o pavilhão. Instalaram-no no antigo quarto de Madame Schoss. O ferido era o príncipe André Bolkonski. [XV] Chegou a derradeira hora de Moscovo. Estava um dia de Outono claro e alegre. E, sendo domingo, como em todos os domingos, os sinos repicavam para a missa em todas as igrejas. Dir-se-ia que ninguém compreendia ainda o destino que aguardava a capital. Só dois barómetros acusavam a situação da cidade: a atitude da populaça, isto é, do grosso da arraia-miúda, e a alta dos preços. Os operários das fábricas, os criados e os camponeses, em magotes, à mistura com funcionários, seminaristas e fidalgos, tinham ido de madrugada para Tri Gori. Chegada que foi aí, toda aquela gente ficou à espera de Rostoptchine; mas, depois de muito esperar e convencida de que Moscovo seria entregue ao inimigo, acabou por regressar à cidade, dispersando-se por ruas e tabernas. Os preços das coisas também diziam muito, As armas, o ouro, os carros, os cavalos, aumentavam constantemente de preço enquanto baixava continuamente o valor do Papel-moeda e dos objectos de luxo, e de tal maneira que por volta do meia-dia os panos, por exemplo, valiam menos demetade do seu preço habitual. Em compensação, um cavalo de aldeão chegava a pagar-se por quinhentos rublos. E os móveis, os espelhos, os bronzes, cediam-se por qualquer preço. Na velha e respeitável residência dos Rostov pouco se fizera sentir esta subversão das antigas condições da vida. Durante a noite apenas haviam desaparecido três dos numerosos criados da casa, que nada tinham roubado, e os trinta carros chegados da aldeia acharam-se de um momento para outro transformados numa verdadeira riqueza, riqueza invejada por muitos. Por eles ofereciam aos Rostov chorudas somas. Não só lhes vinham propor semelhantes ofertas, como desde essa noite, e logo muito cedo na manhã do dia 1 de Setembro, o pátio da residência se viu cheio de ordenanças e criadagem dos oficiais feridos ali instalados ou nas casas vizinhas que vinham implorar do pessoal do conde que lhes arranjasse meios de transporte para sair da cidade. O mordomo, a quem se dirigiam, embora lamentasse a situação dos feridos, recusava-se categoricamente a conceder o que lhe pediam, dizendo não ter coragem sequer de falar nisso ao amo. Por mais dignos de piedade que fossem todos aqueles desgraçados, a verdade é que se se transigisse com um ter-se-ia de transigir com todos, e nesse caso não haveria razão para se não cederem inclusivamente as próprias carruagens reservadas para os donos da casa. Trinta carros não bastavam para salvar todos os feridos e no meio de toda aquela desgraça era impossível não se pensar em si próprio e na família. Eis o que pensava o mordomo por conta do seu patrão. Quando acordou, na manhã do dia 1, o conde Ilia Andreitch saiu nos bicos dos pés do seu quarto de dormir para não acordar a condessa, que só então passara pelo sono, e ainda de roupão, o seu roupão de seda lilás, veio até ao alpendre. A fila de carros, prontos a partir, estava alinhada no pátio. O mordomo conversava com um velho impedido e um moço oficial, muito pálido, que tinha um braço ao peito. Ao ver o conde, pôs-se a fazer gestos muito graves, como a dar-lhes a entender que seria melhor retirarem-se. — Então, Vassilitch, está tudo pronto? — disse o conde passando a mão pela calva, com um aceno de cabeça cordial ao militar e ao seu impedido, pois muito gostava de ver caras novas. — Podemos atrelar imediatamente, Excelência. — Bom, magnífico, logo que a condessa acorde, abalamos! Que há, meus senhores? — exclamou, dirigindo-se ao oficial. — Está em minha casa.O oficial aproximou-se. O sangue subiu-lhe ao rosto pálido. — Conde, peço-lhe, consinta... é por Deus que lhe peço... consinta que eu me instale em qualquer parte entre as suas malas. Não trago nada comigo... Vou numa das carroças, pouco me importa... Ainda o oficial se não calara, já o impedido dirigia ao conde pedido idêntico para o seu amo. — Naturalmente, naturalmente — deu-se pressa em dizer o conde. — Tenho muito gosto, tenho muito gosto. Vassilitch, anda, diz que lhe arranjem lugar aí numa das carroças... Olha... Ali... O que for necessário acrescentou, vago, como sempre que dava uma ordem. O oficial desfez-se em agradecimentos tão calorosos que o conde se sentiu compelido a dar ainda maiores provas de bom coração. Olhou em torno de si: no pátio, junto da porta de serviço, à janela do pavilhão, só havia feridos e impedidos. Todos o fitavam, aproximando-se do local onde ele estava. — Quererá V. Ex, vir até à galeria? — disse o mordomo. — Que manda V. Ex.a quanto aos quadros? O conde retirou-se com o mordomo, voltando a insistir para que satisfizessem o pedido dos feridos que desejassem ser evacuados. — A verdade é que podemos dispensar algumas destas bagagens — acrescentou, em voz baixa e misteriosa, como se receasse ser ouvido de alguém. A condessa acordou às nove horas, e Matrena Timofeievna, sua ex-criada de quarto, espécie de comissário de polícia a ela agregada, veio dizer-lhe que Maria Karlovna estava muito aborrecida, pois não podia deixar ali abandonada a roupa das crianças. A condessa quis saber porque estava Madame Schoss aborrecida e disseram-lhe que a mala dela fora retirada de uma das carroças descarregada para se arranjar lugar para os feridos que o conde, apiedado, dera ordens de transportar. Mandou chamar o marido. — Que aconteceu, meu amigo, estão outra vez a descarregar as malas? — É que, minha querida, fazia tenção precisamente de te prevenir... minha querida condessinha... Um oficial veio pedir-me que cedesse alguns carros para os feridos... Tudo isto, as nossas coisas, tudo pode ser substituído, mas eles, coitados! Havemos de os deixar aqui?... E estão em nossa casa, fomos nós quem os convidou, a esses oficiais... Então pensei, realmente, minha querida, que diabo!... Podíamos levá-los... Temos assim tanta pressa?O conde tomara uma atitude muito tímida, como sempre que Linha de referir- se a interesses materiais. A condessa conhecia-lhe muito bem o tom que ele tomava quando se metia em empresas prejudiciais aos interesses dos filhos: a construção de uma galeria ou de uma estufa, a instalação lá em casa de um teatro ou de uma orquestra, e entendia obrigação sua opor-se-lhe sempre que o conde se mostrava assim. Com uma expressão de vítima resignada, resolveu dizer: — Sim, conde, colocaste-nos numa situação em que já nos não dão nada pela casa e ainda queres perder todos os nossos bens, isto é, os bens dos nossos filhos. És o primeiro a dizer que em nossa casa há para cima de cem mil rublos de mobília. Com o meu consentimento não, conde, eu não consinto, não consinto. Faz o que quiseres, mas a verdade é que o Governo é que deve tratar dos feridos. Eles bem sabem o que hão-de fazer. Olha, aqui mesmo defronte, os Lopukine, antes de ontem, já tinham a casa vazia. Se me não queres poupar a mim, ao menos poupa os teus filhos. O conde esboçou um gesto evasivo, e, sem responder, saiu. — Paizinho, que foi? — perguntou Natacha, que entrara atrás dele nos aposentos da mãe. — Nada. Não é coisa que te diga respeito! — exclamou o conde, desabrido. — Mas se eu ouvi tudo — replicou ela. — Porque não há-de a não consentir? — Não és para aqui chamada! — vociferou o conde, Natacha aproximou-se da janela e aí ficou pensativa. — Paizinho, vem ali o Berg! — exclamou, olhando através das vidraças. [XVI] Berg, o genro dos Rostov, já era coronel e condecorado com as Ordens de S. Vladimiro e de Santa Ana. Continuava a desempenhar as quietas e agradáveis funções de ajudante-de-campo do comandante da primeira secção do estado-maior do segundo corpo de exército. Chegara a Moscovo no dia 1º de Setembro, procedente do seu quartel, Nada tinha que fazer em Moscovo, mas, ao notar que todos os seus camaradas pediampara seguir para a capital por esta ou por aquela razão, julgou-se obrigado a solicitar uma licença por motivos de ordem familiar. Chegara a casa do sogro no seu elegante drojkis tirado por uma parelha de magníficos cavalos iguais aos que vira atrelados à carruagem de um príncipe das suas relações. Ao penetrar no pátio, olhou atentamente para os carros que aí estavam e enquanto subia as escadas do alpendre puxou de um lenço de assoar muito limpo, dando-lhe um nó numa das pontas. Atravessou o vestíbulo e precipitou-se para o salão, onde abraçou o conde, beijou as mãozinhas de Natacha e de Sónia e logo ali pediu notícias sobre a saúde da mãe. — Como queres que uma pessoa se sinta bem por uns tempos destes? — exclamou o conde. — E tu, conta qualquer coisa. Onde estão as tropas? Retrocedem ou vai haver alguma batalha? — Só Deus sabe, pai — replicou Berg. — Só Deus pode decidir do destino da nossa pátria. O exército está cheio de entusiasmo, mas os chefes, por agora, mantêm-se reunidos em conselho. O que vai sair dali ninguém sabe. Mas sempre lhe direi, pai, que não há palavras para descrever o heroísmo, a valentia à moda antiga, dos nossos soldados no combate de 26... Dir-lhe-ei francamente, meu pai — disse Berg, que entretanto batia na arca do peito, como o general a quem ouvira discurso idêntico, embora o seu gesto, retardado, não tivesse coincidido, como era mister, com as palavras «nossos soldados». — Dir-lhe-ei com toda a franqueza: nós, os seus comandantes, não só não precisámos de incitar os homens a marchar para a frente ou a animá-los de qualquer maneira como tínhamos até dificuldade em impedir esses... esses... Sim, é o que lhe digo, cometeram actos de bravura dignos da antiguidade — acrescentou, volúvel. — O general Barclay de Tolly a cada passo jogava a vida à testa dos seus soldados, digo-lho eu. E o nosso corpo estava mesmo no alto do cabeço. Imagine! Neste ponto, Berg pôs-se a contar o que se lembrava de ter ouvido nas histórias de guerra que então circulavam. Natacha, sem apartar dele os olhos, parecia tentar descobrir-lhe no rosto resposta para uma pergunta que a si mesma fazia, e isso perturbava o narrador. — Não pode imaginar-se o heroísmo que mostraram os nossos soldados. É digno de todos os elogios! — prosseguiu, fixando os olhos em Natacha e tentando, com um sorriso, conquistar-lhe as boas graças. — «A Rússia não está em Moscovo,está no coração dos seus filhos!», não é verdade, meu pai? Neste momento a condessa saiu do seu quarto: parecia cansada e descontente. Berg correu para ela, beijou-lhe a mão, perguntou-lhe como ia de saúde e fazendo- a compreender, por um movimento de cabeça, quanto se condoía do seu estado, permaneceu a seu lado. — Sim, mãe, não há dúvida de que estes tempos que correm são realmente penosos e tristes para todos nós. Mas porque há-de inquietar-se assim? Tem tempo de partir... — Não percebo o que estão a fazer os criados — disse a condessa, dirigindo-se ao marido. — Ainda agora me vieram dizer que nada está pronto. É preciso que alguém lhes dê ordens. Agora é que sinto a falta de Mitenka. Nunca mais sairemos daqui. O conde quis dizer qualquer coisa, mas deteve-se. Levantou-se e encaminhou-se para a porta. Berg puxou então do lenço, como se fosse assoar-se, e, ao ver o nó numa das suas pontas, quedou-se pensativo, abanando tristemente a cabeça. — É verdade, pai, tenho uma coisa muito importante a pedir-lhe — disse ele. — Hem! — exclamou o conde, detendo-se. — Passei há pouco pela casa de Iussupov — disse Berg, pondo-se a rir. — O intendente, meu conhecido, veio a mim e perguntou-me se eu não queria comprar qualquer coisa. Fui ver, como calcula, por mera curiosidade: tinha lá uma cómoda com um toucador. Bem sabe quanto a Vera gostava de ter um móvel assim, várias vezes falámos nesse assunto. — E no tom que punha nas suas palavras ao referir estas coisas denunciava a satisfação que sentia por dispor de uma bela casa. — Que maravilha! É cheia de gavetinhas e tem uma fechadura inglesa de segredo, sabe? Há tanto tempo que a Verotchka sonha com uma cómoda assim! Queria fazer-lhe uma surpresa. Vi lá em baixo no pátio muitos campónios. Permita que disponha de um deles, peço-lhe, pagar-lhe-ei decentemente e... O conde franziu a sobrecenho e tossicou nervoso. Peça à condessa, não sou eu quem dá ordens. — Se é coisa muito difícil, então não falamos mais nisso — acrescentou Berg. — Se o fiz, foi por lembrar-me da Vera. — O diabo que os leve, a todos, a todos!... — vociferou o conde. — É de uma pessoa perder a cabeça.Saiu da sala com fragor enquanto a condessa se desfazia em pranto. — É verdade, mãe, os tempos estão duros! — comentou Berg. Natacha saíra atrás do pai, mas, como se uma ideia súbita lhe tivesse ocorrido, desceu a escada correndo. Pétia estava no alpendre muito ocupado a distribuir armas pelos homens que deviam escoltar os carros. As viaturas, todas atreladas, continuavam estacionadas no pátio. Duas delas haviam sido descarregadas e sobre uma empoleirara-se um oficial com o seu impedido. — Sabes porque foi? — perguntou Pétia à irmã. Esta percebeu que ele queria referir-se à discussão entre o pai e a mãe, mas não deu troco. — Pois fica sabendo que foi porque o pai queria pôr todos os carros à disposição dos feridos — disse Pétia. — Foi o Vassilitch quem me contou. Por mim... — Por mim — desembuchou Natacha, subitamente, volvendo para o irmão a sua face indignada — por mim... acho tão feio, tão reles, tão... Realmente, não sei que dizer... Acaso seremos nós uns alemães quaisquer?... Soluços embargaram-lhe a voz, e para que a ira que se apossara dela não fosse em pura perda, virou costas ao irmão e subiu escada a correr. Berg continuava ao lado da condessa e ia-lhe dirigindo respeitosas frases de consolação. O conde, de cachimbo na mão, passeava de um lado para o outro. Nesse momento Natacha, o rosto transtornado, agressiva, entrou na sala e correu para a mãe. — É uma vergonha, uma infâmia! — gritou. — Não posso crer que tenha dado semelhantes ordens. Berg e a condessa olhavam-na entre surpreendidos e assustados. O conde deteve-se junto de uma janela, atento ao que ia passar-se, — Mãezinha, não é possível, olhe para o pátio. — gritou ela. — Vão ficar ali!... — Que tens tu? Quem? Que queres? — Os feridos, quem havia de ser? É impossível, mãezinha, uma coisa dessas não tem classificação... Mãe, mãezinha, perdoe-me se lhe falo nestes termos, minha querida mãezinha... Então, para que queremos nós todas essas coisas que levamos connosco? Olhe, se faz favor, para o que está a passar-se lá em baixo... Mãezinha!... Isto não pode ser!...O conde conservava-se junto da janela e ouvia a filha sem se voltar para dentro. De súbito, resfolgou e aproximou-se dos vidros. A condessa leu nos olhos da filha a reprovação que a conduta dela lhe inspirava, viu a excitação que a tomava, percebeu porque o marido desviava dela os olhos e uma expressão de absoluto desamparo se estampou no seu rosto. — Façam o que quiserem! Porventura os impeço? — murmurou ela, sem renunciar de todo à sua atitude. — Mãe, mãezinha, perdoe-me!... A condessa afastou-a de si e aproximou-se do conde. — Meu amigo, dá as tuas ordens como entenderes... Como podia eu saber? — articulou, baixando os olhos, como se se sentisse culpada. — São os pintos, são os pintos que dão lições à galinha... — exclamou o conde, com as lágrimas nos olhos, recebendo a condessa nos braços, contente por poder assim esconder no peito do marido a confusão que lhe ia na alma. — Pai, mãe! Pode então dar as ordens? Não e verdade? — perguntava Natacha. — Assim mesmo podemos levar tudo de que ternos necessidade. O conde assentiu com um gesto de cabeça e a filha, rápida como quando jogava às escondidas, precipitou-se no vestíbulo e desandou escada abaixo. Os criados acercaram-se de Natacha, rodearam-na, e não acreditaram nas estranhas ordens que ela lhes dava enquanto as não viram confirmadas pelo conde em nome da condessa, Tratava-se de pôr todos os carros à disposição dos feridos e de transportar os caixotes para a arrecadação. Assim que se certificaram das ordens dadas, com alegria e entusiasmo meteram mãos à obra. Já não lhes parecia estranha agora a resolução dos anos afigurava-se-lhes naturalíssimo que se recolhessem os feridos e se abandonassem as bagagens, quando é certo que um quarto de hora antes o contrário é que lhes parecia razoável. Toda a gente da casa, como para compensar o tempo perdido, se consagrou a instalar os feridos nos respectivos carros. Estes, pálidos, mas contentes, arrastaram-se para fora de casa e rodearam as viaturas. A boa nova não tardou a correr pelas casas próximas e o pátio dos Rostov encheu-se de feridos. Muitos deles pediram que os deixassem estar onde estavam as bagagens e instalaram-se em cima delas, Uma vez, porém, que se tinham principiado a descarregar os carros já se não podia voltar atrás. Aliás, que fazia abandonar tudo ou só parte das coisas? O pátio estava juncado de caixotes cheios de louças, debronzes, de quadros, tudo quanto fora cuidadosamente encaixotado na noite anterior, e ainda se arranjava maneira de descarregar mais coisas para deixar livres os carros, — Ainda se podem arranjar mais quatro. — disse o intendente — Cedo o meu carro. De outra maneira, como havemos de os instalar a todos? — Dêem-lhes o carro onde vai o meu guarda-roupa. Dutilacha virá comigo no meu. Esta ordem foi executada, e mandaram a carruagem recolher feridos duas casas mais adiante. Uma jovial animação impelia toda a criadagem. Natacha há muito tempo que se não sentia tão animada e feliz. — Como havemos de a amarrar? — diziam os criados que içavam uma mala para o acanhado estribo de uma das viaturas. — Deviam ao menos reservar um dos carros, — Que tem a mala lá dentro? — perguntou Natacha. — Os livros CIO conde. — Deixem. O Vassilitch trata disso. Não se preocupem. O carro não podia levar mais gente. Onde havia de sentar-se Piotre Ilitch? — Irá no banco do cocheiro. Não é assim, Pétia? Irás ao lado do cocheiro — gritou-lhe Natacha. Também Sónia agia como podia, mas ao contrário do que fazia Natacha. Ordenava cuidadosamente as coisas que ficavam, inventariando-as, como queria a condessa, procurando levar o que fosse possível. [XVII] As duas horas da tarde, as quatro carruagens dos Rostov, carregadas e atreladas, estavam diante da porta principal. Os carros com os feridos tinham saído uns atrás dos outros, abandonando o pátio. A sege que transportava o príncipe André, ao passar diante do alpendre, chamara a atenção de Sónia, ocupada então, com o auxílio de uma criada, a arranjar um bom lugar para a condessa na sua alta e grande carruagem parada diante da porta. — De quem é aquela sege? — perguntou ela, metendo a cabeça pela portinhola. — Não sabe, menina? — disse a criada. — É do príncipe fendo que passou aqui a noite e vai partir ao mesmo tempo que nós. — Quem é? Como se chama? — É o noivo antigo, o príncipe Boliconski — replicou a criada tristemente. — Parece que está perdido. Sónia saltou do estribo do carro e correu em busca da condessa. Esta, já em trajo de jornada, com o xale pelos ombros e o chapéu na cabeça, andava de um lado para o outro do salão, cansada, aguardando que todos saíssem para se sentar um instante, com as portas fechadas, como era seu costume, fazendo as suas orações antes da abalada. Natacha não estava presente. — Mãezinha! — exclamou Sónia. — O príncipe André está aqui, ferido, e à morte. Vai partir connosco. A condessa olhou para ela de olhos arregalados e pegando-lhe por um braço: — Porventura Natacha...? — articulou ela. Tanto a ela como a Sónia aquela notícia principiara por despertar-lhes um único pensamento. Ambas conheciam muitíssimo bem Natacha e horrorizava-as a ideia do efeito que nela produziria uma tal nova, o que as levava a esquecer a simpatia que o príncipe lhes despertava. — Natacha nada sabe por ora, mas o príncipe vai connosco. — voltou Sónia. — Disseste que está a morrer? Sónia abanou a cabeça afirmativamente, A condessa apertou-a contra si, soluçando, «Os caminhos de Deus são insondáveis!», disse para si mesma. E pensou que em tudo que estava a acontecer havia a mão da Providência, oculta até aí.— Bem, mãezinha, está tudo pronto. Que tem? — perguntou Natacha, que, muito animada, acabava de entrar na sala. — Nada — replicou a condessa. — Se tudo está pronto, vamo-nos embora. E, para esconder a perturbação que a tomava, pôs-se a remexer na maleta. Sónia estreitou Natacha nos seus braços e beijou-a na face. Esta fitou-a surpreendida. — Que tens tu? Que aconteceu? — Nada... nada... — Alguma má notícia para mim? Que foi? — inquiriu Natacha, tomada de um pressentimento. Sónia despediu um suspiro sem responder. O conde, Madame Schoss, Mavra Kuzminitchna, Vassilitch, entraram no salão. De— pois de fecharem as portas, sentaram-se, e assim ficaram por algum tempo sem dizerem palavra e sem olharem uns para os outros. O primeiro a levantar-se depois foi o conde, e, suspirando fundo, persignou-se diante dos ícones. Todos os demais o imitaram. Em seguida beijou Mavra Kuzminitchna e Vassilitch, que ficavam em Moscovo, e enquanto eles lhe pegavam na mão e o beijavam no ombro, o conde batia-lhes nas costas, pronunciando algumas palavras carinhosas e consoladoras. A condessa recolheu-se ao seu oratório e ajoelhou diante das imagens ainda nas paredes, pois as mais preciosas, recordações de família, haviam sido retiradas para seguir também. No alpendre e no pátio, os criados que acompanhavam os amos, armados de sabres e punhais que Pétia lhes distribuíra, as calças metidas nos canos das botas, o torso bem cingido em correias e cinturões, despediam-se dos que ficavam. Como sempre acontece à hora da partida, muitas coisas tinham esquecido, outras estavam mal arrumadas nos carros. Eis porque os dois lacaios estacionaram, por muito tempo, dos dois lados das portinholas abertas e dos estribos da carruagem, prontos a ajudar a condessa a subir, enquanto as criadas andavam de um lado para o outro com as almofadas e os embrulhos, correndo da casa para a berlinda, e da sege para a britchka. — Sempre se hão-de esquecer de alguma coisa! — exclamava a ama. — Mas bem sabem que eu me não posso sentar assim. Sem responder de dentes cerrados e uma expressão de censura. Duniacha precipitou-se para a carruagem a fim de ajeitar as almofadas.— Oh, que gente! — murmurava o conde, abanando a cabeça. O velho cocheiro Efim, o único em que a condessa confiava, sentado, lá no alto da boleia, pouco parecia preocupar-se com o que se passava atrás. Graças à experiência que adquirira em mais de trinta anos de serviço, estava certo de que não seria tão cedo que lhe diriam «Vamos! » e que depois de o dizerem ainda o mandariam parar mais duas ou três vezes, para buscar coisas esquecidas, e que em seguida o fariam parar ainda uma vez e que a condessa meteria a cabeça pela portinhola para lhe pedir, em nome de Deus, que descesse as ladeiras devagar. Tudo isto ele o sabia, e, muito mais pacientemente que os seus próprios cavalos, sobretudo o da esquerda, o alazão Sokol, que relinchava e remordia o freio, aguardava os acontecimentos. Finalmente, toda a gente se instalou: recolheram- se os estribos, as portinholas fecharam-se, mandaram ainda procurar um cofrezinho esquecido, e a condessa, metendo a cabeça pela portinhola, pronunciou as palavras sacramentais. Então Efim, lentamente, desbarretou-se e fez o sinal da cruz. O postilhão e os criados imitaram-no. «Que Deus nos proteja!», exclamou Efim, cobrindo-se. O postilhão fez rodar a carruagem. O cavalo de lança da direita fez força sobre o arnês, as molas rangeram e a caixa da sege estremeceu. O lacaio saltou para o assento depois do carro em marcha. Aos solavancos, este entrou na rua empedrada, as outras carruagens, por sua vez, agitaram-se também e todos se puseram em marcha. Um por um, todos os viajantes, ao passarem diante da igreja que ficava defronte da casa, se persignaram. Os criados que ficavam na cidade acompanhavam a pé, de cada lado, os carros que partiam. Poucas vezes Natacha estivera tão alegre como no momento em que, sentada diante da mãe, via desfilar, lentamente, o casario da cidade de Moscovo, inquieta e abandonada. De quando em quando metia a cabeça pela portinhola e contemplava o grande comboio de feridos que os seguia. À frente de todos lá vinha a capota da sege do príncipe André. Ignorava quem ali ia, e no entanto, do lugar em que se encontrava, era sempre essa capota que procurava com a vista, pois precedia todas as outras carruagens. Em Kudine desembocaram das Ruas Nikitskaia, de Priesni e de Podriovinski vários comboios do mesmo género, e ao passarem por Sodovaia todos os carros formaram duas filas. Diante da Torre Sukariev, Natacha, entretida a observar a multidão e as carruagens, exclamou, de súbito, com jovial surpresa:— Santo nome de Deus! Mãe, Sónia, olhem. é ele! — Quem? Quem? — Olhem! O Bezukov. — E debruçou-se da portinhola, apontando para um homenzarrão, envergando um cafetã de cocheiro, evidentemente, como podia depreender-se do seu porte e do seu andar, um senhor disfarçado. Acompanhado por um velhinho de rosto amarelento e imberbe, de capote de lã, caminhava direito ao arco da Torre. — Garanto-lhes que é o Bclzukov, de cafetã, e vai com um velho. Podem ter a certeza, olhem, olhem! — Não pode ser. Não é ele. Como podes dizer semelhante tolice? — Mãezinha, corto o pescoço: é ele. Garanto-lhe. Pára! Para! — gritou para o cocheiro, O cocheiro, porém, não podia parar, pois da Rua Miechtchanskaia desembocavam mais comboios e mais carros e os cocheiros gritavam aos Rostov que não embaraçassem a circulação. Efectivamente, embora já longe, todos os Rostov reconheceram Pedro, ou, pelo menos, um homem que com ele se parecia extraordinariamente, caminhando, de cabeça baixa e expressão grave, com um cafetã de cocheiro, ao lado de um velhinho imberbe, com aspecto de lacaio. O velho, notando a cabeça que se debruçava da portinhola, tocou respeitosa m ente no cotovelo do companheiro e disse-lhe qualquer coisa, apontando para a carruagem. De tão mergulhado que ia nos seus pensamentos, Pedro tardou em compreender o que o velho lhe dizia. Tendo, por fim, compreendido, ergueu os olhos, reconheceu Natacha e, num primeiro impulso, correu para o carro. Alguns passos andados, contudo, parou indeciso. A cabeça de Natacha, toda debruçada da portinhola, resplandecia de irónica doçura. — Piotre Kirilitch, venha daí! Não vê que já o conhecemos? Que engraçado que é! Que anda a fazer? Para que se disfarçou? Pedro apertou a mão que se lhe estendia, e sempre a andar, pois o carro continuava a rodar, beijou-a desajeitadamente. — Que anda a fazer, conde? — perguntou a condessa, numa voz repassada de espanto e compaixão. — Eu? Mas nada, nada. Não me faça perguntas — replicou ele, sentindo que oolhar alegre e luminoso de Natacha o atraía com o seu encanto. — Que anda a fazer? Fica em Moscovo? Pedro manteve-se calado. — Em Moscovo? — perguntou ele. — Sim, em Moscovo. Adeus! Oh! O que eu daria para ser um homem! Ficaria consigo. Oh! Seria magnífico! — exclamou Natacha. — Mãezinha, se dá licença, eu também ficarei. Pedro olhou para ela distraidamente e quis dizer qualquer coisa, mas a condessa interrompeu-o. — Esteve na batalha, não é verdade? Foi o que nos disseram. — Estive — respondeu ele. — Amanhã haverá outra batalha... Natacha interrompeu-o. — Mas que tem, conde? Não é o mesmo... — Oh! Não me faça perguntas. Nada lhe posso dizer. Amanhã... Mas não. Adeus, adeus! Que tempos terríveis! — acrescentou. E, afastando-se da carruagem, dirigiu-se para o passeio. Por muito tempo ainda Natacha se conservou à portinhola, seguindo-o com o seu sorriso alegre e afectuoso em que havia fosse o que fosse de irónico. [XVIII] Desde que desaparecera de sua casa, dois dias antes, Pedro vivia no andar abandonado do falecido Bazdeiev. Eis o que se passara: Quando acordou, no dia seguinte ao do seu regresso a Moscovo e da sua entrevista com Rostoptchine, levou tempo a compreender onde se encontrava e o que queriam dele. Depois, ao dizerem-lhe que entre as pessoas que o aguardavam na antecâmara estava o francês que lhe entregara a carta da mulher, tornou-o, de súbito, um desses acessos de desânimo e aturdimento a que era atreito. Consigo mesmo disse que tudo estava acabado, que só havia confusão e ruínas, que ninguém tinha culpa nem ninguém tinha razão, que nada esperava do futuro e que a sua vida era um beco sem saída. Rindo com um riso artificial e articulando palavras sem nexo, ora se deixava cair, inanimado, num divã, ora se levantava, seaproximava da porta e espreitava para a antecâmara pelo buraco da fechadura, ora ainda, com um gesto desesperado, voltava a sentar-se, tentando ler. O mordomo veio dizer-lhe, pela segunda vez, que o tal senhor insistia em falar-lhe, por pouco tempo que fosse, e acrescentou que alguém viera pedir-lhe que aceitasse uns livros pertencentes à viúva Bazdeiev, a qual também deixara a cidade. — Sim, vou já, espera... ou melhor... Diz-lhes que vou Imediatamente — respondera ele. Assim que o mordomo saíra, Pedro agarrara no chapéu e desaparecera por uma porta detrás. Não havia ninguém no corredor. Seguiu ao longo desse corredor até à escada e, uma vez aí, absorto e apertando a cabeça entre as mãos, desceu até ao primeiro patamar. O porteiro estava junto da porta principal. No patamar onde Pedro se detivera havia outra escada que conduzia à porta de serviço. Por aí passou e desceu para o pátio. Ninguém o vira. Na rua, porém, ao transpor o portão, os cocheiros que aí estacionavam e o próprio porteiro, vendo-o, descobriram-se. Ao sentir que os olhos deles o seguiam, Pedro fez como e, avestruz, que esconde a cabeça debaixo da asa para passar despercebido. Baixando os olhos, acelerou o passo. A coisa que se lhe afigurara mais urgente naquela manhã era recolher os livros e os papéis de Osip Alexeievitch Bazdeiev. Tomou o primeiro carro que se lhe deparou e mandou bater para os Tanques Patriartchi, onde residia a viúva Bazdeiev. Ia observando a grande fileira de carros que saíam da cidade enquanto se firmava o melhor que podia na velha carruagem desconchavada que ameaçava atirá-lo à rua. Sentia a alegria de uma criança que faz gazeta à escola e todo o caminho tagarelou com o cocheiro. Este contou-lhe que no Kremlin estavam a distribuir armas pelo povo e que no dia seguinte toda aquela gente se concentraria na barreira de Tri Geri, onde iria travar-se uma grande batalha. Quando chegou aos Tanques Patriartchi, pediu que lhe indicassem a casa de Bazdeiev, onde há muito não vinha. Aproximou-se da cancela. Guerassime, aquele velhinho imberbe e amarelento que ele vira em Torjok, há cinco anos, na companhia do falecido amo, acorreu a recebê-lo. — A senhora está? — perguntou Pedro.— Saiba Vossa Excelência que a senhora e os meninos foram para as suas terras de Torjok. — Informou ele. — Mesmo assim entro. Tenho de seleccionar os livros. — volveu Pedro. — Bem-vindo seja. O irmão do falecido, que Deus tenha em descanso. Makar Alexeievitch, está aí. Mas, como sabe, é tontinho — tornou o velho criado. Makar Alexeievitch, como Pedro sabia, era meio doido e passava a vida a beber. — Sim, sim, bem sei. Vamos... vamos... — disse Pedro, entrando. No vestíbulo, de pé, com os pés, sem meias, metidos nuns chinelos, estava um corpulento velho, calvo, embrulhado num roupão. Quando viu Pedro, murmurou algumas palavras, furibundo, e saiu para o corredor. — Era inteligentíssimo, mas agora, como vê, está tontinho — disse Guerassime. — Quer entrar para o escritório? Pedro assentiu com um aceno de cabeça. - Tem estado sempre fechado. Sofia Danilovna deu ordens, caso alguém viesse da sua parte, para entregarmos os livros. Pedro penetrou no escritório escuro onde nunca entrara em vida do Benfeitor sem um estremecimento. Agora, coberto de pó e intacto desde que morrera Osip Alexeievitch, ainda parecia mais triste. Guerassime, depois de abrir as portadas das janelas, desapareceu em bicos de pés. Pedro, assim que percorreu a dependência, aproximou-se do armário onde estavam os manuscritos e pegou num deles, um dos mais preciosos para a história da Ordem. Eram as actas originais das lojas escocesas, anotadas e explicadas pelo Benfeitor. Sentou-se diante da mesa de trabalho coberta de pó e, colocando o manuscrito diante de si, folheou-o, voltou a fechá-lo, e, por fim, esquecido dele, quedou-se, mergulhado nos seus pensamentos, de cabeça entre as mãos. Por várias vezes Guerassime, relanceando um olhar discreto ao escritório, viu Pedro na mesma postura. Passadas mais de duas horas, permitiu-se remexer qualquer coisa junto da porta para chamar a atenção de Bezukov: este, porém, não deu por coisa alguma. — Quer que mande embora o cocheiro? — Ah! Sim — replicou Pedro, voltando a si e levantando-se precipitadamente. — Ouve — prosseguiu, detendo Guerassime por um botão da blusa enquanto omirava dos pés à cabeça com os seus olhos brilhantes, húmidos e cheios de entusiasmo. — Ouve, sabes que amanhã vai haver uma batalha? — É o que dizem — volveu Guerassime. — Peço-te que a ninguém digas quem eu sou. E agora faz o que eu te disser... — Às suas ordens, Quer comer alguma coisa? — Não, é de outra coisa que preciso. Quero que me arranjes um fato de camponês e uma pistola — disse Pedro, corando. — Às suas ordens — replicou Guerassime após um momento de reflexão. Pedro levou o resto daquele dia no escritório do Benfeitor, passeando, nervosamente, de um lado para o outro, como Guerassime o pôde ver, e falando sozinho. À noite dormiu numa cama ali mesmo armada. Guerassime, que na sua longa vida de criado vira muita coisa estranha, aceitou sem relutância que Pedro se instalasse em casa dos seus amos e sentiu-se mesmo contente por ter tido ocasião de lhe prestar um serviço. Nessa noite, sem perguntar sequer para que isso lhe serviria, arranjou um cafetã e um boné para Pedro, prometendo-lhe para o dia seguinte a pistola pedida. Makar Alexeievitch, por duas vezes, durante o dia, a arrastar os chinelos, veio postar-se à porta, olhando para Bezukov com um olhar carinhoso. De uma das vezes, tendo-se Pedro voltado para, ele, o idiota embrulhou-se no roupão, com ar tímido e enfadado, e afastou-se pressuroso. Foi então que Bezukov, vestido com o trajo de cocheiro que Guerassime conseguira para ele, na companhia deste, e quando ia tentar arranjar uma pistola na Torre Sukariev, se cruzou na rua com os Rostov. [XIX] Na noite do dia 1 de Setembro, Kutuzov deu ordem às tropas russas para retirarem sobre Moscovo pela estrada de Riazan, As primeiras tropas puseram-se a caminho durante a noite. Nessa marcha nocturna ninguém se apressava, todos caminhavam lenta e ordenadamente; quando raiou, porém, a madrugada, ao chegarem à ponte de Dorogomilov, os soldados viram diante de si, do outro lado, massas de homens armados que se atropelavam para passar a ponte, acumulando- se na outra margem, bloqueando ruas e quelhas, comprimidos por outros quevinham atrás deles. Nas colunas de tropas deu-se então uma grande desordem. Toda a gente se precipitou para a ponte, para os vaus e para as barcas. O próprio Kutuzov ordenou que os transportassem para a outra margem por caminhos desviados. As dez horas da manhã do dia 2 de Setembro havia apenas tropas de retaguarda nos arrabaldes de Dorogomilov. O grosso do exército atravessara o Moskva e estava já muito para além de Moscovo. À mesma hora encontrava-se Napoleão, no meio das suas tropas, no monte Poklonaia e contemplava o espectáculo que se lhe oferecia aos olhos. Entre 26 de Agosto e 1 de Setembro, da batalha de Borodino à entrada do inimigo em Moscovo, durante aquela semana memorável e inquieta, fizera um tempo extraordinário, motivo de surpresa em pleno Outono. O Sol, já muito baixo no horizonte, era mais ardente que na Primavera; pela atmosfera, levíssima e pura, irradiava uma luz que deslumbrava os olhos; o peito dos homens dilatava-se feliz por aspirar os capitosos aromas outonais; as próprias noites, escuras e mornas, eram suaves, e durante elas caía do céu como que uma chuva de estrelas de ouro que, espalhando alegria, ao mesmo tempo assustava as pessoas. No dia 2 de Setembro, às dez horas da manhã, o tempo estava assim. A luz matinal irradiava um brilho feérico. Do alto do monte Poklonaia via-se em baixo Moscovo, com o seu rio, os seus jardins, as suas igrejas. Dir-se-ia que a cidade tinha vida própria, com as suas cúpulas cintilando, sob os raios do Sol, como se fossem estrelas. Ante a arquitectura extraordinária daquela capital.— Napoleão sentiu essa curiosidade inquieta e cobiçosa que costuma despertar o contacto com uma existência de que nada sabemos e que nos é completamente estranha. Via-se bem que aquela cidade tinha vida própria e intensa. Graças a esses sinais indefiníveis que nos permitem distinguir a distância um ser vivo de um cadáver, Napoleão, do alto do monte Poklonaia, apercebia o palpitar da vida daquela capital como se sentisse a respiração desse grande e magnífico corpo. Ao contemplar Moscovo, todos os russos sentem que ela é como que uma mãe para eles. O estrangeiro, embora desprovido deste sentimento filial, não pode deixar de se sentir impressionado pelo carácter feminino da cidade. Eis a impressão que Napoleão sentia também. — Esta cidade asiática das mil igrejas, Moscovo, a Santa. Aqui está ela,finalmente, a famosa cidade. Já era tempo! — exclamou ele, e, apeando-se do cavalo, mandou abrir diante de si a planta da cidade e chamou o intérprete, Lelorgne d’Ideville. «Uma cidade ocupada pelo inimigo faz lembrar uma virgem que Perdeu a virgindade», pensava, repetindo para si próprio o que dissera em Smolensk a Tutchkov. E animado por estes sentimentos contemplava, estendida a seus pés, a beleza oriental que via pela primeira vez. Ele próprio achava extraordinário que, se realizasse enfim aquele sonho que havia tanto acarinhava e que se lhe afigurara irrealizável. Aquela clara luz matinal, ora fixava os olhos na cidade ora no mapa que tinha diante, confirmando pormenores, e a certeza daquela posse ao mesmo tempo que o perturbava causava-lhe medo, «Teria porventura podido ser de outra maneira?», interrogava-se a si próprio. «Ei-la aqui, a grande capital, ei-la a meus pés, aguardando o destino. Onde estará agora Alexandre? E que pensará ele? Cidade estranha, soberba, magnífica! Que momento raro e solene! Sob que aspecto me verão eles?», prosseguia pensando nos seus soldados. «Aqui a têm, a recompensa que dou a esses homens de pouca fé.» E percorria com os olhos a comitiva e as tropas que marchavam em perfeita ordem! «Basta uma palavra minha, um só gesto da minha mão, e esta antiga capital dos czares converter-se-á num monte de ruínas. Mas a minha clemência está sempre pronta a descer até aos vencidos. Devo ser magnânimo e verdadeiramente grande... Não! Será possível que eu esteja em Moscovo?», interrogava-se, de súbito. «Mas a verdade é que ela aqui está, deitada a meus pés, com as suas cúpulas douradas e as suas cruzes cintilando à luz do Sol. Saberei poupá-la. Na fachada destes antigos monumentos, símbolo da barbaria e do despotismo, mandarei escrever grandiosas palavras inspiradoras de justiça e misericórdia — Tenho a certeza de que Alexandre o há-de apreciar acima de todas as coisas...» Afigurava-se-lhe que tudo aquilo era resultado da rivalidade pessoal entre ele e Alexandre. «Do alto do Kremlin — sim, aquilo é o Kremlin— ditar-lhes- ei leis justas, mostrar-lhes-ei a verdadeira civilização; as futuras gerações dos boiardos hão-de pronunciar amorosamente o nome do seu conquistador. Direi à delegação que me enviarem que não quis e não quero a guerra, que a que me v forçado a fazer visava a política mentirosa da sua corte, que amo e respeito Alexandre e que estou pronto a aceitar em Moscovo uma paz digna de mim e dos meus povos. Não quero aproveitar-me de uma guerra vergonhosa para humilhar o soberano a quem venero. ’Boiardos!’, dir-lhes-ei, ’não quero a guerra, quero a paze o bem-estar de todos os meus súbditos.’ Aliás, tenho a certeza de que a presença dessa gente me há-de inspirar e que lhes hei-de falar como sempre falo, com clareza, com solenidade e com grandeza. Mas será possível que eu esteja em Moscovo? Estou, Moscovo, ei-la ali.» — Tragam-me os boiardos! — exclamou, voltando-se para a comitiva. Um general, seguido de um séquito brilhante, partiu imediatamente a galope em busca dos boiardos. Duas horas decorreram. Napoleão almoçou e voltou para o mesmo local do monte Poklonaia a aguardar a delegação. O discurso que lhe dirigiria desenhava- se-lhe já claro na imaginação. Era um modelo de dignidade e grandeza de acordo com a concepção napoleónica. A magnanimidade desse discurso, que ele esperava agisse poderosamente sobre Moscovo, enchia-o de entusiasmo. Assentava já na data em que reconvocaria a reunião no palácio dos czares, reunião essa em que as altas personalidades russas deveriam encontrar-se com as da sua corte. E nomearia previamente um governador capaz de conquistar para ele, Bonaparte, a simpatia da população. Sabendo que Moscovo dispunha de grande número de instituições de caridade, estava decidido a cumulá-las de benesses. «Assim como, em África», pensava, «devemos envergar um albornoz para entrar numa mesquita, em Moscovo convém sermos generosos para com os czares.» E para definitivamente conquistar o coração dos Russos, como todo o bom francês, incapaz de conceber seja o que for de sentimental sem falar da minha querida, da minha terna, da minha pobre mãe, ei-lo que decide que na fachada de todas as instituições mandaria inscrever em grandes letras: — Estabelecimento dedicado à minha querida mãe. Ou, não, antes, simplesmente: Casa de minha mãe. «Mas estarei eu, realmente, em Moscovo?», repetia de si para consigo, mentalmente. «Sim, ei-la aqui diante de mim. Então porque leva a delegação tanto tempo a aparecer?» Entretanto, nas últimas fileiras da sua comitiva, generais e marechais discutiam a meia voz. Os que haviam sido enviados pela delegação tinham voltado e informavam que a cidade estava deserta, todos os seus habitantes a tinham abandonado. A palidez e a consternação estamparam-se em todos os rostos. Não era propriamente a notícia que os atemorizava, embora fosse de vulto, mas a maneira de a comunicarem ao imperador sem colocar Sua Majestade numa situação ridícula, para os Franceses a mais grave de todas, fazendo-lhe saber quedebalde aguardaria os boiardos e que em Moscovo apenas se viam bandos de bêbedos. Havia quem fosse de parecer que apesar de tudo devia arranjar-se uma delegação; outros, pelo contrário, sustentavam ser preciso, com todo o cuidado, e prudência, preparar o imperador e dizer-lhe a verdade. — É preciso dizer-lho, seja como for... — diziam. — Mas, meus senhores... A situação era tanto mais penosa quanto era certo o imperador, todo entregue aos seus sonhos de generosidade, andar de um lado para outro, pacientemente, diante do mapa da cidade, olhando de tempos a tempos para a estrada de Moscovo e sorrindo triunfante. — Mas é impossível... — diziam os membros da comitiva, encolhendo os ombros, sem se decidirem a pronunciar a palavra terrível — «ridículo» — Que cada um tinha nos lábios. Entretanto o imperador, cansado de esperar, e sentindo, graças ao seu instinto de actor, que o instante sublime tardava de mais, perdendo, portanto, a sua grandeza, acenou com a mão. Um tiro de peça deu o sinal e as tropas que cercavam a cidade por todos os lados marcharam em direcção a Tverskaia, através da Calçada de Kaluga, e romperam pela barreira de Dorogomilov. Em passo cada vez mais acelerado, adiantando-se uns aos outros, soldados de infantaria e cavalaria avançavam, levantando grandes nuvens de poeira e atroando os ares com os seus gritos ensurdecedores. Arrebatado pelo entusiasmo dos seus soldados, Napoleão chegou ao mesmo tempo do que eles à barreira de Dorogomilov. Uma vez aí, parou, apeando-se do cavalo, e por muito tempo aí ficou a passear junto da esplanada de Kamer- Koleskovo, sempre espera da delegação. [XX] Moscovo estava deserta, Embora lá se encontrassem alguns habitantes, a quinta parte, pouco mais ou menos, da sua população habitual, nem por isso estava menos deserta. Na colmeia o que falta a rainha, não há vida, embora a um olhar superficial continue tão animada como antes. Sob os ardentes raios de sol do meio-dia, as abelhas dessa colmeia zumbem emtorno dela como em torno das demais. Também aí se sente o cheiro a mel, e as abelhas entram e saem. Um pouco de atenção, porém, e compreender-se-á que nessa colmeia já não há vida. As abelhas não lhe zumbem em redor como em redor das colmeias vivas, e não têm nem o mesmo cheiro nem o mesmo zumbido. Quando se bate na parede de uma colmeia doente, em vez da resposta instantânea e unânime de dezenas de milhares de insectos que alçam, ameaçadores, o ferrão, agitando no ar as asas rápidas, apenas se ouvem zumbidos isolados em certos pontos da colmeia quase vazia. A entrada já se não aspira, como antes, o perfume alcoolizado e forte do mel e do veneno cios seus habitantes; já não sai lá de dentro o calor de um lugar habitado. Ao perfume adocicado de outros tempos junta-se agora um cheiro a podridão e abandono. Já não há guardas prontas a dar sinal de alarme e a morrer em defesa da colmeia. Já se não ouve esse som regular e tranquilo. índice de um trabalho activo, que faz lembrar o cachão da água a ferver, mas zumbidos irregulares e dispersos, indício de desordem. Entram e saem da colmeia, tímidas e astuciosas, salteadoras negras, de corpo alongado e coberto de mel. Desprovidas de ferrão, fogem quando as perseguem. Antigamente as obreiras chegavam com o seu quinhão e partiam sem nada; agora, pelo contrário, cada uma leva a sua parte. O apicultor abre a parte inferior da colmeia e examina o que se passa aí. Em vez das abelhas negras e gordas, entregues ao seu trabalho, pendendo em cacho até à parte inferior, fincadas umas nas outras pelas patas, e segregando cera num zumbido ininterrupto, abelhas sonolentas erram de um lado para o outro no fundo e nas paredes da colmeia. Em lugar de um pavimento bem fornido de cera vermelha e cuidadosamente varrido pelas asas dos habitantes, juncam o chão migalhas de cera, excrementos e abelhas semimortas, que agitam as patas molemente, ou estão mortas de todo. O apicultor abre agora a parte superior da colmeia e examina c, que lá vai dentro. Em vez dos intervalos das prateleiras bem calafetados, para que os insectos estejam aconchegados, vê um trabalho artístico, complicado e hábil, mas já não no seu estado virgem de outrora. Tudo está sujo e deserto. As abelhas salteadoras introduzem-se, rápidas e subtis, pelo meio das obreiras: estas, secas, encolhidas, murchas, como se fossem velhas, deslocam-se lentamente, sem impedir a pilhagem das salteadoras, sem nada quererem, sem gosto pela vida. Zângãos, larvas, borboletas, batem de encontro às paredes da colmeia. Aqui e ali, entre ostabuleiros com abelhas mortas e mel, ouve-se, de quando em quando, um zumbido irritado. Algures, duas abelhas, impelidas Pelo instinto e o antigo hábito, limpam o interior da colmeia e arrastam para o exterior, num esforço que excede o seu poder, cadáveres de abelhas mortas ou de zangãos, sem se darem conta do que estão a fazer. Noutro canto, duas velhas abelhas lutam Preguiçosamente ou lavam-se ou nutrem-se uma à outra, sem consciência de ser hostil ou amistosa a sua atitude. Noutro ponto ainda um grupo de abelhas, esmagando-se mutuamente, ataca uma vítima qualquer, e sufoca-a. E a vítima, impotente ou morta, cai lentamente, leve como uma pena, sobre o monte de cadáveres. O apicultor retira dois tabuleiros do meio para ver o ninho. No centro de milhares de abelhas que formam um círculo negro e apertado, costas com costas, ali colocadas para vigiar os altos mistérios da eclosão, vê agora apenas alguns centos de abelhas esqueléticas, tristíssimas, quase mortas e entorpecidas. Pela maior parte, estão efectivamente semimortas e Ignoram, na sentinela que fazem àquele santuário, que já não existe o que elas tinham de guardar. Despedem um fedor a podridão e a morte. Apenas algumas remexem ainda, esvoaçam e preguiçosamente vêm pousar na mão do inimigo, já sem forças para perder a vida picando-o. As outras, mortas, caem no fundo, leves, como escamas de peixe. O apicultor fecha a colmeia, marca-a a giz e na altura precisa quebra-a para queimá- la. Assim era Moscovo, enquanto Napoleão, inquieto, fatigado, carrancudo, andava de um lado para o outro na esplanada de Karner-Koleskovo, aguardando a chegada da delegação: cerimónia puramente convencional, mas que ele considerava indispensável. Nos diversos bairros de Moscovo apenas restavam algumas pessoas movendo- se sem saberem o que faziam, por simples hábito. Acabaram, com as precauções devidas, por comunicar a Napoleão que Moscovo estava vazia. O imperador fitou, colérico, aquele que lhe deu a notícia e continuou a andar de cá para lá em silêncio. — A minha carruagem! — ordenou por fim. E subindo para o carro, na companhia do ajudante-de-campo de serviço, dirigiu- se para os arrabaldes da cidade. «Moscovo deserta! Que acontecimento inverosímil!», dizia de si para consigo. Não chegou a entrar na cidade e deteve-se numa estalagem dos arrabaldes,em Dorogomilov. O golpe de teatro falhara. [XXI] As tropas russas tinham desfilado em Moscovo das duas horas da madrugada às duas horas da tarde, levando consigo os últimos habitantes e os últimos feridos. Durante o desfile das tropas a maior confusão se verificou nas pontes de Pedro, do Moskva e do Iauza. Enquanto as tropas se cindiam em duas partes para contornarem o Kremlin pelas pontes do Moskva e de Pedro, numerosos soldados, aproveitando a paragem e a precipitação, voltaram para trás. Passando sub-repticiamente pela porta Borovitski e pela Igreja do Bem— Aventurado Basílio, dirigiram-se à Praça Vermelha, onde pressentiam que lhes seria possível apoderarem-se facilmente dos bens alheios. Uma, multidão que fazia lembrar a de um dia de feira encheu todas as entradas e ruelas de Gostinii Dvor. Não se ouviam, porém, as vozes melífluas e falsamente acolhedoras dos feirantes e bufarinheiros. Não se via a turbamulta garrida dos habituais compradores. Por toda a parte eram fardas e capotes de soldados sem armas que entravam nas lojas de mãos vazias e delas saíam a abarrotar. Alguns comerciantes, poucos, com os seus empregados, atarefavam-se pelo meio dos militares, abrindo e fechando as lojas, tentando levar os seus artigos para sítio seguro. Na Praça de Gostinii Dvor rufavam tambores. Mas o som dos tambores já não reunia os militares, como antigamente. Pelo contrário, dispersava-os ainda mais. A mistura com os soldados viam-se nas lojas e ruelas homens de cafetã sujo e de cabeça rapada (Os malfeitores que tinham sido postos em liberdade. (N, dos T.). Dois oficiais, um montado num cavalicoque cinzento- escuro, uma faixa a tiracolo sobre a farda, e, outro, de capote e a pé, estacionavam, conversando, à esquina da Rua Ilinka, quando outro se acercou deles. — O general ordena que se corra imediatamente daqui com as praças custe o que custar. Isto não tem classificação! Metade dos homens debandou. — Aonde vais tu? Aonde vão vocês?... — gritou a três soldados de infantaria,que, sem armas, as abas dos capotes levantadas, se introduziam numa loja ali mesmo. — Agarrem-nos! Canalha! — Trate lá de os reunir! — comentou um dos oficiais. — Não há maneira de os juntar. É preciso irmo-nos daqui, quanto mais depressa melhor para que os que ainda restam não desapareçam também. Não há outra coisa a fazer! — E como havemos de avançar? Fizeram alto lá adiante, a ponte está atulhada e não há maneira de se sair daqui. O melhor era cerrar fileiras para impedir a fuga dos que ainda nos restam, — Pois trate disso! Corra com eles daqui! — gritou o comandante. O oficial da faixa desmontou do cavalo, chamou um tambor e, dirigiu-se com ele para as arcadas. Alguns grupos de soldados debandaram. Um comerciante, com as bochechas cobertas de borbulhas em volta do nariz, aproximou-se do oficial num passo rápido e um tanto amaneirado, gesticulando muito. Na sua expressão havia uma resolução serena e inabalável. — Excelência – disse — faça-nos a mercê de nos conceder a sua protecção. Não regateamos ninharias. Será para nos um grande prazer que queira escolher qualquer coisa. Aqui tem um bom pano. Mesmo duas peças, para um cavalheiro como o senhor, não faz mal. Nós compreendemos. Mas que vem a ser isto? É um saque. Peço-lhe, mande a guarda para aqui; ao menos que possamos fechar as lojas... Vários comerciantes se acercaram do oficial. — Ora, deixem-se de palavreado inútil! — disse um deles, magro, de expressão severa. — Quando nos cortam a cabeça, não vale a pena chorar a perda dos cabelos. Pois que levem o que quiserem. E fez com a mão um gesto enérgico, meio voltado para o lado do oficial. — Sim, sim, Ivan Sidoritch, para ti é, o mesmo — replicou o primeiro. — Queira vir por aqui, Excelência! — Que dizes? Eu sei o que digo — exclamou o magricela. — Aqui, nas minhas três lojas, tenho para cima de cem mil rublos de mercadoria. Quem vai guardar isto depois de as tropas partirem? A gente bem os conhece. Contra a vontade de Deus nada pode o braço do homem. — Por favor. Excelência. — repetia o primeiro comerciante, todo mesuras. O oficial continuava indeciso e a sua atitude traía irresolução. — E que tenho eu com isso? — exclamou, de súbito, dirigindo-se a passosrápidos para as arcadas. Numa das lojas cuja porta estava aberta ouviam-se socos e invectivas e, na altura em que o oficial se aproximava, saía lá de dentro, correndo, um homem de armiak (Trapo próprio dos cocheiros russos. (N, dos T.) sujo e cabeça rapada. Encolhendo-se, esgueirou-se por entre o oficial e os lojistas. Aquele lançou-se sobre os soldados que estavam dentro da loja. Nesse momento, contudo, ressoaram espantosos clamores da imensa multidão aglomerada na ponte do Moskva, e o oficial correu para a praça. — Que se passa? Que foi? — perguntou, mas o seu camarada já se precipitara para onde vinham os gritos, metendo ao longo da Igreja do Bem— Aventurado Basílio. O oficial montou a cavalo e seguiu-o. Ao chegar à ponte, viu duas peças retiradas das carretas, a infantaria em marcha, carroças voltadas, rostos esgazeados e soldados rindo a bandeiras despregadas. Junto das peças de artilharia estava uma carroça tirada por dois cavalos. Atrás das rodas da carroça, amarrados uns contra os outros, havia quatro galgos. Na carroça amontoavam-se muitos objectos e lá no alto, junto a uma cadeirinha de criança, de pés para o ar, sentava-se uma mulher, que soltava gritos agudos e desesperados. O oficial soube pelos seus camaradas que os gritos eram devidos ao facto de o general Ermolov, ao ter conhecimento de que os soldados se tinham dispersado pelas lojas e que os habitantes se acumulavam junto à ponte, mandar retirar as peças das carretas e gritar que ia mandar fazer fogo, para exemplo. Então a multidão derrubara as carroças e empurrando-se esmagando-se, em grandes gritos, acabara por desimpedir a ponte, podendo as tropas prosseguir na sua marcha. [XXII] No centro da cidade, porém, tudo estava deserto. Nas ruas não havia quase vivalma. As portas dos prédios e das lojas estavam fechadas. Aqui e ali, em volta das tabernas, ouviam-se gritos isolados ou cantorias de bêbedos. Ninguém circulava de carruagem, raramente de ouviram os passos de um peão. Na RuaPovarskaia, vazia, o sossego era completo. No imponente pátio do palácio dos Rostov, além de restos de palha e excrementos de cavalo, não se via mais nada nem ninguém. De resto, lá dentro, em casa, onde ficara todo o mobiliário, havia apenas duas pessoas, que estavam instaladas no salão nobre: o porteiro Ignate e o cossaco Michka, neto de Vassilitch, que ficara em Moscovo com o avô. Michka abrira o cravo e tocava só com um dedo. O porteiro, de mãos à cinta e sorriso nos lábios, mirava-se a um grande espelho. — Não é verdade que toco muito bem? Hem! Tio Ignate! — exclamou o rapaz, pondo-se, de súbito, a bater com as duas mãos em cima das teclas. — Não há dúvida! — replicou Ignate, maravilhado com a imagem que o espelho lhe reflectia, cada vez mais risonha. — Não tem vergonha! Sim, não tem vergonha nenhuma! — disse, por detrás deles, Mavra Kuzminitchna, penetrando na sala — sem fazer ruído. — Olhem como ele arreganha os dentes! Não servem para mais nada. Tudo está ainda por arranjar, e o Vassilitch não pode mais. Eu te direi! Depois de ajeitar o cinturão, Ignate, que deixara de sorrir, baixou os olhos e saiu da sala. — Tiazinha, só mais um bocadinho — suplicou o pequeno. — Deixa estar que eu te dou «mais um bocadinho», maroto! — exclamou Mavra Kuzminitchna, erguendo para ele a mão. — Trata de arranjar depressa o samovar para o teu avô. Mavra Kuzminitchna espanejou os móveis, fechou o cravo e, despedindo um fundo suspiro, saiu do salão, fechando a porta à chave. Quando chegou ao pátio, pôs-se a pensar no que deveria fazer: iria ao pavilhão tomar chá com Vissilitch, ou arranjaria na despensa o que ainda não estava em ordem? Passos apressados ressoaram no silêncio da rua detendo-se em frente da cancela do portão e o ferrolho rangeu impelido por uma mão que fazia força para abri-lo. Mavra Kuzminitcha dirigiu-se para a porta. — Que deseja? — O conde, o conde Ilia Andreitch Rostov. — E o senhor quem é? — Sou oficial. Precisava de falar com ele — replicou o desconhecido com oagradável timbre de voz de um senhor russo. Mavra Kuzminitchna abriu a porta. Um oficial dos seus dezoito anos, de rosto redondo, tipo dos Rostov, penetrou no pátio. — Paizinho, os senhores foram-se embora. Dignaram-se partir ontem à noite. — explicou Mavra Kuzminitchna, amavelmente. O jovem continuava à porta, indeciso, sem saber se devia ou não entrar. Deu um estalo com a língua. — Oh, que aborrecimento! — exclamou. — Devia, ter vindo ontem... Que pena! Entretanto a velha governanta examinava, com simpatia, atentamente, a fisionomia do desconhecido, em que havia muitos traços dos Rostov, o seu capote esfarrapado e as botas velhas que calçava. Que queria do conde? — inquiriu ela. — Agora... nada há a fazer! — volveu o oficial, desconsolado, e deu um passo para a porta. Mas deteve-se ainda indeciso. — É que... — explicou ele, de súbito. — Eu sou parente do conde e ele sempre foi muito bom para mim. E, como vê, o meu vestuário — acrescentou, mirando o capote e as botas, enquanto sorria cordialmente — está um tudo-nada usado e estou sem cinco réis. Queria por isso pedir ao conde... Mavra Kuzminitchna não o deixou concluir. — Quererá esperar um instante, Paizinho, só um instante? — disse ela. E enquanto o oficial soltava a mão do ferrolho, Mavra Kuzminitchna, com o seu passinho pressuroso de velha, encaminhou-se para o pavilhão. Entretanto, o oficial pôs-se a passear no pátio, de cabeça baixa e remirando as botas rotas. «Que maçada não encontrar o meu tio. Mas que simpática velha! Que teria ido fazer? Era bom que me dissesse que ruas devo eu seguir para apanhar o meu regimento, a esta hora lá para os lados da Rogojskaia.» Mavra Kuzminitchna surgiu daí a pouco no cunhal da casa, preocupada, mas decidida, trazendo na mão um tabaqueiro atado nas pontas. Depois de alguns passos em direcção ao desconhecido, desfez o nó do lenço, retirou de dentro uma nota de vinte rublos e precipitadamente meteu-a na mão do oficial. — Se Sua Excelência estivesse em casa. é claro que o receberia como seu parente, mas assim...Mavra Kuzminitchna parecia envergonhada e confusa; o oficial, porém, sem se fazer rogado, lentamente, pegou na nota e agradeceu a dádiva. — Se o conde estivesse em casa... — prosseguiu a velha, desculpando-se. — Que Jesus Cristo o acompanhe, paizinho. Que Deus e, proteja — acrescentou seguindo o oficial e fazendo-lhe uma reverência. O oficial dir-se-ia rindo para si mesmo e, abanando a cabeça, pôs-se a andar em passo acelerado, ao encontro do seu regimento, ao longo das ruas desertas, direito à ponte do Iauza. Mavra Kuzminitchna, os olhos cheios de lágrimas, por muito tempo ali ficou plantada atrás da porta fechada, pensativa, abanando a cabeça: o oficialzinho desconhecido despertara nela uma súbita onda de ternura e piedade maternal. [XXIII] Numa casa por acabar da Rua Varvarka, com uma taberna no rés-do-chão, ouviam-se gritos e canções de bêbedos. Numa divisão suja, sentados em redor de uma mesa, havia dez operários, Bêbedos, cobertos de suor, os olhos nublados, cantavam, abrindo muito a boca. Cada um entoava para seu lado, fazendo grandes esforços, sem entusiasmo, não, claro, porque isso lhes desse prazer, mas apenas para mostrarem que estavam bêbedos e que se divertiam. Só um deles, um rapagão louro, alto, de cafetã azul, estava de pé. Podia dizer-se que tinha uma bela cara, de nariz direito e fino, se não fossem os seus lábios cerrados, que remexiam sem cessar, e os olhos imóveis, turvos e sombrios. Dominava, pela estatura, todos os demais cantores e como que para dirigir o coro ia agitando por cima das cabeças, num movimento solene e desajeitado, um braço branco, nu até ao cotovelo, cujos dedos da mão separava de maneira pouco natural. A manga do casaco estava constantemente a descair-lhe para cima do braço, e ele, com a outra mão, voltava a arregaçá-la cuidadosamente, como se fosse da maior importância conservar desnudo o braço branco e musculoso que estava sempre a agitar. No meio daquela cantoria ouviu-se lá para o vestíbulo e alpendre a algazarra de uma altercação. O rapaz alto fez calar os cantores com um gesto da mão. — Basta! — gritou, numa voz de comando. — Há pancada, rapazes!E ei-lo que, de mangas arregaçadas, se precipita no alpendre. Os demais operários seguiram-lhe os passos. Aqueles bêbedos tinham trazido ao taberneiro nessa manhã, para lhe pagar o vinho que beberam, couros da fábrica em que trabalhavam. Os serralheiros da vizinhança, supondo a taberna assaltada, queriam entrar à força no estabelecimento. Eis porque no alpendre se chegara a vias de facto. O dono da taberna debatia-se com um deles, o qual, no momento em que os operários apareceram, tendo-se-lhe escapado das mãos, fora cair estatelado no passeio. Um seu companheiro atirou-se ao dono da taberna. O rapaz alto, das mangas arregaçadas, deu um soco no serralheiro, vociferando como um selvagem. — Rapazes! Estão a matar os nossos companheiros! Entretanto, o primeiro serralheiro, que se erguera do chão, ao passar a mão pela cara ensanguentada, principiou a gritar, numa voz lastimosa: -Ó da guarda! Mataram-me... Irmãos, mataram um homem! Irmãos! — Pai do Céu! Mataram um homem, mataram um homem! — esganiçou-se uma mulher que surgiu de uma porta vizinha. A multidão aglomerava-se em torno do serralheiro ensanguentado. — Não te basta roubares o povo até lhe arrancares a ultima camisa — vociferou alguém dirigindo-se ao taberneiro. — Agora ainda rios queres matar? Bandido! O rapagão, no alto da escada do alpendre, olhos nublados, ora fitava o taberneiro ora os serralheiros, perguntando a si mesmo com qual deles iria bater- se. — Assassino! — de súbito, dirigindo-se ao taberneiro. — Amarrem-no, rapazes! — O quê? A mim, amarrarem-me a mim? — exclamou este, libertando-se dos agressores, e, tirando o boné, arremessou-o ao chão. Dir-se-ia que este gesto encerrava uma misteriosa ameaça. Os operários, que caíam sobre ele, detiveram-se, indecisos. — Irmão, eu conheço muito bem as leis e sou pela ordem. Vou queixar-me à polícia, Hem! Julgas que não vou? A ninguém é permitido, no dia de hoje, assaltar a casa alheia, percebe? — acrescentou, apanhando o boné do chão. — Pois vamos a isso! Que julgas tu? Vamos a isso! — repetiram por sua vez oserralheiro e o rapaz alto, chefe dos operários. E ambos se meteram a caminho do posto da polícia. O serralheiro, com a cara coberta de sangue, seguia atrás deles. Operários e mirones acompanhavam-nos falando e gritando. A esquina da Rua Morosseika, diante de uma grande casa com tabuleta de sapateiro e as portadas das janelas todas fechadas, estavam uns vinte homens, de rosto triste, magros, de aspecto exausto, de camisões e cafetãs esfarrapados. — Que pague o que nos deve! — dizia um deles, mestre sapateiro, esquálido, de barba rala e sobrancelhas espessas. Sugou-nos o sangue e agora que nos amolemos! Foi-nos entretendo, entretendo, toda a semana, e agora, que não podemos mais, desandou. Ao ver o grupo que se aproximava calou-se e todos os seus companheiros se deram pressa em juntar-se as que, cheios de curiosidade, se aproximavam. — Aonde vão vocês? — É bem de ver, a polícia! — Olha lá, é verdade que os nossos não levaram a melhor? — Que estás tu para aí a dizer? Abre os ouvidos ao que se diz. Sucediam-se perguntas e respostas O taberneiro, aproveitando a confusão, esgueirou-se de novo para o estabelecimento. O rapaz alto, sem, dar sequer pelo desaparecimento do inimigo, sempre de mangas arregaçadas e grandes gestos, não se calava um só instante, atraindo a atenção de toda a gente. À volta dele é que as pessoas de preferência se comprimiam, esperando vê-lo tranquilizá-los a todos. — E ele a dar-lhe com a ordem, com a lei, mas isso não é com a gente, é com as autoridades! Não acham que tenho razão, povo ortodoxo? — declamava a gosto. — Julgará ele que as autoridades também se foram embora? Então como havíamos nós de passar sem autoridades? Era uma ladroeira pegada. — Tudo isso são tolices! — respondeu alguém do meio da turba. — Julgas que vão abandonar Moscovo? Meteram-te essa no bestunto e acreditaste. Soldados é o que há mais para aí. Não os deixarão entrar! Para isso aí estão as autoridades. Ouve o que este está a dizer — aconselhava, apontando para o rapaz alto, que perorava. Perto de Kitai-Gorod, outro pequeno grupo rodeava um homem de capote de lã, com um papel na mão.— Está a ler um ucasse! Estão a ler um ucasse — gritaram vozes, e toda a gente acorreu a ouvir o pregoeiro. O homem de capote de lã lia a proclamação de 31 de Agosto. Ao ver-se rodeado por tanta gente pareceu perturbado, mas, a instâncias do operário que se havia aproximado dele, retomou a leitura com um ligeiro tremor na voz. «Amanhã de madrugada irei encontrar-me com o príncipe Sereníssimo». «Sereníssimo!», repetiu o folgazão, com solenidade, sorrindo, de sobrancelhas carregadas... «Para discutir com ele, agir e ajudar as nossas tropas a aniquilar esses bandidos. Havemos de os fazer passar um mau bocado...» O pregoeiro calou-se. «Assim mesmo!», gritou o rapazola triunfante. «Isso é que vai ser uma lição...» «E acabaremos com a raça desses intrusos. Voltarei à hora de jantar e então mãos à obra: entraremos em acção, acabaremos o que está principiado e não mais se ouvirá falar nesses bandidos.» O pregoeiro leu estas últimas palavras no meio de um profundo silêncio. O rapaz alto deixou descair a cabeça, acabrunhado. Evidentemente o remate da proclamação a ninguém agradava. Sobretudo as palavras «Voltarei à hora de jantar» é que embaraçavam tanto o pregoeiro como os ouvintes. A excitação do povo atingira tal calor que semelhante banalidade naquele momento não podia deixar de parecer prosaica e inadmissível. Toda a gente se teria sabido exprimir assim e um ucasse emanado das mais altas autoridades tinha obrigação de ser concebido noutros termos. Toda a gente permanecia silenciosa, de cabeça baixa. O rapaz alto andava de um lado para o outro como que falando sozinho. «Era preciso perguntar-lhe a ele?... Olhem, aí está ele!... Claro, vamos perguntar-lhe!... Que julgam? Sim, ele explicar-nos-á...», disseram, de súbito, várias vozes lá das últimas filas do público, e todas as atenções se volveram para a carruagem do chefe da polícia, o qual acabava de chegar à praça acompanhado de dois dragões a cavalo. O chefe da polícia, por ordem do conde, fora lançar fogo às embarcações, e com isso ganhar uma boa maquia, que trazia consigo nas algibeiras. Ao ver aquela gente caminhar para ele gritou ao cocheiro que parasse. — Que vem a ser isto? — inquiriu dos homens que um por um, timidamente, se aproximavam da carruagem.— Que vem a ser isto? Que gente é esta? — repetiu, ao ver que lhe não respondiam. — Excelência... — disse o homem do capote de lã. — Excelência, de acordo com os desejos de Sua Excelência o Conde, estes homens querem cumprir o seu dever sem poupar as suas vidas e não se trata de uma revolta, como se disse da parte de Sua Excelência... — O conde não se foi embora, ainda aí está. Recebereis as suas instruções — disse o chefe da polícia. — Vamos embora! acrescentou, para o cocheiro. A multidão juntara-se em volta dos que tinham ouvido a palavra do representante do Poder e via a carruagem afastar-se. O chefe da polícia voltou-se assustado para onde a multidão acorria e disse qualquer coisa ao cocheiro. Os cavalos partiram à desfilada. «Estão a comer-nos as papas na cabeça, rapazes! Vamos a casa do conde! Não o deixaremos escapar, rapaziada! Tem de nos prestar contas. Alto! Alto!», gritaram várias vozes, e a multidão precipitou-se, correndo, atrás da carruagem que se afastava. Na peugada do chefe da polícia, o povo, em grande alarido, dirigiu-se para a Rua Lubianka. «Os fidalgos e os comerciantes puseram-se a andar e nós, nós que arrebentemos para aqui! Seremos cães, porventura?», gritava a multidão. [XXIV] No dia 1º de Setembro, pela noite, depois da sua entrevista com Kutuzov, o conde Rostoptchine regressou a Moscovo magoado e triste; não o tinham ouvido na reunião do conselho de guerra. Kutuzov não prestara a mais pequena atenção à sua proposta no sentido de se defender a capital. Surpreendera-o muito a nova teoria adoptada pelo estado- maior segundo a qual o sossego da cidade e os sentimentos patrióticos dos seus habitantes eram não só coisas secundárias, mas desprezíveis e sem qualquer alcance. Depois da ceia estendeu-se, vestido como estava, em cima de um canapé. À uma hora da madrugada foi acordado por um correio que lhe trazia uma cartade Kutuzov. Pedia-lhe este, visto as tropas baterem em retirada pela estrada de Riazan, para além de Moscovo, que enviasse polícias proteger a sua passagem através da cidade. Não era novidade para Rostoptchine. Pressentira aquilo mesmo muito antes da sua entrevista da véspera com o general-chefe, no monte Polclonaia, no dia seguinte ao da batalha de Borodino, visto ter ouvido os generais chegados a Moscovo declararem unanimemente ser impossível travar uma batalha, e todos os dias, com o seu consentimento, saírem de Moscovo, com destino a lugar seguro, os bens da coroa e metade dos habitantes da capital já terem abalado. Mesmo assim, aquela ordem de Kutuzov, expedida como uma simples nota e recebida durante a noite, quando ele dormia o seu primeiro sono, surpreendeu-o e irritou-o extraordinariamente. Mais tarde, quando quis explicar o que fizera naquele momento, repetiu, várias vezes, nas suas Memórias, que tivera então como objectivo principal «manter a tranquilidade em Moscovo e evacuar os habitantes!» Se fizermos fé nas suas palavras, tudo quanto fez foi irrepreensível. Porque não tinham levado, então, da cidade os tesouros moscovitas, as armas, os cartuchos, a pólvora, as reservas de trigo? Porque foram enganados milhares de habitantes com a afirmação de que a cidade não capitularia, o que fez que ficassem arruinados? Para que a tranquilidade fosse mantida, explica Restoptchine. Mas porque se evacuaram, então, montes e montes de papéis inúteis das repartições? Porquê o balão de Leppich e tantas outras coisas? Para que a cidade ficasse vazia, replica ele ainda. Basta a tranquilidade pública estar ameaçada para tudo se justificar. Também as chacinas do Terror só tiveram em vista a tranquilidade pública. Em que se baseava então o conde Rostoptchine para temer que a tranquilidade pública, em 1812, viesse a ser perturbada em Moscovo? Nem em Moscovo nem em qualquer outra parte da Rússia, aquando da chegada do inimigo, se passou fosse o que fosse parecido com uma rebelião. A 1 e 2 de Setembro ainda havia na capital mais de dez mil pessoas e além do ajuntamento no pátio da residência do governador, por ele próprio provocado, nenhum outro incidente ocorreu. Evidentemente que ainda se teria receado menos qualquer efervescência popular se depois de Borodino, quando o abandono de Moscovo se tornou coisa certa ou pelo menos verosímil, em vez de se haver exaltado o povo com a distribuição de armas ou a afixação de proclamações, Rostoptchine houvesse tomado as medidas necessárias para retirar as coisaspreciosas, a pólvora, as munições e o dinheiro, e houvesse declarado francamente ao povo que a cidade ia ser abandonada. Rostoptchine, homem impulsivo e sanguíneo, como vivera sempre nas altas esferas administrativas, apesar de todo o seu patriotismo, não fazia a mínima ideia de como era o povo que julgava governar. Depois da entrada dos Franceses em Smolensk, imaginara desempenhar o papel de guia do sentimento nacional no «coração da Rússia». Julgava ele, como todo o bom administrador, ser obrigação sua não só presidir à vida material dos habitantes de Moscovo, mas também guiar-lhes a disposição moral através de proclamações e de editais redigidos nesse estilo corriqueiro de que a massa popular, no seu próprio meio, não faz o mais pequeno caso, e que deixa de compreender sempre que o ouve na boca de personagens das classes elevadas. Este lindo papel de guia da moral popular agradava-lhe tanto, tão bem se lhe adaptara, que a necessidade de abandonar Moscovo sem realizar qualquer acto heróico o havia apanhado desprevenido. De súbito notou que o terreno que pisava lhe resvalava debaixo dos Pés. E decididamente não soube que fazer. Embora o pressentisse, recusou-se sinceramente até ao último minuto a acreditar no abandono da capital e nada fez na previsão de semelhante eventualidade. Se os habitantes se retiraram, foi contra a sua vontade. Se mandara transferir as repartições públicas, é que tinham sido os funcionários a pedir-lho, e só com relutância dera autorização para tal. Por si nunca pensara noutra coisa senão em desempenhar o papel que a si próprio atribuíra. Como é frequente nas pessoas de imaginação viva, de há muito sabia que Moscovo seria abandonada, mas só a razão lho dizia; no fundo do coração não acreditava. A imaginação não o acompanhava nesse novo domínio dos factos. Todos os seus esforços, realmente eficazes e enérgicos — e não se cura aqui de saber até que ponto foi útil e qual a influência que exerceu no povo —, apenas serviram para excitar nos habitantes sentimentos que ele próprio experimentava: o ódio patriótico contra os Franceses e a confiança em si mesmo. Mas quando os acontecimentos ganharam proporções históricas, quando se tornou insuficiente exprimir apenas por palavras o ódio contra o inimigo, quando não foi possível proclamá-lo mesmo no campo de batalha, quando a autoconfiança se tornou inoperante para salvar Moscovo, quando toda a população, como um só homem, abandonando o que era seu, correu em torrentes para fora da cidade, mostrando, com este acto negativo, o prestígio do sentimento nacional, o papelque Rostoptchine escolhera perdeu subitamente todo o sentido. Viu-se, de chofre, fraco e ridículo, sem terra firme debaixo dos pés. Ao receber a nota fria e autoritária de Kutuzov sentiu-se tanto mais irritado quanto era certo reconhecer-se culpado. O que lhe fora confiado, os bens do tesouro, que ele devia ter retirado, ficava em Moscovo. E agora era impossível levar dali fosse o que fosse. «Quem tem a culpa disto?», dizia ele de si para consigo. «Eu não, com certeza. Tinha tudo preparado, mantive Moscovo, e não é pouco. E aqui está onde eles nos levaram! Miseráveis! Trai— dores!» Não lhe teria sido fácil determinar que eram esses traidores, esses miseráveis, mas sentia-se impelido, por necessidade, a odiar esses traidores que o haviam colocado na situação falsa ridícula em que se encontrava. Durante toda a noite emitiu ordens que junto dele vinham receber de todos os pontos de Moscovo. Os da sua roda nunca o tinham visto tão taciturno e furioso. «Excelência, vieram receber ordens da parte do director do Património... da parte do Consistório, do Senado, da Universidade, do asilo das crianças abandonadas. O ecónomo mandou saber... Pede... Que ordens se devem transmitir à corporação dos bombeiros? Estão aí da parte do director da cadeia... Da parte do director do manicómio...» Não lhe largaram a porta durante toda a santa noite. A todos dava respostas rápidas e graves, dizendo que as suas ordens doravante eram inúteis, que a obra que preparara com todo o cuidado fora malograda por terceiros, responsáveis dos acontecimentos que sobreviessem. — Diz a esse imbecil — respondeu ao pedido da Repartição do Património — que fique de sentinela aos seus documentos. E, tu, que tolice me estás tu a pedir a propósito dos bombeiros? Se têm cavalos, vão para Vladimir. Não os vão deixar aos Franceses. — Excelência, está ali o director do manicómio. Que devo dizer-lhe? — Que deves dizer-lhe? Que se vão todos, nada mais simples... E, quanto aos doidos, que os solte na cidade. Já que quem comanda o exército é doido, ficarão no seu devido lugar. Quando lhe perguntaram qual o destino a dar aos presos da cadeia, gritou, furioso, para o director: — Que quer que eu faça? Que lhe dê dois batalhões, que não temos, para os escoltar? Solte-os, é bem de ver!— Excelência, há presos políticos: Miechkov, Verechtchaguine. — Verechtchaguine! Ainda o não enforcaram?! — exclamou. — Tragam-no. [XXV] Depois das nove da manhã, hora em que as tropas principiaram a atravessar Moscovo, ninguém mais veio pedir instruções ao conde. Todos que tinham tido oportunidade de retirar haviam abalado espontaneamente; os que tinham ficado, esses, só a si próprios haviam pedido conselho. Rostoptchine mandara atrelar a sua carruagem para ir para Sokolniki, e ali estava, no seu gabinete sombrio, amarelento e calado, os braços cruzados. Em tempo de paz, todo o governante julga sempre que dele depende toda a população confiada ao seu cuidado e, supondo-se indispensável, vê nisso a principal recompensa dos seus trabalhos e dos seus esforços. Enquanto o mar da história está sereno. é lógico que o governante-piloto que na sua ligeira embarcação manobra o leme do navio de grande calado que é o Estado julgue ser ele quem o faz mover. Mas assim que se levanta uma tempestade, logo que o mar se encapela e o navio é levado pela corrente, então a ilusão acaba. O navio prossegue na sua rota, independente e majestoso, e o leme do piloto já para nada serve. Esse homem, momentos antes todo-poderoso, centro de todas as energias, não passa então de um ser fraco, inútil e nulo. Eis do que Rostoptchine se dava conta e era isso que o exasperava. O chefe da polícia, aquele mesmo que fora detido pela turba, apresentou-se ao conde, acompanhado do ajudante-de-campo que vinha anunciar estarem prontos os cavalos. Ambos tinliam perdido a cor, e o chefe da polícia, ao dar contas da sua missão, anunciou que uma turba imensa invadira o pátio do palácio e queria ver o governador. Rostoptchine, sem proferir palavra, levantou-se e, em passos rápidos, dirigiu-se para a varanda, deitando a mão ao fecho da janela. Depois desistiu de a abrir e aproximou-se de outra janela donde se via melhor o ajuntamento. Na primeira fila lá estava o operário alto, que continuava a perorar, muito grave, gesticulando. A seu lado via-se o serralheiro, taciturno, de cara ensanguentada. Pelas janelasabertas penetrava o rumor das vozes. — Está pronta a carruagem? — perguntou Rostoptchine, afastando-se da janela. — Saiba, Vossa Excelência que sim — disse o ajudante-de-campo. E Rostoptchine aproximou-se outra vez da janela. — Que querem eles? — inquiriu do chefe da polícia. — Excelência, dizem que estão na disposição de marchar contra os Franceses, de acordo com as ordens de Vossa Excelência. Dizem que foram atraiçoados. São uns desordeiros, Excelência. Custou ver-me livre deles. Excelência, tomo a liberdade de lhe propor... — Pode, retirar-se, sei muito bem o que tenho a fazer — exclamou Rostoptchine, furioso. Pôs-se por detrás das portas da varanda a observar a multidão, «Eis aqui o que fizeram da Rússia! Aqui está como me tratam», dizia de si para consigo, sentindo que lhe subia, do fundo da alma uma ira incontida contra aqueles a quem devia saber a responsabilidade de tudo que estava a acontecer. Como costuma suceder muitas vezes com os homens impulsivos, o conde não podia dominar a cólera que o tomava, embora procurasse ainda sobre quem lançá-la. «Lá está ela, a populaça, a ralé, a plebe, que eles sublevaram pela sua estupidez. Precisam de uma vítima«, pensava ele, olhando para o operário que fazia, grandes gestos. E ao mesmo tempo ocorreu-lhe que também ele precí-av2 de uma vítima, fosse quem fosse, sobre quem descarregar aquela ira. — Está pronta a minha carruagem? — repetiu. — Saiba Vossa Excelência que sim. Que ordena a respeito de Verechtchaguine? Está ali no alpendre à espera — disse o ajudante-de-campo. — Ah! — exclamou Rostoptchine, como se tivesse uma ideia súbita. E, abrindo bruscamente a janela, caminhou resoluto varanda fora. O burburinho cessou repentinamente, as cabeças descobriram-se e, todos os olhos se dirigiram para o conde. — Bons dias, rapazes! — disse, rápido, e em voz alta. — Obrigado por terdes vindo. Vou já ao vosso encontro, mas antes temos de regular as nossas contas com um malfeitor. Temos de castigar o bandido que foi o culpado da perda de Moscovo. Esperem! O conde entrou rapidamente nos seus aposentos, batendo com janela. Um murmúrio de satisfação percorreu a turba. «Vais ver como ele dá conta detodos esses bandidos. E tu a dizeres que eram uns franceses... Vai metê-los todos na ordem!», dizia aquela gente, como se se acusassem uns aos outros de falta de fé. Alguns minutos depois um oficial apareceu, bruscamente, à porta, principal, deu uma ordem qualquer, e os dragões puseram-se em marcha. A multidão acorreu, ávida, para o lado do alpendre. Nesse momento chegava Rostoptchine, em passo rápido, e, iracundo, pôs-se a olhar à sua roda, como se procurasse alguém. — Onde está ele? — interrogou. Enquanto pronunciava estas palavras, viu surgir, do cunhal do edifício, entre dois dragões, um homem novo, de pescoço comprido e fino, a cabeça, meio tosqueada, os cabelos hirsutos. Vestia uma velha peliça de raposa, por certo elegante outrora, mas agora forrada de pano azul, e umas calças de penitenciário, sujas, de linho, metidas nos canos de umas botas finas, por engraxar, e todas esbeiçadas. Das pernas delgadas e débeis pendiam pesadas correntes, que lhe embaraçavam o andar titubeante. — Ah! — exclamou Rostoptchine, afastando o olhar do rapaz e pousando a vista no último degrau da escada do alpendre. — Tragam-no aqui! O preso, arrastando as correntes, foi colocar-se, pesadamente, no local designado, metendo o dedo na gola da peliça, que o estava a afogar. Em seguida, depois de retorcer duas ou três vezes o longo pescoço, despedindo um suspiro, cruzou sobre o peito, resignadamente, umas mãos finas que nada tinham das de um operário. Enquanto esta curta cena se desenrolava, o silêncio era absoluto, excepto rias últimas filas da turba, que se comprimia para —, aproximar, e aí ouviam-se tosses, lamentos, arrastar de pés e encontrões. Rostoptchine, que aguardava que o homem fosse posto em evidência, passou a mão pela cara. — Rapazes! — disse, numa voz metálica. — Este homem, Verechtchaguine, é o miserável culpado da perda de Moscovo. O moço conservava-se na sua humilde atitude, de mãos cruzadas e o busto ligeiramente inclinado. A cara, desfigurada pela cabeça rapada, os traços arrepanhados de desespero, pendia-lhe para o chão. Ao ouvir as primeiras palavras do conde endireitou-se, lentamente, e ergueuos olhos para ele, como se quisesse dizer qualquer coisa ou pelo menos encontrar o seu olhar. Mas Rostoptchine não olhava para ele. Então, no longo e delicado pescoço do acusado, uma veia dilatou-se como se fosse uma corda, fez-se-lhe muito azul ao pé da orelha e de repente toda a cara se lhe afogueou. Todos os olhares estavam fitos nele. Olhou para a multidão e, como que encorajado pela expressão que surpreendeu em todos os rostos, sorriu, triste e timidamente, e, baixando de novo a cabeça, procurou equilibrar-se melhor no degrau do alpendre, — Atraiçoou o seu czar e a Pátria, vendeu-se a Bonaparte, de todos nós foi o único que desonrou o nome russo e é por causa dele que Moscovo está perdida — disse Rostoptchine, numa voz brusca e uniforme. E, de súbito, baixou os olhos para a vítima, que continuava na sua humilde postura. Como se aquela presença o fizesse perder a cabeça, levantou o braço e gritou quase, voltando-se para a multidão: — Entrego-o nas vossas mãos. Justiça seja feita! O povo continuava calado, comprimindo-se cada vez mais. No meio daquela massa compacta o ar, viciado, tornava-se irrespirável. Era impossível fazer qualquer movimento e toda a gente se sentia opressa pela expectativa de um acontecimento desconhecido, incompreensível e terrível, Os que estavam nas primeiras filas, que viam e ouviam tudo, permaneciam imóveis, de olhos esbugalhados e a boca abe-ta, aguentando, com todas as suas forças, a pressão que vinha da retaguarda. — Matem-no!... Que morra esse traidor e não desonre mais o nome russo! — gritou Rostoptchine. — Acutilem-no! Sou eu quem manda. A multidão, sem apreender o sentido das palavras, mas arrastada pelo tom colérico do governador, soltou como que um gemido, avançou um pouco e voltou a recuar. — Conde... — articulou Verechtchaguine, aproveitando aquela breve acalmia, numa voz tímida, mas ao mesmo tempo teatral. Conde, só Deus é juiz... — Ergueu a cabeça ao pronunciar estas palavras, e a grossa veia, visível no seu delicado pescoço, injectou-se-lhe de sangue. O rosto coloriu-se-lhe de repente para no mesmo momento perder a cor. Não pôde concluir o que queria dizer. — Acutilem-no! Ordeno!... — vociferou Rostoptchine, de repente tão pálido como Verechtchaguine.— Desembainhar espadas! — gritou o oficial aos dragões, ao mesmo tempo que desembainhava a sua. Outro impulso, ainda mais forte do que o primeiro, agitou a multidão, e, embatendo contra os da primeira fila, precipitou-os para a frente, empurrando-os até aos degraus do alpendre, O moço operário, cujo rosto dir-se-ia petrificado, o braço sempre erguido, achou-se ao lado de Rostoptchine. — Acutilem-no! — ordenou o oficial numa voz quase indistinta. Um dos soldados, a máscara transtornada pela ira, deixou cair a lâmina da espada na cabeça de Verechtchaguine. — Ah! — gemeu o desgraçado, surpreendido com o súbito golpe, os olhos dilatados de espanto, sem compreender o que estava a passar-se. Um gemido de surpresa e horror, igual ao de Vereclitchaguine, percorreu a multidão: — Oh!, meu Deus! — exclamou alguém. Desditosamente, a vítima, depois da exclamação de surpresa, soltou um grito de dor, e foi esse grito que a perdeu. De súbito quebrou-se o freio da compaixão humana que se mantivera tenso até ao último grau, contendo a turba. O crime principiara e tinha de ir até ao fim. Um urro terrível e furioso abafou o gemido do desgraçado. Uma vaga, a sétima e derradeira vaga que submerge um navio, cresceu das últimas filas, derrubou as da vanguarda e arrasou tudo. O dragão que dera a espadeirada quis vibrar-lhe outro golpe, mas Verechtchaguine, com um grito de horror, procurando proteger- se com as mãos, atirou-se sobre a populaça. Tropeçou de encontro ao rapaz alto, que o agarrou pela gola, enterrando-lhe as unhas no pescoço, enquanto despedia um grito selvagem, e os dois rolaram aos pés da turba, que se lançou sobre eles. Uns agrediam Vereclitchaguine, outros o agressor. Os gritos dos que se sentiam esmagados e daqueles que procuravam salvar o rapaz alto caído por terra ainda exasperavam mais o furor da multidão. Por muito tempo não puderam os dragões libertar o operário coberto de sangue e semimorto, e os homens que queriam dar por finda a obra principiada, os que espancavam, acutilavam, afogavam, trucidavam Verechtchaguine, esses, não conseguiam acabar a sua vítima. A multidão comprimia-os de todos os lados. Apanhados no meio da turba, ora eram arrastados para a direita ora para a esquerda, sem poderem vibrar-lhe o golpe de misericórdia nem tão-pouco o poderem abandonar. «Um machado para acabar com ele! — Afogaram-no?... Traidor! VendeuCristo!... E ainda está vivo... Tem sete fôlegos!... Tem o que merece, ladrão!... Uma machadada! Ainda está vivo?» Só quando a vítima deixou de se debater e aos gritos sucedeu um estertor prolongado a turba começou a abrir alas diante do cadáver estendido no chão, coberto de sangue. Todos se aproximavam, e ao verem o que tinham feito afastavam-se ao mesmo tempo horrorizados e estupefactos. «Oh! Meu Deus! Que animal feroz é o povo! Como havia ele de escapar?», diziam uns. «Tão novo!... Naturalmente era filho de um comerciante. Ah!, o povo... Dizem que não foi ele... Sim, não era ele o culpado... Oh, meu Deus! Parece que não foi ele que mataram. Dizem que ainda está vivo... Ah! Que mundo!... Não temem o castigo», comentavam os mesmos, olhando, com uma expressão repassada de piedade, o cadáver de rosto azulado, coberto de sangue e de pó, com o longo pescoço todo retalhado. Um polícia zeloso, julgando não ser decente deixar aquele corpo no pátio de Sua Excelência, deu ordem aos dragões para o arrastarem para a rua. Dois soldados pegaram nas pernas partidas e puxaram o corpo. A cabeça rapada da vítima, sangrando, mascarrada de poeira, o longo pescoço tombado, levada de rastos, pulava pelo chão. A turba afastava-se do cadáver. Na altura em que Vereclitchaguine caíra ao chão e todos em cima dele, Rostoptchine, que empalidecera de repente, em lugar de se encaminhar para a escada de serviço, onde o aguardavam os seus cavalos, sem que ele próprio soubesse porquê, de cabeça baixa e precipitadamente, dirigiu-se, ao longo do corredor, para as habitações do rés-do-chão. Lívido, a maxila inferior tremia-lhe nervosamente, como se um febrão o sacudisse. — Excelência, por aqui... Onde vai?... Por aqui, se faz favor — disse uma voz trémula e assustada. Não estava em condições de poder responder, e, dando meia volta, docilmente, tomou o caminho que lhe indicavam. Diante da escada de serviço estacionava a sege. O ulular distante da multidão ouvia-se ali. Rostoptchine deu-se pressa em subir para, a carruagem, mandando seguir para a sua vivenda de Sokolniki. Ao chegar à Rua Miasnitskaia, como já não ouvisse o clamor, lamentou ter deixado transparecer fraqueza. Contrariava-o a ideia de que os subordinadostivessem sido testemunhas da emoção e do susto que tivera. «A populaça é terrível, é repulsiva», dizia de si para consigo. «São como os lobos, que só com carne se saciam.» «Conde, só Deus é juiz!» De súbito ressoaram-lhe ao ouvido estas palavras de Verechtchaguine, e um arrepio de gelo lhe arrepanhou a espinha. Foi momentânea, porém, esta impressão. Logo teve um sorriso de desdém. «Eu tinha outros deveres a cumprir», disse com os seus botões. «Era preciso apaziguar o povo. Muitas outras vítimas morreram e morrerão pelo bem público.» E pôs-se a pensar nas suas obrigações para com a família, para com a capital que lhe havia sido confiada e para consigo próprio, não para com Fedor Vassilievitch Rostoptchine, o qual, pensava, devia ser sacrificado ao bem público, mas para com o governador da cidade, o representante do Poder, o delegado do czar. «Se eu fosse apenas um Fedor Vassilievitch qualquer, a minha linha de conduta seria outra, mas eu tinha de salvaguardar a vida e a dignidade do governador.» Embalado suavemente pelas molas da carruagem e não ouvindo já os gritos medonhos da multidão, sentia uma grande tranquilidade física, e como sempre acontece, ao mesmo tempo que sossegava fisicamente, o espírito ia-lhe proporcionando argumentos conducentes à tranquilidade da alma. Esses argumentos nada tinham de novo. Desde que o mundo é mundo e os homens se matam uns aos outros, que ninguém cometeu qualquer crime para com o semelhante sem tratar de apaziguar a consciência apelando para aquilo a que se chama o bem público, aquilo que se supõe o bem dos outros. Aos olhos do homem a quem a paixão não cega, tal bem não é coisa tão clara, mas aquele que acaba de cometer um crime, esse, sabe sempre em que ele consiste. Rostoptchine estava nessas condições. Não só não se acusava do acto que cometera, como, nos seus raciocínios, esse acto lhe proporcionava motivos de satisfação por ter sabido agir como devia, por ter punido um criminoso ao mesmo tempo que aplacava a população. «Verechtchaguine fora julgado e condenado à morte», raciocinava ele, «embora o Senado apenas o houvesse condenado a trabalhos forçados. Era um velhaco e um traidor. Eu não podia deixá-lo impune e desta sorte mato dois coelhos de uma cajadada; dei uma vítima ao povo, para o acalmar, e puni um criminoso.» Chegado que foi à sua casa de campo, e depois de ter dado as ordensnecessárias para a instalação, tranquilizou-se por completo. Meia hora mais tarde atravessava ele, ao trote de fogosos cavalos, os campos de Sokolniki, esquecido de todo do que se passara, o futuro aberto diante de si. Dirigia-se à ponte de Iauza. Onde estava Kutuzov, como lhe tinham dito. Preparava, mentalmente, as amargas e acerbas censuras que iria dirigir ao Sereníssimo por virtude da sua deslealdade. Faria compreender àquela raposa da corte que a responsabilidade de todas as desgraças causadoras do abandono da capital e do que ele entendia a perda do país se devia inteiramente à sua relha cabeça de velho maluco. Pensando no que lhe iria dizer, mexia-se e remexia-se sobre as almofadas da carruagem, ao mesmo tempo que relanceava olhares furibundos à esquerda e à direita. Os campos de Sokolniki estavam desertos. Apenas lá longe, junto do hospital e do manicómio, se viam pessoas vestidas de branco e alguns indivíduos isolados que pareciam seguir campos fora gesticulando e gritando. Um destes deitou a correr para cortar o passo à carruagem de Rostoptchine. Este, o cocheiro e os dragões da escolta olhavam, num misto de curiosidade e horror, aqueles loucos em liberdade, especialmente o que corria para eles. Cambaleando no alto das suas magras pernas, as abas do roupão a dar a dar, o louco corria a bom correr, sem apartar os olhos de Rostoptchine: gritava-lhe fosse o que fosse, em voz rouca, e gesticulava para que a carruagem parasse, A barba do louco eriçava-se aqui e ali em tufos irregulares e o seu rosto taciturno e grave era amarelo e descarnado. As pupilas, negras de azeviche, no meio da córnea amarelo— açafrão, erravam inquietas. «Alto! Alto! Não ouves?», gritava em voz estentórea e, retomando fôlego, o louco proferia ameaças, acompanhadas de grandes gestos. Alcançara a carruagem e corria ao lado dela. «Mataram-me três vezes, três vezes ressuscitei de entre os mortos. Lapidaram-me, crucificaram-me... Ressuscitarei... Ressuscitarei... Rasgaram-me o corpo. O reino de Deus cairá por terra... Por três vezes o destruirei e por três vezes o restaura— rei!», gritava numa voz cada vez mais aguda. Rostoptchine empalideceu subitamente como empalidecera no momento em que a turba se lançara sobre Verechtchaguine. Desviou o rosto. — Anda, depressa! — gritou para o cocheiro, em voz trémula. A carruagem rodou a toda a velocidade, mas por muito tempo ainda, lá para aretaguarda, ficaram a ouvir-se os gritos desesperados do louco, cada vez mais longe, e diante dos olhos de Rostoptchine levantava-se, solitário, o rosto ensanguentado do traidor, com a sua peliça de pele, cheio de espanto e de medo... Ainda que esta imagem fosse recente, ele sentia agora quão fundo ela lhe estava gravada no espírito. Percebia que aquele rasto de sangue não mais se lhe apagaria da memória. Antes, pelo contrário, se iria tornando mais e mais vivo, mais e mais cruel e doloroso, e que aquela tremenda recordação o iria perseguir até ao último dos seus dias. As suas palavras: «Entrego-o nas vossas mãos. Justiça seja feita!», ainda lhe ecoavam nos ouvidos. «Porque pronunciei eu estas palavras? Não prestei atenção ao que disse. Podia não as ter dito», pensava, «e então nada se teria passado do que se passou.» Revia o rosto, de princípio assustado, depois transfigurado de ira, do dragão que desferira o primeiro golpe e o olhar de silenciosa e humilde censura que lhe lançara o moço da peliça de raposa. «Mas não foi por mim que o fiz. Tinha de agir assim. A plebe, o traidor... o bem público...» As tropas continuavam a comprimir-se na ponte de Iauza. Fazia muito calor. Kutuzov, carrancudo e triste, sentado num banco junto da ponte, entretinha-se a riscar a areia com o pingalim quando uma sege se aproximou com grande fragor. Um homem fardado de general e de chapéu de plumas aproximou-se dele ao mesmo tempo iracundo e assustado e pronunciou algumas palavras em francês. Era o conde Rostoptchine. Disse-lhe que vinha procurá-lo, porque já não existiam nem Moscovo nem capital e agora apenas restava o exército. — Teria sido muito diferente, se Vossa Excelência não tivesse dito que não entregaria Moscovo sem combate. Nada disto tinha acontecido — acrescentou. Kutuzov olhava para Rostoptchine como se não compreendesse o significado das suas palavras, fazendo esforços para ler na fisionomia do interlocutor. Este, perturbado, calou-se. O general-chefe abanou ligeiramente a cabeça e, sem desviar do conde o olhar perscrutador, disse tranquilamente: — Não, não entregarei Moscovo sem combate. Pensaria Kutuzov noutra coisa ao pronunciar estas palavras ou tê-las-ia dito propositadamente, sabendo que não tinham o mais pequeno sentido? O certo é que Rostoptchine não respondeu e afastou-se precipitadamente. E, coisa estranha, o todo-poderoso governador de Moscovo, o orgulhoso Rostoptchine, pegou no pingalim, aproximou-se da ponte e em altos berros pôs-se a dispersar os carros quese aglomeravam aí. [XXVI] Às quatro horas da tarde, as tropas de Murat entraram em Moscovo. Na vanguarda marchava o destacamento dos hússares de Wurtemberg, e atrás, a cavalo, seguido de numerosa escolta, vinha o rei de Nápoles em pessoa. A meio da Rua Arbate, nas imediações da Igreja de S. Nicolau. Murat mandou fazer alto para aguardar notícias da vanguarda a respeito da situação da fortaleza conhecida pelo nome de «Kremlin». Em volta de Murat juntou-se um pequeno grupo de moscovitas que haviam ficado na capital. Todos contemplavam com tímida estupefacção esse general estrangeiro, de longa cabeleira, agaloado a ouro e cheio de plumas policromas. — Olha lá, será o rei deles? Não está mal! — ouvia-se dizer em voz baixa. Um intérprete aproximou-se do grupo. — Tirem o chapéu... tirem o chapéu — disseram uns para os outros. O intérprete dirigiu-se a um velho porteiro e perguntou-lhe se o Kremlin ainda ficava muito longe. Surpreendido e confuso ao ouvir o sotaque polaco do desconhecido e não percebendo ser russo o que ele falava, o porteiro, sem compreender a pergunta, escondeu-se atrás dos outros. Murat aproximou-se do intérprete e disse-lhe que perguntasse onde estavam as tropas russas, um dos russos presentes compreendeu a pergunta e várias vozes responderam ao mesmo tempo. Um oficial do destacamento da vanguarda apresentou-se então e explicou a Murat que as portas da fortaleza estavam fechadas e que naturalmente havia ali uma emboscada. — Está bem — disse Murat. E, voltando-se para uma das personagens da escolta, deu instruções para que quatro peças ligeiras fossem mandadas avançar e se disparasse contra as portas da fortaleza. Uma bateria destacou-se da coluna que vinha atrás e trotou Rua de Arbate além. Quando chegou ao cabo da Rua Vozdvijenka parou e tomou posições na praça. Vários oficiais franceses apontaram os canhões e puseram-se a observar oKremlin com os seus óculos de alcance. Os sinos do Kremlin tocaram a vésperas e o seu repique perturbou os Franceses. Julgaram um toque a rebate. Vários soldados de infantaria correram direitos à porta de Kutafiev, barricada com vigas e trancas. Dois tiros se ouviram no momento em que o oficial, com o seu destacamento, chegou junto da fortaleza. O general que estava junto das peças de artilharia gritou uma ordem e o oficial e os soldados retrocederam. Ouviram-se ainda mais três descargas por trás da barricada. Instantaneamente, nos rostos do general, do oficial e dos soldados, até aí alegres, urgiu a expressão voluntária e concentrada de homens prontos a lutar e a morrer. Todos eles, do marechal ao soldado raso, compreenderam que não tinham diante de si a Rua Vozdvijenka ou Mokovai, a porta Kutafiev ou da Trindade, mas um novo campo de batalha onde era preciso lutar e arriscar a pele. E todos se preparavam para a batalha. Os gritos atrás da porta haviam serenado. As peças foram apontadas. Os artilheiros acenderam as mechas. O oficial gritou «Fogo!» e dois silvos ressoaram um atrás do outro. A metralha foi incrustar-se na alvenaria da porta, nas vigas e nas trancas e duas nuvens de fumo se ergueram por cima da praça. Alguns momentos depois de ter ressoado o fragor da descarga, um ruído estranho se ouviu por cima da cabeça dos franceses. Um grande bando de corvos erguera-se das muralhas e ficara a esvoaçar no céu, crucitando e batendo as asas. Ao mesmo tempo um grito humano isolado ressoou por detrás da barricada e no meio do fumo apareceu a silhueta de um homem de cabeça descoberta e cafetã. De espingarda na mão, apontava a arma aos franceses. «Fogo», gritou pela segunda vez o oficial, e ao mesmo tempo ouviram-se um tiro de espingarda e duas detonações de artilharia. A porta voltou a desaparecer no meio da fumarada. Por detrás das trancas nada mais se mexeu e os soldados franceses com os seus oficiais aproximaram-se. Junto da porta, estendidos, estavam três feridos e quatro mortos. Dois homens de cafetã fugiam correndo ao longo das muralhas em direcção da Rua Znamenka. — Tirem isto — disse o oficial apontando para a barricada e para os cadáveres, e os franceses, depois de aplicarem aos feridos o golpe de morte, atiraram os corpos por cima do muro.Quem eram os defensores do Kremlin? Nunca ninguém o soube. «Tirem isto»: eis tudo quanto se disse deles, E levaram-nos dali apenas para que eles não empestassem o lugar. Só Thiers lhes consagrou algumas linhas eloquentes: «Esses miseráveis tinham invadido a cidadela sagrada, tinham-se apoderado das espingardas do arsenal e disparavam contra os franceses. Espadeiraram-se uns e purgou-se o Kremlin da sua presença.» Vieram anunciar a Murat que o caminho estava livre. Os Franceses franquearam as portas e começaram a instalar o acampamento na Praça do Senado. Para acenderem as fogueiras, os soldados subiram ao palácio e atiraram pelas janelas as cadeiras de que precisavam. Alguns destacamentos atravessaram igualmente o Kremlin e foram acantonar nas Ruas de Marosseika, Lubianka e Prokovka, outros ainda acamparam nas Ruas Vozdvijenka, Znamenka, Nikolska e Tverskaia. Em vez de se alojarem nas casas, como era costume nas cidades, os Franceses, ao verificarem a ausência dos habitantes, instalaram-se, como no campo de batalha, em plena rua. Embora esfarrapadas, esfomeadas, extenuadas e reduzidas a metade dos seus efectivos, as tropas francesas nem por isso deixaram de entrar em Moscovo devidamente ordenadas. Era um exército esgotado e destroçado, mas ainda combativo e de temer. No entanto apenas se conservou exército até ao momento em que os soldados se dispersaram pelas casas da cidade. Desde que eles se viram instalados em todas essas casas ricas e desertas, o exército desapareceu para sempre, transformando-se num amálgama nem de civis nem de militares, num bando de bandidos. Quando, cinco semanas mais tarde, deixaram Moscovo, as tropas regulares tinham desaparecido por completo. Eram apenas um bando de salteadores levando consigo um nunca acabar de coisas que entendia indispensáveis e preciosas. Não pensavam mais na guerra, só cuidavam em conservar o produto das pilhagens. Tal como o macaco que tendo metido a mão na estreita boca de uma jarra para apanhar um punhado de nozes não a quer abrir para não deixar o que apanhou, e assim se perde, os Franceses, ao abandonarem Moscovo, tinham fatalmente de se perder, pois levavam consigo o produto dos seus roubos, não podendo, como o macaco, abandonar a presa. Dez minutos depois da ocupação por um regimento francês de qualquer bairro da cidade já não era possível distinguir os oficiais dos soldados. Através das janelas viam-se homens de capote e polainas, rindo e girando pelos quartos; nas caves e nos sótãosabasteciam-se de provisões; nos pátios abriam as portas dos armazéns e das cavalariças: nas cozinhas acendiam as lareiras e faziam o rancho, de mangas arregaçadas, assustando e fazendo rir mulheres e crianças. Eram muitos os homens nas lojas e nas casas: exército, porém, era coisa que já não existia. Naquele mesmo dia circularam ordens sobre ordens, emanadas dos comandantes, para que os soldados fossem impedidos de circular na cidade, para que fossem proibidos os saques e as violênci4s, e determinando que houvesse à noite chamada geral. No entanto, apesar das medidas tomadas, os homens que ainda na véspera formavam o exército espalhavam-se por toda a cidade confortável e vazia, onde abundavam as provisões. Como um rebanho faminto que avança, comprimido, ao longo de um campo de escassa pastagem espalhando-se logo que chega a uma farta pradaria, assim se dispersava o exército francês através daquela opulenta cidade. Como dos habitantes poucos estavam, os soldados, à semelhança da água num areal, infiltravam-se por toda a parte e irradiavam por todos os lados a partir do Kremlin, o primeiro lugar onde haviam penetrado. Soldados de cavalaria que penetrassem numa casa abandonada com tudo que era preciso e até cavalariças com lugar de sobra para as montadas, nem por isso deixavam de se mudar para a casa vizinha que se lhes afigurasse preferível. Muitos ocupavam várias casas, riscando-as a giz, batendo-se com homens de outros destacamentos para lhes disputarem a propriedade. Antes mesmo de se instalarem em qualquer lado, havia soldados que percorriam as ruas, e ao verificarem que tudo estava abandonado introduziam-se onde pudessem pilhar objectos de valor. Os chefes encarregados de prender os que se dedicavam à pilhagem acabavam por se entregar à prática dos mesmos actos. No Mercado Karetnii ainda havia estabelecimentos cheios de carruagens de, todo o género: os generais juntavam-se para escolherem aí seges e carros para seu uso. Os habitantes que haviam ficado na cidade convidavam os oficiais superiores a instalar-se em suas casas na esperança de assim impedirem que elas fossem saqueadas. Tantas eram as riquezas que dir-se-ia não terem fim. Por toda a parte, em torno dos locais ocupados pelos Franceses, havia outros, ainda não ocupados, em que eles julgavam vir a encontrar mais riquezas. E Moscovo ia-os absorvendo pouco a pouco. Assim como quando se deita água numa terra seca desaparecem a terra seca e a água, assim aquele exército esfomeado, uma veznaquela cidade opulenta, mas deserta, foi desaparecendo ao mesmo tempo que a própria cidade: resultado, muita lama, incêndios e saques por toda a parte. Os Franceses atribuem o incêndio de Moscovo ao patriotismo feroz de Rostoptchine, os Russos, ao fanatismo dos Franceses. Moscovo ardeu por se encontrar nas mesmas condições de qualquer cidade de madeira, independentemente das suas cento e trinta. — Más bombas de incêndio. Moscovo tinha de arder, porque os seus habitantes a haviam deixado; o que era tão inevitável como arder o monte de aparas em que vão caindo fagulhas dia após dia. Uma cidade de madeira onde, mesmo com a presença dos habitantes e da polícia, quase todos os dias se registam incêndios, não pode deixar de arder se os proprietários das casas estão ausentes e se por toda a parte há soldados de cachimbo aceso e fogueiras em que preparam o rancho duas vezes por dia, em plena Praça do Senado, atiçando o lume com as cadeiras dos palácios circunvizinhos. Em tempo de paz, basta que as tropas se alojem’ numa aldeia para que os incêndios aumentem imediatamente. Como não hão-de aumentar as probabilidades de fogo numa cidade abandonada, construída de madeira, em que acampou um exército estrangeiro? Nem o patriotismo feroz de Rostoptchine nem o fanatismo dos Franceses tiveram que ver com o incêndio de Moscovo. A cidade ardeu por causa dos cachimbos, das cozinhas, dos acampamentos e da negligência dos soldados inimigos, instalados nas casas, mas não seus proprietários. Se realmente houve incendiários, o que parece duvidoso, pois não se percebe qual o motivo de uma coisa dessas, além de que seria expor-se quem o fizesse a um perigo que a todos ameaçava, não vale a pena atribuir-se-lhes essa responsabilidade porque sem a sua intervenção o resultado teria sido praticamente o mesmo. Por muito que agrade aos Franceses acusar Rostoptchine de ferocidade e aos Russos dizerem que Bonaparte era um malfeitor, ou colocarem nas mãos de seus compatriotas um archote heróico, é impossível admitir uma causa directa da catástrofe já que Moscovo tinha de arder, como arderia igualmente qualquer aldeia, qualquer fábrica, qualquer casa cujos proprietários se ausentassem e em que se consentisse que estranhos se instalassem para comer e dormir. Moscovo foi incendiada pelos seus habitantes, é um facto, mas não pelos habitantes que lá ficaram, antes por culpa daqueles que partiram. Invadida pelo inimigo, Moscovonão ficou intacta como Berlim, Viena e outras capitais pela simples razão de que os seus habitantes não vieram oferecer pão e sal aos Franceses nem lhes depuseram nas mãos a chave da cidade, preferindo, pelo contrário, abandoná-la. [XXVII] A dispersão das tropas francesas pela cidade só na noite desse dia 2 de Setembro atingiu o bairro onde vivia Pedro. Depois de dois dias em absoluto isolamento e passados de maneira extraordinária, Pedro encontrava-se à beira da loucura. Uma ideia fixa se havia apoderado de todo o seu ser. Nem ele mesmo sabia como isso pudera acontecer, mas a verdade é que essa ideia se apoderara dele de tal modo que não se recordava do passado nem compreendia o presente: tudo quanto via e ouvia se lhe afigurava um sonho. Deixara a sua casa apenas para evitar as complicações da sua vida que no estado de espírito em que se encontrava não era capaz de resolver. Fora a casa de Osip Alexeievitch a pretexto de seleccionar os livros e os papéis do defunto, embora o fizesse na esperança de encontrar a tranquilidade e porque a lembrança daquele homem andava ligada no seu pensamento a um mundo de paz e de ideias etcrnas e superiores bem diferente de toda aquela confusão para que se sentia fatalmente arrastado. Procurava um refúgio tranquilo e foi encontrá-lo, de facto, em casa de Osip Alexeievitch. Quando, no mortal silêncio do gabinete, se encostou à poeirenta mesa de trabalho do defunto, vieram-lhe à memória, com toda a nitidez, as impressões que colhera naqueles últimos dias, especialmente as da batalha de Borodino, e então sentiu, numa irresistível evidência, toda a insignificância e toda a mentira que nele se encarnavam em comparação com a verdade, a simplicidade, a força daquela espécie de pessoas no seu espírito catalogadas sob o nome genérico de «eles». No momento em que Guerassime o veio arrancar à sua meditação estava ele decidido a tomar parte, ao lado do povo, na projectada defesa de Moscovo. E nessa intenção pedira a este criado que lhe arranjasse um cafetã e uma pistola, confessando-lhe estar resolvido a ficar escondido ali mesmo, em casa de Osip Alexeievitch. Durante o primeiro diapassado naquela solitária inacção e de— pois de tentar, debalde, concentrar-se nos manuscritos maçónicos, por vezes e confusamente lhe viera ao espírito o Significado cabalístico do seu nome relacionado com o de Bonaparte, de acordo com a conclusão a que chegara. No entanto esta ideia, a ideia de que ele, le Russe Bésuhof, estava predestinado a pôr termo ao reino da besta, não se lhe apresentara ainda senão como uma dessas vagas congeminações que atravessam o espírito sem nele deixar qualquer rasto profundo. Só depois de adquirir o cafetã, aliás apenas na intenção de participar na defesa da cidade, e de encontrar os Rostov e Natacha, que lhe dissera: «Fica? Ah!, que bom que deve ser!», só depois disso lhe ocorreu que seria realmente bom, mesmo que Moscovo viesse a ser tomada, ficar na cidade e cumprir o que estava determinado. No dia seguinte, movido pela ideia de se não poupar a si próprio para se mostrar digno «deles», dirigiu-se à barreira de Tri Gori. E ao voltar dali, convencido de que Moscovo não seria defendida, bruscamente deu-se conta de que o que até então lhe Parecera apenas possível se tornava agora uma necessidade implacável. Ocultando o nome, devia ficar em Moscovo, procurar aproximar-se de Napoleão, matá-lo, deixando-se matar, pondo assim termo às desgraças que pesavam sobre a Europa, na sua opinião todas da responsabilidade de tal monarca. Pedro conhecia todos os pormenores do atentado de que Napoleão fora vítima em Viena, em 1809, obra de um estudante alemão, que fora fuzilado. E o perigo a que se expunha no cumprimento da sua missão ainda o exaltava mais. Dois sentimentos igualmente fortes arrastavam Pedro ao cumprimento daquele objectivo: o primeiro era a necessidade de se sacrificar e de sofrer que nele despertara a desgraça que atingia todos. E esse mesmo sentimento que o impelira, no dia 25, até Mojaisk, arrastando-o para o fragor da batalha, levava-o agora a abandonar o seu palácio, o luxo a que estava habituado e o bem-estar que o rodeava, para viver assim, dormindo vestido e comendo o que comia Guerassime. O segundo era esse sentimento insensato e intrinsecamente russo que o levava a desprezar tudo quanto fosse fictício e convencional, tudo isso que a maioria das pessoas considera a coisa melhor no mundo. A primeira vez que esse sentimento se lhe revelara fora no Palácio Slobodski e apossara-se dele uma embriaguez estranha ao compreender, de súbito, que a riqueza, o poderio, aprópria vida, tudo que o homem preserva e guarda cautelosamente, não tem o mais pequeno valor além da satisfação que dá àquele que dispõe da coragem de renunciar a isso mesmo. Era um sentimento semelhante àquele que leva o recruta a beber, beber, até se lhe esgotar o dinheiro e o bêbedo a quebrar vidros e espelhos sem razão, sabendo que os terá de pagar, um sentimento igual ao do homem que pratica acções que o senso comum qualifica de loucas, embora em verdade sejam a revelação de uma visão superior e quase sobre-humana das coisas da vida. Desde o dia em que Pedro descobrira em si, pela primeira vez, este sentimento, passara a estar continuamente sob a sua influência, mas só agora, em verdade, lhe experimentava a plenitude da satisfação. E o certo é que já não podia voltar atrás, uma vez chegado onde chegara. A fuga de casa, a compra do cafetã e da pistola, o ter dito aos Rostov que ficava em Moscovo, tudo isso deixaria de ter qualquer significado, seria estúpido e ridículo — coisa a que Pedro era muito sensível —, caso fizesse como os demais abandonando a cidade. Como sempre acontece, o seu estado físico acompanhava o seu estado moral. A grosseira cozinha, a vodka que bebera nos últimos dias, o não ter à mão nem o seu vinho habitual nem os seus charutos, o não poder mudar de roupa, as duas noites em claro deitado vestido num estreito divã, tudo isto provocava nele lima excitação muito próxima da loucura. Eram já duas horas da tarde. Os Franceses estavam em Moscovo. Pedro sabia- o, mas, em vez de agir, não pensava noutra coisa senão na sua empresa e ia-a congeminando nos seus mais ínfimos pormenores. Não fazia ideia clara nem de como realizaria o seu objectivo nem propriamente do facto em si da morte de Napoleão. Pelo contrário, no que ele pensava com uma clareza extraordinária e numa espécie de triste deleite era na sua própria morte, na sua própria heróica valentia. «Sim, devo fazê-lo por todos ou então morrer!», exclamava para si mesmo. «Sim, aproximar-me-ei... e de repente... Com uma pistola ou um punhal? Pouco importa. Não sou eu, dir-lhe-ei, não sou eu quem te castiga, mas a mão da Providência!», acrescentou, pensando nas palavras que pronunciaria na altura em que desfechasse o golpe mortal. «Bom, agora aqui estou. Prendam-me, conduzam- me ao suplício!» E baixava a cabeça com uma expressão triste, mas decidida. Assim discorria quando a porta do gabinete se abriu e no limiar apareceuMakar Alexeievitch, até aí mais tímido que outra coisa, desta vez completamente transformado. De blusa desabotoada, tinha o rosto afogueado e descomposto. Era evidente que se embriagara. Ao dar com os olhos em Pedro pareceu confuso, mas, ao reparar que ele próprio se mostrava perturbado, encheu-se de coragem e caminhou até meio do gabinete cambaleando. — Têm medo — exclamou, numa voz rouca, mas decidida. — Cá por mim, não me rendo... Cá por mim... Não é verdade? Teve uma hesitação, e de chofre, ao ver a pistola em cima da mesa, bruscamente pegou nela e precipitou-se no corredor. Guerassime e o porteiro, que o tinham seguido, deitaram-lhe a mão no vestíbulo, tentando arrancar-lhe a arma. Pedro, que saíra atrás dele, observava, num misto de piedade e repulsa, aquele velho meio louco, Makar Alexeievitch, a máscara crispada pelo esforço, que empunhava a pistola e soltava gritos roucos, como se inimigos o assaltassem. — As armas! Às armas! A eles, vamos a eles! Eu te digo, não me escapas! — Basta! Basta! Tenha a bondade. Então que é isso. — dizia Guerassime, procurando arrastá-lo para a porta, sem violência. — Quem és tu? Bonaparte? — vociferava Makar. — Então? Isso não está certo. Vá para o seu quarto descansar um pouco. Deixe ver a pistola. — Para trás, vilanagem! Não me toquem! Estas a ver isto? — prosseguia, brandindo a arma. — A eles! — Agarra-o! — disse Guerassime para o porteiro. Pegando-lhe por debaixo dos braços, acabaram por arrastá-lo para a porta. No vestíbulo ressoou então um tremendo alarido em que sobressaíam os gritos roucos e entrecortados do bêbedo. De súbito, um grito agudo de mulher se ouviu no alpendre e cozinheira penetrou no vestíbulo, — Aí estão eles, Pai do Céu!... Juro que são eles! São quatro a cavalo!... — gritava ela. Guerassime e o porteiro soltaram Makar Alexeievitch e tio corredor, outra vez silencioso, ouviram-se, distintamente, pancadas na porta da rua. [XXVIII] Pedro, decidido a não desvendar, até ao momento em que visse realizados os seus projectos, nem a sua identidade nem que falava francês, ficara de pé diante da porta entreaberta do corredor, pronto a desaparecer logo que visse entrar os franceses. Quando estes entraram. Pedro não se afastou da porta: uma curiosidade invencível o retinha ali. Eram dois: um oficial de grande estatura, aspecto marcial e boa presença, e um soldado ou impedido, pequeno, delgado, curtido, de faces cavadas e, ar estúpido. O oficial, apoiado a uma bengala, coxeando, foi o primeiro a entrar. Depois de ter dado alguns passos, parou: sem dúvida lhe agradava a instalação, e, voltando-se para os soldados que tinham ficado à porta, gritou-lhes, numa voz tonitruante, de quem está habituado ao comando, que podiam trazer os cavalos. Feito o que, cofiando o bigode, num gesto galhardo, e erguendo alto o cotovelo, levou a mão à pala da barretina. — Bom dia, gentes — disse em tom jovial, olhando em roda. Ninguém respondeu à sua saudação. — Você é o patrão? — continuou ele, dirigindo-se a Guerassime. Este, sem o perceber, lançou-lhe um olhar assustado. — Alojamentos, alojamentos — repetia o oficial medindo o homenzinho com um olhar que vinha lá do alto da sua imensa estatura, protector e compassivo. — Os Franceses são bons rapazes. Que diabo! Então! Não vale zangarmo-nos, meu velho. — acrescentou, dando uma palmada familiar no ombro do velho, que continuava silencioso e aterrado. — Ora essa! Não pode ser. Então não se fala francês nesta casa? — prosseguiu, olhando à roda e deparando-se-lhe o olhar de Pedro. Este afastou-se da porta. O oficial voltou-se, de novo, para Guerassime. Ordenou-lhe que lhe mostrasse os quartos. — O meu amo não está... Eu não compreender... Meu quarto para si... — acabou por dizer o criado, estropiando as palavras para torná-las mais inteligíveis. O oficial sorriu, passou a mão pelo nariz de Guerassime, num gesto que significava nada ter compreendido, e encaminhou-se, coxeando, para onde estavaPedro. Este tentou evitá-lo, mas nessa altura viu Makar Alexeievitch, que aparecia à porta da cozinha de pistola em punho. Com uma astúcia de demente. Makar olhou para o francês, ergueu o cano da pistola e apontou-lha. — A eles! — gritou o bêbedo, carregando no gatilho. Ao ouvir o grito, o oficial voltou-se enquanto Pedro se lançava sobre Makar. No momento em que Pedro deitava a mão à arma, conseguiu o bêbedo premir o gatilho e um estampido ensurdecedor ressoou enchendo a dependência de fumo. O francês, pálido, correu para a porta. Pedro, esquecendo-se de que decidira não revelar que sabia francês, arrancou a pistola das mãos de Makar, atirou-a pelo ar e correu para o oficial, dizendo-lhe na língua dele: — Não está ferido? — Parece-me que não — volveu-lhe este, apalpando o corpo — mas escapei por pouco desta vez. — E apontou para a arranhadura que a bala fizera na escaiola da parede. — Quem é aquele homem? — acrescentou, medindo Pedro com um ar carrancudo. — Ah! Lamento muito o que acaba de acontecer — deu-se pressa de responder Pedro, esquecendo por completo o papel que queria representar. — Era um doido, um desgraçado, que não sabia o que fazia. O oficial aproximou-se de Makar Alexeievitch e pegou-lhe pela gola da blusa. O bêbedo, de boca pendente, expressão aparvalhada, cambaleava, apoiando-se à parede. — Bandido, hás-de pagar-mas! — vociferou o francês, retirando a mão. — Nós, os Franceses, somos clementes depois da vitória, mas não perdoamos aos traidores.— E disse isto num tom entre grave e solene, sublinhando as palavras com um gesto enérgico e teatral. Pedro continuou, em francês, a implorar-lhe que se não vingasse daquele pobre bêbedo meio doido. O oficial ouvia-o, calado, sempre carrancudo, e, de repente, voltou-se, sorrindo, para onde estava Pedro, Durante algum tempo observou-o calado, No seu rosto de boa pessoa apareceu uma expressão de uma suavidade em que havia qualquer coisa de trágico, e estendeu-lhe a mão. — Salvou-me a vida! É francês! — exclamou ele. Para um francês não podia haver a mais pequena dúvida: só um francês seria capaz de praticar uma nobre acção, e salvar a vida a Monsieur Ramballe, capitãodo 13º ligeiro, não podia deixar de ser uma nobre acção. Entretanto Pedro julgou de seu dever desenganá-lo. — Sou russo — apressou— se a dizer-lhe. — Ora, ora, ora, essa para cá não pega — chasqueou, sorrindo, o francês, ao mesmo tempo que fazia um gesto pleno de incredulidade. — Já me vai contar tudo. Que prazer encontrar um compatriota. Bom, que vamos fazer deste homem? — acrescentou, como se se dirigisse, realmente, a um compatriota. O tom da voz, a expressão do oficial, queriam dizer que mesmo que Pedro não fosse, realmente, francês, nada tinha a objectar desde que lhe davam esse título, o mais belo neste mundo. Pedro voltara a explicar como aquele doido, antes de ele ter aparecido, como aquele bêbedo lhe tirara de cima da mesa a pistola carregada, que ainda não tivera tempo de lhe apanhar, e de novo voltou a pedir que não castigasse o desgraçado. O francês arqueou o peito e fez um gesto verdadeiramente soberano. — Salvou-me a vida! É francês. Está a pedir-me essa concessão? Concedo-lha. Levem este homem — articulou, num tom enérgico, e, travando do braço daquele a quem conferira a dignidade de francês por lhe haver salvo a vida, entrou com ele em casa. Os soldados que tinham ficado na rua entraram no vestíbulo quando ouviram a detonação. Inquirindo do que acontecera, declararam estar prontos a castigar os culpados, mas o oficial, severo, deteve-os. — Eu os chamarei, quando precisar de vocês — disse-lhes. Os soldados retiraram-se e o impedido, que entretanto metera o nariz na cozinha, aproximou-se do oficial. — Capitão, eles têm sopa e um assado de carneiro na cozinha — confiou-lhe — Quer que lho traga? — Traz. E vinho — replicou o capitão. [XXIX] Quando o oficial e Pedro entraram em casa, este entendeu de seu dever garantir mais uma vez ao companheiro que não era francês, manifestando desejosde se retirar; o oficial, porém, não consentiu. Era tão cortês, tão amável, tão benevolente e mostrava-se tão reconhecido para com aquele que lhe havia salvo a vida que Pedro não ousou repelir o convite que lhe dirigia, e instalaram-se os dois no salão, a primeira dependência onde ambos entravam. Como Pedro teimasse em afirmar que não era francês, o capitão, incapaz de compreender como se podia recusar semelhante honra, encolheu os ombros, dizendo que se tão grande era o seu empenho em fazer-se passar por russo, ele nada teria a objectar, mas que, fosse como fosse, a ele o ligava um reconhecimento etcrno. Se este homem fosse capaz de compreender os sentimentos alheios e de adivinhar os do companheiro, era provável que Pedro se tivesse afastado, mas a incompreensão que mostrava por tudo que não fosse ele próprio obrigou-o a ceder. — Francês ou príncipe russo incógnito — disse o capitão, relanceando os olhos à roupa branca de Pedro, bastante enxovalhada, mas assaz fina, e ao anel que ele trazia no dedo. — Devo-lhe a vida e pode contar com a minha amizade. Um francês nunca esquece nem um insulto nem um serviço. Pode contar com a minha amizade. Só lhe digo isto. No seu tom de voz, na expressão do seu rosto, nos seus gestos, havia tanta bonomia, tanta nobreza, pelo menos do ponto de vista francês, que Pedro, respondendo, sem dar por isso, com um sorriso ao sorriso do francês, lhe apertou a mão que este lhe estendera. — Capitão Ramballe, do 13º ligeiro, condecorado pela acção do dia — anunciou ele com um sorriso de fatuidade que lhe franziu os lábios debaixo do bigode. — Poderá dizer-me agora a quem tenho a honra de falar tão agradavelmente em vez de estar na ambulância com uma bala deste doido no corpo? Pedro respondeu ser-lhe impossível declinar a sua identidade e, corando, pôs- se à procura de um nome qualquer e a explicar as razões que o impediam de lhe dar tal satisfação. O francês interrompeu-o bruscamente. — Por favor — exclamou. — Compreendo as suas razões, o senhor é oficial... oficial superior, talvez. Pegou em armas contra nós... Isso não é comigo. Devo-lhe a vida. Isso me basta. Sou todo vosso. É fidalgo? — Pedro assentiu com a cabeça. — Qual o seu nome de baptismo, se faz favor? Não preciso mais. Monsieur Pierre, diz o senhor... Muito bem. É tudo quanto desejo saber. Serviram o carneiro e uma omeleta, trouxeram o samovar, vodka e vinho deuma adega russa. Ramballe convidou Pedro para o seu jantar e imediatamente se lançou sobre as vitualhas, como criatura esfaimada e bom garfo que devia ser, comendo, ávido, mastigando ruidosamente, dando estalos com a língua e exclamando: — Excelente! Delicado! Estava muito corado e o suor repassava-lhe a testa. Pedro, esfomeado também, com satisfação o acompanhou no jantar. Morel, o impedido, trouxe uma caçarola de água quente e meteu-lhe dentro uma garrafa de vinho tinto. Em cima da mesa pôs a botelha de kvass que achara na cozinha, bebida já famosa entre os Franceses, que lhe chamavam «limonada de porco», e Morel tecia os mais rasgados elogios à que encontrara. Como o capitão, porém, dispunha de excelente vinho, arranjado algures, ao atravessar a cidade, deixou que Morel bebesse o kvass e reservou para si o Bordéus. Amarrando um guardanapo ao gargalo da garrafa, encheu o seu copo e o de Pedro. Morta a fome e vazia a garrafa, o capitão, incendiado, pôs-se a falar, a falar. — Sim, meu caro Monsieur Pierre, contraí para consigo uma grande dívida salvando-me... das mãos desse louco. Não me faltam balas no corpo, como pode ver. Aqui tem uma em Wagram — e mostrava uma cicatriz — e duas em Smolensk — prosseguia apalpando o gilvaz da cara. — E esta perna, como está a ver que não quer andar. Foi na grande batalha de 7 no Moskova, que eu arranjei isto. Caramba, era belo! Valia a pena ver aquilo, um dilúvio de fogo. Sempre nos têm dado uns trabalhos! Podem orgulhar-se disso, cos diabos! E palavra, apesar desta tosse, estou de novo pronto a recomeçar. Lastimo os que não viram isto. — Também lá estive. — disse Pedro. — Quê, fala a sério?! Pois ainda bem — continuou ele. — Seja como for, vocês são uns inimigos às direitas. O grande reduto foi tenaz, caramba! E fizeram-nos pagar caro. Fui lá três vezes, aqui onde me vê. Por três vezes estivemos em cima das peças e por três vezes nos atiraram abaixo como um castelo de cartas. Oh!, era bonito, Monsieur Pierre. Os vossos granadeiros foram soberbos, com mil diabos! Seis vezes seguidas os vi cerrar fileiras e marchar como numa parada. Belos homens! O nosso rei de Nápoles, que sabe disto, gritou: Bravo! Ah! Soldados como nós! — acrescentou, sorrindo após um silêncio. — Ainda bem, ainda bem, Monsieur Pierre. Terríveis no combate... galantes com as belas, assim são os Franceses, não é verdade? — concluiu, por fim, piscando o olho.A alegria do capitão era tão ingénua e confiante, havia nele tanta franqueza e tanta satisfação própria que Pedro não pôde deixar de lhe responder com outro piscar de olhos. A palavra galantes levou o oficial a falar de Moscovo. — A propósito, diga-me cá, é verdade que as mulheres abandonaram todas Moscovo? Que ideia! Que podiam elas recear? — Então se os Russos entrassem em Paris as mulheres francesas não abandonariam a cidade? — inquiriu Pedro. — Ah! Ah! Ah! Essa é forte! — replicou o francês, rindo a bom rir, enquanto lhe dava palmadinhas nas costas. — Paris? Mas Paris, Paris... — Paris, a capital do mundo. — rematou Pedro. O capitão fitou-o atentamente. Tinha por costume calar-se, assim, no meio de uma conversa, fixando os olhos risonhos e amáveis no interlocutor. — Pode crer, se me não dissesse que era russo, ia apostar que era parisiense. O senhor tem esse não-sei-quê, esse... — E voltou a percorrê-lo com os olhos, sem dizer palavra. — Estive em Paris, passei lá alguns anos — replicou Pedro. — Oh! Isso vê-se logo. Paris!... Um homem que nunca foi a Paris é um selvagem. Um parisiense sente-se a duas léguas. Paris é Talma, a Duchesnois, Potier, a Sorbona, as avenidas. — E, notando que o remate não correspondia ao começo, tratou de acrescentar: — Não há senão um Paris no mundo. O senhor esteve em Paris e continuou russo. Nem por isso tenho menos estima por si. Sob a influência do vinho e depois daqueles dias de solidão metido em sombrios pensamentos, Pedro experimentava, involuntariamente, grande satisfação em conversar com aquele jovial simpático rapaz. — Para falarmos outra vez das vossas mulheres: dizem que são bem bonitas. Que raio de ideia irem enterrar-se na estepe com os Franceses em Moscovo! Não sabem o que perderam. Os vossos Mujiques ainda se compreende, mas vocês, pessoas civilizadas, tinham obrigação de nos conhecer melhor. Tomámos Viena, Berlim, Madrid, Nápoles, Roma, Varsóvia, todas as capitais do mundo... Temem- nos, mas gostam de nós. Vale a pena conhecer-nos... E depois o imperador... — principiou ele; Pedro, todavia, interrompeu-o. — O imperador... — repetiu ele, com um sorriso taciturno e enleado. — Estará o imperador... — O imperador? A generosidade, a clemência, a justiça, a ordem, o génio, eis oimperador! Sou eu, Ramballe, quem lho diz... Aqui onde me vê, ainda há oito anos era inimigo dele. Meu pai era conde emigrado... Mas aquele homem venceu-me. Empolgou-me. Não pude resistir ao espectáculo de grandeza e de glória que ele dava a França. Quando compreendi o que ele queria, quando vi que ele nos fazia uma cama de louros, então disse comigo; Ora aqui esta um soberano, e dediquei- me a ele. E aqui tem. Ó, sim, meu caro, é o maior homem, dos séculos passados e futuros. — Está em Moscovo? — perguntou Pedro, hesitante e sem esconder uma espécie de culpa. O francês, sorrindo, observou, curioso, a expressão do interlocutor. — Não, deve entrar amanhã na cidade — replicou, prosseguindo no seu diálogo. A conversa foi interrompida por uns gritos, lá para os lados da porta principal, e pela chegada de Morel, que vinha explicar ao capitão que os hússares wurteinburgueses teimavam em alojar os seus cavalos no pátio onde estavam já os deles, mal-entendido esse proveniente sobretudo do facto de os hússares não compreenderem o que lhes diziam, O capitão ordenou que o sargento viesse à sua presença e em voz severa perguntou-lhe a que regimento pertencia, quem era o seu comandante e como ousava querer tomar conta de uma habitação já ocupada por outros militares. O alemão, que tinha dificuldade em perceber o francês, disse o nome do regimento a que pertencia e quem— era o seu comandante, mas, como nada percebera do que lhe diziam, replicou, misturando no alemão fragmentos de palavras francesas, que, na sua qualidade de sargento, nada mais fazia que cumprir as ordens que recebera do comandante, o qual lhe ordenara que ocupasse todas as casas daquele bairro, umas após outras. Pedro, que falava alemão, traduziu a resposta, para entendimento do capitão, e por sua vez transmitiu ao hússar o que lhe dissera o oficial. Tendo percebido, finalmente, o wurtemburguês cedeu, retirando com os seus homens. Em seguida o capitão francês veio até ao alpendre e numa voz de trovão deu ordens aos subordinados. Quando voltou à sala, Pedro, de cabeça entre as mãos, continuava sentado no mesmo sítio. Havia amargura na sua cara. E, de facto, sofria naquele momento. Assim que o capitão o deixara só, compreendera, de súbito, a situação em que estava. O que naquela altura o fazia sofrer não era o facto de Moscovo ter sidotornada nem mesmo que aqueles venturosos soldados ali se tivessem instalado como em sua própria casa, concedendo-lhe, inclusivamente, a sua protecção, embora tudo isto fosse, em verdade, bastante penoso: o que o atormentava era a consciência da sua própria fraqueza. Alguns copos de vinho e dois dedos de conversa com, aquele galhardo militar, eis quanto bastara para c seu taciturno estado de espírito dos últimos dias, indispensável para levar a bom termo o seu projecto, desaparecer como por encanto. A pistola, o punhal, o disfarce, tudo estava preparado; Napoleão entraria em Moscovo no dia seguinte. E posto Pedro continuasse a considerar útil e nobre o acto pelo qual assassinaria semelhante bandido, o certo é que se sentia agora incapaz de o praticar. Procurava dominar a sua fraqueza e confusamente percebia não ser capaz, que todos os seus sombrios projectos de vingança, de assassínio, de sacrifício se haviam dissipado como fumo desde que se pusera a falar com aquele desconhecido. O capitão voltou a entrar na sala, assobiando e arrastando perna. A tagarelice do francês, que tanto o divertira até, ali, agora tornava-se-lhe, odiosa. Aquele assobio, aquele manquejar, a maneira que ele tinha de cofiar o bigode, tudo o incomodava, «Vou-me embora e não lhe dirijo mais a palavra», dizia de si para consigo. E no entanto continuava sentado sem se mover. Amarrava-o ali um estranho sentimento de fraqueza. Conquanto o desejasse, não podia levantar-se nem podia partir, O capitão, pelo seu lado, parecia, de contrário, na melhor disposição deste mundo. Andava de cá para lá, de olhos cintilantes e o bigode agitado, como se sorrisse interiormente ao lembrar-se de qualquer coisa divertidíssima. — Encantador — exclamou, de súbito — o coronel destes wurtemburgueses! É um alemão; mas bom rapaz, se fosse... mas alemão. A propósito, o senhor sabe então alemão? — acrescentou, parando diante de Pedro. Pedro fitou-o calado. — Como é que diz «asilo» em alemão? — Asilo! — repetiu Pedro — «Asilo» em alemão: Unterkunft. — Como diz? — insistiu o capitão, incrédulo. — Unterkunft. — Onterkoff — voltou ele, fixando Pedro, por momentos, com olhos sorridentes. — Os Alemães são uns animais orgulhosos. Não é verdade, Monsieur Pierre? Bom, mais uma garrafa de bordéus Moscovita, não é verdade? Morel, vaiamornar-nos mais uma garrafa. Morel! — chamou, folgazão. Morel apareceu com as velas e uma garrafa. O capitão, assim que a sala se iluminou, relanceou a vista ao seu interlocutor e notou a transformação da sua máscara. Realmente inquieto e com uma simpatia toda cordial, inclinou-se para Pedro, — Então, estamos tristes? — disse ele, pegando-lhe numa das mãos. — Magoei-o? Tem alguma razão de queixa minha? Talvez por causa da situação? Pedro não respondeu, mas fitou-o nos olhos com simpatia. Não podia deixar de ser sensível a todas aquelas atenções. — Palavra de honra, mesmo sem falarmos do que lhe devo, tenho amizade por si. Haverá alguma coisa que eu possa fazer por si? Disponha de mim. A vida e a morte. Digo-lhe com a mão no coração — acrescentou, fustigando a arca do peito. — Obrigado — volveu-lhe Pedro. O capitão olhou-o com o mesmo ar jovial de há pouco e o rosto iluminou-se-lhe. — Ah!, nesse caso, bebo à nossa amizade! — exclamou, enchendo os dois copos. Pedro pegou no copo cheio e virou-o de um só trago. Ramballe virou o seu também e voltou a apertar a mão de Pedro, deixando-se cair na cadeira, com os cotovelos na mesa, numa, atitude melancólica. — Sim, meu caro, chama-se a isto os caprichos do destino — disse ele. — Quem diria que eu seria soldado e capitão de dragões ao serviço de Bonaparte, como nós lhe chamávamos antigamente. E no entanto aqui estou eu em Moscovo. Sempre lhe direi, meu caro — prosseguiu, numa voz agora ponderada e serena, como se fosse encetar uma longa história — que o nosso nome é um dos mais antigos da França. E, com a franqueza ingénua e ligeira dos Franceses, pôs-se a contar-lhe a história dos seus antepassados, da sua infância, da sua adolescência e da sua juventude, pondo-o ao corrente de tudo quanto dizia respeito à família e aos bens. «A minha pobre mãe», claro está, não faltava na história. — Mas tudo isto mais não é que a cenografia da vida; o fundo e o amor. O amor. Não é verdade, Monsieur Pierre? — continuou ele cada vez mais animado. — Mais um copo. Pedro bebeu de novo e de seguida encheu os copos. — Oh, as mulheres, as mulheres! — E o capitão, cujo olhar se fizera langoroso,pôs-se a falar do amor e das suas aventuras galantes. Tinham sido muitas e não era difícil de acreditar que assim fosse quando se atentava no seu ar conquistador, na sua bela figura e na vivacidade que punha no relato dos seus êxitos. Ainda que todas essas histórias fossem repassadas desse carácter um tudo-nada brejeiro, encanto e poesia do amor para os Franceses, o certo é que o capitão falava com tanta sinceridade e tanta convicção que dir-se-ia só ele, saber o que era o amor, e tal era a sedução que emprestava às suas heroínas que Pedro não podia deixar de o seguir interessadíssimo. Evidentemente que o amor de que falava Ramballe nem era essa paixão sensual e rasteira que Pedro outrora experimentara pela mulher nem essa paixão romântica, exaltada por natureza, que Natacha lhe inspirava: para estas duas espécies de amor ia o desprezo do francês. Para ele, o primeiro era «o amor dos carreteiros», e o segundo «o amor dos néscios». O amor que ele preferia andava relacionado a toda a sorte de combinações estranhas e situações extraordinárias, sua maior atracção para ele. Assim, contou a história emocionante dupla paixão que tivera por uma marquesa de trinta e cinco anos e por uma filha desta, deliciosa e, inocente criatura de dezassete primaveras. O generoso debate entre mãe e filha e por fim o sacrifício daquela, que ofereceu ao amante a mão da filha, todos estes acontecimentos, embora remotos, faziam estremecer o capitão. E contou depois o curioso episódio, em que o marido tomara o lugar do amante e ele próprio, o amante, o lugar do marido. E a tudo isto acrescentou alguns pormenores cómicos das suas recordações da Alemanha, país em que o asilo se diz Unterkunft, os maridos comem «choucroute» e as raparigas são louras. Por fim, veio a última aventura, na Polónia, de fresca data, que contou com grandes gestos e de uma animação muito particular. Salvara a vida a um polaco (coisa curiosa, , nas suas histórias, Ramballe salvava sempre a vida a qualquer pessoa). O polaco confiara-lhe a as encantadora mulher, uma parisiense de coração, enquanto abalava ao serviço da França. A felicidade do capitão atingira o auge: a bela polaca ia fugir com ele. Mas ele, dominado por um sentimento de generosidade ainda mais forte, restituiu a mulher ao marido, dizendo-lhe: «Salvei- lhe a vida e salvo-lhe a honra!». E ao repetir esta frase enxugou os olhos e abanou a cabeça como para afastar de si a emoção que o tomava lembrando-se daquela emocionante recordação.Enquanto escutava o capitão. Pedro, perturbado pelo tardio e pelo vinho que bebera, revia, em imaginação, a vaga de reminiscências pessoais que o assaltavam. Todas aquelas histórias de amor lhe lembraram, de súbito, a sua própria paixão por Natacha, e havia nela cenas que comparava mentalmente às das histórias de Ramballe. A luta entre o dever e o amor trazia-lhe à memória os mais pequenos pormenores do seu último encontro ao pé da Torre de Sukariev. Então esse encontro pouco o impressionara e breve se lhe desvanecera do espírito. Mas agora, pelo contrário, afigurava-se-lhe importantíssimo e de um valor poético muito particular. «Piotre Kirilitch, venha daí, já o reconheci.» Parecia estar a ouvir-lhe aquelas palavras, a ver-lhe os olhos, o sorriso, o chapelinho de viagem, as madeixas desgrenhadas do cabelo... E tudo isto se lhe afigurava qualquer coisa de terno e de comovedor. Finda que foi a história da polaca, o capitão perguntou a Pedro se também tivera oportunidade de se sacrificar de igual modo, sentindo ciúme pelo marido legítimo. Ao ouvir isto, Pedro levantou a cabeça e de repente sentiu uma grande necessidade de abrir o coração. Explicou que, para ele, o amor não era a mesma coisa. Disse-lhe que em toda a sua vida apenas amara uma mulher, uma só, e que esta mulher nunca lhe poderia vir a pertencer. — Essa agora! — exclamou o capitão. E explicou-lhe depois que amava essa mulher desde que a vira criança, mas que nunca ousara pensar nela, então nova de mais, e ele, por sua vez, filho ilegítimo e sem nome para lhe dar. Mais tarde, quando viera a ter um nome e a ser rico, não quisera pensar nela, pois a amava muito, a punha acima de tudo e de todos, e por isso mesmo acima de si próprio. Ao chegar a esta altura das suas confidências perguntou ao capitão se ele o compreendia. Este, por um simples gesto, volveu-lhe que ainda mesmo que não compreendesse não era razão para ele interromper a sua história. — O amor platónico, as nuvens... — murmurava. Ou o vinho que bebera ou a necessidade de se abrir ou ainda a certeza de que aquele homem não conhecia nem nunca viria a conhecer qualquer das pessoas de quem ele falava, eis o que, sem dúvida, concorreu para a loquacidade de Pedro. Numa voz pastosa e os olhos vagos, ei-lo que prossegue na história dos seusamores: contou-lhe o caso do seu casamento, a paixão de Natacha pelo seu melhor amigo, a traição desta e as suas relações com ela, tão pouco claras ainda. Compelido pelas perguntas de Ramballe, acabou por dizer o que de princípio escondera: a situação que ocupava na sociedade e até o seu verdadeiro nome. O que mais impressionava o capitão em tudo isto era o facto de Pedro ser riquíssimo, de possuir dois palácios em Moscovo, de tudo ter abandonado, tendo ficado na cidade escondendo o seu nome e a sua posição, em vez de partir. Já a noite ia adiantada quando saíram juntos. O céu estava sereno e claro. A esquerda lobrigava-se o clarão do primeiro incêndio que estalava em Moscovo, em Petrovka. A direita, a lua nova brilhava no alto da cúpula celeste, enquanto do lado oposto esplendia o cometa, na alma de Pedro profundamente associado ao seu amor. A entrada da porta estavam Guerassime, a cozinheira e dois franceses. Ouviam-se as suas gargalhadas e as tentativas de conversa nas duas línguas, sem que chegassem a compreender-se uns aos outros. Todos contemplavam o resplendor do incêndio que alastrava pela cidade. Nada havia, contudo, de ameaçador nesse pequeno incêndio longínquo no meio da imensa capital. Ao contemplar o céu estrelado, a Lua, o cometa e o clarão do incêndio, Pedro sentiu que a alma se lhe inundava de alegria e enternecimento. «Que belo tudo isto é! Que é preciso mais?», dizia de si para consigo. Mas de súbito, ao lembrar-se do seu projecto, sentiu como que uma vertigem e viu-se obrigado a apoiar-se à parede para não cair. Sem se despedir do seu novo amigo, afastou-se da porta em passos titubeantes e, entrando no seu quarto, estendeu-se no divã, adormecendo instantaneamente, [XXX] O clarão do primeiro incêndio, no dia 2 de Setembro, foi visto de diferentes lados e produziu efeitos muito diversos nos habitantes que abandonavam a cidade e nas tropas que retiravam. O comboio dos Rostov encontrava-se nessa noite nos Grandes Mitichtchi, a umas vinte verstas de Moscovo. No dia 1º de Setembro a sua partida fora tãotardia, a estrada estava de tal modo obstruída, tantas coisas tinham esquecido, mandadas buscar à última hora, que decidiram passar a noite apenas a cinco verstas da capital. No dia seguinte tinham-se levantado tarde e tantos foram os obstáculos ainda no caminho que apenas puderam chegar aos Grandes Mitichtchi. As dez horas, os Rostov, bem como os feridos que os acompanhavam, distribuíram- se pelos Pátios e as isbás daquela grande povoação. Criados, cocheiros e ordenanças dos feridos, depois de servirem os amos, comeram. Por sua vez deram de comer aos cavalos e vieram tomar ar para os alpendres. Numa dessas isbás encontrava-se o ajudante-de-campo de Raievski: tinha o pulso quebrado e as tremendas dores que sentia obrigavam-no a gemer constantemente, ressoando os seus gemidos lúgubres na obscuridade da noite outonal. Este ajudante-de-campo passara a primeira noite no mesmo local que os Rostov. A condessa dissera que não tinha podido conciliar o sono, e por isso, nos Mitichtchi, instalaram-se numa isbá menos confortável, mas mais afastada do pobre homem. Um dos criados viu de repente, no meio das trevas da noite, do alto da boleia da carruagem que estacionava à entrada do pátio, um novo e pálido clarão. Era um novo incêndio e toda a gente sabia que os Pequenos Mitichtchi estavam a arder, incendiados pelos cossacos de Mamanov. — Eh!, rapazes! Temos outro fogo! — exclamou. Todos se voltaram na direcção indicada. — Dizem que os cossacos de Mamanov deitaram o fogo aos pequenos Mitichtchi. — Não. Não é isso. É muito mais longe. Olha bem. Parece em Moscovo. Dois criados desceram as escadas do alpendre, dirigiram-se para a carruagem e treparam para o estribo. — É mais à esquerda. Os Mitichtchi ficam para este lado, e o fogo é noutra direcção. Outros criados vieram juntar-se ao primeiro. — Aquilo é que arde! — disse um deles — Cá na minha. é fogo em Moscovo, ou em Suchtchevskaia ou então em Rogojskaia. Ninguém replicou e por muito tempo todos ficaram a olhar para as labaredas daquele novo incêndio que se erguia no horizonte.Um velho, a quem todos chamavam o criado de quarto do conde, um tal Danila Terentitch, aproximou-se do grupo para chamar Michka. — Que estás tu aí a olhar, imbecil?... O conde está a chamar e ninguém há para o atender: anda, trata de lhe ires arrumar a roupa. — Fui buscar água — replicou Michka. — Que te parece. Danila Terentitch? Não achas que é em Moscovo aquele clarão? — perguntou um dos lacaios. Danila Terentitch, ficou calado e todos os demais o imitaram. As labaredas ondulavam e cada vez se estendiam mais. — Nosso Senhor nos valha! Com este vento e esta seca! — exclamou uma voz. — Olha como aquilo caminha! Deus nos acuda! Que Nosso Senhor tenha piedade de nós! — Não tarda que o apaguem. Vais ver! — Quem o há-de apagar? — murmurou Danila Terentitch, que nada dissera até então e cuja voz era lenta e serena. — É, sim, é Moscovo, irmãos, é a nossa mãe das brancas muralhas... A voz quebrou-se-lhe de súbito e soluçou como os velhos costumam soluçar. Era como se todos esperassem aquilo mesmo para compreenderem, finalmente, o tremendo significado daquele clarão. Suspiros e orações vieram sublinhar os soluços do velho criado do conde. [XXXI] Quando voltou para junto do amo, o criado de quarto participou-lhe que Moscovo estava a arder. O conde enfiou o roupão e foi verificar com os seus olhos o que o criado dizia. Sónia, que ainda não estava despida, e Madame Schoss acompanharam-no. Natacha e a condessa ficaram sozinhas. Pétia, esse, já não estava com a família: partira com o seu regimento na direcção de Troitsa. Quando lhe falaram do incêndio de Moscovo, a condessa principiou a chorar. Natacha, muito pálida, de olhos fixos, deixou-se ficar sentada no banco debaixo dos ícones, que nem um só instante abandonara desde que chegara, e não prestou a mais Pequena atenção ao que o pai dizia. Estava à escuta dos gemidos contínuosdo oficial, que continuavam a ouvir-se apesar de virem de algumas casas mais adiante. — Ah! Que horror! — exclamou Sónia, toda a tremer, assustadíssima, quando voltou para dentro. — Moscovo inteira está a arder. Que clarão medonho! Vai ver, Natacha, vê-se dali mesmo da janela — acrescentou, tentando arrancar a prima aos seus pensamentos. Mas Natacha fitou-a, como se não compreendesse o que lhe diziam e de novo fixou os olhos no canto da estufa. Desde manhã que estava mergulhada naquela espécie de letargia, desde que Sónia, com grande estranheza e irritação da condessa, não se sabe porquê, julgara necessário dizer- lhe que o príncipe André fora ferido e fazia parte do comboio. A condessa exaltara- se e repreendera Sónia como raramente o fizera. Sónia chorara, pedira perdão, e agora, como para reparar a sua falta. A todo o momento se mostrava solícita para com a prima. — Olha, Natacha, que horroroso incêndio! — Que está a arder? — perguntou Natacha. — Ah, sim, Moscovo! — E como para não melindrar Sónia e se ver livre dela aproximou a cabeça da janela, olhou para fora, de tal modo que era evidente nada ter visto, retomando em seguida a sua atitude anterior. — Mas tu nada viste! — Vi, vi — protestou Natacha, como implorando que a deixassem em paz. Tanto Sónia como a condessa compreenderam que, acontecesse o que acontecesse. Natacha por nada poderia interessar-se, nem por Moscovo nem pelo incêndio. O conde voltou a recolher-se atrás do tabique da isbá e deitou-se. A condessa aproximou-se da filha, tocou-lhe na testa com as costas da mão, como costumava fazer quando ela estava doente, e aproximou-lhe os lábios da fronte, como se quisesse verificar se tinha febre. — Apanhaste frio? Estás toda a tremer? Devias deitar-te. — disse-lhe a condessa. — Deitar-me? Sim, vou deitar-me, sim, vou deitar-me já — murmurou Natacha. Desde que lhe disseram que o príncipe André, gravemente ferido, seguia com eles, começara por fazer perguntas a seu respeito: queria saber quando e onde fora ferido, se o ferimento era grave, se o podia ver. Ao dizerem-lhe que o nãopodia ver, que era grave o ferimento, embora não mortal, ficou convencida de que, fizesse o que fizesse, nada mais saberia a esse respeito, e, ao ver que lhe não diziam toda a verdade, calou-se e nada mais perguntou. Durante todo o caminho conservara-se imóvel no fundo da carruagem, com os grandes olhos muitos abertos, esses olhos que a mãe tão bem conhecia e cujo estranho olhar tanto receava, e ali ficara sentada naquele banco. Em que pensava? Que decisão congeminava ou tomara já? A condessa suspeitava-a, sem saber ao certo, e esta incerteza atormentava-a e apavorava-a muito. — Natacha, despe-te, minha querida; vem para a minha cama. — Só a condessa dispunha de cama; tanto Madame Schoss como as duas raparigas tinham de dormir na palha. — Não, mãe, ficarei ali muito bem, no chão — replicou Natacha, com um movimento de impaciência e, aproximando-se da janela, abriu a vidraça. Os gemidos do ajudante-de-campo ouviam-se agora mais distintamente. Natacha debruçou-se da janela para o ar húmido da noite e a condessa viu-lhe o pescoço delicado, arrepanhado pelos soluços, quando encostou a cabeça ao caixilho. Sabia muitíssimo bem que não era o príncipe André quem gemia. Sabia que ele estava deitado na isbá contígua à deles, da qual a separava apenas um vestíbulo, mas aquela queixa medonha, incessante, enchia-lhe os olhos de lágrimas. A condessa trocou um olhar com Sónia, — Deita-te, querida, deita-te minha pequenina — disse ela, aflorando-lhe o ombro com a mão. — Vá, deita-te. — Ah, sim!... Vou já deitar-me, já — disse Natacha, principiando a despir-se à pressa. Arrancava os cordões das saias. Depois de tirar o vestido e enfiar uma camisa de noite, sentou-se, acocorada, em cima da cama de palha, no chão, e puxando para a frente os finos cabelos pôs- se a fazer uma trança. Os seus longos dedos afuselados moviam-se rapidamente. E ia voltando a cabeça, ora de um lado ora de outro, num gesto familiar. Os olhos, porém, dilatados, como se tivesse febre, permaneciam imóveis e fixos. Assim que acabou de se arranjar, deitou-se, sem ruído, na coberta estendida em cima da palha, junto da porta. — Natacha, deita-te no meio — disse-lhe Sónia. — Estou bem aqui — replicou ela. — E tu deita-te, tu também — acrescentou, repreensiva. E enterrou a cabeça na almofada.A condessa, Madame Schoss e Sónia despiram-se rapidamente e deitaram-se também. A única luz acesa era a lamparina diante dos ícones. Mas lá fora o céu estava iluminado pelo incêndio dos Pequenos Mitichtchi, a duas verstas dali, e ouviam-se os gritos dos homens na taberna saqueada pelos cossacos, à esquina da rua, enquanto os gemidos do oficial continuavam. Por muito tempo esteve Natacha, imóvel, ouvindo os ruídos que vinham da isbá e lá de fora. Ouviu, primeiro, a mãe que rezava, suspirando, depois o ranger da cama quando ela se deitou e em seguida o ressonar estridente, tão seu conhecido, de Madame Schoss e a tranquila respiração de Sónia. A certa altura a condessa chamou-a, mas Natacha não respondeu. — Acho que está a dormir, mãe — murmurou Sónia. Depois de um curto silêncio, a condessa voltou a chamar, mas desta vez ninguém lhe respondeu. Daí a pouco Natacha ouvia a pausada respiração da mãe. Não se mexia, embora tivesse o pèzinho nu gelado, pois o mantinha fora da roupa da cama, em contacto com o chão. Como para comemorar a sua vitória sobre toda aquela gente adormecida, um grilo, na sua toca, pôs-se a cantar. Lá longe ouviu-se o cocorocó de um galo, enquanto outro, mais perto, lhe respondia. Na taberna já se não ouvia gritar. Continuava, porém, e sempre, a queixa do ajudante-de-campo. Natacha soergueu- se na cama. — Dormes. Sónia? Mãe? — murmurou. Ninguém lhe respondeu. Levantou-se sorrateiramente, persignou-se e pousou os delicados pés descalços no sobrado sujo e frio, que rangeu. Em passinhos rápidos, de gato, correu para, a porta e deitou as mãos ao fecho gelado. Afigurava-se-lhe que as paredes da isbá vibravam em pancadas surdas e regulares: era o seu coração anelante que parecia rebentar de susto, de horror e amor. Abriu a porta, transpôs o limiar e pousou os pés na terra húmida e fria do vestíbulo. O frio reanimou-a. No escuro tocou com o pé descalço no corpo de um homem que dormia, passou-lhe por cima e abriu a porta do quarto onde estava o príncipe André. Era grande a escuridão lá dentro. Num recanto, ao fundo, junto de uma cama onde se via um vulto estendido, uma vela de sebo pousada num banco ardia, fumarenta.Desde que Natacha soubera, nessa manhã, que o príncipe André estava ali e ferido, resolvera vê-lo. Sabia porque considerava isso um dever seu, embora, tivesse a certeza também de que esse encontro seria para ela um suplício atroz. Durante, todo o dia não pensou noutra coisa senão em vê-lo quando viesse a noite. Agora, porém, que o momento chegara, enchia-a de horror a ideia do espectáculo que se lhe ia apresentar. Até que ponto estaria ele desfigurado? Teria todos os seus membros? Estaria tão mal como o pobre do ajudante-de-campo, sempre a gemer? Sim, devia estar no mesmo estado. Na sua imaginação, aquela queixa horrível representava-o inteiro. Ao descobrir, ao canto, aquela forma vaga, cujos joelhos, soerguendo a coberta, se lhe afiguravam uns ombros, julgou ter diante de si qualquer coisa de monstruoso e deteve-se, apavorada. Mas uma orça irresistível a obrigou a continuar. Avançou cautelosamente, passo a passo, e achou-se no meio de um compartimento atulhado de coisas. No banco, debaixo dos ícones, estava deitado outro corpo, o de Timokine, e no chão ainda havia mais dois — um, o médico, e o outro, o criado do príncipe. Este soergueu-se e pronunciou quaisquer palavras. Timokine, cujo ferimento na perna muito o fazia sofrer, não dormia e olhava, de olhos muito abertos, a estranha aparição aquela menina apenas de camisa de noite branca, de camisola, e os cabelos apanhados na touca de dormir. As palavras pronunciadas pelo criado meio adormecido: «Que é preciso? Quem está aí?», levaram Natacha a apressar o Passo para mais depressa chegar onde estava deitado o vulto que de longe entrevira. Por mais mutilado e horrível que esse corpo estivesse, tinha de o ver. Passou junto do criado: o pavio da vela agitou-se, projectando uma luz mais viva, e ela pode ver distintamente o príncipe André, as mãos estendidas sobre a coberta, como sempre o conhecera. Estava como sempre fora, mas o rosto afogueado pela febre, os olhos brilhantes fitos nela, numa grande exaltação, sobretudo o pescoço delicado, como o de uma criança, emergindo-lhe do colarinho entreaberto da camisa, tudo isso lhe dava à fisionomia um ar de candura e juventude que ela nunca lhe vira. Aproximou-se, e num movimento rápido, elástico e gracioso, ajoelhou diante dele. Ele sorriu-lhe e estendeu-lhe a mão. [XXXII] Sete dias tinham decorrido desde que o príncipe André recuperara os sentidos na ambulância do campo de batalha de Borodino. Durante todo esse tempo esteve, por assim dizer, em estado de quase constante inconsciência. A febre e a inflamação dos intestinos, consequência, do ferimento que recebera, deviam ser- lhe fatais, na opinião do médico que o acompanhava. A verdade, porém, é que no sétimo dia tomou com apetite uma chávena, de chá com uma côdea de pão e o médico pode verificar que o estado febril baixara. Pela manhã recuperara a consciência. Na primeira noite após a partida de Moscovo, como estava bastante quente, permitira-lhe que dormisse no seu carro, mas nos Mitichtchi ele próprio pedira que o transportassem para debaixo de telha e lhe dessem uma chávena de chá. O sofrimento que lhe causou, porém, esse curto trajecto fê-lo gemer de dor e perder de novo os sentidos. Quando o deitaram na cama de campanha, por muito tempo ficou estendido de olhos fechados sem fazer o mais pequeno movimento. Depois abriu os olhos para murmurar: «E o chã?». A consciência que mostrava dos mais pequenos pormenores da vida surpreendeu o médico. Tomando-lhe o pulso, verificou, não sem grande surpresa e algum desgosto, que estava melhor. Não fora com grande satisfação que verificara o facto, pois, por experiência, sabia que o ferido não podia sobreviver e que se não morresse agora morreria pouco depois e no meio dos maiores sofrimentos, Desde Moscovo que se juntara ao grupo do príncipe André o major do seu regimento, Timokine, o militar de nariz rubicundo, ferido numa perna também na batalha de Borodino. Acompanhavam-nos o médico, o criado do príncipe, o cocheiro e duas ordenanças. Trouxeram a chávena de chá ao príncipe André. Bebeu avidamente, enquanto os olhos febris se voltavam para a porta que ficava na sua frente, como a tentar lembrar-se de qualquer coisa muito confusa. — Não quero mais. Timokine está aí? — perguntou. Timokine arrastou-se no banco até junto dele. — Presente, Excelência. — Como vai essa ferida? — A minha? Não vai mal. E a sua? O príncipe André pôs-se a cismar, como se procurasse fosse o que fosse na memória. — Poder-me-iam arranjar um livro? — disse ele.— Que livro? — O Evangelho. Não o tenho comigo. O médico prometeu que lhe arranjaria um e perguntou-lhe como estava. O príncipe André respondeu de má vontade a todas as perguntas, mas com tino, depois pediu que lhe pusessem uma almofada debaixo para o aliviar um pouco das dores que sentia. O médico e o criado soergueram o capote que o cobria e, respirando a custo, tal o cheiro pestilencial que se derramava da ferida, puseram- se a examinar a terrível chaga. O médico não pôde esconder o seu descontentamento e, fazendo-lhe outro penso, voltou o ferido, o que lhe provocou gemidos de dor, levando-o a perder de novo os sentidos e a delirar, Repetia sem cessar que lhe trouxessem o livro e que lho pusessem ao lado. — Que lhes custa? Preciso dele. Dêem-mo, façam favor. Ponham-no ali, nem que seja só por um momento — dizia, em voz queixosa. O médico saiu para o vestíbulo na intenção de lavar as mãos. — Ah! Malditos! Como hei-de eu confiar em vocês? — dizia para o criado, que lhe despejava água nas mãos. — Basta que me distraia um minuto. Ah! Não sei como ele pode suportar semelhantes dores! — Julgava que o tínhamos tratado bem, Jesus, meu Deus. — exclamou o criado. Pela primeira vez o príncipe André compreendeu onde estava e o que lhe acontecera. Lembrou-se de que fora ferido e que quando a sege parara nos Mitichtchi pedira que o levassem para uma isbá. Tendo então perdido de novo os sentidos, voltou a si quando o instalaram na isbá, ao pedir o chá, e ali lhe veio ao espírito tudo o que lhe acontecera. E reviu com toda a nitidez esse instante em que, na ambulância, ao ver quanto sofria o homem que ele mais detestava neste mundo, se sentira invadido por pensamentos que o haviam enchido de alegria. E eram esses mesmos pensamentos, conquanto mais confusos e nublados, que de novo se lhe apoderavam da alma. Percebeu que experimentava então uma felicidade desconhecida e sentiu que essa felicidade estava intimamente relacionada com o Evangelho, e por isso reclamara esse livro. Porém, as dores que tornou a sentir no momento em que lhe faziam o penso e o voltavam mais uma vez toldaram-lhe as ideias e quando voltou a ter consciência das coisas anoitecera por completo. Toda a gente dormia à sua volta. Um grilo cantava no vestíbulo; lá fora ouviam-se vozes e canções. As baratas corriam pela mesa, pelos ícones, pelostabiques; uma grande mosca zumbia junto da cabeceira da cama, esvoaçando em volta da vela colocada junto do leito e escorrendo sebo. Do ponto de vista mental, o príncipe André não estava em estado normal. O homem de espírito são aplica a sua faculdade de pensar, de sentir, de se recordar, simultaneamente, a um número infinito de coisas, mas dispõe do poder e da força necessários, desde que se detém num objecto determinado, para concentrar nele toda a sua atenção. O homem de espírito não sabe interromper os seus pensamentos mais absorventes para saudar a pessoa que chega e voltar em seguida às suas reflexões. Mas a verdade é que o príncipe André, desse ponto de vista, se achava num estado de espírito completamente anormal. As suas faculdades mentais mostravam-se mais activas e mais lúcidas do que nunca, mas agiam independentes da sua vontade. As imagens e o pensamentos mais diversos ocupavam-lhe simultaneamente o espírito. Por vezes, o pensamento trabalhava com uma tal força, uma tal clareza e uma profundeza tais como jamais lhe seria possível de perfeita saúde, e de súbito, em plena elaboração mental, a cadeia dos pensamentos quebrava-se-lhe e via-se substituída por toda a sorte de representações inesperadas, sendo-lhe impossível refazê-la. «Sim, uma felicidade desconhecida, que ninguém pode tirar ao homem, se me revelou», pensava, na meia obscuridade do quarto, fixando em frente, os olhos dilatados pela febre, «uma felicidade sobre que não têm o mais pequeno poder as forças físicas, as influências exteriores, a felicidade pura da alma, a felicidade do amor! Todos nós a podemos compreender, mas só Deus tem o poder de no-la dar a conhecer e de no-la revelar. Mas como nos revelou Deus esta lei de perfeita felicidade? Foi o Filho?...» De súbito o fio dos pensamentos quebrou-se-lhe e sem poder saber se era o delírio que o levava consigo ou se ouvia, realmente, alguma coisa, pareceu-lhe perceber uma voz que sussurrava constante e cadenciadamente as mesmas sílabas lancinantes: «Piti... piti... !» Ao mesmo tempo, ao som dessa estranha música, sentia, em pleno rosto, erguer-se-lhe como que uma construção mágica e fantástica, formada de finas agulhas e levíssimas aparas. Dava conta, apesar de isso lhe ser muitíssimo penoso, de que devia esforçar-se por mantê-la em equilíbrio e impedir que essa construção caísse por terra, mas a verdade é que ela acabava por ruir e voltava a reedificar-se, lentamente, ao com— passo da mesma música cadenciada e pipilante. «Vai subindo; vai subindo! Vai subindo sempre!», diziapara consigo mesmo. E no meio destas impressões de música múrmura e do edifício que se levantava, via, por momentos, o círculo vermelho do pavio da vela, ouvia o restolhar das baratas e o zumbir da mosca embatendo contra a almofada da cama e a cara. E de cada vez que lhe tocava no rosto sentia como que uma sensação de queimadura, surpreendidíssimo por, embatendo ela precisamente no ponto onde se levantava o tal estranho edifício, o não deitar por terra. Além disso, outro fenómeno importante se verificava ainda. A porta havia qualquer coisa branca, como que uma esfinge, que c, esmagava a ele também. «Não. Não pode ser. Talvez seja apenas a minha camisa em cima da mesa», pensava. «Ali estão as minhas pernas, e acolá a porta. Mas porquê, então, este edifício crescendo, crescendo, e esta música: ’Piti... piti...’? Basta, peço-lhe, basta, é de mais!», implorava. E subitamente os pensamentos e os sentimentos o assaltaram de novo, claros, poderosos como habitualmente. «Sim, o amor», disse consigo mesmo, de novo, completamente lúcido. «Mas não esse amor que se sente por alguma, coisa e por alguém, mas o amor como eu o senti pela primeira vez quando, no limiar da morte, se me deparou o meu inimigo e o amei. Senti então essa espécie de amor por assim dizer a essência da nossa alma e que dispensa perfeitamente o objecto amado. E ainda agora mesmo continuo a sentir esse bem-aventurado amor. Amar o próximo, amar os nossos inimigos, amar tudo e todos é amar Deus em todas as Suas manifestações. Amar alguém querido é amor de homem; só a um inimigo nos é dado amar com o amor de Deus. E aí está porque senti felicidade tamanha ao compreender que amava aquele homem. Que teria sido feito dele? Estará vivo ainda?... Quando queremos com um amor de homem, é-nos fácil passar do amor ao ódio, mas o amor de Deus, esse, não pode trair. Nada, nem a própria morte, o pode destruir. É a essência da própria alma. Odiei muita gente na minha vida. Mas a ninguém amei e odiei tanto como a ela.» E diante dos olhos surgia-lhe, com toda a nitidez, Natacha, não como outrora, envolta apenas em seus encantos exteriores. Pela primeira vez penetrava no intimo da sua própria alma. Percebia os seus sentimentos, as suas dores, a sua vergonha, o seu arrependimento. E agora, pela primeira vez, compreendia a crueldade da sua, repulsa, a crueldade do rompimento com ela. «Se ao menos me fosse dado, uma só vez, não queria mais, tornar a vê-la! Uma só vez tornar a ver- lhe os olhos e dizer-lhe...» «Piti, piti, ti, ti...», titilava-lhe aos ouvidos, enquanto a mosca lhe embatia nacara. E de súbito sentiu-se arrebatado para esse inundo, misto de realidade e alucinação, onde havia tão estranhas visões. O edifício, sem se desmoronar, continuava a crescer. Tornou a ver o círculo vermelho da vela, a esfinge, a sua camisa, perfilada à porta. Mas, além disso, ouviu um estalido, uma aragem fresca lhe bafejou a cara, e eis que uma nova esfinge branca, de pé, surgiu à porta. E essa esfinge tinha o rosto pálido e os olhos brilhantes, exactamente como os de Natacha, em quem ele acabava de pensar. «Oh!, que doloroso este delírio!», disse para si mesmo, procurando afastar dos olhos aquela aparição. Mas a forma que se erguia diante dele com o contorno de coisa real ia-se aproximando. Teria desejado voltar aos domínios do pensamento que acabava de abandonar, mas não lhe era possível e ei-lo irresistivelmente arrastado para as regiões do sonho. A voz tranquila e sussurrante continuava a entoar a sua cadenciada melodia. Qualquer coisa o sufocava, se erguia, e a estranha figura sempre diante dele. Para recuperar a noção das coisas chamou a si todas as forças de que dispunha. Esboçou um movimento, mas, de súbito, zumbiram-lhe os ouvidos, a vista toldou-se-lhe e, como um homem que se afoga, perdeu os sentidos. Quando voltou a si, Natacha, a Natacha de carne e osso, aquela a quem ele, entre todas as criaturas humanas, queria amar com esse novo amor, esse amor puro e divino que se lhe revelara, estava de joelhos diante dele. Compreendeu estar realmente em presença da verdadeira Natacha, e em vez de surpreendido sentiu-se tomado de uma tranquila alegria, Natacha, de joelhos, sem ousar mexer- se, os olhos pávidos fixos nele, sufocava os soluços que lhe abalavam o corpo. Estava pálida e tinha , expressão imóvel. Apenas a parte inferior do rosto se lhe agitava com um tremor nervoso. O príncipe André suspirou aliviado, sorriu e estendeu-lhe a mão. — Mas é... Que felicidade! Natacha chegou-se mais para ele, sempre de joelhos, pegou-lhe cautelosamente na mão, inclinou sobre ela a cara e beijou-a mal a aflorando com os lábios. — Perdoe-me! — murmurou, erguendo para ele os olhos. — Perdoe-me! — Amo-a — disse ele. — Perdoe-me... — Que lhe hei-de perdoar? — Perdoe-me o que lhe fiz — murmurou ela, numa voz entrecortada e quaseimperceptível, continuando a beijar-lhe a mão. — Amo-te, muito mais, muito melhor que antigamente — voltou ele, forçando-a a soerguer a cabeça, para lhe ver os olhos. Os olhos de Natacha, rasos de lágrimas felizes, pousaram-se nos dele, timidamente, cheios de compaixão, de alegria e de amor. O seu rosto pálido e afilado, de lábios túmidos, não era belo, metia medo. Mas André não reparava nele, apenas via a beleza daqueles olhos cintilantes. Um ruído de vozes se ouviu atrás deles. O criado de quarto, Piotre, que entretanto despertara completamente, sacudia o médico. Timokine, sem dormir por causa das dores que o ferimento da perna lhe ocasionava, que vira toda a cena, encolhera-se no banco, puxando para si, cautelosamente, a roupa que o cobria. — Que é? — perguntou o médico soerguendo-se na enxerga. Faça favor de se retirar, menina. Nessa altura uma criada que viera atrás de Natacha a mandado da condessa batia à porta. Como uma sonâmbula a quem despertassem no meio do sono. Natacha acompanhou-a e quando chegou ao quarto deixou-se cair a soluçar em cima da cama. Desde aquele dia, durante a longa jornada dos Rostov, aproveitando as paragens e os lugares onde pernoitavam, Natacha aparecia sempre junto de Bolkonski. O médico vira-se obrigado a reconhecer que nunca imaginara numa rapariga tanta firmeza e tanta habilidade para tratar de um doente. Apesar do horror que lhe causava a ideia de que o príncipe iria morrer durante a viagem e entre as mãos de sua filha, hipótese, segundo o médico, muito verosímil, a condessa viu-se obrigada a transigir. Ao ver reatadas aquelas relações chegou a pensar que se o príncipe se curasse talvez viessem a ficar noivos outra vez. A verdade, porém, é que ninguém falava em tal coisa e muito menos os próprios interessados, O dilema vida ou morte, suspenso não só sobre a cabeça de Bolkonski, mas sobre a Rússia inteira, em nada mais deixava pensar. [XXXIII] No dia 3 de Setembro, Pedro acordou tarde. Doía-lhe a cabeça. O fato que não despira para dormir enrodilhava-se-lhe no corpo e sentia a vaga consciência de que cometera na véspera qualquer acto vergonhoso. Esse acto era a conversa íntima com o capitão Ramballe. O relógio mareava onze horas, mas lá fora estava muito escuro. Pedro levantou-se, esfregou os olhos, e ao ver a pistola de punho incrustado que Guerassime voltara a pôr em cima da secretária lembrou-se onde estava e do que tinha a fazer precisamente nesse dia. «Não estarei já atrasado?», interrogou-se a si mesmo. «Não, É de crer que ele não entre em Moscovo antes do meio-dia.» Não se permitiu sequer pensar no que tinha a fazer, tratou de o pôr em prática o mais depressa possível. Depois de pôr algum alinho na roupa que o incomodava, pegou na pistola, decidido a partir. Só então, porém, lhe veio à mente como levar rua fora a arma de que precisava, já que a não podia levar na mão. Nem mesmo debaixo do amplo cafetã lhe seria possível esconder a grande pistola, e se a levasse à cintura ou debaixo do braço toda a gente daria por isso. Aliás, a pistola estava descarregada e não tivera tempo de a carregar de novo. «Um punhal também servia», dizia de si para consigo, embora mais de uma vez, ao pensar na realização daquele projecto, tivesse considerado o emprego do punhal o maior erro do estudante que em 1809 quisera matar Napoleão. No entanto, como o que lhe importava antes de mais nada não era realizar o acto projectado, mas provar a si próprio que não renunciava a ele e que estava disposto a tudo fazer para conseguir o seu fim, pegou . Pressa no punhal da bainha verde, cheio de mossas, que comprara aquando a pistola ao pé da Torre de Sukarieve, e escondeu-o debaixo do colete. Depois de afivelar o cinturão do cafetã e de enterrar o barrete até aos olhos, cautelosamente, não fosse acordar alguém ou encontrar-se cara a cara com o capitão, atravessou o corredor e saiu para a rua. O incêndio que na véspera tão pouca atenção lhe merecera estendera-se durante a noite por uma larga área. Moscovo ardia já por todos os lados. O fogo atingia ao mesmo tempo a Rua Karetnaia, o bairro do outro lado do rio, Gostini Dvor, a Povarskaia, onde ardiam as barcas, e os estaleiros de madeira junto à Ponte Dorogomilov. Pedro pensava dirigir-se, através de ruas desviadas, à. Rua Povarskaia, e daíseguir até à de Arbate, donde seguiria para S. Nicolau Iavleni, onde de antemão assentara executar o acto que congeminara. A maior parte das casas tinha os portas e as portadas das janelas cerrados, Ruas e becos estavam desertos. No ar pairava o cheiro a fumo e a queimado. De vez em quando encontravam-se russos, de expressão tímida e inquieta e franceses, de ar marcial, seguindo pelo meio das calçadas. Tanto uns como outros olhavam para Pedro com espanto. A sua alta estatura, a sua corpulência e o seu rosto carrancudo e concentrado em que havia uma espécie de sofrimento já de si chamavam a atenção. Enquanto os russos o examinavam perguntando a si mesmos a que classe poderia pertencer aquele, indivíduo, os franceses seguiam-no com a vista, simplesmente porque, em vez de os olhar, a eles, como faziam os seus demais compatriotas, cheios de inquieta curiosidade, não lhes prestava a menor atenção. Junto ao portal de uma casa, três franceses, que tentavam explicar o que quer que fosse a uns russos, que os não compreendiam, detiveram Pedro para lhe, perguntar se ele sabia francês. Pedro abanou a cabeça negativamente e prosseguiu o seu. Mais adiante, uma sentinela de guarda a um armão pintado de verde gritou-lhe que se afastasse e só depois da segunda e ríspida advertência, ao ouvi-lo engatilhar a espingarda, compreendeu que devia seguir pelo outro lado da rua... Não via, nem ouvia o que se passava à sua roda. Dir-se-ia, levar consigo o seu projecto, apressado e apavorado, e sem poder esquecer o que lhe acontecera lia noite anterior, como quem transporta, cheio de medo de o perder, um objecto terrível que lhe não pertence. Ainda mesmo que o não tivessem retido no caminho, esse projecto não se teria realizado, pois havia mais de quatro horas naquele momento que Napoleão, depois de atravessar os arrabaldes de Dorogonulov, cruzara o Arbate para dirigir- se ao Kremlin, onde naquela altura, sorumbático e preocupado, no gabinete do czar, dava ordens pormenorizadas sobre a, extinção imediata do incêndio que lavrava em Moscovo, a repressão da pilhagem e a tranquilidade dos habitantes da capital. Pedro, contudo, ignorava-o Inteiramente absorto no presente, o que o atormentava, como acontece a todos os obstinados que se propõem realizar qualquer coisa impossível, não eram as dificuldades que teria, mas o facto de a sua natureza íntima recalcitrar contra um acto daquela espécie: tinha medo de fraquejar no momento decisivo, perdendo, assim, toda a consideração por si próprio. Embora cego e, surdo ao que se passava à sua roda, por instinto seguia caminho certo e não se enganava no meio do dédalo de ruas e ruelas que levavama Povarskaia. À medida que se aproximava, o fumo era cada vez mais denso. Por vezes fazia já um certo calor. Aqui e ali erguiam-se chamas dos telhados das casas. Havia mais gente nas ruas e as pessoas pareciam mais desassossegadas. Pedro, embora percebesse estar a passar-se qualquer coisa de anormal, ainda não se dera conta de que se aproximara do coração do incêndio. Na altura em que metia por um caminho através de vastos terrenos devolutos, que por um lado iam até à Rua Povarskaia e pelo outro confinavam com os jardins do palácio do príncipe Gruzinski, ouviu, de súbito, muito perto, gritos desesperados de mulher. Estacou, como se de chofre acordasse de um sonho e ergueu a cabeça. De um dos lados do caminho, sobre a erva seca e poeirenta, amontoavam-se móveis e objectos caseiros: colchões, samovares, ícones, baús. Junto de tudo aquilo sentava-se uma mulher magra e idosa, cujos dentes superiores eram grandes e salientes, com uma capa preta pelas costas e um gorro na cabeça. Balouçando-se e dizendo palavras sem nexo, soltava grandes soluços. Duas pequenitas, entre dez e doze anos, de vestiditos sujos e capitas de peles, olhavam para a mãe, muito pálidas, assustadas. Um rapazinho, mais novo ainda, dos seus sete anos, de cafetã pelas costas e um chapéu grande de mais na cabeça, chorava nos braços de uma velha ama. Sentada num baú estava uma criada sórdida, descalça, que, desfazendo a trança dos cabelos louros, arrancava as madeixas queimadas, cheirando-as. O marido da mulher magra e idosa, gordalhudo, de uniforme de funcionário público, mediana estatura, suíças encaracoladas e um pouco curvado, remexia, impassível, nos baús amontoados uns sobre os outros, a procura de roupa. Vendo Pedro, a mulher quase se lhe atirou aos pés. — Padres santos! Cristãos ortodoxos! Salve-nos, acuda-nos, meu senhor! Seja quem for, acuda-nos — gritava-lhe, soluçando. — Uma menina!... A minha filha!... A minha filha mais nova, deixaram-na lá... Está queimada! Oh!, oh! Foi para isso que eu lhe dei tanto mimo... Oh!, oh!, oh! — Então, basta. Maria Nikolaievna — exclamava o marido, numa voz serena, naturalmente apenas para se desculpar diante do estranho. — É provável que a nossa irmã a tenha levado. Se assim não fosse, onde havia ela de estar? — Monstro! Malandro! — gritou a mulher enfurecida, cessando, subitamente, de se lamentar. — Não tens coração, nem sequer tens pena da tua filha! Outro que fosses, tinha-la ido arrancar às chamas. Mas és um monstro, não és umhomem, não és um pai. Ouça o senhor é um mancebo às direitas — continuou ela, mudando rapidamente de tom, e choramingando, voltada para Pedro. — O fogo andava na casa ao lado da nossa e — depois passou para o lado de cá. A minha criada principiou a gritar: «Fogo, fogo!» Tratámos logo de salvar as nossas coisas. Fugimos com o que tínhamos no corpo. — Aqui tem o que a gente pôde salvar... Este ícone, abençoado por Deus, e a cama do meu dote. Tudo o mais lá ficou. Juntámos as crianças. A Katetchka, nada! Oh!, oh!, oh! Senhor!... — E recomeçou a soluçar. — A minha filhinha morreu queimada! Morreu queimada! — Mas onde ficou? — inquiriu Pedro. Pela expressão animada que lhe entreviu, a mulher percebeu estar ele disposto a ajudá-la. — Paizinho! Meu Paizinho! — soluçou ela, abraçando-se-lhe aos joelhos. — Meu benfeitor, sossega ao menos o meu coração... Aniska, estafermo, anda, acompanha-o — gritou ela, furiosa, para a criada, abrindo muito a grande boca e deixando ver ainda mais os imensos dentes. — Venha comigo, venha comigo, eu... eu farei tudo que for possível — deu-se pressa em dizer Pedro numa voz embargada. A criada emergiu lá do meio das malas e baús, deu um jeito à trança e com um grande suspiro meteu-se a caminho, descalça. Dir-se-ia que Pedro voltava subitamente à vida depois de um longo desmaio. Ergueu a cabeça, os olhos fuzilaram-lhe, depois seguiu apressadamente atrás da criada, juntou-se a ela e enfiou pela Rua Povarskaia. Uma negra e espessa fumarada enchia a rua. Línguas de fogo rodopiavam dos telhados e das janelas. Grande multidão se agrupava nas imediações do incêndio. No meio da rua, um general francês arengava às pessoas que o cercavam. Pedro, ao lado da criada, ia aproximar-se do local onde estava o oficial francês quando um soldado lhe cortou o passo. — Não se pode passar — gritou-lhe. — Por aqui, Tiozinho — disse-lhe a criada. — Vamos por aqui, pela Rua de S. Nicolau. Pedro deu meia volta e seguiu atrás da mulher, em grandes passadas, para poder acompanhá-la. Esta atravessou a rua a correr, voltou à esquerda, meteu por um beco e, depois de ultrapassar duas ou três casas, enfiou, à direita, por um portal.— É mesmo ali — exclamou. Atravessou o pátio correndo, abriu a cancela da divisória e, detendo-se, apontou a Pedro um pavilhãozinho de madeira a arder e do qual se desprendia muito calor. Metade já as chamas tinham devorado; o resto ainda ardia e uma labareda muito clara saía das aberturas das janelas e do tecto. Assim que transpôs a cancela, o bafo do calor sufocou-o, recuando involuntariamente. — Qual, qual é a vossa casa? — perguntou. — Aquela! — choramingou a criada, apontando para o pavilhão. — É aquela a nossa casinha, aquela! E tu lá no meio das chamas, Katetchka, minha querida menina... — Diante da casa em chamas, Aniska julgava-se obrigada a dar testemunho dos seus sentimentos. Pedro avançou direito ao pavilhão, mas o calor que dele irradiava era tal que viu-se obrigado a contorná-lo e assim veio a, achar-se diante de um casarão que estava a arder num dos ângulos do telhado e em volta do qual enxameavam muitos franceses. De princípio não percebeu o que estavam a, fazer, carregando várias coisas, mas ao ver um deles vibrar duas sabradas num camponês para lhe arrancar das mãos uma capa de peles de raposa, compreendeu vagamente que andavam na pilhagem. Aliás, não teve tempo sequer de pensar duas vezes. O fragor das paredes e dos vigamentos desmoronando-se, o silvo das chamas, os gritos estridentes da multidão, os penachos de fumo, ora negros e espessos, ora mais transparentes e sulcados pela cintilação das fagulhas, das chamas, quer vermelhas, compactas, como medas de fogo, quer como escamas de ouro, trepando ao longo das paredes das casas, tudo isto e a sufocação que a carreira lhe causara e a transpiração produzida pelo calor criaram nele um estado de enervamento vulgar em tais circunstâncias. Tão violento foi o efeito nele produzido por tudo isto que de súbito se sentiu como que liberto dos pensamentos que o obcecavam. Dir- se-ia mais novo, mais alegre, mais ágil e decidido. Contornou o pavilhão pelo lado da casa e arremetia já pela parte ainda de pé, quando, precisamente por cima da cabeça, ouviu gritos, logo seguidos de um estalido e do som de qualquer coisa pesada que lhe veio cair ao lado. Pedro voltou-se: uns franceses atiravam, de uma janela abaixo, a gaveta de uma cómoda cheia de objectos de metal. Outros soldados franceses, em baixo, aproximaram-se.— Bem, que é que ele quer? — gritou um deles ao ver Pedro. — Uma criança nesta casa. Não viu uma criança? — perguntou este. — Essa agora! Que está ele a dizer? Vai passear! — exclamaram diversas vozes e um dos soldados, receoso de que Pedro lhe roubasse algumas das alfaias de prata e bronze que enchiam a gaveta, avançou para ele, ameaçador. — Uma criança? — gritou um francês lá de cima. — Ouvi piar alguém no jardim. Talvez seja o garoto do pobre diabo. É preciso sermos humanos... — Onde está ele? Onde está ele? — inquiriu Pedro. — Ali! Ali! — gritou-lhe o francês, da janela, apontando-lhe para o jardim por detrás da casa.— Espere, eu vou lá abaixo. E, realmente, momentos depois, o francês, um rapagão moreno, com uma mancha na cara, em mangas de camisa, saltava pela janela do rés-do-chão e, dando uma palmada no ombro de Pedro, corria com ele para o jardim. — Despachem-se — gritava o francês aos camaradas— Começa a aquecer. Travando do braço de Pedro, levou-o consigo para as traseiras da casa, por um caminho areado, e olhou em roda. Debaixo de um banco, deitada, estava uma pequenita dos seus três anos com um vestidinho cor-de-rosa. — Aqui tem o seu garoto. Ah!, é uma pequena! Ainda bem! — exclamou ele. — Adeus! É preciso sermos humanos. Somos todos mortais. — E voltou para junto dos camaradas. Sufocado de alegria, Pedro correu para a pequenita e quis pegar-lhe ao colo. Mas esta, uma pobre criança de aspecto enfermiço e expressão desagradável, tal qual a mãe, principiou a gritar assim que viu um estranho caminhar para ela, fugindo. Pedro conseguiu, no entanto, deitar-lhe a mão. Então os seus gritos recrudesceram, esperneando, sacudindo as mãos para lhe escapar e tentando mesmo mordê-lo. Um sentimento de repulsa e horror se apoderou de Pedro; dir-se- ia que Locara num animal repugnante. Teve de vencer a sua relutância para não abandonar ali mesmo a criança, e correu para a casa com o fardo nos braços. Já não era possível, contudo, seguir o mesmo caminho. Aniska já não estava onde ele a deixara, e então Pedro, estreitando contra si, num misto de carinho e repugnância, a pequenita, que gritava com desespero, abalou com ela, jardim fora, na esperança de encontrar outra saída. [XXXIV] Quando, depois de atravessar vários pátios e becos, voltou ao jardim de Gruzinski, à esquina da Rua Povarskaia, sempre com a criança nos braços, Pedro principiou por não reconhecer o sítio onde estava, tanta a gente ali acumulada e tantos os salvados das casas em volta. Além das famílias russas e dos seus haveres arrancados ao fogo, viam-se ali soldados franceses de diversos regimentos. Pedro não reparou neles. Tinha pressa de encontrar a família do funcionário para entregar a criança à mãe e voltar prestar os seus serviços na esperança de ser útil. Parecia-lhe que ainda havia muita coisa a fazer e que era preciso não perder tempo. Excitado pela carreira e pelo calor das chamas, ainda mais sentia o ardor juvenil e a energia que se apossaram dele quando acorrera a salvar a criança. A pequenita calara-se, e fincando as mãozitas no cafetã de Pedro aninhava-se-lhe nos braços, olhando à roda com uns olhitos de animal bravio. Pedro mirava-a de quando em quando e sorria-lhe. Havia qualquer coisa de comovedor na expressão assustada daquela carinha inocente e enfermiça. Do funcionário e da mulher nem rasto no lugar onde ele os deixara, E lá ia, em grandes passadas, de grupo em grupo, perscrutando toda a gente. Ao passar, em dada altura, viu uma família georgiana ou arménia: um velho, de belo tipo oriental, de tulupe debruada e botas novas, uma velha do mesmo tipo e uma rapariga. Esta última, muito nova, afigurou-se-lhe um exemplar perfeito de beleza oriental, com as suas sobrancelhas negras, arqueadas, de perfeito desenho, e o seu belo e longo rosto corado, de uma extraordinária doçura, se bem que absolutamente inexpressivo. No meio de todos aqueles objectos espalhados pelo chão, entre aquela multidão, naquela praça, com a sua rica capa de cetim pelas costas e na cabeça o seu lenço violeta-vivo, dir-se-ia uma delicada planta de estufa abandonada à neve. Sentada em cima de uns embrulhos, um pouco à retaguarda da velha, pousava no chão os grandes olhos imóveis, talhados em amêndoa, de longas pestanas. Via-se perfeitamente que sabia ser bonita e que isso a preocupava. Tanto o surpreendeu a sua cara que Pedro, ao passar por ela, apressado, ao longo do tapume, a fitou várias vezes. Entretanto, tendo chegado ao extremo do tapume, e não vendo em parte alguma quem procurava, parou, indeciso.A sua figura, com a criança ao colo, dava agora mais na vista alguns russos, homens e mulheres, aproximaram-se dele. — Perdeste alguém, amigo? És fidalgo, não és? De quem é essa criança? — perguntavam— lhe. Pedro explicou que a criança era da mulher de capa preta que há pouco ali estava com os seus outros filhos e perguntou se porventura a não conheceriam e aonde fora. — Devem ser os Anferov — interveio um diácono, dirigindo-se à mulher picada de bexigas... — Deus se amerceie de nós! — acrescentou ele na sua voz de baixo. — Quê? Os Anferov? — respondeu uma mulher. — Os Anferov foram-se esta manhã. Talvez os Maria Nikolaievna ou então os Ivanov. — Ele está a falar numa mulher e Nikolaievna é uma senhora — observou um lacaio. — Devem conhecê-la. Tem os dentes muito grandes, é magra. — volveu Pedro. — Sim, então é a Maria Nikolaievna. Fugiram para o jardim na altura em que estes lobos aqui apareceram — disse a velha, apontando para os soldados franceses, — Oh! Senhor, misericórdia! — continuava o diácono. — Por aqui, por aqui encontra-os. É, é ela. Estava a chorar a lamentar-se... — disse a, mulher. — Sim. é ela com certeza. Por aqui. Mas Pedro já a não ouvia. Estava a observar uma cena a pouca distancia entre a família arménia e dois soldados franceses. Um deles, baixinho, vivo, envergava um capote azul cingido ao corpo por uma corda. Na cabeça trazia um quépi de polícia e estava descalço. O outro, em que Pedro especialmente atentara, era um rapazola alourado, com uma capa de lã, umas calças azuis, minto largas, e botas de montar todas rotas. O pequeno, que não tinha botas, aproximou-se dos arménios, disse-lhes qualquer coisa, apontou para os pés do velho e este deu-se pressa em descalçar-se. O outro postou-se diante da bela arménia e pôs-se a olhar pira ela, calado, de mãos nas algibeiras. — Toma, toma a criança — disse Pedro, de súbito, e num tom autoritário, para a velha. — Tu encarregas-te de a entregares, hem! Estás a ouvir? — E depôs no chão a criança, que chorava, voltando-se para o grupo dos franceses e dos arménios. O velho já estava descalço. O soldado francês que acabava de se apoderar dasegunda bota batia uma contra a outra. O pobre homem, com as lágrimas nos olhos, murmurava qualquer coisa. Mas Pedro não prestava grande atenção a essa cena. Estava atento ao que se passava com o outro soldado, que entretanto, pouco a pouco, se fora aproximando da rapariga e lhe levara, mesmo, a mão ao pescoço. A arménia ficara imóvel, com as suas longas pestanas baixas, como se nada visse nem desse pelo que se passava. Ainda Pedro não chegara junto do francês, já o bandido arrancara o colar que a arménia trazia ao pescoço. A pobre, levando as mãos à garganta, soltara um grito agudo. — Deixe a mulher! — vociferou Pedro, agarrando-o pelos ombros e atirando-o ao chão. O soldado caiu, levantou-se e deitou a fugir. Mas o companheiro, jogando fora as botas, sacou da baioneta, e caminhou ameaçador para Pedro. — Então, nada de tolices! — gritou. Pedro fora tomado por um desses seus acessos de fúria em que por nada dava e em que as forças se lhe multiplicavam. Caiu sobre o soldado, e antes que este pudesse servir-se da baioneta prostrara-o e cobria-o de murros. A multidão pôs-se a gritar, incitando-o. Nesse momento contudo desembocava da esquina da rua uma patrulha montada de ulanos franceses que a galope avançou sobre os dois, cercando-os. Pedro não deu pelo que depois se passou. Lembrava-se vagamente de ter esmurrado alguém, de lhe responderem na mesma moeda, acabando por lhe amarrarem as mãos atrás das costas enquanto um magote de soldados rodeava e revistava. — Ele tem um punhal, tenente! — Eis as primeiras palavras que distintamente pôde compreender. — Ah!, uma arma! — exclamou o oficial. E dirigindo-se ao soldado amador de botas, sob prisão como o próprio Pedro: — Muito bem, explicarão tudo isso no Conselho de Guerra — advertiu-o. E depois, voltando-se para Pedro: — Fala francês? Pedro olhou em volta de si com os olhos injectados de sangue e não respondeu. Era de crer que o seu aspecto não fosse dos mais tranquilizadores, pois o oficial deu uma ordem em voz baixa e quatro ulanos saíram do pelotão indo colocar-se à direita e à esquerda do preso.— Fala francês? — repetiu o oficial, conservando-se a respeitosa distancia. — Mande vir aqui o intérprete. Um homenzinho de pequena estatura, vestido à paisana, saiu das fileiras. Pedro, pelo seu vestuário e a sua maneira de falar, Percebeu imediatamente tratar-se de um empregado de uma loja de Moscovo. — Não tem ar de homem do povo — observou o intérprete, depois de um breve exame. — Oh!, oh! Tem todo o ar de ser um desses incendiários — comentou o oficial. — Pergunte-lhe o que é ele. — Quem és tu? — perguntou o intérprete. — Deves responder às autoridades. — Não tenho que lhes dizer quem sou. Sou vosso prisioneiro. Levem-me. — disse Pedro, subitamente, em francês — Ah!, ah! — exclamou o francês franzindo o sobrolho. — Partamos! A multidão fizera roda em torno dos ulanos, Junto de Pedro estava a mulher bexigosa de há pouco com a pequenita ao colo. Quando a patrulha se pôs em marcha, a mulher seguiu-a. — Aonde te levam eles, santinho? — interrogou-o ela. — E a pequena, que hei-de eu fazer-lhe, se não for deles? — Que quer essa mulher? — perguntou o oficial. Pedro parecia embriagado. Ao ver a pequenita a quem salvara a vida ainda mais exaltado ficou. — Que diz ela? — vociferou ele. — Traz-me a minha filha, que eu acabei de salvar das chamas. Adeus! — E, sem que ele próprio soubesse porque dissera tal mentira inútil, pôs-se a marchar, num passo enérgico e solene, entre a escolta francesa. Esta patrulha fazia parte do número das patrulhas enviadas por Durosnel para diferentes bairros da cidade com a missão de dar caça aos salteadores e especialmente deitar a mão aos bandidos que, segundo a opinião nessa altura dominante no alto comando francês, haviam incendiado Moscovo. Depois de atravessar várias ruas, a patrulha deitou ainda a mão a cinco russos suspeitos, um boticário, dois seminaristas, um camponês, um lacaio, e a um certo número de salteadores. Mas, de todos os suspeitos, Pedro parecia o mais perigoso. Quando os conduziram à prisão militar, estabelecida num casarão junto da muralha de Zubovo, foi isolado dos outros e submetido a uma vigilância rigorosa. LIVRO QUARTO PRIMEIRA PARTE [I] [II] [III] [IV] [V] [VI] [VII] [VIII] [IX] [X] [XI] [XII] [XIII] [XIV] [XV] [I] Entretanto, nas altas esferas de Petersburgo, a complicada luta dos partidários de Rumiantsov, dos Franceses, de Maria Feodorovna, do czarevitch, luta a que vinha juntar-se, como sempre, o zumbido dos moscardos cortesãos, continuava mais encarniçada do que nunca. Mas a vida tranquila, luxuosa, exclusivamente preocupada com miragens e aparências, essa prosseguia o seu curso habitual. Seriam precisos grandes esforços para essa gente se dar conta do perigo e das dificuldades que apresentava a situação do povo russo. Continuavam a celebrar-se as mesmas representações no teatro francês. Subsistiam os mesmos interesses e as mesmas intrigas de corte e hierarquia. Apenas nas muito altas esferas havia quem se preocupasse em conhecer a verdadeira situação. A boca pequena falava- se na maneira como as duas imperatrizes, em tão graves circunstâncias, procediam de forma completamente diferente. A imperatriz Maria Feodorovna, preocupada antes de mais nada com os estabelecimentos hospitalares e educativos confiados aos seus cuidados, tomara as suas medidas para que esses institutos fossem transferidos para Kazan e já mandara encaixotar tudo o que lhes pertencia. A imperatriz Elizabeth Alekseievna, pelo contrário, com o seu habitual patriotismo, quando lhe perguntaram quais as suas ordens, respondera que não tinha ordem alguma a dar relativamente aos estabelecimentos do Estado, pois isso era assunto que só ao imperador dizia respeito. E quanto a si própria declarara que seria a última pessoa a deixar Petersburgo. A 26 de Agosto, no dia da batalha de Borodino, Ana Pavlovna dava uma recepção cujo principal atractivo consistia na leitura da carta do metropolita, escrita por ocasião do envio ao imperador da imagem do bem-aventurado S. Sérgio. Essa carta era considerada um modelo de patriotismo e de eloquência religiosa, Foi o príncipe Vassili, afamado pelo seu talento de declamação, quem se encarregou da leitura. Inclusivamente, já a lera para a própria imperatriz. O seu talento consistia especialmente em pronunciar em voz forte e cantante, passandodo tom grave ao tom açucarado, e isso sem a mais pequena relação com o significado das palavras, de sorte que era perfeitamente ao acaso que avolumava o tom em certos passos, quase murmurando outros. Esta leitura, como, aliás, todas as recepções de Ana Pavlovna, tinha significado político, Deviam encontrar-se aí várias personalidades que corariam de vergonha por continuarem, a frequentar o Teatro francês e a quem queria chamar-se à ordem insuflando-lhes sentimentos mais patrióticos. Já estava muita gente nos seus salões, mas a dona da casa ainda não vira entrar quem esperava, e assim toda a gente principiara a conversar antes que se iniciasse a leitura. A notícia da última hora era o estado de saúde da condessa Bezukova. Dias antes sentira-se subitamente indisposta, tendo faltado a várias reuniões de que era o principal ornamento. Dizia-se que a ninguém recebia e que em vez de chamar as celebridades médicas de Petersburgo que habitualmente a tratavam, se confiara a um certo médico italiano, que estava a aplicar-lhe um método novo e completamente desconhecido. Toda a gente sabia muito bem que a doença da encantadora condessa era devida ao embaraço em que a punha o ter de escolher entre dois maridos e que o tratamento do italiano visava sobretudo ajudá-la a sair desse embaraço. Mas diante de Ana Pavlovna ninguém ousava abordar esta questão delicada ou fazer- lhe sequer qualquer alusão. — Dizem que a pobre condessa está muito mal, o médico é de opinião que se trata de uma angina de peito. — A angina? Oh!, que doença terrível! — Dizem que os rivais se reconciliaram por causa da angina... — Grande era o prazer com que pronunciavam a palavra angina... — O velho conde faz pena, segundo dizem. Chorou como uma criança quando o médico lhe disse que o caso era grave. — Oh!, que perda terrível! É uma mulher deslumbrante. — Está a falar da condessa — disse Ana Pavlovna, aproximando-se. — Mandei saber do seu estado. Parece que esta um pouco melhor. Não há dúvida de que é a mais encantadora das mulheres — acrescentou, sorrindo do seu próprio entusiasmo. — Pertencemos a campos diferentes, mas isso não me impede de a apreciar como ela merece. É muito infeliz. Julgando que Ana Pavlovna, com estas últimas palavras, queria erguerligeiramente a ponta do véu que envolvia aquela doença misteriosa, um rapazola, estouvadamente, permitiu-se mostrar-se surpreendido com o facto de se não terem chamado médicos conhecidos em vez de entregarem a condessa aos cuidados de um charlatão, capaz de lhe ministrar remédios perigosos. — As suas informações podem ser melhores do que as manhãs. — replicou-lhe azedamente a dona da casa. — Mas eu sei, de fonte segura, que este médico e um homem muito sabedor e muito competente. É um médico íntimo da rainha de Espanha. E depois de assim ter tapado a boca ao mancebo, voltou-se para onde estava Bilibine, que, noutra roda, de testa enrugada, se preparava para a desenrugar, pois ia dizer um mot., falava dos Austríacos. — Acho encantador — dizia, a propósito do documento diplomático que acompanhava a Viena as bandeiras austríacas tomadas por Wittgenstein, o herói de Petropol, como lhe chamavam em Petersburgo. — Como? — perguntou Ana Pavlovna, tentando calar os que falavam para que toda a gente pudesse ouvir o dito espirituoso, o qual, aliás, ela já conhecia. Bilibine citou as próprias palavras do despacho diplomático, que ele mesmo redigira: — O imperador restitui as bandeiras austríacas, bandeiras amigas e descaminhadas que ele encontrou fora da estrada — disse, desenrugando a testa. — Magnífico! Magnífico! — confirmou o príncipe Vassili. — É a estrada de Varsóvia, talvez — exclamou em voz alta e inopinadamente o príncipe Hipólito. Toda a gente se voltou para ele, embora ninguém compreendesse o que ele queria dizer. O próprio Hipólito teve um olhar surpreendido. Também ele não compreendia, aliás como os outros, o que aquelas palavras queriam dizer. No decurso da sua carreira diplomática, mais de uma vez tivera ocasião de observar que as coisas ditas ao acaso eram às vezes consideradas muitíssimo espirituosas, e por isso a torto e a direito dizia o que lhe Passava pela cabeça. «Talvez isto tenha muito êxito e, se o não tiver, eles lá se encarregarão de tirar partido do que eu disse.» E, com efeito, no momento em que se ia fazer um silêncio algo embaraçoso, entravam no salão as personalidades insuficientemente patrióticas que Ana Pavlovna aguardava, e ela, sorrindo, enquanto ameaçava com o dedo o príncipe Hipólito, pedia ao príncipe Vassili que se aproximasse da mesa. Depois trouxe,duas velas, o manuscrito, e convidou-o a encetar a leitura. Toda a gente se calou. «Mui augusto soberano e imperador!», exclamou o príncipe Vassili numa voz severa, lançando um olhar à sua roda que parecia inquirir se tinham alguma objecção a fazer. Como ninguém abrisse a boca, continuou: «Moscovo, a tua primeira capital, a Nova Jerusalém, vai receber o seu Cristo...», e sublinhou fortemente a palavra «seu», «...como uma mãe que se lança nos braços dos seus filhos bem-amados, e por entre as trevas, acautelando a glória brilhante do teu poder, canta com entusiasmo: Hossana! Bendito seja aquele que chega!» O príncipe Vassili pronunciou estas últimas palavras em voz chorosa. Bilibine contemplava com grande atenção as suas próprias unhas e vários convidados entreolhavam-se, receosos, como que a perguntarem uns aos outros de que seriam culpados. Ana Pavlovna antecipou-se a dizer em voz sussurrante, como as velhas ao tomarem a sagrada comunhão, as palavras que o príncipe Vassili ia dizer: «Que o audacioso e o impudente Golias...» O príncipe Vassili prosseguiu, realmente: «Que o audacioso e impudente Golias, vindo das fronteiras da França, inunda as terras da Rússia dos seus horrores mortíferos; a humilde fé, essa funda do David russo, abaterá, de súbito, a sua orgulhosa cabeça ávida de sangue, Esta imagem do bem-aventurado Sérgio, o defensor secular da paz da nossa pátria, será apresentada a Vossa Majestade Imperial. Lamento que as minhas débeis forças me impeçam de gozar da contemplação do vosso rosto. Envio ao Céu as mais fervorosas orações para que o Todo— Poderoso se digne multiplicar a raça dos justos e levar a bom termo os desejos de Vossa Majestade,» — Que força! Que estilo! — diziam, elogiando ao mesmo tempo o autor e o leitor. Reconfortados com aquela prova de eloquência, os convidados de Ana Pavlovna por muito tempo ainda conversaram sobre a situação da pátria, fazendo vários prognósticos sobre o resultado da batalha que se esperava para dentro de dias. — Vai ver — dizia Ana Pavlovna — que amanhã, dia do aniversário do imperador, vamos ter notícias frescas. Tenho cá os meus pressentimentos. [II] Os pressentimentos de Ana Pavlovna realizaram-se efectivamente. No dia seguinte, à hora dos ofícios diversos celebrados no palácio em honra do aniversário do soberano, o príncipe Volkonski foi chamado à porta da igreja e fizeram-lhe entrega de uma carta que vinha da parte do príncipe Kutuzov. Era o relato, datado de Tatarinovo, dia da batalha. Kutuzov dizia que os Russos não tinham recuado um só passo que fosse, que as perdas dos Franceses eram muito mais importantes que as dos Russos e que redigia o seu relatório, à pressa, no campo de batalha, sem ainda ter podido reunir todos os elementos necessários. Mas não havia dúvida de que se tratava de uma vitória. Imediatamente, sem abandonarem a igreja, foram ditas orações de graças pela ajuda que o Criador trouxera aos seus fiéis e pela vitória alcançada. Os pressentimentos de Ana Pavlovna tinham-se realizado e toda a manhã reinou na cidade como que uma jovial atmosfera festiva. Toda a gente estava convencida de que a vitória fora completa e alguns diziam já que Napoleão, prisioneiro, fora deposto e a França tinha novo soberano. Longe dos acontecimentos e na atmosfera da corte era muito difícil conhecer os factos em toda a sua plenitude e importância. Apesar de tudo, os acontecimentos gerais concentravam-se num caso particular qualquer. A alegria dos cortesãos era provocada menos pela vitória anunciada que pelo facto de a notícia ter chegado precisamente no dia do aniversário do imperador, Era como que uma surpresa bem a propósito. Kutuzov falava igualmente de perdas russas, citava Tutchkov, Bagration, Kutaissov. Todas estas novas desagradáveis se concentraram involuntariamente em torno de um único facto, a morte de Kutaissov. Toda a gente o conhecia, o imperador estimava-o, era novo e homem interessante. Nesse dia as pessoas que se encontravam diziam entre si: — Que estranho! Precisamente durante a cerimónia religiosa! Que perda, a de Kutaissov! Ah!, que pena! — Que lhe disse eu de Kutuzov? — repetia agora o príncipe Vassili, orgulhoso das suas profecias. — Sempre disse que me parecia o único capaz de vencer Napoleão. No dia seguinte, porém, não se receberam notícias do exército e a opinião pública começou a andar desassossegada. Os cortesãos sofriam pela incerteza emque estava o imperador, que nada sabia também. «Que situação terrível!», diziam eles, e já ninguém entoava cânticos a Kutuzov como no dia anterior, responsabilizando— o, pelo contrário, pela inquietação do monarca. O príncipe Vassili já não se jactava do seu protegido Kutuzov, calando-se quando falavam dele. Além disso, naquela noite tudo parecia conjurar-se para perturbar e desassossegar a população de Petersburgo: uma notícia pavorosa se espalhou. A condessa Helena Bezukova morrera subitamente vitimada pela terrível doença que fora motivo de comentários fúteis. Nas altas esferas dizia-se oficialmente que a condessa sucumbira a uma crise de angina de peito, mas nos meios particulares contava-se que o médico íntimo da rainha de Espanha lhe prescrevera, é certo, pequenas doses de um medicamento adequado à sua doença, mas que ela, atormentada pelas suspeitas do velho conde e sem notícias do marido — esse infeliz e depravado Pedro — ingerira uma grande porção dessa droga, expirando no meio de um sofrimento atroz antes que lhe pudessem prestar qualquer socorro. Dizia-se ainda que o príncipe Vassili e o velho conde seu pretendente tinham chamado a capítulo o médico italiano, mas que este exibira tais cartas da infeliz que ambos acharam por bem deixá-lo em paz. Eis como as conversas de salão se concentravam nestes três pontos: a Incerteza, do imperador, o desaparecimento de Kutaissov e a morte de Helena. Três dias depois daquele em que se recebera a informação de Kutuzov, chegou a Petersburgo um proprietário rural, procedente de Moscovo, que espalhou a notícia segundo a qual a capital fora abandonada aos Franceses. Era incrível! Em que situação ficava o czar? Kutuzov era um traidor e o príncipe Vassili, durante as visitas de pêsames de que fora alvo em virtude do falecimento da filha, disse de Kutuzov, que outrora lhe merecera os mais rasgados elogios, que não era de esperar outra coisa daquele velho cego e pervertido. Está claro que a dor por que passava justificava perfeitamente que se lhe perdoasse o esquecimento da sua opinião anterior. — O que me surpreende é que se tenha confiado o destino da Rússia a um homem desta espécie. Enquanto a notícia não teve confirmação oficial, ainda, havia a esperança de que fosse menos verdadeira, mas no dia seguinte recebeu-se do conde Rostoptchine a informação que se segue: Um ajudante-de-campo do príncipe Kutuzov acaba de me trazer uma carta na qual me pede oficiais da polícia para acompanharem o exército ao longo da estrada de Riazan. E participa-me que tem o desgosto de me comunicar o abandono de Moscovo. Majestade! O acto de Kutuzov decide da sorte da capital e do vosso império. Toda a Rússia vai tremer ao ter conhecimento da perda de uma cidade que resume toda a nossa grandeza e em que repousam as cinzas dos vossos antepassados! Sigo o exército. Levo comigo tudo que é possível, só me resta chorar sobre o destino da minha pátria. Ao receber este comunicado, o imperador mandou transmitir a Kutuzov, por intermédio do príncipe Volkonski, o rescrito seguinte: Príncipe Mikail Ilarionovitch! Desde 29 de Agosto que estou sem notícias suas. Acabo de receber, por intermédio de Iaroslav, do governador de Moscovo, a triste notícia, datada de 1º de Setembro, de que o exército e o seu general tinham decidido abandonar a velha capital. Pode calcular o efeito que essa notícia me causou, e o seu silêncio ainda aumenta mais a minha estupefacção. Com esta lhe envio o general ajudante-de-campo príncipe Volkonski, que se encarregará de saber junto de si qual a posição do exército e as razões que o levaram, a tomar resolução tão infeliz. [III] Nove dias depois do abandono de Moscovo, um enviado de Kutuzov chegou a Petersburgo com a comunicação oficial do facto. Era ele o francês Michaux, que, embora estrangeiro, russo de alma e coração, pelo menos ele assim o dizia. Oimperador recebeu-o imediatamente no seu gabinete do palácio de Kameni- Ostrov. Michaux, que nunca estivera em Moscovo antes da campanha e que não falava russo, sentia-se muito comovido, como o escreveria mais tarde, ao apresentar-se diante de o nosso mui gracioso soberano para lhe anunciar o incêndio da cidade, cujas chamas lhe iluminavam a estrada. Embora, certamente, o pesar de Monsieur Michaux não pudesse deixar de ser de uma espécie muito diferente do dos verdadeiros súbditos russos, tão aflita era a sua expressão ao Penetrar no gabinete que o imperador lhe perguntou imediatamente: — Traz-me más notícias, coronel? — Muito más, Sire — replicou Michaux, suspirando e baixando os olhos: — O abandono de Moscovo. — Terão entregado a minha velha capital sem combate? — perguntou o imperador, sentindo, de súbito, a cólera apossar-se de si. Michaux transmitiu-lhe, respeitosamente, a mensagem de Kutuzov, dizendo não ser possível travar batalha diante das muralhas da cidade e que, perante a alternativa de perder ao mesmo tempo o exército e Moscovo ou apenas Moscovo, o marechal se vira obrigado a escolher a última solução. O imperador ouvia, calado, sem olhar para o seu interlocutor. — O inimigo entrou na cidade? — inquiriu. — Entrou, Sire, e a esta hora está em cinzas. Deixei-a toda em chamas. — Estas palavras proferiu-as resoluto, mas o efeito que elas produziram lançaram-no em grande confusão. Alexandre I principiou a respirar apressadamente e com dificuldade, tremeu- lhe o lábio inferior e acto contínuo os seus belos olhos azuis humedeceram-se de lágrimas. Foi obra de segundos. De súbito, franziu as sobrancelhas e, como se reprovasse a sua própria fraqueza, ergueu a cabeça e disse a Michaux em voz firme: — Estou a ver, coronel, em presença de tudo que nos tem acontecido, que a Providência exige de nós grandes sacrifícios.... Estou pronto a submeter-me a todas as suas vontades; mas diga-me, Michaux, como lhe pareceu o exército, ao ver assim abandonar a minha velha capital, sem dispararem um tiro? Não reparou se havia desânimo?... Ao ver que o seu mui gracioso soberano sossegara, Michaux sossegou também,mas a pergunta concreta do imperador, que exigia uma resposta igualmente concreta, lançou-o num certo embaraço. — Sire, consente que vos fale francamente como soldado leal que sou? — disse ele para ganhar tempo. — Coronel, exijo-o sempre — replicou o imperador — Não me esconda nada, quero saber absolutamente o que se passa. — Sire! — exclamou Michaux com um sorriso quase imperceptível, tendo conseguido imprimir à sua resposta a forma de respeitoso jogo de palavras. — Sire, deixei todo o exército, desde os chefes até ao soldado raso, sem excepção, tomado de um medo pavoroso, assustador... — Como? — interrompeu o imperador franzindo o sobrolho. — Deixar-se-ão os meus russos abater pela desgraça... Nunca... Era o que Michaux esperava para utilizar o seu jogo de palavras. — Sire — continuou, com um ligeiro e respeitoso sorriso. — A única coisa que eles temem é que Vossa Majestade, por bondade de coração, se deixe convencer a fazer a paz. Todos estão mortos por combater e por provar a Vossa Majestade, com o sacrifício das suas vidas, quanto lhe são dedicados... — Ah! — exclamou o soberano, tranquilizado, batendo-lhe no ombro e assumindo uma atitude amável — Tranquiliza-me, coronel. Permaneceu calado alguns instantes, de cabeça baixa. — Pois bem, volte para o campo de batalha — continuou, perfilando a sua alta estatura, e com um gesto afável e magnânimo — e diga aos nossos valentes, diga a todos os meus bons súbditos, por toda a parte por onde passar, que quando eu já não tiver nenhum soldado, eu próprio me porei à frente da minha querida nobreza, dos meus bons camponeses e bater-me-ei até ao último recurso do meu império. Ele ainda tem para me dar muito mais do que pensam os meus inimigos. — E cada vez mais exaltado: — Mas se estiver escrito nos decretos da Providência — prosseguiu, erguendo para o céu os seus bonitos olhos cheios de suavidade e sentimento — que a minha dinastia deva deixar de reinar no trono dos meus antepassados, então depois de esgotados todos os recursos em meu poder, preferirei deixar crescer a barba até aqui, e ir comer batatas com o último dos meus camponeses, a aceitar o vergonha da minha pátria e da minha querida nação, cujos sacrifícios tanto aprecio... Depois de ter pronunciado estas palavras com voz comovida, o imperadorvoltou a cara, como se quisesse esconder as lágrimas que lhe jorravam dos olhos, e deu alguns passos até ao fundo do seu gabinete. Aí permaneceu instantes, voltando, em largas passadas, direito a Michaux, e num gesto enérgico apertou- lhe a mão. O seu belo e meigo rosto afogueara-se e nos seus olhos cintilava a decisão e a cólera. — Coronel Michaux, não se esqueça do que eu lhe digo aqui; talvez um dia o recordemos com satisfação... — E, falando assim, batia na arca do peito. — Napoleão ou eu. Não pode continuar a reinar ao mesmo tempo. Aprendi a conhecê-lo, não me voltará a enganar. E, franzindo o sobrolho, calou-se. Michaux, embora estrangeiro, russo de alma e coração, lendo nos olhos do soberano a sua firmeza e a sua decisão, sentiu-se, naquele momento solene, entusiasmado pelo que acabava de ouvir, consoante o viria a escrever depois, e com as palavras seguintes exprimiu ao soberano, ao mesmo tempo, os seus próprios sentimentos e os do povo russo, de que se considerava como que porta-voz: — Sire! — articulou ele. — Vossa Majestade assina neste momento a glória da nação e a salvação da Europa. E o imperador, com um aceno de cabeça, despediu Michaux. [IV] Nós, que não vivemos naquela época, em que metade da Rússia estava nas mãos do conquistador, os habitantes de Moscovo se refugiavam nas províncias mais longínquas e os levantamentos de milícias se sucediam uns aos outros com vista à defesa da pátria, imaginamos que então todos os russos, do mais elevado ao mais humilde, não tinham outro pensamento que não fosse o de sacrificar-se para salvar a pátria ou morrer com ela. Todos os relatos daquela época, sem excepção, falam de sacrifícios, de amor à pátria, de desespero e de heroísmo. Mas a realidade não era bem essa. Do passado apenas vemos as grandes linhas históricas, enquanto os interesses puramente humanos e pessoais nos passam despercebidos. No entanto, esses interesses puramente humanos e pessoais são muito mais importantes que os interesses colectivos. Os primeiros não deixam vernem sentir os últimos. A maior parte dos homens daquela época não prestava a mais pequena atenção à marcha geral dos acontecimentos, inteiramente ocupada com os seus próprios interesses. E esses homens é que gozavam da fama de ser as criaturas mais indispensáveis desse tempo. Aqueles que, pelo contrário, procuravam apreciar os acontecimentos de um ponto de vista elevado, tentando agir com devoção e heroísmo, esses eram tidos como inúteis na sociedade. As suas ideias divergiam em tudo das dos demais e tudo quanto levavam a cabo, na melhor das intenções, aos olhos da maior parte das pessoas não passava de inutilidades, como, por exemplo, os regimentos organizados por Pedro e Mamonov, que não faziam outra coisa senão saquear as aldeias e roubar as ligaduras preparadas pelas senhoras da sociedade, as quais nunca chegavam às ambulâncias. Até mesmo aqueles que, para exibirem os seus dotes de inteligência e as suas louváveis intenções, se davam a fazer comentários à situação eram acusados de duplicidade e de mentira ou de fazerem juízos temerários e malévolos sobre as pessoas que assim tornavam responsáveis de actos de que ninguém era culpado. Em história, ainda mais do que em qualquer outro assunto, devemos coibir-nos de provar dos frutos da, árvore de ciência. Só os actos inconscientes frutificam deveras e os homens que desempenham papel na história nunca percebem a importância do que fazem. Quando porventura acontece darem por isso, imediatamente os seus actos se tornam estéreis. O significado dos acontecimentos que naquela altura se estavam a dar na Rússia era tanto mais inapreensível quanto era certo os homens deles participarem muito intimamente. Tanto em Petersburgo como nas províncias distantes de Moscovo, as senhoras e os cavalheiros elegantemente fardados de milicianos deploravam a sorte da Rússia e da sua capital, falando em sacrifícios e noutras coisas semelhantes, enquanto que no exército, ao proceder-se à evacuação de Moscovo, quase nunca se falava desse acontecimento: era coisa em que ninguém pensava. Diante das casas a arder ninguém falava em vingar-se dos Franceses. Só se, pensava no terço do soldo que cada um ia receber, na etapa próxima, em Matrechka, na vivandeira, e em coisas do mesmo género. Surpreendido pela guerra nas fileiras, Nicolau Rostov, sem a mais pequena ideia de sacrifício, e levado apenas pelas circunstâncias, tomava parte activa e prolongada na, defesa da pátria, E deste modo assistia ao desenrolar dos acontecimentos sem os tomar muito a peito nem se permitir sombriospensamentos. Se lhe tivessem perguntado que pensava da situação, teria respondido que nada pensava, que isso era, da competência de Kutuzov e dos outros; ele nada mais sabia senão que se completavam os quadros dos regimentos, sinal de que a guerra ainda estava para lavar e durar e que, tendo em vista as circunstâncias actuais, não lhe seria difícil vir a obter o comando de um regimento dentro de um ou dois anos. Graças a esta sua maneira de considerar os acontecimentos, não mostrou o mais pequeno ressentimento pelo facto de não ter tomado parte na última batalha, aceitando com prazer o encargo de se dirigir a Voroneje a fim de proceder à remonta da divisão, prazer que de modo algum fingiu não sentir e que os seus camaradas consideravam perfeitamente legítimo. Poucos dias antes da batalha de Borodino recebera os documentos e o dinheiro preciso, tendo mandado adiante um destacamento de hússares, enquanto se dirigia para Voroneje. Só quem tenha passado por isso, isto é, só quem tenha permanecido meses, ininterruptamente, em acampamentos, pode compreender a alegria que ele, sentia ao afastar-se da zona militar com os seus forrageadores, os seus comboios de abastecimentos e as suas ambulâncias. Quando, já longe dos soldados, das bagagens, de tudo que assinala a vida, bem pouco elegante, do acampamento, lhe foi dado ver aldeias com os seus camponeses e as suas camponesas, casas senhoriais, campinas onde o gado pastava, as estações de muda com os seus sonolentos guardas, tão grande foi o seu contentamento que se lhe afigurou ver tudo aquilo pela primeira vez. E uma das coisas que maior alegria lhe deu foi o voltar a ver mulheres frescas e risonhas, sem terem atrás de si, cortejando-as, dúzias de oficiais, mulheres que se mostravam contentes e se sentiam lisonjeadas com os galanteios do jovem viajante. Foi com a melhor disposição deste mundo que Nicolau Rostov chegou, pela noite, ao hotel de Voroneje, onde tratou de se regalar de tudo do que estivera privado por tanto tempo. E no dia seguinte, barbeado e de farda de gala, que há muito não vestia, ei-lo que se apresenta às autoridades. O comandante da milícia, velho funcionário civil com o grau de general, parecia contentíssimo com as suas funções militares e o posto que tinha. Recebeu Nicolau Rostov com a solenidade que se lhe afigurava inerente à sua categoria militar e interrogou-o, sobranceiro, como se a isso tivesse direito, aprovando-o ou reprovando-o, como homem quesabe o que diz e o que faz. Tão bem disposto estava Rostov que esta atitude o divertiu. Depois de sair do gabinete do comandante da milícia, dirigiu-se à residência do governador. Este era um homenzinho vivo e solerte, muito amável e muito simples. Indicou a Nicolau as cavalariças onde poderia adquirir as montadas, recomendando-lhe um alquilador na cidade e um proprietário, a umas vinte verstas de Voroneje, senhor dos melhores cavalos da região, prometendo auxiliá- lo. — É filho de Ilia Andreitch? Minha mulher é amiga íntima de sua mãe. Recebemos em nossa casa todas as quintas-feiras. É hoje quinta-feira. Venha, peço- lhe, sem cerimónia — disse-lhe ele, despedindo-se. Depois da sua visita ao governador, Nicolau meteu-se numa telega com o sargento e dirigiu-se às coudelarias do proprietário indicado, que ficavam a umas vinte verstas da cidade. Tudo era fácil e divertido para ele naquela sua primeira visita a Vororteje, e o que é facto é que tudo correu como geralmente acontece quando uma pessoa está na melhor disposição deste mundo. O proprietário referido era um velho solteirão, antigo oficial de cavalaria, competência em cavalos, caçador inveterado e senhor de um rico salão todo forrado de, tapetes, de uma vodka centenária, de um velhíssimo vinho da Hungria e de uma excelente cavalariça. Trocadas poucas palavras, Nicolau adquiria, por seis mil rublos, dezassete potros escolhidos para figurarem em lugar de honra na sua remonta. Depois de um óptimo jantar, copiosamente regado com o tal vinho da Hungria, depôs dois beijos nas bochechas do seu anfitrião, com quem estava já tu cá tu lá, e meteu pés a caminho, de regresso à cidade, incitando a todo o momento o postilhão para chegar a horas de se apresentar na recepção do governador. Depois de se encharcar de água fria dos pés à cabeça, de mudar de roupa, de se perfumar, chegou a casa do governador um pouco já sobre o tarde, é certo, mas com uma desculpa na ponta da língua: Mais vale tarde do que nunca. Não havia baile e ninguém tinha falado ainda em bailar, mas toda a gente sabia que Katerina Petrovna, sentada ao cravo, tocaria valsas e escocesas, e, por conseguinte, se acabaria por dançar. Eis porque todas as senhoras capazes disso se tinham apresentado com os seus vestidos de baile. No ano de 1812 a vida numa cidade de província era exactamente igual ao quesempre fora, apenas com uma pequena diferença: haver muito mais animação em virtude da presença de multas famílias ricas de Moscovo, e que, como aliás em todas as coisas nessa época memorável, se sentia não se sabia o quê, uma grandeza, um heroísmo particular, e que as pessoas, em vez de falarem do estado do tempo e da saúde de cada um, falavam de Moscovo, do exército e de Napoleão. Em casa do governador estava reunida a melhor sociedade de Voroneje. Havia muitas senhoras e algumas delas que Nicolau conhecia já de Moscovo, mas nenhum homem em condições de rivalizar com o cavaleiro de S. Jorge, brilhante hússar da remonta, o cortês e distinto conde Rostov. Entre os convidados encontrava-se um italiano do exército francês, prisioneiro, e Nicolau sentia que a presença desse oficial ainda fazia sobressair mais o valor do herói russo que ele era em verdade, Dir-se-ia ser para ele como que um troféu vivo e que toda a gente pensava da mesma maneira. Eis porque se mostrou para com o oficial de uma cortesia em que se misturava um pouco de dignidade e de reserva. Assim que entrou, com o seu uniforme de hússar, irradiando à sua volta o penetrante aroma das suas essências e do vinho que bebera, e assim que disse e por mais de uma vez lhe responderam: «Mais vale tarde do que nunca», todos os olhares se fixaram nele. De súbito percebeu que se tornara o favorito de todos, coisa sempre agradável, particularmente atraente na província e que naquele momento, depois de uma tão longa abstinência, literalmente o embriagava. Muitas eram as criadinhas dignas das suas olhadelas que ele vira nas estações de mudas, nas estalagens, no salão do proprietário da coudelaria, mas ali, nas salas do governador, suspensas do seu olhar, eram numerosas, inesgotáveis, afigurava- se-lhe, as senhoras e as formosas donzelas, Todas se mostravam dengosas com ele enquanto as pessoas de idade pensavam já em casá-lo e arrumar o doido do soldado. No número destas encontrava-se a esposa do governador, que acolheu Rostov como um parente muito próximo e desde logo o tuteou, tratando-o por Nicolau. Efectivamente, Katerina Petrovna sentou-se ao cravo e pôs-se a tocar valsas e escocesas. As danças principiaram e então é que Nicolau pôde acabar de endoidecer toda a gente com a sua agilidade. A sua desenvoltura assombrou todo o mundo. Até ele próprio estava surpreendido com a maneira como dançava naquela noite. Nunca dançara assim em Moscovo e teria mesmo considerado pouco decente e ordinária a ligeireza dos seus modos, caso não se tivesse sentidoobrigado, naquele meio pequeno, a causar o espanto daqueles provincianos, graças a atitudes e maneiras deveras extraordinárias até na capital, mas que fariam aquela gente pensar serem habituais e ainda desconhecidas na província. Durante toda a noite não fez outra coisa senão seguir com os olhos uma bonita e planturosa loura de olhos azuis, mulher de um funcionário local. Com essa ingénua convicção dos jovens folgazões, segundo a qual julgam que foi para eles e só para eles que vieram a este mundo e se criaram as mulheres dos outros. Rostov não largou essa senhora, tratando o marido com uma Amistosa familiaridade, algo cúmplice, como se eles soubessem já perfeitamente, ele e a mulher de tal marido, que ambos se entendiam muitíssimo bem. A verdade, porém, é que o marido parecia não partilhar de semelhante opinião e se mostrou por de mais frio para com o hússar. No entanto, a bonomia do moço oficial era tamanha que, sem dar por isso, até ele próprio, marido, por várias vezes se deixou arrastar pela boa disposição do cortejador de sua mulher. No entanto, lá para o fim da noite, à medida que o rosto desta se animava e ganhava cor, o do marido cada vez parecia mais pálido e mais carrancudo, como se a animação que sentiam se manifestasse de modo inverso, quanto maior a dose da alegria da mulher tanto menor a dose da alegria do marido. [V] Nicolau, ligeiramente reclinado na poltrona, sorrindo, muito chegado à senhora, ia-lhe dirigindo galanteios em que a comparava às deusas da mitologia. Mexendo as pernas dentro do seu calção justo de montar, derramando à sua roda o aroma cálido a perfume, lançando olhares de admiração ora à sua dama ora a si próprio e à elegância dos seus pés calçados de botins bem justos, ia dizendo ser sua intenção raptar certa pessoa ali mesmo em Voroneje. — E pode saber-se quem é? — Urna encantadora mulher, uma mulher divina! Tem os olhos da cor do céu — dizia ele mirando a sua interlocutora — uma boca de coral, ombros de uma brancura... uma cintura de Diana... — O marido aproximou-se e de rostosorumbático perguntou à mulher de que falavam. — Ali! Nikita Ivanitch — exclamou Nicolau, levantando-se cheio de mesuras. E, como se o quisesse convidar a tomar parte nos seus galanteios, principiou a contar-lhe os projectos que tinha de raptar uma linda mulher loura. Teve um riso amarelo o marido, a mulher na francamente Mas a esposa do governador aproximou-se deles com uma expressão algo recriminadora. — Ana Ignatievna queria falar-te. Nicolau — disse ela, e a maneira como pronunciou o nome dessa senhora não pôde deixar dúvidas a Rostov de que se tratava de alguém de alta distinção — Anda daí, Nicolau. Pois não é verdade que deixas que eu te trate assim? — Com certeza, minha tia. E quem é essa senhora? — Ana Ignatievna Malvintseva. Ouviu falar de ti à sobrinha, quem tu salvaste a vida. Lembras-te?... — Salvei a vida a tantas — replicou ele. — A sobrinha, a princesa Bolkonskaia. Está aqui, em Voroneje, com a tia. Coraste? Dar-se-á o caso que... — De maneira nenhuma! Que está a dizer, minha tia? — Bom! Está bem, está bem... Dás-me vontade de rir! A mulher do governador levou-o até junto de uma senhora idosa, alta e corpulenta, com um toucado azul na cabeça, que acabava de jogar uma partida de cartas com as pessoas mais importantes da cidade. Tratava-se de Madame Malvintseva, a tia materna da princesa Maria, abastada viúva, sem filhos, que vivia todo o ano em Voroneje. Estava de pé, tratando de pagar o que devia ao seu parceiro. Olhou para Rostov, franzindo as sobrancelhas, enquanto prosseguia resmungando com o general que lhe levara a melhor. — Muito prazer em conhecê-lo — exclamou ela, estendendo a mão a Rostov. — Queira dar-me o prazer de vir a minha casa. Pôs-se a falar da princesa Maria e do seu falecido irmão, por quem parecia não morrer de amores, e perguntou-lhe se ele sabia alguma coisa acerca do príncipe André, que também não parecia pessoa da sua estima, despedindo-se não sem lhe repetir convite. Prometendo não deixar de a visitar, Nicolau corou de novo ao despedir-se dela. Quando ela falara da princesa Maria, um grande embaraço o tomara, receio mesmo, sem que ele desse por isso.Ao deixar Madame Malvintseva ia de novo regressar ao baile, mas a mão rechonchuda da senhora governadora travou-lhe do braço e, dizendo-lhe que tinha necessidade de lhe falar, conduziu-o a um gabinete, donde, discretamente, se deram pressa de sair as pessoas que lá estavam. — Sabes, meu caro — disse-lhe ela, imprimindo uma expressão grave ao seu rostozinho cheio de bonomia — tens ali um bom partido. Se quiseres, posso apresentar-te. — De quem se trata, minha tia? — perguntou Nicolau. — Eu pedirei a princesa em casamento. Katerina Petrovna, está inclinada para Lili, mas, pela minha parte, é a princesa que prefiro. Queres? Tenho a certeza de que a tua mãe me vai ficar reconhecida. E de resto é uma rapariga encantadora e nada feia, ao contrário do que as pessoas dizem. — Claro que não, realmente — volveu Nicolau, como se se sentisse pessoalmente ofendido com essa opinião — Por mim, minha tia, como convém a um soldado, nada reclamo e nada recuso — acrescentou, sem se dar ao trabalho de pensar no que estava a dizer. — Bom, pois então lembra-te de que não se trata de uma brincadeira. — De que brincadeira está a falar? — Está bem, está bem — exclamou a santa senhora, como se estivesse falando a si mesma. — E ainda há outra coisa, meu caro, entre outras. É muito assíduo junto da outra, da loura. Estou deveras com pena do marido... — Porquê? Somos óptimos amigos — exclamou Nicolau com a maior simplicidade. Nunca lhe viera à cabeça que aquela maneira tão agradável de passar o tempo não pudesse ser muito divertida para outrem. «Ora esta! Que tolice fui eu dizer a mulher do governador!», disse ele de si para consigo, de repente, durante a ceia. «Queres ver que me vai tratar do casamento... E Sónia?...» E ao despedir-se da dona da casa, quando ela lhe repetia, sorrindo: «Bom, já sabes. Não te esqueças...», chamou-a de parte: — A verdade é que devo dizer-lhe, minha tia... — Que foi? Que foi, meu amigo? Espera, vamos sentar-mos aqui. Nicolau sentiu, de súbito, a imperiosa necessidade de contar àquela mulher, por assim dizer desconhecida para ele, os seus pensamentos mais íntimos, pensamentos que ele não teria confiado nem à própria mãe, nem à irmã, nem a qualquer amigo. Mais tarde, quando veio a lembrar-se dessa necessidade decomunicação inexplicável e injustificada, que tantas consequências graves teve para ele, afigurou-se-lhe, como de resto acontece a toda a gente, ter feito grossa asneira. Mas a verdade é que nem por isso aquele movimento de sinceridade e alguns outros pequenos-nadas deixaram de vir a ter para ele e para a família consequências da maior importância. — Ora aqui tem de que se trata, minha tia. Há muito que a mãe me quer casar com uma herdeira rica, mas não posso com a ideia de um casamento de conveniência. — Ah, sim! Percebo — contraveio a santa senhora. — Mas o caso da princesa Bolkonskaia é outra coisa. Em primeiro lugar, devo dizer-lhe, com toda a franqueza, que me agrada muitíssimo, que me convém em absoluto. Além disso, desde que a vim a conhecer em circunstâncias tão estranhas, várias vezes tenho dito a mim mesmo que está ali o meu destino, Imagine! A mãe há muito tempo que pensava nela, mas nunca calhara eu encontrá-la. Não sei como isso foi; o certo é que nunca nos tínhamos visto. E é claro que eu não poderia ter Pensado em casar com ela desde que minha irmã Natacha estava noiva do irmão dela. E fui encontrá-la precisamente quando o casamento de Natacha se tinha dissolvido e depois de tudo o que se estava a passar... Sim, isto é que é a verdade... Nunca falei nisto a ninguém, nem nunca mais voltarei a falar em tal. Só a si o digo. A senhora governadora travou-lhe do braço, como a agradecer-lhe. — Conhece a Sónia, a minha prima? Quero-lhe muito. Prometi casar com ela e é com ela que hei-de casar... Como vê, não Posso pensar nessa história do casamento com concluiu ele, um Pouco hesitante e corando muito. — Meu caro, meu caro, que estás tu a dizer? Mas Sónia nada tem de seu e tu próprio disseste que a fortuna de teu pai estava periclitante. E a tua mãe? Dás cabo dela, podes ter a certeza. E, além disso, se a Sónia é rapariga de sentimentos, que situação para ela! Uma mãe de cabeça perdida, uma fortuna por água abaixo... Sim, meu caro. Sónia e tu, vocês devem compreender as circunstâncias. Nicolau ficou calado. A verdade é que aquelas conclusões lhe não eram de todo desagradáveis. — Em todo o caso, minha tia, é impossível — exclamou ele, suspirando, após alguns instantes de silêncio. — Além disso, resta saber se a princesa me quer, eainda está de luto. Acha que se pode pensar nisso? — Julgas que te vou casar de hoje para amanhã? Há maneiras e maneiras — obtemperou a mulher do governador. — Que casamenteira me saiu, minha tia... — disse Nicolau, beijando-lhe a mãozinha rechonchuda. [VI] Ao chegar a Moscovo, depois do seu encontro com Rostov, a princesa Maria encontrara o sobrinho na companhia do seu preceptor e uma carta do príncipe André com o itinerário que ela devia seguir para alcançar Voroneje e instalar-se em casa da tia Malvintseva. As preocupações com a mudança, os cuidados com o destino do irmão, a instalação da nova casa, o ter de lidar com gente desconhecida, a educação do sobrinho, todas estas circunstâncias lhe sufocaram na alma aquele sentimento em que havia fosse o que fosse dessa tentação que tanto a fizera sofrer durante a doença e a morte do pai e especialmente no tempo que se seguiu ao seu encontro com Rostov. Estava muito triste. A mágoa que lhe causara a perda do pai, agravada pela desgraça que pesava sobre a Rússia, ainda agora, após trinta dias de vida tranquila, se mantinha viva e pungente. Estava desassossegada. Os perigos que ameaçavam o irmão, o ser querido que lhe restava, traziam-na em perpétuo tormento. A educação do sobrinho, tarefa que entendia superior às suas forças, preocupava-a muitíssimo. No entanto, ao verificar que fora capaz de reprimir a vaga de sonhos e esperanças que o aparecimento de Rostov erguera dentro dela, pudera sentir alguma serenidade. No dia seguinte ao da noite da sua recepção, a mulher do governador apresentou-se em casa de Madame Malvintseva e pô-la ao corrente de todos os seus planos. Principiou por dizer que, em virtude das circunstâncias, não era de pensar num pedido em regra, mas que se podiam aproximar os dois jovens, proporcionando-lhes a forma de se conhecerem melhor. Tendo obtido a anuência da tia, aproveitou a ocasião para falar de Rostov diante da princesa Maria, tecendo-lhe largos elogios e contando como o vira corar quando pronunciara onome dela. A princesa, em vez de se sentir feliz ao ouvir estas palavras na boca da esposa do governador, experimentou um grande mal-estar. Fora-se-lhe a harmonia interior e de novo acordaram nela os desejos, as dúvidas, os reproches e as esperanças. Durante os dois dias que transcorreram entre essa notícia e a visita de Rostov, a princesa Maria não deixou de pensar na atitude que devia assumir para com ele. Ora resolvia não pôr os pés no salão quando ele entrasse em casa de sua tia, pois, estando de luto pesado, não achava próprio receber visitas, ora se dizia a si mesma que isso seria pouco delicado da sua parte depois do que ele fizera por ela, ora ainda lhe ocorria a ideia de que a tia e a esposa do governador tinham intenções reservadas quanto a Rostov e a ela própria, o que, aliás, confirmara perfeitamente as piscadelas de olhos e os segredinhos que trocavam entre si, ora concluía não ter o direito de pensar em tais coisas, atribuindo tudo à sua própria inquietação. Era impossível, pensava, não ter em conta que, na sua situação, estando de luto rigoroso, aquela ideia do casamento só podia ser ofensiva para ela e para a memória do defunto. Na hipótese, porém, de que semelhante pedido viesse a efectivar-se, conjecturava, de antemão, o que Rostov lhe diria e o que ela teria de lhe responder, e os termos que empregaria ora se lhe afiguravam frios de mais ora demasiado significativos. Mas o que acima de tudo receava nesse encontro era deixar transparecer a perturbação que inevitavelmente a tomaria quando o voltasse a enfrentar. O certo é, porém, que quando, no domingo, depois da missa, um criado a veio prevenir, no salão, de que o conde Rostov acabava de chegar, não foi grande a perturbação da princesa; corou ligeiramente e os olhos brilharam-lhe com uma luz radiante e nova. — Já o conhece, tia? — perguntou em voz serena, surpreendida de poder aparentar tanta calma e naturalidade. Quando Rostov entrou no salão, a princesa manteve-se por momentos de cabeça baixa, para dar tempo a que ele pudesse fazer os seus cumprimentos à velha senhora, mas exactamente na altura em que ele se voltou para ela ergueu a cabeça e os seus olhos brilhantes pousaram nos dele. Num movimento cheio de graça e dignidade, soergueu-se ligeiramente, sorrindo, estendeu-lhe a mão fina e delicada e pôs-se a falar numa voz em que pela primeira vez ressoavam notas verdadeiramente femininas. Mademoiselle Bourienne, que estava presente, nãopôde deixar de se sentir surpreendida e pousou nela um olhar de espanto. A mais galante das mulheres não teria sido capaz de manobra mais hábil diante do homem a quem quisesse agradar. «Será o luto que lhe fica bem, ou terá ela, realmente, ganho tanto sem que eu o tenha notado?...», interrogou Mademoiselle Bourienne os seus botões. Se a princesa Maria estivesse naquele momento em condições de reflectir, não se teria sentido menos surpreendida que Mademoiselle Bourienne com a mudança operada nela própria. Mal entrevira aquele bonito rosto, que tão querido se lhe tornara, invadira-a como que uma energia nova que a compelia, sem que ela nada pudesse fazer em contrário, a falar e a agir. Mal ele entrou, o rosto transfigurou- se-lhe repentinamente. Assim como, ao iluminar-se uma lanterna, o desenho gravado nos seus vidros ressalta de uma beleza que se não adivinhava enquanto não havia luz, também os traços da princesa Maria ressaltaram de improviso. Pela primeira vez vinha à superfície o trabalho intimo que até então se elaborara em segredo no fundo da sua alma. O mais recôndito da sua vida, e que tanto tormento lhe causava, os seus sofrimentos, os seus impulsos para o bem, o seu espírito de submissão, de amor e de sacrifício, tudo isso resplandecia agora nos seus luminosos olhos, no seu fino sorriso, em cada um dos traços do seu delicado rosto. Nicolau deu-se conta de tudo tão franca e claramente como se lhe conhecesse toda a vida. Compreendeu que a criatura de eleição que tinha diante era bem melhor que todos os seres que conhecera até aí, e bem melhor, sem dúvida, do que ele próprio. A conversa que entre eles se entabulou foi das mais simples insignificantes que imaginar se pode. Falaram da guerra, exagerando, como toda a gente, aliás, então, o desgosto que os acontecimentos causavam, falaram do seu último encontro, assunto que Nicolau procurou evitar, e referiram-se então à santa mulher do governador e aos seus parentes respectivos. A princesa Maria evitou aludir ao irmão e desviou a conversa quando a tia lhe fez referência. Via-se perfeitamente que, se lhe era fácil falar banalmente das desgraças públicas, já o mesmo não podia fazer a respeito do irmão, desgraça que lhe tocava muito de perto. Nicolau reparou no facto, ao mesmo tempo que observava, com uma penetração nele invulgar, os mais pequenos matizes do carácter da sua interlocutora, observação que o levava a pensar que ela era realmente uma natureza excepcional e única em verdade a todos os títulos. Comoacontecia à princesa Maria, também ele corava e se mostrava perturbado quando falavam dela, ou até mesmo quando apenas nela pensava. Na presença de Maria sentia-se, porém, como que desoprimido, não dizia palavra do que antecipadamente pensava dizer e as suas palavras de improviso eram sempre as que mais convinha. Durante a sua curta visita, numa pausa da conversação, Nicolau, como acontece onde há crianças, pôs-se a acariciar o filho do príncipe André e perguntou-lhe se ele não gostaria de vir a ser hússar também. Pegou-lhe ao colo, sentou-o nos joelhos e fê-lo pular enquanto olhava para a princesa Maria. Esta seguia os movimentos do sobrinho querido nos braços do homem a quem amava, olhando carinhosa, tímida e feliz. Este terno olhar não passou despercebido a Nicolau, que, ao compreender-lhe o sentido, corou de satisfação e beijou a criança efusivamente. A princesa Maria não saía de casa por causa do luto e Nicolau não achava conveniente continuar a visitá-la. Nem por isso contudo a mulher, do governador desistiu da sua tarefa casamenteira e, repetindo a Nicolau o que Maria dissera de lisonjeiro a seu respeito ou vice-versa, insistia com ele para que se declarasse. E nessa intenção preparou uma entrevista entre os dois jovens, em casa do arcipreste, antes da missa. Embora Rostov lhe tivesse dito que não tinha qualquer declaração a fazer à princesa Maria, prometeu não faltar à entre— vista. Da mesma maneira que em Tilsitt não vacilara um momento em aceitar por bom o que lhe era recomendado como tal, assim agora, após breve luta, embora sincera, entre o desejo de organizar a sua vida consoante os seus próprios desejos e a inteira submissão às circunstâncias, escolheu o último partido, entregando-se ao destino para que se sentia irresistivelmente arrastado, Sabia muitíssimo bem que, depois das promessas que fizera a Sónia, declarar os seus sentimentos a Maria não era outra coisa senão cobardia. Mas, ao mesmo tempo, também sabia, e, mais, sentia isso mesmo no fundo da alma, que, confiando-se à influência do destino e das pessoas que o dirigiam, não só não procedia mal, como, pelo contrário, cumpria um acto da mais alta importância como nenhum outro da sua vida. Após a sua entrevista com a princesa Maria, conquanto nada, na verdade, se tivesse modificado na sua existência, o certo é que todas as suas alegrias deoutrora pareciam ter perdido o encanto e só um pensamento o ocupava — ela. Todavia os sentimentos que a princesa Maria lhe inspirava não só em nada se pareciam com os que havia sentido por outras raparigas que encontrara na sociedade como nada tinham de comum com o amor exaltado que outrora votara a Sónia. Como acontece a todo o mancebo de honestos sentimentos, sempre que pensava em tais raparigas era com a ideia de fazer delas esposas, representando- lhe a imaginação todas as cenas habituais da vida conjugal: uma mulherzinha, vestida de branco, sentada junto do samovar, a carruagem da senhora, as crianças que pronunciam pai e mãe, numa palavra, todas as banalidades quotidianas, e essas perspectivas de futuro, a seus olhos, não deixavam de se revestir de certo encanto. Contudo, ao pensar na princesa Maria, a quem o queriam dar por noivo, nada de semelhante lhe vinha ao espírito. Se porventura o tentava, as imagens que se lhe erguiam diante dos olhos apresentavam-se-lhe com qualquer coisa de falso e de malogrado. O único sentimento que lhe comunicavam era o sentimento de angústia. [VII] A terrível nova da batalha de Borodino, em que houve tantas baixas dos Russos, bem como a notícia de que Moscovo caíra nas mãos dos Franceses, apenas chegaram a Voroneje em meados de Setembro. A princesa Maria, que só pelos jornais fora informada de que o irmão estava ferido e que nada sabia afinal sobre o seu estado, resolveu ir ao seu encontro. Assim, pelo menos, constou a Nicolau, que nunca mais a tornara a ver. Os acontecimentos, se não despertaram em Rostov instintos de violência, cólera ou vingança ou quaisquer outros do mesmo género, pelo menos inspiraram-lhe súbito desgosto e contrariedade, determinando-o a não prolongar por mais tempo a sua permanência em Voroneje, onde se sentia molesto e pouco à vontade. Todas as conversas lhe soavam a falso. Não sabia que pensar dos acontecimentos e sentia que só depois de regressar ao seu regimento veria claro em tudo isso. Precipitou as suas últimas aquisições de cavalos e eram mais frequentes agora as suas irritações contra o criado e contra o sargento, mais frequentes e imotivadas.Alguns dias antes da sua partida, celebrou-se um tedéu na catedral em acção de graças por uma vitória das tropas russas e Nicolau assistiu a ele. Ficou alguns metros atrás do governador e foi com dignidade oficial que acompanhou todos os passos da cerimónia religiosa enquanto ia pensando nos assuntos mais diversos. Assim que terminou o fedeu, a mulher do governador acenou-lhe com a cabeça, chamando-o para junto de si. — Viste a princesa? — perguntou— lhe ela, indicando-lhe com a cabeça uma senhora toda vestida de preto que estava ao pé do coro. Nicolau reconheceu-a imediatamente, não tanto pelo perfil que se deixava adivinhar debaixo do chapéu como por esse sentimento de retenção, receio e piedade que se apoderou dele. A princesa Maria, absorta nos seus pensamentos, persignava-se antes de sair da igreja. Nicolau fitou, assombrado, o seu rosto. Era, de facto, a mesma fisionomia em que se lia sempre o trabalho subtil do pensamento interior, mas a luz que a iluminava era completamente outra. Reflectia-se em seus traços uma tocante expressão de dor, de oração e de esperança. Não esperou, como, aliás, acontecera da primeira vez, que a mulher do governador lho consentisse, não se interrogou a si próprio, sequer, se era ou não razoável dar aquele passo em plena igreja; aproximou-se dela e disse-lhe que soubera do seu novo desgosto e que de todo o coração a acompanhava na sua dor, Assim que lhe reconheceu a voz, uma súbita luz lhe iluminou o rosto, derramando claridade sobre a sua mágoa e acordando nela a alegria. — Apenas lhe queria dizer, princesa — murmurou Rostov —, que, se o príncipe André Nikolaievitch já não fosse do número dos vivos, os jornais tê-lo-iam dito, pois que é comandante de regimento. A princesa olhou para ele sem apreender o sentido das suas palavras, mas satisfeita com a compaixão que lhe via no rosto. — Na maior parte dos casos, os ferimentos provocados pelos estilhaços de granadas, quando não são logo mortais, não oferecem cuidados — acrescentou ele. — É de esperar que não seja coisa grave, estou convencido de que... A princesa Maria interrompeu-o. — Oh!, seria terrível... — principiou ela sem poder concluir a frase, de tão perturbada que estava, inclinando a cabeça, num movimento cheio de graciosidade, como acontecia a todos os seus gestos na presença dele. E, depois deum olhar de reconhecimento, saiu atrás da tia. Naquela noite Nicolau não saiu, ficou em casa para fechar contas com os negociantes de cavalos. Quando acabou esse trabalho era demasiado tarde para ir a qualquer parte, embora relativamente cedo para se deitar, e assim ficou, sozinho, no seu quarto, a andar de um lado para o outro, cismando na vida, coisa que raramente lhe acontecia. Já aquando do seu encontro perto de Smolensk a princesa Maria lhe causara uma viva impressão. Impressionara-o muito também o tê-la encontrado em circunstâncias tão excepcionais e o facto de a mãe lha ter recomendado como um rico partido. O encontro em Voroneje ainda o impressionara mais. Desta vez notara sobretudo a beleza especial, toda de essência moral, que nela resplandecia. No entanto ia partir e não lhe ocorria a ideia de que teria pena de a não tornar a ver. O encontro na igreja, sentia-o claramente, ainda viera gravar nele a imagem da princesa Maria mais profundamente do que previra e mais funda— mente de que o exigia o seu sentimento de repouso. Aquele rosto fino, pálido e triste, aquele luminoso olhar, aqueles gestos harmoniosos e serenos, sobretudo aquela funda e comovida mágoa que por toda ela se espalhava, perturbavam-no e atraíam-no. Sobretudo nos homens, Nicolau não tolerava manifestações de uma vida espiritual superior e essa a razão por que não simpatizava com o príncipe André. Mas a princesa Maria, em virtude, precisamente, da expressão dolorosa em que se evidenciava toda a profundeza de um mundo espiritual que lhe era estranho, atraía-o de maneira irresistível. «Que estranha mulher deve ser! É realmente um anjo!», dizia de si para consigo. Porque não hei-de eu ser livre? Porque me precipitei eu com a Sónia?» E involuntariamente ia-as comparando: à ausência, numa, e à abundância, noutra, dessa riqueza espiritual de que ele próprio era tão pouco provido e que por isso mesmo tanto estimava. Tentou imaginar o que aconteceria se porventura fosse livre: como pediria a sua mão e como viria ela a ser sua mulher? Mas não, não podia pensar em semelhante coisa. Sentiu-se pouco à vontade e diante dos seus olhos apenas se lhe vieram representar imagens confusas. Havia muito que traçara o quadro da sua existência futura com Sónia: era muito simples e muito claro, pois tudo aí estava previsto de antemão e ele nada ignorava, absolutamente nada, a respeito dela. Com a princesa Maria, contudo, não lhe erapossível conceber qualquer futuro, uma vez que a não compreendia, que apenas se limitava a amá-la. Pensar em Sónia era como penetrar num mundo de alegria e de graça. Pensar na princesa Maria trazia sempre consigo uma impressão de seriedade e até mesmo de temor. «Como ela rezava!», dizia de si para consigo. «Era como se o fizesse com toda a sua alma. Sim, é aquilo a que se chama a fé que remove montanhas e tenho a certeza de que a sua oração será ouvida. Porque não poderei eu rezar assim para obter o que preciso? E de que preciso eu? De ser livre e desligar-me de Sónia. A mulher do governador tinha razão: o meu casamento com ela será uma fonte de desgostos, de dificuldades, uma grande mágoa para a mãe... e depois há a questão dos dinheiros... sim, de dificuldades... de grandíssimas dificuldades. Aliás, creio que a não amo de todo o coração. Não, não a amo como se deve amar. Meu Deus, salva-me desta situação sem recurso!», exclamou ele, de súbito, como se sentisse uma necessidade imperiosa de rezar. «Sim, as minhas orações removerão montanhas, mas o que é preciso é, ter fé e não rezarmos como o fazíamos quando éramos crianças, a Natacha e eu, quando pedíamos que a neve se transformasse em açúcar. Não, não são criancices desse género que eu tenho de pedir a Deus.» E pousando o cachimbo algures, de mãos postas, ajoelhou diante dos ícones. Enternecido com a lembrança de Maria, pôs-se a rezar como o não fazia lia muito tempo. Tinha os olhos rasos de lágrimas e soluços na garganta quando Lavruchka apareceu à porta com uns papéis na mão. — Idiota! Que vens aqui fazer, se não te chamei! — gritou-lhe, mudando, subitamente, de, atitude. — É da parte do governador — disse Lavruchka, em voz sonolenta. — Chegou um correio com uma carta para si. — Está bem, obrigado, podes retirar-te. Havia duas cartas, uma da mãe e a outra de Sónia. Reconhecera a caligrafia de ambas elas e principiou por abrir a de Sónia. Mal lera as primeiras linhas empalideceu, abrindo muito os olhos cheios de espanto e alegria. «Não, não é possível!», disse em voz alta. Não pôde ficar imóvel e ao tempo que lia a carta pôs-se a andar no quarto de um lado para o outro, Começou por lê-la alto, depois leu-a uma, duas vezes e, por fim, encolhendo os ombros e gesticulando de boca aberta e olhos fixos, deteve-seno meio do quarto. A oração que acabava de dirigir a Deus fora ouvida. Tamanha era a sua estupefacção, tão extraordinário o que acontecia, tão longe estava de ver realizados os seus desejos, que aquilo lhe não parecia a consequência da intervenção divina, mas puro acaso. O nó górdio que lhe encadeava a liberdade fora cortado pela carta de Sónia de maneira inesperada e que nada fazia prever. A carta dela dizia que em virtude das desgraças dos últimos tempos, da perda de quase todos os bens dos Rostov em Moscovo, do desejo da condessa, por várias vezes manifestado, de o ver a ele desposar a princesa Bolkonski, e ainda em consequência do seu silêncio persistente, da frieza que lhe mostrara ultimamente, por todos esses motivos juntos, estava resolvida a desobrigá-lo da sua promessa e a restituir-lhe a sua inteira liberdade. Seria para mim muito penoso — dizia-lhe ela— pensar que viria a ser causa de desgosto e desacordo numa família que tanto bem me tem feito. O único objectivo do meu amor é fazer a felicidade daqueles a quem amo. Por isso lhe peço, Nicolau, que retome a sua liberdade e que acredite que, apesar de tudo, ninguém lhe quer mais do que a sua Sónia. As duas cartas eram datadas de Troitsa. A segunda era da condessa. Descrevia-lhe os últimos dias passados em Moscovo, a partida, o incêndio da cidade e a ruína de todos os seus bens. E entre outras coisas dizia-lhe que o príncipe André, ferido, viajava com eles. Estava em estado gravíssimo, mas o médico, de momento, alimentava algumas esperanças. Sónia e Natacha eram as suas enfermeiras. Munido com esta carta, Nicolau apresentou-se no dia seguinte em casa da princesa Maria. Nem ele nem ela fizeram qualquer comentário sobre os cuidados que Natacha dedicava ao príncipe André, mas aquela carta aproximou-os e criou entre eles como que uma espécie de parentesco. No dia seguinte, Rostov acompanhou a princesa Maria a Iaroslav e dias depois regressou ao seu regimento. [VIII] A carta de Sónia que dava satisfação aos desejos de Nicolau fora escrita em Troitsa. Eis os factos que a determinaram. De dia para dia se obstinava mais a velha condessa em casar seu filho com uma rica herdeira. Sónia, sabia-o ela muito bem, continuava a, ser o maior obstáculo à realização de tal projecto. E a vida desta durante os últimos tempos, sobretudo depois da carta, em que Nicolau falara do seu encontro em Bogutcharovo com a princesa Maria, tornara-se-lhe penosíssima. A condessa passava o tempo a feri-la com alusões cruéis e ofensivas. Alguns dias antes da partida de Moscovo, a condessa, transtornada e inquieta com o que se estava a passar, mandou chamar Sónia e, entre lágrimas, reproches e súplicas, implorou-lhe que se sacrificasse desligando Nicolau dos seus compromissos e pagando-lhe a ela, condessa, deste modo, tudo que por ela tinha feito. — Não sossegarei enquanto me não prometeres o que te peço. Sónia chorou e respondeu entre soluços que faria tudo o que fosse possível, sem se comprometer, todavia, ao que lhe pediam. O certo era que o não podia fazer. Sacrificar-se-ia pela felicidade da família que a tinha recolhido e educado. A esse sacrifício estava habituada. A sua situação em casa dos Rostov era tal que para patentear os seus méritos só lhe restava a abnegação e por isso se habituara a sacrificar-se. Com alegria se dera conta até, aí de que todos os seus actos de abnegação a realçavam a seus olhos e, aos olhos dos outros, tornando-a mais digna de Nicolau, seu único e grande amor— Agora, porém, queriam que renunciasse, no fim de contas, aquilo mesmo que era a única recompensa do seu sacrifício e a única justificação da sua vida. E pela primeira vez se sentiu amargurada diante daquela gente que a recolhera e protegera para afinal a fazer sofrer ainda mais. E uma espécie de ódio a tomou contra essa Natacha que não só nunca passara por sofrimentos comparáveis aos seus, sem nunca se sacrificar por alguém, mas antes exigira o sacrifício dos outros e apesar disso de todos era querida e estimada. Pela primeira vez sentiu que o seu amor, até então inocente e tranquilo, se convertia numa violenta paixão capaz de a dominar e arrastar contra a religião e a virtude. Sob a influência de tal sentimento, Sónia, que a prática dadependência ensinara a ser dissimulada, respondera à condessa em termos vagos e gerais, evitando qualquer explicação mais demorada, decidida, entretanto, a esperar por Nicolau, não para lhe restituir a palavra, mas, pelo contrário, para mais fortemente e para sempre se unir a ele. As preocupações e os terrores dos últimos dias passados em Moscovo tinham- na feito esquecer um pouco os tristes pensamentos que a atormentavam. E por isso se sentira como que aliviada no meio de todas essas preocupações materiais. Quando veio a saber, porém, que o príncipe André estava em casa dos condes, à sua sincera piedade por Natacha e pelo ferido veio associar-se o sentimento, entre supersticioso e agradecido, de que a Providência não queria separá-la de Nicolau. Sabia que Natacha só ao príncipe André amava verdadeiramente e só a ele amara em verdade. E sabia também que neste momento, outra vez reunidos e em tão trágicas circunstâncias, de novo se entregariam ao seu amor, impedindo Nicolau, graças ao casamento da irmã com o príncipe, de pensar em desposar a princesa Maria. Por mais horríveis que fossem os acontecimentos a que assistia, grande era a sua satisfação ao pensar que a Providência lhe viera em auxílio. Após a primeira etapa de sua jornada, os Rostov detiveram-se no mosteiro de Troitsa. No albergue do convento tinham-lhes reservado três quartos, um dos quais para o príncipe André. O ferido parecia muito melhor nesse dia. Natacha estava junto dele. No quarto contíguo o conde e a condessa conversavam respeitosamente com o superior do convento em visita aos antigos conhecidos e protectores. Sónia, junto deles, atormentava-a a curiosidade: que estariam a dizer um ao outro André e Natacha? Através da porta ouvia-lhes o sussurro das vozes. Em determinado momento a porta abriu-se e Natacha, muito comovida, penetrou na dependência sem reparar no frade, que se ergueu, apanhando as grandes mangas do hábito, quando a viu aproximar-se. Dirigindo-se a Sónia, travou-lhe do braço. — Natacha, que foi? Vem cá — disse-lhe a mãe. Natacha aproximou-se para receber a bênção do frade, que a aconselhou a implorar o auxílio de Deus e do seu santo protector. Quando o superior do convento se retirou, Natacha deu o braço à amiga e levou-a consigo para o quarto contíguo, onde não estava ninguém.— Sónia, será verdade? Achas que se salvará? — perguntou-lhe ela — Ah, Sónia, que feliz e que infeliz eu sou! Sónia, minha querida, está tudo como dantes. O que importa é que ele viva! Mas não pode... porque... porque... — E os soluços embargaram-lhe a voz. — Eu sabia-o! Louvado seja Deus! — exclamou Sónia. — Há-de viver! — A sua emoção não era menor do que a de Natacha diante daquela desgraça, e às suas apreensões vinham misturar-se pensamentos secretos. Abraçou-se à amiga, chorando e procurando consolá-la. «O que importa é que ele viva!», repetia para si mesma. Depois de trocarem as suas confidências, enxugaram as lágrimas e ambas se aproximaram da porta. Natacha abriu-a cautelosamente e olhou para dentro. Sónia, a seu lado, conservava-se no limiar da porta entreaberta. O príncipe André, deitado, tinha o busto soerguido por três almofadas. O seu rosto pálido estava tranquilo, tinha os olhos cerrados e respirava regularmente. — Oh, Natacha! — exclamou Sónia, de súbito, agarrando-se ao braço da prima e recuando um passo. — Que foi? Que foi? — inquiriu Natacha. — É aquilo, é aquilo... — respondeu ela muito pálida, toda trémula. Natacha fechou a porta cautelosamente e seguiu Sónia até ao vão da janela, sem compreender o que a amiga dizia. — Lembras-te — disse Sónia, assumindo uma expressão ao mesmo tempo solene e aterrada. — Lembras-te de quando consultámos o oráculo do espelho... em Otradnoie, pelo Natal... lembras-te do que eu vi?... — Lembro, lembro... — replicou Natacha, os olhos esbugalhados, recordando-se vagamente de que a prima lhe falara então do príncipe André, que vira deitado. — Lembras-te? Vi-o e disse-o a todas, a ti e à Duniacha. Via-o estendido na sua cama. Tinha os olhos fechados, como neste momento, e, estendida sobre ele, uma coberta cor-de-rosa, e as mãos cruzadas. — Falava cada vez com maior animação, firmemente convencida de que todos os pormenores que acabava de ver não eram mais que a repetição exacta da visão de outrora. Evidentemente que nada vira anteriormente e que apenas descrevera um fantasma produto da sua imaginação. No entanto essa ilusão afigurava-se-lhe agora uma recordação verdadeira. Dissera então que ele olhara para ela, lhe sorrira, que estava envolto em qualquer coisa vermelha, e agora recordava-se perfeitamente, tinha a certeza: a coberta da cama era cor-de-rosa, sim,efectivamente, cor-de-rosa, e ele tinha os olhos fechados. — Sim, sim, é verdade, era uma coberta cor-de-rosa — confirmou Natacha, que se recordava agora também de que ela lhe falara nessa coberta, o que, a seus olhos, ganhava proporções de estranha e misteriosa previsão. — Que quer isto dizer? — perguntou ela, pensativa. — Ah!, não sei. É tudo tão extraordinário! — comentou Sónia, levando as mãos à cabeça. Alguns minutos mais tarde André chamou, e Natacha foi para junto dele. Sónia, que nunca em sua vida sentira maior emoção ou estivera mais perturbada, deixou-se ficar junto da janela pensando naquelas estranhas coincidências. Nesse mesmo dia houve oportunidade de utilizar um correio para o exército e a condessa escreveu ao filho. — Sónia — chamou, erguendo a cabeça, quando a sobrinha passou junto dela — Sónia, não escreves ao Nikolenka? — E, ao dirigir-lhe esta pergunta, a sua voz tremeu ligeiramente. Nos seus olhos fatigados que ;i olhavam atrás das lentes dos óculos. Sónia adivinhou o que a condessa lhe queria dizer. Nesse olhar havia suplica, receio de uma recusa, embaraço por ter de fazer semelhante pedido e inimizade pronta a manifestar-se caso ela não transigisse. Sónia aproximou-se da condessa e, ajoelhando, beijou-lhe as mãos. — Eu vou escrever-lhe, mãe — disse ela. Sónia sentia-se comovida — perturbada e enternecida por ver cumprido aquele misterioso presságio de outrora. Agora, que concluíra que a reconciliação do príncipe André e Natacha tornaria impossível o casamento de Nicolau com a princesa Maria, sentia-se contente por voltar de novo ao espírito de sacrifício que era toda a sua vida. Com os olhos rasos de lágrimas e a satisfação ele cumprir um acto realmente heróico, pôs-se a escrever, interrompendo-se, várias vezes para enxugar as lágrimas que lhe queimavam as órbitas, a carta comovedora que tão profundamente iria surpreender Nicolau. Ao chegar ao corpo da guarda onde Pedro fora conduzido, os oficiais e os soldados principiaram por tratá-lo severamente, embora com algum respeito. Ainda não sabiam de quem se tratava — talvez fosse uma personalidade importante —, mas a luta que recentemente travara, com eles não os predispunhaà indulgência. Na manhã do dia seguinte, porém, quando se procedeu ao render da guarda, a nova, guarnição deixou de ter razões para o tratar da mesma maneira. Com efeito, esse homem corpulento de cafetã de mujique já não era aos olhos, deles aquele que tivera a mão leve para o salteador e para os soldados da patrulha e falara em tom solene de uma criança salva das chamas. Para eles era apenas o décimo sétimo prisioneiro russo às ordens do alto comando. Só o que o distinguia dos outros era o seu porte altivo, o seu ar meditativo e o facto de falar francês com extraordinária felicidade. Mas nesse mesmo dia Pedro foi encarcerado à mistura com outros suspeitos, pois o quarto particular onde ele estivera fora requisitado para um oficial. Todos os russos que tinham sido detidos aquando ele pertenciam à mais baixa condição. E, reconhecendo que Pedro era um senhor, todos eles o mantinham à margem, tanto mais que falava francês, Pedro percebeu com desgosto que troçavam dele. Na noite do dia seguinte veio a saber que todos os prisioneiros, e ele também naturalmente, iam ser julgados sob a acusação de incendiários. No terceiro dia levaram-no com os outros à presença de um general de bigode branco, dois coronéis e outros franceses de braçadeiras claras. Interrogaram-nos com a nitidez e a precisão de quem se considera superior a todas as fraquezas humanas, atitude habitual nos interrogatórios de prisioneiros. Perguntaram-lhes quem eram, onde estavam e com que intenções... Todas estas perguntas, que deixavam de lado, sistematicamente, a essência do caso e tornavam desde logo impossível o esclarecimento do que mais importava, como acontece a todas as perguntas que se formulam nos tribunais, não tinham por fim outra coisa senão orientar as respostas dos acusados no sentido requerido, isto é, da sua culpabilidade. Sempre que o prisioneiro queria dizer qualquer coisa de pouco favorável à acusação, tratavam logo de desviar as suas palavras para o ponto desejado. Além disso dava-se com Pedro o que se costuma dar com todos os acusados onde quer que estejam: ignorava o objectivo daqueles interrogatórios. Supunha que só por indulgência ou cortesia adoptavam semelhante procedimento para com ele. Compreendia estar nas mãos daquela gente, que só a força ali o levara e só a força os fazia exigir respostas às suas perguntas e que aquela assembleia apenas se reunia para o inculpar. Perante tal situação, dizia de si paraconsigo, era inútil usar de astúcia. Todas as respostas que desse apenas serviriam para o incriminar. Perguntaram-lhe o que fazia quando fora preso: respondeu, com entono trágico, que levava aos país uma criança que ele salvara das chamas. A pergunta: «Porque jogava à pancada com um soldado?» respondeu que «defendia uma mulher, e que todo o homem honesto tinha o dever de defender uma mulher atacada, que...» Assim que isto disse, porém, mandaram-no calar: que não tinha nada a ver com o assunto. Que fazia ele no pátio da casa incendiada, onde fora visto por testemunhas? Replicou que «tinha ido ver o que se passava na cidade». Interromperam— no de novo. Não lhe perguntavam onde ia, mas porque se encontrava no local do fogo. E repetiram-lhe a primeira pergunta acerca da sua identidade. à qual não quisera responder. Pela segunda vez replicou que não podia responder a essa pergunta. — Escrivão, tome nota. O seu caso é grave, muito grave mesmo — disse em tom severo o general de bigode branco e rosto corado. No quarto dia após a prisão de Pedro, os incêndios principiaram na muralha de Zubovo. Conduziram-no com mais treze detidos a Krimski Brod e meteram-nos na cocheira de um comerciante. Ao atravessar as ruas sentiu-se sufocado pelo fumo, que parecia espalhar-se agora pela cidade inteira. Viam-se chamas por todos os lados. Ainda então não compreendia todo o significado do desastre e o espectáculo enchia-o de pavor. Passou quatro dias nesse barracão, e pelo que diziam os soldados franceses soube que se aguardava de um momento para o outro a decisão do marechal sobre o destino dos detidos. Não lhe foi possível compreender todavia de que marechal se tratava. Para aqueles soldados o nome de marechal representava o escalão supremo da autoridade. Os dias que precederam 8 de Setembro, data em que os prisioneiros voltaram a ser interrogados, foram os mais penosos para Pedro. [IX] No dia 8 de Setembro, por conseguinte, um oficial superior, a avaliar pelas honras que a guarda lhe dispensou, veio visitar os prisioneiros. Este oficial, que pertencia sem dúvida ao estado-maior, procedeu, de lista em punho, à chamada dos russos, designando Pedro por aquele que não revela o seu nome». E depois de lhes lançar um olhar indiferente, ordenou ao oficial da escolta que os mandasse vestir convenientemente para se apresentarem diante do marechal. Uma hora mais tarde chegou a escolta, que conduziu Pedro e os companheiros ao campo Deviche. Depois da chuva que caíra, o dia estava claro e cheio de sol, e o ar extraordinariamente puro. O fumo não se conservava rente ao chão como no dia em que os haviam levado do corpo da guarda das muralhas de Zubovo; subia direito no ar sereno. Não se viam agora labaredas, mas de todos os lados se erguiam colunas de fumo, e Moscovo, de ponta a ponta, pelo menos quanto a Pedro era dado ver, estava reduzida a escombros. Por toda a parte eram áreas devastadas, ruínas, muros enegrecidos no alto dos quais ainda se mantinham de pé as chaminés. Por mais que procurasse identificar essas ruínas, Pedro não conseguia descobrir o bairro em que estava. Aqui e ali havia igrejas intactas. O Kremlin, que não fora atingido, alvejava, na distancia, com a suas torres e a igreja de Ivã, o Grande. Nas suas imediações brilhava a cúpula do Mosteiro Novodeviche, cujos sinos repicavam com particular sonoridade. Esses sinos fizeram lembrar a Pedro que era domingo e dia da Natividade da Virgem, mas parecia não haver ninguém para celebrar a festa. Tudo estava em ruínas. De vez em quando encontravam alguns russos esfarrapados e temerosos que se escondiam ao verem os franceses. Era evidente que o ninho russo fora destruído e disperso, mas Pedro sentia inconscientemente que, destruída a ordem da vida russa, se estabelecera um regime muito diferente, particularmente severo, o regime francês. Disso se apercebia ao ver o aspecto alegre e marcial dos militares que o escoltavam, a ele e aos outros detidos, assim como o alto funcionário francês que caminhava ao encontro deles, numa carruagem tirada por dois cavalos e guiada por um soldado. E também se apercebia disso mesmo ao ouvir os alegres compassos de uma banda regimental que chegavam até ele vindos do lado esquerdo da esplanada. Compreendeu-o e sentiu-o sobretudo nessa mesma manhã quando o oficial veio fazer a chamada dos prisioneiros. Fora capturado por simples soldados, forabaldeado de um lado para o outro, de cambulhada com dezenas de outros indivíduos. Podia ter pensado que iam esquecê-lo, confundi-lo com os outros. Mas não: as suas respostas no interrogatório pegavam-se-lhe ao corpo, «aquele que não revela o seu nome». E sob essa designação, que o assustava agora, o levavam não sabia para onde, embora lesse na cara dos guardas saberem-no eles muitíssimo bem, eles que os conduziam onde era mister. Sentia-se como o grão de pó que cai na engrenagem de uma máquina desconhecida, mas que trabalha maravilhosamente. Conduziram Pedro e os seus companheiros ao campo Deviche, não longe o mosteiro, a uma grande casa branca cercada de extensos jardins. Era a casa, do príncipe Chteherbatov, que Pedro costumava frequentar, e onde residia, veio a sabê-lo pelos soldados, o marechal príncipe de Eckmühl. Foram levados até ao alpendre e introduziram-nos dentro de casa um por um. Pedro foi o sexto a entrar. Através da galeria envidraçada, do vestíbulo e da antecâmara, que Pedro conhecia muitíssimo bem, fizeram-nos entrar num longo gabinete de tecto baixo à porta do qual havia um ajudante-de-campo. Davout estava sentado na extremidade da sala, os óculos acavalados no nariz. Pedro aproximou-se. De olhos pousados no papel que procurava decifrar. Davout, perguntou em voz baixa: Quem sois? Pedro ficou calado, pois sentia-se incapaz de articular palavra. A seus olhos, Davout não era apenas um general francês, mas um homem de conhecida crueldade. Ao ver aquele rosto frio em que havia qualquer coisa da expressão de um pedagogo severo que condescende em esperar um instante pela resposta pedida. Pedro disse de si para consigo que cada segundo de hesitação que mostrasse lhe poderia custar a vida: e no entanto não sabia que dizer. Repetir o que dissera quando do primeiro interrogatório parecia-lhe inútil: revelar o seu nome e a sua situação não só seria perigoso mas vergonhoso. Ficou calado. Sem lhe dar tempo, porém, a que ele tomasse uma decisão, Davout ergueu a cabeça, puxou os óculos para a testa e piscou os olhos, fixando Pedro atentamente. — Conheço este homem — disse ele, num tom frio e monótono, evidentemente para o assustar. Pedro sentiu que uma tenaz lhe apertava a testa. — Meu general, não me pode conhecer, eu nunca o vi... — É um espião russo — interrompeu Davout, dirigindo-se a outro general queestava presente e Pedro não vira. E Davout virou-lhe as costas. Pedro, subitamente, pôs-se a falar em voz trémula. — Não, monsenhor — disse ele, lembrando-se, de repente, que Davout era príncipe. — Não, monsenhor, não me pode conhecer. Sou um oficial miliciano e nunca saí de Moscovo. — Como se chama? — repetiu o marechal. — Besouhoff. — Que é que me prova que não está a mentir? — Monsenhor! — exclamou Pedro, numa voz mais súplice que ofendida. Davout ergueu os olhos e olhou-o fixamente. Assim estiveram a olhar-se um ao outro durante alguns instantes. Eis a salvação de Pedro. Aqueles olhares, que esqueciam a situação respectiva de dois inimigos, juiz e acusado, estabeleceram entre eles relações simplesmente humanas. Ambos, naquele instante, sentiram, confusamente, muitas coisas, compreendendo que tanto um como outro eram feitos da mesma humanidade, dois irmãos. Na altura em que Davout ergueu a cabeça de cima da sua lista, onde os seres humanos e o seu destino não eram mais do que números, Pedro, para ele, era apenas um incidente sem importância. Sem receio de sobrecarregar a sua consciência com qualquer má acção, tê-lo-ia mandado fuzilar. Agora, porém, via nele um homem. Ficou um breve instante a reflectir. — Como me prova a verdade do que me está a dizer? — disse ele friamente. Pedro lembrou-se de Ramballe e citou o regimento deste, o seu nome e a rua onde ele vivia. — O senhor não é o que diz ser — repetiu Davout. Pedro, numa voz trémula e entrecortada, apresentou as provas do que afirmava. Nesta altura o ajudante-de-campo entrou na sala e comunicou qualquer coisa ao seu superior. Este pareceu sentir-se muito contente com a notícia e pôs-se a abotoar o dólman para sair. Dir-se-ia ter esquecido Pedro por completo. O ajudante-de-campo, contudo, lembrou-lhe o prisioneiro que ele interrogava. Davout franziu o sobrolho, acenou com a cabeça na sua direcção e deu ordem parao levarem dali. Mas para onde? Eis o que Pedro ignorava. Levá-lo-iam para o barracão ou para o local do suplício do campo Deviche, que lhe tinham mostrado? Voltou a cabeça e viu o ajudante-de-campo que interrogava o marechal. — Sim... sem dúvida! — replicou este. De que se tratava? Não sabia. Não foi capaz de saber, mais tarde, por quanto tempo havia caminhado e para onde o tinham levado. Num estado de completa, inconsciência, sem se dar conta do que se passava à sua roda, caminhou, caminhou, detendo-se quando os outros se detinham. Um único pensamento o preocupava no fim de contas, quem o condenara à morte? Não, com certeza, aqueles que o haviam interrogado: nenhum deles o teria feito nem o desejaria fazer. Tão-pouco Davout, que o olhara com tanta humanidade. Um pouco mais e Davout teria reconhecido estarem enganados a seu respeito, A chegada do ajudante-de-campo o impedira disso. Naturalmente esse oficial não procedera de má-fé, mas teria sido preferível que não aparecesse. Quem pois o queria supliciar, acabar-lhe com a vida, a ele, Pedro, com todas as suas recordações, os seus desejos, as suas esperanças, os seus pensamentos? Quem? E concluía que afinal ninguém. Se havia um culpado, era a ordem estabelecida, e essa ordem roubava-lhe a vida, aniquilava-o. [X] Da casa, do príncipe Chtcherbatov, os prisioneiros foram conduzidos directamente, através do campo Deviche. à esquerda do Mosteiro Dievitchi, e fizeram-nos entrar num pomar onde estava erguido um poste. Na retaguarda deste havia um grande fosso, ladeado de um monte de terra recentemente removida, e em volta dele, em semicírculo, grande multidão. Os russos eram poucos, e grande o número de soldados de Napoleão: alemães, italianos e franceses envergando os fardamentos mais variados. A direita e à esquerda do poste formava um destacamento de franceses, de arma ao ombro, capotes azuis, charlateiras vermelhas, polainas e barretinas. Os condenados foram colocados em filas pela ordem em que figuravam na lista, na qual Pedro era o sexto, e conduziram-nos até junto do poste. De súbito ouviu-seo rufar de tambores em vários pontos. Ao ouvi-los, Pedro sentiu, por assim dizer, que a alma se lhe separava do corpo. Perdeu toda a capacidade de pensar e de se recordar. Apenas podia ver e ouvir. E só tinha um desejo: que aquela coisa horrível acabasse o mais depressa possível. Pousou os olhos nos seus companheiros. Os dois da extremidade eram presidiários e tinham a cabeça rapada: um, grande e magricela, o outro, moreno, peludo, musculoso e de nariz achatado. O terceiro era um criado dos seus quarenta e cinco anos, de cabelo grisalho, corpulento e bem tratado. O quarto, um mujique, belo rapaz, de barba ruiva, em forma de leque, e olhos pretos, O quinto, um operário fabril, rapazola amarelento e delgado, dos seus dezoito anos, que vestia um guarda-pó. Pedro ouviu os franceses discutir entre si se deviam fuzila-los individualmente ou dois a dois. «Dois a dois», respondeu, friamente, o oficial que comandava a força. Houve agitação nas fileiras dos soldados e todos se deram pressa. Não era a pressa de alguém que quer realizar uma tarefa de bom grado aceite por todos, mas a pressa em dar por findo um trabalho necessário, embora desagradável e repugnante. Um funcionário francês, de braçadeira, aproximou-se pela direita das filas dos condenados e leu as sentenças em russo e francês. Em seguida, quatro soldados, dois a dois, a um sinal do oficial, tomaram conta dos penitenciários da extremidade. Estes marcharam direitos ao poste, pararam e, enquanto lhes preparavam os sacos para lhes enfiar na cabeça, olharam à sua volta em silêncio como a fera cercada pelos caçadores que a vão abater. Um deles persignava-se e voltava a persignar-se, o outro coçava as costas, esboçando um movimento de lábios em que havia como que um sorriso. Os soldados, rapidamente, vendaram-lhes os olhos, enfiaram-lhes os sacos pela cabeça e amarraram-nos ao poste. Doze atiradores saíram das fileiras, em passo firme e cadenciado, e alinharam a uns oito passos do poste. Pedro virou a cara para não ver o que ia passar-se. De súbito soaram as detonações, que lhe pareceram mais estrondosas que os mais medonhos trovões, e de novo voltou a cara. Havia fumo no ar, e os franceses, pálidos e de mãos trémulas, faziam fosse o que fosse em volta do fosso. Os dois condenados seguintes foram levados também. Exactamente como os primeiros, e com os mesmos olhos, fitaram o público, como se não compreendessem nempudessem acreditar no que lhes estava a acontecer. Impossível. Só eles sabiam o preço que a existência tinha para eles e não podiam compreender nem acreditar que lhes tirassem a sua única vida. Pedro, para não ver, voltou de novo a cara e uma nova e tremenda detonação lhe soou aos ouvidos. No mesmo instante subiu no ar o mesmo fumozinho, o sangue espalhou-se no chão, e os franceses, de rostos pálidos e assustados, agitaram-se em volta do poste, empurrando-se uns aos outros com mãos trémulas. Pedro, com um grande suspiro, olhou em roda de si, como se perguntasse o que significava tudo aquilo. E a mesma pergunta se lia em todos os olhos que os de Pedro interrogavam. Em todos os rostos, dos russos, dos soldados franceses, dos oficiais, em todos, sem excepção, encontrava o mesmo pavor, o mesmo horror, e também os mesmos sinais da luta travada em seus corações: «Quem foi, realmente? Todos sofrem o que estou a sofrer. Quem? Quem?» E esses pensamentos perpassaram-lhe pelo espírito como um relâmpago. «Atiradores do 36º, em frente!», gritou uma voz. Levaram o quinto prisioneiro, só esse, aquele que estava ao lado de Pedro. Mas não compreendeu logo que estava salvo, que tanto ele como os outros apenas ali tinham sido levados para assistir à execução. Cada vez era maior nele o sentimento de horror. Não sentia nem alegria nem apaziguamento. O quinto condenado era o operário fabril de guarda-pó. Assim que lhe puseram as mãos em cima, deu um salto e agarrou-se a Pedro, que, estremecendo, horrorizado, procurou desembaraçar-se dele. Não era capaz de dar um passo. Arrastaram-no pelas axilas enquanto ele gritava, Ao chegar ao poste, calou-se subitamente. Só agora parecia compreender. Teria percebido ser inútil gritar ou pensaria não ser possível que o fossem matar? E ali estava diante do poste, de pé, aguardando que lhe vendassem os olhos, como aos outros, e, como eles, parecia o mesmo animal ferido olhando à, sua roda com olhos alucinados. Pedro sentia não ser capaz de voltar de novo a cabeça e fechar os olhos. Atingira o auge da curiosidade e da emoção, como todos os presentes, perante aquele quinto fuzilamento. E também aquele condenado, como os demais, parecia finalmente calmo: embrulhava-se no guarda-pó enquanto esfregava um no outro os pés descalços. Quando lhe vendaram os olhos, ele próprio ajeitou na, nuca o nó que omagoava e quando, em seguida, o amarraram ao poste ensanguentado, inclinou-se para trás, mas como essa posição tosse incómoda, voltou a endireitar-se e, de pés juntos, dócil, pôs-se no lugar conveniente. Pedro, de olhos fitos nele, seguia-lhe os mais pequenos movimentos, Ouviu-se, naturalmente, a voz de fogo e os oito tiros soaram sem dúvida ao mesmo tempo. Mas, por mais que Pedro o tentasse recordar depois, não se lembrava de ter ouvido qualquer detonação Apenas viu o rapaz escorregar, de súbito desamparado, no meio das cordas que o prendiam. Sangue lhe apareceu em dois pontos, as cordas bambearam sob o peso do corpo e o fuzilado, a cabeça exageradamente pendida para diante, as pernas flectidas, sentou-se no chão. Pedro correu para ele. Ninguém o reteve. Em volta do cadáver moviam-se vultos pálidos e assustados. O queixo de um velho soldado de grandes bigodes que desatava as cordas estremecia convulsivamente. O corpo caiu. Os soldados, apressados, arrastaram-no para além do poste e jogaram-no na fossa. Dir-se-ia que todos se sentiam criminosos e que só queriam fazer desaparecer o mais depressa possível os vestígios do seu crime. Pedro olhou para o fundo do fosso e viu lá dentro o condenado, os joelhos ao pé da cabeça e um ombro mais alto do que e outro. Este ombro, em movimentos nervosos, baixava e subia regularmente. Mas as pazadas de terra principiavam já a cobrir o corpo. Um soldado, exasperado, gritou a Pedro que se afastasse. Este, sem perceber, continuou onde estava e ali ficou. Assim que o fosso ficou coberto de terra, soou uma voz de comando. Pedro foi reconduzido ao seu lugar e o destacamento francês formado aos lados do poste fez meia volta e desfilou, marcando passo. Os vinte e quatro atiradores que tinham feito fogo iam-se incorporando nas fileiras à medida que o destacamento passava diante deles. Pedro olhava agora sem ver os soldados que passavam diante dele dois a dois. Todos, menos um, reentraram nas suas companhias. Um soldado, muito novo, pálido como um morto, barretina atirada para a nuca, a espingarda voltada para o solo, continuava de pé diante do fosso no sítio onde fizera fogo. Cambaleando como um ébrio, dava um passo em frente, outro à retaguarda, para, se, manter de pé. Um velho sargento saiu das fileiras, pousou-lhe as mãos nos ombros e arrastou- o à força para o seu lugar, A multidão ia dispersando. Todos caminhavam de cabeça baixa, sem dizer palavra.— Isto os ensinará a deitar fogos! — exclamou um dos franceses. Pedro olhou para o soldado que falara: era alguém que tentava desculpar o que se consumara. Sem concluir a frase, teve um gesto de indiferença e seguiu o seu caminho. [XI] Depois da execução separaram Pedro dos outros e deixaram-no só numa igrejinha saqueada e em ruínas. Pela noite, o sargento da guarda penetrou na igreja acompanhado de dois soldados e comunicou-lhe que fora indultado e que transitaria dai para o futuro para o barracão dos prisioneiros de guerra, Sem perceber o que lhe diziam, levantou-se e seguiu os soldados. Conduziram-no à parte superior da esplanada, a uns barracões de pranchas e vigas queimadas e meteram-no num deles. Na obscuridade pode distinguir uns vinte homens. Olhou-os sem compreender quem eram e o que estavam ali a fazer. Percebia as palavras que diziam sem poder deduzir delas qualquer sentido. Nem sequer lhes compreendia o significado. Respondia as perguntas sem a mais pequena ideia de quem poderia ser que lhe falava e da maneira como compreenderia as respostas. Via diante de si figuras e corpos e tudo parecia não ter para ele o mais ligeiro significado. Desde o momento em que assistira àquela terrível chacina executada por quem a levara a cabo sem vontade própria, dir-se-ia que na sua alma deixara de funcionar subitamente essa mola que tudo aguenta e dá vida ao conjunto. Tudo nele parecia desmoronado e um monte informe de ferro-velho. Nele, sem que se desse conta, extinguira-se a fé na harmonia do universo, na alma humana, na sua própria alma e até em Deus. Já passara por esse mesmo estado outrora, mas nunca sentira como agora os efeitos dessa crise. Até então, quando diante de uma dúvida, era ele próprio, por sua culpa, o causador dela, Então sen(ia, no fundo da sua alma, que a salvação lhe viria dos seus próprios excessos e das suas mesmas dúvidas, Agora dava-se conta de que, sem que ele tivesse culpa, o mundo se desmoronava diante dos seus olhos e que dele não restavam mais que absurdas ruínas. Sentia não estar nas suas mãos recuperar a fé na vida.Distinguia, no meio da obscuridade, em volta de si, vultos que pareciam interessados na sua pessoa. Contavam-lhe coisas várias, faziam-lhe perguntas: depois levaram-no dali e encontrou-se num recanto do barracão, ao lado de indivíduos que se interpelavam mutuamente de várias direcções, rindo. — Ora aí está ele, rapazes... esse príncipe «que» exclamou uma voz, no recanto oposto, pondo intenção particular na maneira como pronunciara aquele «que». Calado e imóvel, Pedro, sentado na palha, encostado ao tapume, ora abria ora fechava os olhos. Quando os fechava, revia o rosto terrível do pobre operário fabril, cuja simplicidade o tornava ainda mais pavoroso, e revia também as caras, ainda mais terríveis no seu pavor, dos assassinos obrigados. Depois tornava a abri- los e olhava em volta de si, no meio da obscuridade, com um ar estúpido. A seu lado, debruçado para ele, estava sentado um homenzinho cuja presença notara desde o primeiro instante graças ao cheiro a suor que dele se desprendia ao mais simples movimento. Esse homem cuidava dos pés no meio das trevas, e embora Pedro lhe não visse a cara sentia-lhe os olhos pousados nele. Tentando ver através da obscuridade, percebeu que procurava descalçar-se. E a maneira como o fazia intrigava Pedro. Depois de ter desatado os trapos que envolviam uma das pernas, imediatamente tratou da outra, sempre a olhar para Pedro. Enquanto com uma das mãos pendurava num prego os trapos, ia desfazendo os outros com a outra mão. Depois de se ter descalçado, também com toda a cautela, em movimentos regulares, pacientes, sem pressa, dependurou as botas numa escápula que lhe ficava por cima da cabeça, puxou de uma navalha, cortou qualquer coisa, voltou a fechá-la, e depois de se sentar mais comodamente abraçou os joelhos com as mãos e fitou Pedro com insistência. Uma agradável sensação de apaziguamento e de doçura se apoderava de Pedro observando os movimentos regulares daquele homem metódico ali no seu canto; até o cheiro que dele emanava lhe não era desagradável e ele próprio se pôs a olhá-lo também obstinada mente. — Tem visto muita coisa na sua vida, cavalheiro? Hem? — exclamou, de súbito, o homenzinho. Na voz cantante daquele homem havia tal inflexão de carinho e simplicidade que Pedro, ao querer responder-lhe, sentiu que lhe tremia o queixo e que as lágrimas lhe subiam aos olhos. O homenzinho, sem lhe dar tempo a que se deixasse ganhar pela comoção,prosseguiu no mesmo tom: — Não te aflijas, meu falcãozinho — disse nessa voz terna e acariciadora tão própria das velhas russas. — Não te aflijas, meu amigo; depois de uma hora de sofrimento, temos a vida inteira para viver, É o que te digo, meu amigo. E graças a Deus ainda estamos vivos e de boa saúde, Também eles são homens, uns bons e outros maus... — E, dizendo isto, inclinou-se para diante, num movimento ágil, levantou-se, tossindo, e afastou-se um pouco. — Eh!, patife! Estás aí outra vez! — exclamou a mesma voz agradável na outra extremidade do barracão. — Estás aí outra patife! Lembras-te de mim? Bom, bom, basta. Enxotando um cachorrinho que pulava à roda dele o soldado voltou para o seu lugar e sentou-se de novo. Trazia qualquer coisa embrulhada num trapo, — Toma, come — disse, ele de novo em tom respeitoso. Tirou trapo batatas cozidas e ofereceu-as a Pedro. — Ao jantar houve sopa. Mas batatas, nem falar nisso! Pedro não comera durante todo o dia e o cheiro das batatas pareceu-lhe agradável. Agradecendo ao soldado, pôs-se a comer. — Assim, uma por uma — interveio este, sorrindo, pegando numa das batatas. — Assim é que é. De novo puxou da navalha, cortou a batata, na palma da não, em duas partes iguais, salpicou-a de sal que tinha dentro do trapo e apresentou-a a Pedro. — Batatas de primeira qualidade! — repetiu ele. — Come-as assim. — Dir-se-ia que, Pedro nunca em sua vida comera coisa tão boa. Para mim tanto se me dá — murmurou Pedro. — Mas porque fuzilaram eles aqueles desgraçados? — O último ainda não tinha vinte anos. — Chiu!... Chiu!... Não diga isso, não diga isso — deu-se pressa em responder o homenzinho, e, como se as palavras lhe viessem por si mesmas à boca e sem que ele desse por isso, continuou: — Porque ficou o senhor em Moscovo? — Não pensei que eles chegassem tão depressa. Foi por acaso E assim apanharam-no em casa? — Não, saí para ver o fogo e foi então que eles me deitaram a mão e me julgaram como incendiário. — Onde há justiça há injustiça — comentou o homenzinho.— E tu, tu estás aqui há muito tempo? — interrogou Pedro, que acabara de comer a sua última batata. — Eu? No domingo apanharam-me no hospital de Moscovo. — És soldado? — Do regimento de Apcheron. Estava a morrer de febre. Nada nos disseram. Éramos vinte ao todo. Nunca teríamos pensado. — E aborreces-te aqui? — Como não hei-de eu aborrecer-me, meu falcão? Cá por mim, chamo-me Platão e sou de Karataiev. — Acrescentou, para que a conversa corresse mais fácil para Pedro. — Na tropa chamavam-me Falcãozinho. Ah. Dois não me havia de aborrecer? Moscovo é a mãe das cidades. Pois não hei-de estar triste com tudo isto? Sim, mas a lagarta come a couve e morre também. Os velhos têm razão — continuou, mudando de assunto. — Quê? Que disseste tu? — perguntou Pedro. — Eu? Eu disse que homem põe e Deus dispõe — voltou, supondo repetir o provérbio que dissera antes. E prosseguiu: — E o senhor, o senhor, naturalmente, tem bens, tem casa? E a despensa sempre a abarrotar. E uma boa dona de casa? E os pais ainda vivos? Embora Pedro, na obscuridade, não lhe pudesse ver a cara, sentia que os lábios do soldado, ao dizerem estas coisas carinhosas, esboçavam um sorriso cortês. E grande foi a sua aflição quando Pedro lhe disse que não tinha parentes, especialmente que não tinha mãe. — A mulher, para dar conselhos; a sogra, para bem nos acolher, mas não que chegue à mãe. E tens filhos? — prosseguiu ele. A resposta negativa de Pedro, condoeu-se igualmente e apressou-se a acrescentar: — Ora, ora! Ainda és novo. Ainda podes ter filhos, graças a Deus! Desde que uma pessoa viva em paz... — Oh, agora é-me indiferente! — disse Pedro, por dizer, sem dar por isso. — Eh, meu homem! — replicou o soldado. — A miséria e à prisão todos irão. Aninhou-se melhor, tossicou, dispondo-se, era bem de ver, para uma longa história. — Sim, meu velho, também eu vivia na minha casa — principiou. — Vivíamos numa rica propriedade, tínhamos muita terra nossa, os camponeses viviamfolgados e nós também, graças a Deus. A colheita rendia sete por uma. Vivíamos bem. Éramos tementes a Deus. E até que um dia... E Platão Karataiev encetou uma história compridíssima: fora apanhar lenha à floresta vizinha, o guarda deitara-lhe a mão, fora vergastado, julgado e mandaram-no assentar praça. — E que julgas, meu falcãozinho — prosseguiu, num tom em que se adivinhava o sorriso —, julgas que foi uma desgraça? Nada disso, tanto melhor assim! Se me não tivessem apanhado a mim, ao meu irmão competia assentar praça. E o meu irmão mais novo tinha cinco filhos à sua conta, enquanto que eu, eu, por mim, apenas deixei a mulher em casa. A filhinha que eu tive, Deus ma levou antes de assentar praça. Uma vez voltei a casa, de licença, é como te digo. Que vejo eu? Que todos viviam mais folgados do que antes: as capoeiras cheias de criação, as mulheres na lida da casa, os dois irmãos a ganhar a vida lá por fora. Só o Mikaila, o mais novo, estava em casa. E o pai volta-se para mim e diz-me: «Para mim, todos os filhos são iguais. Seja qual for o dedo que mordas, faz-te sempre doer. Se não te tivessem levado para a tropa a ti, Platão, tinham levado o Mikaila.» Chamou-nos a todos e mandou-nos pôr diante dos ícones. «Mikaila», disse ele, «chega-te aqui, roja-te aí no chão, e tu, mulher, faz o mesmo, e vocês, gente miúda, também. Perceberam?» E aqui tem, meu velho. O destino é que manda e nós passamos a vida a dar sentenças: não está certo, não é assim que deve ser. A nossa felicidade, meu amigo, é como a água nas redes do pescador. Se puxamos por elas, as redes incham, mas quando as tiramos de dentro da água já estão vazias. É assim mesmo. E Platão enterrou-se na sua palha. Após alguns instantes de silêncio, voltou a soerguer-se. — Quer-me parecer que estás com vontade de dormir — disse ele, e pôs-se a benzer-se precipitadamente, murmurando: — Senhor Jesus Cristo, Santos Nicolau, Frol e Laura! Senhor Jesus Cristo, Santos Nicolau, Frol e Laura! Senhor Jesus Cristo, tem piedade de nós e salva-nos! — Finda a sua oração, prosternou-se no chão, voltou a erguer-se, suspirou e sentou-se na palha. — Faz com que durmamos como uma pedra, o Deus, e que acordemos como um calatch — murmurou ainda. Depois deitou-se, cobrindo-se com o capote. — Que oração é essa? — perguntou Pedro. — Que dizes? — retrucou Platão, que estava quase a dormir.— Que foi que eu rezei? Rezei a Deus. E tu, tu não rezas? — Rezo, sim, também rezo — volveu Pedro. — Mas que é isso de Frol e de Laura? — Hem? São os patronos dos cavalos — respondeu ele. — Também devemos ter piedade dos animais. Eh, patife! Enroscou-se todo. Está quentinha, a filha de uma cadela! — acrescentou, passando a mão pelo lombo da cadelita deitada em cima das suas pernas: depois voltou-se para o outro lado e adormeceu instantaneamente. Lá fora, na distância, ouviam-se gritos e queixas e através das fendas das tábuas do barracão via-se luz. Lá dentro, porém, reinavam as trevas e a serenidade. Levou tempo antes que Pedro pudesse conciliar o sono e ali esteve estendido na palha, no meio das trevas, os olhos muito abertos, a ouvir o ressonar de Platão, deitado perto dele. Sentia que o mundo moral que se desmoronara na sua alma se ia reedificando, pouco a pouco, mais belo, e sobre alicerces novos e inalteráveis. [XII] No barracão onde estava Pedro, e onde passou quatro semanas, havia, entre os vinte e três prisioneiros, três oficiais e dois funcionários. De toda essa gente apenas lhe ficou na memória uma pálida lembrança, mas a figura de Platão Karataiev gravou-se-lhe nela para sempre, como a recordação mais viva e mais querida, como a personificação do que há de melhor e de mais são no povo russo. Quando no dia seguinte de madrugada lhe foi dado ver o rosto do seu vizinho, a impressão que tivera dos seus gestos envolventes confirmou-se. Com efeito, no seu capote de soldado francês cingido por uma corda, com o seu barrete e os seus laptis, todo ele era reboludo. Tinha a cabeça redonda como uma bola; redondos eram também o seu dorso, o seu peito, os seus ombros e até os seus braços, que ele mantinha sempre numa postura envolvente, corao para acariciar alguém. E até o seu sorriso e os seus grandes olhos castanhos e ternos eram redondos. Devia ter os seus cinquenta anos, a ajuizar pelas campanhas em que tomaraparte jutrora como soldado. Mas ele próprio não saberia nem poderia uízer que idade tinha. Porém os seus dentes fortes, de uma brancuna esplendorosa, que mostrava, alinhados, quando ria, e ria a cada passo, eram sãos e intactos, Não havia um fio branco na sua barba e nos seus cabelos, e o seu corpo era elástico e sobretudo forte e resistente. Apesar de algumas rugas, no seu rosto havia inocência e mocidade. Tinha uma voz agradável e cantante. Uma das suas particularidades quando falava era a espontaneidade e a precipitação. Parecia não pensar nem no que dizia nem no que ia dizer, e esta presteza, a verdade das suas entoaçIes, conferiam-lhe um penetrante dom de persuasão. Tais eram a sua resistência física e a sua vivacidade nos primeiros tempos de cativeiro que a doença e a fadiga nada queriam com ele. Todos os dias, de manhã e à noite, dizia: «Faz com que durmamos como uma pedra. Senhor, e que nos levantemos como um calatch.» De manhã, ao erguer-se, tinha sempre o mesmo movimento de ombros e dizia: «Quando nos deitamos, pomo-nos redondos, quando nos levantamos, estenderno-nos.» E, realmente, assim que se deitava lá estava ele a dormir como uma pedra, e assim que se estendia, sem um minuto de hesitação, punha-se logo a fazer qualquer coisa, exactamente como as crianças, que mal se levantam correm para o pé dos seus brinquedos. Tudo sabia fazer, não com perfeição, mas ainda assim nada mal. Fazia o pão, cozinhava, cosia, aplainava madeira, remendava as botas, Estava sempre ocupado e só à noite se permitia conversar, coisa de que, aliás, muito gostava, e cantar. Não o fazia como os profissionais, que se sabem escutados, mas como as aves, pois lhe era tão necessário emitir sons como estender os membros ou caminhar, e o que cantava era sempre suave, terno, quase feminino e melancólico. Enquanto cantava estava sempre muito sério. Desde que fora feito prisioneiro deixara crescer a barba e, abandonando por assim dizer tudo que nele era de empréstimo, estranho, soldadesco, ei-lo que volta a ser o que era, um mujique, um homem do povo. «O soldado quando está de licença puxa a camisa para fora das calças» (Voltar a ser mujique, pois o muiique usa a camisa por fora das calças, presa com um cinto. (N. dos T.), costumava dizer. Não era do seu agrado falar do seu tempo de serviço, embora não se queixasse dessa época e repetisse muitas vezes que nunca fora castigado. Preferia contarhistórias dos seus antigos tempos de «cristão», como dizia, em lugar de dizer camponês. Os provérbios de que esmaltava a conversa nada tinham que ver geralmente com esses ditos jocosos e inconvenientes de que tanto gosta, a soldadesca. Eram maneiras de dizer populares que, empregadas isoladamente, não têm sentido, mas, quando ditas a propósito, trasbordam de profunda sabedoria. Era frequente contradizer-se, embora fosse sempre acertado e que dizia. Gostava de falar, e falava bem, adornando a, sua palavra de diminutivos carinhosos ou adágios, de que ele proprio era autor, pensava Pedro. O maior encanto das suas histórias era o facto de os acontecimentos mais vulgares, que teriam passado completamente despercebidos, revestirem-se na sua boca de verdadeira grandeza, Gostava muito de ouvir as histórias, sempre as mesmas, que um soldado narrava ao serão, mas o que mais o interessava era o que se contava da vida real. Então todo ele era alegria, e metia a sua colherada, fazia a sua pergunta, procurando extrair a moral do que se dizia. Não tinha afectos nem amizades como Pedro as compreendia, mas vivia amistosamente com todos os que o rodeavam e não gostava mais deste ou daquele, em especial, mas em geral de todos na presença dos quais se encontrava. Queria ao seu cachorrinho, aos seus camaradas, aos franceses, gostava de Pedro, que era seu vizinho. Este, no entanto, percebia perfeitamente que, apesar de todas as atenções para com ele, homenagem involuntária do soldado às qualidades morais do seu companheiro, se ele partisse, não teria sofrido com a sua falta. E Pedro principiou a sentir por Karataicv os mesmos sentimentos. Platão Karataiev, para todos os seus demais companheiros de cativeiro, era um soldado como outro qualquer chamavam— -lhe Falcãozinho ou Platocha, gracejavam com ele sem maldade, mandavam-no fazer isto e aquilo. Aos olhos de Pedro, contudo, ele era a imagem inacessível, etcrna, do espírito de simplicidade, de franqueza e de verdade, e assim como o vira na primeira noite ele lhe ficara gravado para sempre na memória. Platão Karataiev nada sabia de cor além da sua oração. Quando principiava a falar dir-se-ia não saber como acabaria. Quando Pedro, por vezes, maravilhado com o sentido das suas palavras, lhe pedia que repetisse o que dissera, já não era capaz de se recordar do que acabara de dizer, e por isso mesmo lhe era impossível também repetir a letra da sua canção favorita. Falava-se aí no «meu querido álamo», dizia-se «estou triste», mas não se lhe podia perceber qualquer sentidocoerente. Ele próprio não compreendia e ser-lhe-ia de todo impossível compreender o que significavam os termos isolados. Cada uma das suas palavras e cada um dos seus actos era a manifestação exterior de uma força inconsciente, a sua própria vida. E esta vida, tal qual ele a considerava, não tinha para ele qualquer sentido como vida em si mesma, só a compreendia como parte de um todo que ele a cada momento sentia presente. As suas palavras, os seus actos, emanavam dele tão regular, necessária e espontàneamente como o perfume emana de uma flor. Era-lhe impossível conhecer o preço e o valor dos seus actos e das suas palavras considerados isoladamente. [XIII] Ao saber por Nicolau que seu irmão estava em Iaroslav com w Rostov, a princesa Maria, apesar das recomendações da tia, resolveu partir imediatamente, levando consigo o sobrinho, Não quis saber se era difícil ou não, se era mesmo impossível. O seu dever não só consistia em estar junto do irmão, moribundo talvez, como fazer tudo o que estivesse nas suas mãos para lhe levar o filho. Por isso se dispôs a partir. Se o príncipe André lhe não tinha escrito, era, sem dúvida, por se encontrar em estado de fraqueza extrema, ou então porque considerava aquela longa jornada muito difícil e perigosa para ela e para o filho. Em poucos dias se preparou para a viagem. A sua equipagem era formada pela grande berlinda do príncipe em que viera para Voroneje, e por algumas britchkas e galeras para as bagagens. Acompanhavam-na Mademoiselle Bourienne, Nikoluchka e o seu preceptor, a velha ama, três criadas, Tikon, um criado moço e um heiduque que a tia lhe arranjara para a escolta. Não se podia pensar em seguir a via ordinária para Moscovo. Assim, pois, tiveram de seguir por Lipetsk, Riazan, Vladimir, Chuia, muito mais longe, e caminho difícil, em virtude de se não encontrarem com facilidade estações de posta, e perigoso, mesmo, pois se dizia haver franceses já nas imediações de Riazan. Durante todo o penoso percurso a princesa Maria foi o espanto deMademoiselle Bourienne, de Dessales e de toda a criadagem, tão grandes a sua decisão e actividade. Era a última a deitar-se a primeira a levantar-se. Nenhuma dificuldade a fazia recuar. Graças a esta energia, grande estímulo para o moral de seus companheiros, puderam alcançar Iaroslav em duas semanas. Os últimos dias da sua permanência em Voroneje tinham sido para a princesa Maria os mais felizes da sua vida. O seu amor por Rostov já lhe não causava tormento nem inquietação. Enchia-lhe toda a alma, era, por assim dizer, parte integrante sua e deixara de lutar. Sem que o tivesse confessado a si própria claramente, convencera-se entretanto de que era amada e de que amava. Disso tivera a certeza aquando da última entrevista com Nicolau, no dia em que ele lhe viera comunicar que o irmão estava junto dos Rostov. Nicolau não se referira à hipótese de qualquer reconciliação projectada entre Natacha e André no caso de este melhorar, mas lera-lhe no rosto que esta eventualidade o Preocupava. No entanto, a sua maneira de ser, discreta, terna e afectuosa, não se alterara; parecia, pelo contrário, sentir-se feliz que a aliança projectada lhe permitisse exprimir mais livremente , amizade que sentia por ela e que era já amor. Assim, pelo merios, raciocinara a princesa Maria. Era a primeira e a última vez na sua vida que ela própria amava e era amada, e nesta certeza se, sentia feliz e tranquila. A felicidade que isto lhe dava irão a impedia de sentir uma grande mágoa por causa do estado do irmão. A própria traircluilidade moral de que, gozava favorecia nela os sentimentos de tristeza que dai lhe advinham. Tão inquieta se mostrara por isso mesmo durante os primeiros momentos, à partida de Voroneje, que as pessoas que a rodeavam, ao verem a sua expressão atormentada e o desespero que se lhe pintava no rosto, se convenceram de que ela ia adoecer durante a viagem. Felizmente as próprias dificuldades e preocupações da jornada, ocupação de todos os seus momentos, salvaram-na momentaneamente da dor em que se abismava e reanimaram-lhe a energia. Como frequentemente acontece no decurso de uma viagem assim, absorvida pelas preocupações materiais do caminho, esquecera, por assim dizer, o seu objectivo. Mas ao aproxi m arem— se de Iaroslav, e quando pôde dar-se conta de que, não dentro de dias, mas de poucas horas, nessa mesma noite, as suas apreensões iam ser confirmadas, uma grande emoção tomou conta dela, O heiduque, enviado para se informar do domicílio dos Roslov em Iaroslav e doestado do príncipe André, ao reencontrar as portas da cidade a grande berlinda, que acabava de chegar, e, vendo a palidez mortal da princesa, que espreitara pela portiijhola, sentiu-se aterrado. — Informei-me de, tudo, Excelência — disse ele. — Os Rostov vivemn na praça, na casa do comerciante Bronikov. Não fica longe, mesmo na margem do Volga. A princesa, ao verificar que ele não respondera à principal pergunta, a que dizia respeito ao estado de seu irmão, olhou para c, criado apavorada. Mademoiselle Bourienne foi quem o interrogou em vez da princesa. — E o príncipe? — perguntou ela. — Sua Exclência reside na mesma casa. «Isso quer dizer que está vivo», disse de si para consigo a princesa, e perguntou em voz baixa: — Como está ele? — Os criados disseram-me que está sempre na mesma. A princesa não perguntou o que queriam eles dizer com isso e relanceando os olhos ao pequeno Nicolau, a criança de sete anos sentada diante dela muito contente por chegar a uma cidade, baixou a vista e nessa atitude se manteve até que a pesada carruagein, rangendo, oscilando e combaleando, se deteve finalmente, os estribos foram apeados com fragor. Abriam-se as portinholas. A esquerda estendia-se uma grande toalha de água: era o rio: à direita um alpendre. No alpendre aguardavam-na os criados e uma rapariguinha, rosada e fresca, com uma grande trança preta, que, assim o julgou a princesa Maria, lhe sorriu um pouco afectadamente: era Soma. A princesa precipitou-se na escada, e ela disse-lhe: «Por aqui, por aqui! » E viu-se, na antecâmara, na presença de uma senhora idosa de tipo oriental, que vinha ao seu encontro, muito comovida. Era a velha condessa. Tomando nos braços a princesa Maria, beijou-a na cara. — Minha filha — exclamou ela. — Estimo-a muito e conheço-a há muito tempo. Apesar da emoção que sentia, a princesa Maria compreendeu de quem se tratava e disse de si para consigo que era preciso corresponder àquela efusão. E, sem saber muito bem o que fazia, disse-lhe em francês algumas palavras corteses no tom em que a condessa o fizera para com ela, e perguntou-lhe: — Ele como está? — O médico diz que o perigo passou — respondeu a condessa, com um suspiroe os olhos no céu que pareciam desmentir as suas palavras. — Onde está ele? Pode ver-se, pode? — perguntou a princesa. — Imediatamente, princesa, imediatamente, miniia amiga. É o filho dele? — acrescentou ao ver entrar Nikoluchka na companhia de Dessales. — Caberemos todos, a casa é grande. Oh!, que encantadora eriançal A condessa introduziu a princesa no salão. Sónia falava com Mademoiselle Bourienne enquanto a condessa acariciava o pequeno. O velho conde veio cumprimentar a princesa. Mudara muito desde que ela o vira pela última vez. Então era um velhinho folgazão, muito alegre, cheio de si: agora não passava de um pobre homem desorientado e digno de piedade. Enquanto falava à princesa ia olhando à sua roda, assustado, como se temesse não fazer o que devia. Arrancado aos seus hábitos pelo desastre de Moscovo e o da sua própria ruína, perdera todo o contacto com a realidade e sentia que já não tinha lugar nesta vida. Embora a dominasse o desejo de se ver na presença do irmão um pouco desorientada por lhe tomarem tanto tempo com as delicadezas e os cumprimentos pouco sinceros de que era alvo o sobrinho, a princesa ia fazendo as suas observações sobre o que via e compreendia que era sua obrigação submeter-se, pelo menos provisoriamente, a maneiras de agir novas para ela. Isso era necessário, era-lhe penoso, mas aceitava as consequências. — Esta é a minha sobrinha — disse o conde, apresentando Sónia —, ainda a não conhecia, não é verdade, princesa? A princesa Maria voltou-se para onde ela estava e, procurando dominar os sentimentos de hostilidade que sentira por essa rapariga, beijou-a. O que lhe era mais penoso era o facto de sentir que o estado de espírito dos que a rodeavam não rimava com o que se passava no seu próprio coração. — Onde está ele? — perguntou pela segunda vez, dirigindo-se a todos. — Está lá em baixo. Natacha está junto dele — respondeu Sónia, corando. — Foram preveni-la. Mas deve estar cansada, princesa? Lágrimas de despeito e e impaciência assomaram aos olhos dela. Desviou a cara e dispunha-se a perguntar à condessa por onde era o caminho para o quarto do irmão, quando uns passos leves, decididos, quase alegres, se ouviram à porta. A princesa voltou a cara e viu Natacha, que tanto lhe desagradara aquando da entrevista de Moscovo.Mas, assim que os seus olhos pousaram nela, logo compreendeu estar ali a sua sincera companheira de sofrimento e por conseguinte a sua amiga. Precipitou-se ao seu encontro, abraçou-se a ela e rompeu em soluços encostada ao seu ombro. Assim que Natacha, à cabeceira do príncipe André, soubera da chegada de Maria, saíra do quarto sem ruído, e no seu passo rápido, nesse seu passo de ritmo alegre que surpreendeu a visitante, correu ao encontro dela. Ao entrar no salão, o seu rosto emocionado só exprimia um sentimento, o amor, um amor sem limites por ele, por tudo que dizia respeito ao homem a quem amava, uma compaixão imensa pelos outros e um desejo apaixonado de se sacrificar. Naquele instante no seu coração não havia o mais pequeno pensamento egoísta: uma possível união com ele não lhe passava pelo espírito. O instinto delicado de Maria levou-a a ler tudo isso na cara dela e foi com uma alegria em que se misturava sofrimento que se deixou chorar sobre o ombro de Natacha. — Vamos, vamos ter com ele, Maria — disse Natacha, levando-a consigo para outra sala. A princesa levantou a cabeça, enxugou as lágrimas e quis interrogá-la. Sabia que Natacha lhe diria a verdade. — Como... — disse ela, mas interrompeu-se imediatamente. Sentia que com palavras era incapaz de Interrogar e Natacha incapaz de responder, os seus olhos, a expressão do seu rosto falavam mais claramente. Natacha olhou para ela, mas estava cheia de ansiedade e de incerteza, Devia dizer-lhe ou não tudo o que sabia? Confusamente, sentia que na presença daqueles olhos luminosos que a penetravam até ao fundo da alma não lhe seria possível não dizer tudo, toda a verdade, tal qual a sabia. Os lábios tremerem-lhe, um rieto se lhe esboçou em torno da boca e soluçou com a cabeça nas mãos. A princesa Maria compreendeu tudo. No entanto, ainda tinha alguma esperança e perguntou, sem que ela própria acreditasse no que dizia: — E como está o seu ferimento? E o seu estado geral? — Vai ver... vai ver — foi tudo quanto Natacha pôde articular. Ficaram alguns momentos num quarto vizinho do do príncipe para que desaparecessem os vestígios das lágrimas e pudessem chegar junto dele com o rosto sereno.— Como tem caminhado a doença? Há muito que está assim pior? Quando aconteceu «isso»? — perguntou Maria. Natacha contou-lhe que nos primeiros tempos o seu estado febril e as dores lhe tinham posto a vida em perigo, mas que em Troitsa melhorara e o médico nada mais receava então senão a gangrena. Esse perigo fora evitado: em Iaroslav, no entanto, veio a produzir-se uma supuração e o médico dissera que iria seguir, provavelmente, o seu curso regular. — Natacha estava perita em termos médicos. — A febre declarara -se-lhe de novo: mas o médico dizia que não tinha gravidade. — Finalmerite, antes de ontem — continuou Natacha, reprimindo as lágrimas — «isso» apareceu bruscamente... Não sei como. Verá com os seus olhos o estado em que ele está. — Está mais magro? Emagreceu? — perguntou a princesa. — Não, não é isso, é pior. Verá. Ah! Maria. é bom de mais, não pode, não pode viver neste mundo, por isso... [XIV] Quando Natacha, com um movimento habitual, abriu a porta, deixando passar na sua frente a princesa Maria, esta sentiu que os soluços a sufocavam. Conquanto estivesse preparada para o encontro, e embora fizesse tudo para estar serena, sentia que não tinha coragem de o ver sem chorar. Compreendera o que Natacha queria dizer com as suas palavras: «Isso aconteceu-lhe antes de ontm.» Percebera que aquilo queria dizer que ele se acalmara de repente e que essa acalmia, esse desprendimento, eram prenúncios de morte. Revia, naquele momento, o pequeno André que ela ccithecera na sua infância, esse rostozinho meigo, suave, humilde, essa expressão que ele tão poucas vezes tivera depois e que tão profundamente a comovia quando voltava a encontrar-lha no rosto. De antemão sabia que ele lhe iria dizer dessas palavras serenas e ternas como o pai lhe dissera antes de morrer e que não poderia suportar isso e que romperia a chorar. Mas, como mais tarde ou mais cedo tinha de Ícontecer, resolveu entrar. Estava quase sufocada pelos soluços quando, com osseus ohos míopes, distinguiu os contornos do corpo do irmão e reconheceu os seus traços: o rosto dele estava diante de si e os seus olhos vieram pousar-se nos dela. Estendido num canapé, amparado por duas almofadas, tinha um roupão forrado de zibelina. Estava magro e pálido. Com uma das mãos, transparente e quase descarnada, pegava num lenço, enquanto com a outra, graças a imperceptíveis movimentos dos dedos, retorcia o fino bigode, que crescera muito. Os seus olhos pousaram-se na pessoa que entrava. Ao ver aquela fisionomia e a expressão daquele olhar, Maria moderou o passo e sentiu que as lágrimas se lhe secavam rios olhos e os soluços se lhe retinham no peito. Aquela cara, aqueles olhos, intimidaram-na de súbito e sentiu-se como culpada. «Culpada de quê?», perguntou-se a si própria. «De que tu vivas e que penses na vida, enquanto que eu...» respondeu-lhe aquele frio e severo olhar. Quando dirigiu lentamente os olhos para a irmã e para Natacha, no seu olhar profundo, que não olhava para fora, mas antes parecia olhar para dentro, quase havia ódio. O príncipe beijou a irmã, passando-lhe os braços em volta do pescoço, como era seu costume. — Bons dias, Maria, chegaste por fim? — disse numa voz tão monótona e tão estranha como o seu olhar. Se se tivesse posto a gritar desesperadamente, teria causado menos horror à irmã que o que lhe causara com o timbre daquela voz. — Trouxeste contigo também o Nikoluchka? — perguntou com a mesma voz monótona e lenta, fazendo um grande esforço de memória. — Como te sentes agora? — disse Maria, surpreendida de poder fazer semelhante pergunta. — Minha querida amiga, isso deves perguntá-lo ao médico — replicou ele, e, num esforco ainda para se mostrar amável, acrescentou apenas dos lábios (via-se que não pensava no que dizia): — Muito obrigada, querida amiga, por ter vindo. A princesa Maria apertou-lhe a mão. Essa pressão fê-lo franzir as sobrancelhas imperceptivelmente. Calara-se e ela própria não sabia que dizer. E então compreendeu o que acontecera a André havia dois dias. Nas suas palavras, no tom da sua voz, sobretudo naquele frio olhar, quase hostil, adivinhava-se essedesprendimento de todas as coisas deste mundo tão terrível para quem está vivo. Parecia já nada compreender do inundo dos vivos, e não porque as suas capacidades intelectuais tivessem enfraquecido, mas porque o seu pensamento estava noutro lado, num mundo que não compreendem nem podem compreender os vivos e que por isso mesmo deles o afastava. — Ah! Que estranho foi connosco o destino! — disse ele, rompendo o silêncio e apontando para Natacha: — Está a tratar-me, como vês. A princesa Maria ouvia-o, mas sem compreender o que ele dizia. Como podia ele, esse André, tão delicado, tão terno, falar assim na presença daquela a quem amava e que o amava? Se ele tivesse pensado que poderia vir a curar-se não falaria com aquela frieza, aquele tom quase ofensivo. Se ele não soubesse que ia morrer, não teria tido piedade dela? Teria podido exprimir-se assim? A única explicação é que tudo se lhe tornara indiferente e que qualquer coisa se lhe revelara de muito mais importante. A conversa, a cada momento interrompida, era fria e sem continuidade. — Maria, passou por Riazan — disse Natacha. André não sentiu qualquer surpresa ao ouvir chamar assim sua irmã, mas Natacha, que assim a chamara na presença dele, deu por isso pela primeira vez. — E então? — inquiriu ele. — Contaram-lhe que Moscovo ardeu, está completamente em ruínas: que, ao que parece... Natacha calou-se: não podia continuar. Via-se que debalde ele tentava segui- la. — Sim, Moscovo ardeu, dizem. Que coisa triste -pronunciou ele, de olhos fixos, repuxando maquinalmente as guias do bigode. — Encontraste o conde Nicolau, Maria? — disse ele, de súbito, como se quisesse mostrar-se afectuoso. — Escreveu para cá a contar que tu lhe agradas muito — prosseguiu ele, num tom simples e calmo como se não pudesse compreender inteiramente a importância das suas palavras para a gente deste mundo. — Se ele te agrada também, é muito bom... casai-vos — concluiu, por fim, como se procurasse as palavras e tivesse acabado por encontrar a expressão desejada. A princesa Maria, ao ouvir tais palavras, compreendeu quão longe o seu irmão estava já do mundo dos vivos.— Porque falas tu de mim? — disse ela com calma, relanceando um olhar a Natacha. Esta, sentindo pousar-se nela esse olhar, não ergueu os olhos. O silêncio continuou. — André, queres... queres ver o Nikoluchka? — exclamou Maria, de súbito, numa voz hesitante. — Está sempre a perguntar por ti. O príncipe André sorriu imperceptivelmente pela primeira vez, mas a irmã, que conhecia muito bem o seu jogo fisionómico, descobriu, apavorada, que aquele sorriso não era de alegria ou de ternura por ouvir falar do filho, mas uma subtil zombaria para com ela, por tê-la visto empregar este último expediente na esperança de acordar nele qualquer sentimento. — Pois sim, gostava muito de o tornar a ver. Está bom? Quando lhe trouxeram o filho, que fitou o pai assustado, mas não chorou, pois ninguém chorava, o príncipe André abraçou-o sem saber que dizer-lhe. Levaram de novo a criança, e a princesa Maria aproximou-se mais uma vez do irmão, beijou-o, e, sem poder reprimir as lágrimas por mais tempo, rompeu em soluços. André olhou-a fixamente. — Choras por Nikoluchka? — perguntou ele. Maria respondeu com um aceno afirmativo de cabeça. — Maria, tu conheces o Evange ... — E, de súbito, calou-se. — Que queres tu dizer? — Nada. Não deves chorar assim — disse ele, olhando-a com o mesmo frio olhar. Quando a irmã principiou a chorar, André compreendeu que ela chorava porque o pequeno Nicolau ia ficar órfão. Fez então um grande esforço sobre si mesmo para retomar contacto com a vida e reaver o ponto de vista dos vivos. «Sim, isso deve parecer-lhe triste», pensou ele, «e no entanto é tudo que há de mais simples!» «As aves do céu não semeiam nem colhem, mas o nosso Pai celeste alimenta- as», pensou e veio-lhe à mente comunicar essa ideia à irmã, «Mas não, elas compreenderão isto à sua maneira ou antes não o compreenderão de todo! E o que elas não Podem compreender é que todos estes sentimentos que tão caros lhes são nos são puramente pessoais, que são inúteis estes pensamentos que tantovalor têm para nós. Não nos poderemos compreender mais!» E calou-se. O filhinho do príncipe ia fazer sete anos. Mal sabia ler. Ainda nada aprendera. No decurso da sua vida veio a adquirir numerosos conhecimentos, experiência, o dom de observação. Mas ainda que dispusesse naquele momento de toda a ciência que adquiriu mais tarde, não teria apreendido melhor nem teria penetrado mais profundamente o sentido da cena que se desenrolou entre seu pai, a princesa Maria e Natacha. Compreendeu muito bem, saiu sem verter uma lágrima, aproximou-se de Natacha em silêncio, e, seguindo-a, olhou-a timidamente com os seus lindos olhos cismadores. Um movimento convulsivo lhe agitava o rosado lábio superior ligeiramente soerguido. Depois, escondendo a cabeça no colo de Natacha, rompeu a chorar. Desse dia em diante evitou Dessales e esquivou-se às carícias da condessa. Ora se deixava estar sozinho, ora procurava a princesa Maria e Natacha, a qual parecia preferir à própria tia e que, suave e timidamente, o acariciava. Maria, depois desta sua primeira visita ao irmão, compreendeu a expressão silenciosa do rosto de Natacha. Não mais lhe falou em esperanças de cura. Alternadamente com ela, assistia-lhe à cabeceira da cama. Não chorava, mas as orações prorrompiam-lhe dos lábios mudos, elevando-se a toda a hora para o Ser Eterno e Inacessível cuja presença tão vivamente se manifestava junto do moribundo. [XV] O príncipe André não só sabia que ia perecer como se sentia morrendo pouco a pouco, já estava meio morto. Tinha consciência plena do seu desprendimento de tudo que era terreno e sentia na alma uma estranha sensação de alegria e bem- estar. Aguardava sem pressa nem inquietação o inevitável. Essa coisa terrível, etcrna, desconhecída, longínqua, que ao longo de toda a sua vida ele sentira sempre a seu lado estava agora realmente ali, e graças àquele estranho bem- estar dir-se-ia quase compreensível, tangível. Outrora receara a moi-te. Por duas vezes já sentira com verdadeira angústia asua aproximação, o fim, e agora deixara de ter inedo. A primeira vez fora quando aquela granada rodopiara diante dele: olhando os prados, as árvores, o céu, sabia a morte a pairar sobre ele. Quando voltou a si, na ambulância, sentiu-se, de repente, como liberto da vida: na sua alma desabrochara essa flor do amor etcrno, livre, independente de todas as contingências, e de então para cá deixara de ter medo da morte e não mais pensara nela. Nas horas de dolorosa solidão e meio delírio após ter sido ferido, quanto mais se deixava absorver por esse mundo que se lhe revelara impregnado de amor etcrno tanto mais se desprendia, sem que desse por isso, da existência terrena. Amar tudo e todos, sacrificar-se sempre por amor, era como não amar alguém, não viver vida terrelia. E à medida que inergulhava neste princípio de amor ia renunciando às coisas do mundo, ia vencendo a tremenda barreira que sem o amor se h-vanta entre a vida e a morte. E foi assim que durante este primeiro período da sua doença, sempre que pensava na morte próxima, para si mesmo dizia: «Pois bem, tanto melhor!» Mas depois daquela noite em Mitichtchi, quando, no meio do seu delírio, lhe apareceu aquela que ele desejara tornar a ver, e, pegando-lhe na mão, a levou aos lábios, lágrimas de uma suave alegria lhe encheram os olhos e o amor da mulher, insensivelmente, de novo se insinuou no seu coração, prendendo-o outra vez à vida. Assaltaram-no pensamentos ao mesmo tempo alegres e inquietos, Lembrando-se de Kuraguine, na ambulâr.:ia, já não experimentava o sentimento de outrora. Agora atornienlava-o o desejo de saber se viveria e não ousava perguntá-lo os que o rodeavam. A enfermidade seguia o seu curso natural, mas a modificação de que Natacha falara apenas se produzira dois dias antes da chegada da princesa Maria. Era únicaniente a luta derradeira entre a vida e a morte, luta em que esta sairia vencedora. Era o reconhecimento de que ainda estimava a vida, que lhe oferecia o amor de Natacha. Era a última revolta de todo o seu ser perante o desconhecido. Anoitecia, o principe André, como era costume depois das re,feições, estava febril e os pensamentos circulavam-lhe no cérebro com toda a nitidez. Sónia sentava-se a seu lado, André dormitava. De súbito tornou-o um grande sentimento de felicidade. «Oh! Ei-la que chega!», exclamou. Efectivamente, Natacha, que acabava de chegar sem ruído, tomava o lugar de Sónia.Desde que ela o tratava que o príncipe André experimentava como que a sensação física da sua presença. Natacha ocupava uma poltrona voltada a três quartos para ele. Por detrás ardia uma vela num castiçal. Fazia meia. Aprendera a fazer meia no dia em que André lhe dissera que ninguém tratava melhor dos doentes que as velhas amas, a fazer meia, e que essa ocupação para ele era muito apaziguadora. Os seus delgados dedos manejavam ágilmente as agulhas, e ele via- lhe perfeitimente o perfil cismador da cabeca inclinada. O novelo escorregou-lhe, dos joelhos, Natacha moveu-se para o ipanhar. Estremeceu, relanceou-lhe um olhar, colocando a mão diante dos olhos, para protegê-los da luz, e, rápida, ligeira, cautelosa, debruçou-se, apanhou o novelo e retomou a posição primitiva. O príncipe André olhou-a, sem se mexer, e viu que, graças ac movimento que ela acabava de fazer, teria precisado de respirai fundo, mas que o não ousava, respirando a custo. No mosteiro de Troitsa tinham falado do passado, e ele dissera-lhe que, se se curasse, etcrnamente agradeceria a Deus aquele sofrimento que voltara a aproximá-los, A partir de então, porém, nunca mais entre eles voltou a falar-se do futuro, «Será possível que assim seja?», interrogava-se a si próprio, contemplando Natacha, ao mesmo tempo que ouvia o subtil ruido das agulhas de aço. «Não nos terá o destino reunido de maneira tão estranha senão para eu morrer?... Não se me teria revelado a verdade da vida senão para eu voltar a viver na mentira? Amo-a acima de todas as coisas neste mundo. Ora, se a arno assim, que me resta fazer?» E de súbito um grande suspiro se lhe despren, deu do peito, hábito que lhe viera no meio dos muitos sofrimentos por que passara. Natacha, ao ouví-lo suspirar, pousou o braço, inclinou-se para ele, e, vendo que os olhos lhe brilhavam, aproximou-se mais no seu passinho leve. — Não está a dormir? — Não, estou a olhá-la há muito tempo; senti-a entrar. Só a Natacha me dá este sossego tão benigno... esta claridade. Apetec.e-me chorar de felicidade, Natacha aproximou-se ainda mais. No seu rosto havia uma inef ável alegria. — Natacha, amo-a de mais, amo-a acima de todas as coisas neste mundo. — E eu... — voltou-se, por instantes. — Ama-me de mais, porquê? -disse ela. — De mais porquê?... Acha, sente no fundo do seu coração que poderei salvar- me? Acredita que sim?— Tenho a certeza, tenho a certeza! — quase gritou Natacha, agarrando-lhe apaixonadamente as duas mãos. O príncipe André ficou calado. — Era bom de mais! — E, pegando-lhe na mão, beijou-lha. Uma grande felicidade agitava Natacha, mas de súbito lembrou-se de que ele não devia excitar-se daquela maneira, que precisava de repouso. — Mas não dormiu — disse ela, refreando a felicidade que a tomava. — Procure descansar... peço-lhe. Depois de lhe apertar outra vez a mão, abandonou-a, e Natacha, voltando para o pé da luz, retomou a sua primitiva atitude. Por duas vezes se voltou e por duas vezes viu que os olhos dele brilhavam ao encontrarem os seus. Então fitou uma mancha de malha que tinha entre as mãos e para si mesmo resolveu não voltar a olhar para André enquanto não chegasse àquele ponto. Efectivamente, pouco depois, André fechava os olhos e adormecia. Não dormiu por muito tempo. De repente acordou banhado de suores frios. A ideia da vida e da morte acompanhara-o no seu curto sono, especialmente a ideia da morte. Sentia-a cada vez mais próxima. «O amor? Que é o amor?», pensava ele. «O amor é o inimigo da morte. O amor é a vida. Tudo, absolutamente tudo que me é dado compreender, graças ao amor eu o compreendo. Tudo que é, tudo que existe, pelo amor existe. O amor é Deus; morrer é regressar, eu, parcela desse amor, à fonte geral e etcrna.» Estas ideias pareceram-lhe consoladoras, mas eram apenas ideias. Qualquer coisa lhes faltava, havia nelas fosse o que fosse de demasiado subjectivo, de demasiado ininteligível. Faltava-lhe evidència. E de novo recaiu nas suas inquietações e incertezas. Acabou por adormecer outra vez. Sonhou estar deitado no quarto em que realmente se encontrava, mas de perfeita saúde, sem estar ferido. Diante dele havia uma multidão de pessoas vulgares indiferentes, e ele falava com elas, conversava disto e daquilo. Essas pessoas iam retirar-se. André, sentindo, confusamente, que nada disso tinha importância e que outra coisa o preocupava, continua a trocar com essas pessoas, apesar da surpresa que o facto lhe causa, toda a espécie de ditos fúteis e graciosos. Pouco a pouco, contudo, as figuras desvanecem-se, e ele só tem uma preocupação: fechar a porta. Levanta-se, disposto a correr o fecho e a cerrá-la. Tudo agora depende de ser capaz de o conseguir. Dá-se pressa, as pernas não lheobedecem, sabe que não chegará a tempo. Apodera-se dele uma tremenda angústia. Essa angústia é o medo da morte. A morte está ali, atrás da porta. E enquanto se extenua em esfor— ços impotentes, eis que do outro lado um ser terrífico a força. Esse ser, que nada tem de humano, e que é a morté, pretende arrombã-la, e é preciso impedi-lo. Agarra-se à porta, num apelo a todas as suas forças para que ao menos o ajudem a deter aquele espectro, já que não é capaz de a fechar. É fraco, não pode mais, e a porta cede um pouco impelida por essa criatura horrenda. Tenta mais uma vez, mas a porta cede definitivamente. Esses seus últimos esforços, verdadeiramente sobre-humanos, são inúteis. Os batentes abrem-se sem ruído. «Aquilo» entra. É a morte. E o príncipe André sente-se morrer. Mas no instante, precisamente, em que a morte se apodera dele, lembra-se de que está a dormir, e, fazendo sobre si um grande esforço, acorda. «Sim, era a morte, não havia dúvida. Eu estava morto e acordei. Sim, a morte é um despertar.» De súbito uma grande claridade lhe ilumina a alma e a cortina que até então lhe escondia essa coisa desconhecida corre diante dele. Sentiu-se então como que liberto da força que até aí o encadeava e foi nessa altura que experimentou aquela estranha sensação de leveza que nunca mais o abandonou. Tendo acordado banhado em suores frios, agitou-se no colchão, e Natacha perguntou-lhe o que tinha. André não lhe respondeu e, sem compreender o que ela dizia, fitou-a com uns olhos estranhos. Eis o que acontecera na antevéspera da chegada da princesa Maria. A partir desse momento, assim o médico o pôde verificar, a febre baixa que o consumia transformou-se em febre perniciosa. Mas Natacha não prestava a mais pequena atenção ao que o médico dizia. Para ela, mais assustador e mais certo ainda eram aqueles indícios morais do próximo fim. A partir desse dia, André, como se acabasse de sair de un, sonho, principiou a abandonar a vida. E como é sempre moroso o despertar de um sonho, o mesmo aconteceu ao seu despertar da vida. Este lento despertar não foi perturbado por qualquer incidente grave ou assustador. Os seus últimos dias e as suas últimas horas decorreram penosamente, como de costume. A princesa Maria e Natacha, que nunca mais o abandonaram, puderam verificá-lo. Já não choravam, já não estavam inquietas, e nos últimostempos elas próprias sentiam que não era a ele, príncipe André, que tratavam. Ele já ali não estava, deixara-as. Tratavam apenas a sua mais recente recordação, o seu despojo mortal, por assim dizer. Tão alto haviam subido os seus sentimentos que o espectáculo terrível da morte já não tinha poder sobre elas. Era inútil avivarem mais a dor que as pungia, Já não choravam nem na presença dele nem na sua ausência, e nunca dele falavam entre si. Sentiam não poderem exprimir por palavras o que dentro delas se passava. Sempre, e cada vez mais, o viam, lentamente, tranquilamente, abismar-se no desconhecido, e era como se soubessem que assim tinha de ser e só assim estava certo. Confessou-se, recebeu a comunhão. Toda a gente veio despedir-se. Quando lhe trouxeram o filho, pousou os lábios no rosto da criança e voltou a cara, não para esconder a mágoa e a dor, mas, assim, pelo menos, o pensaram a princesa e Natacha, por supor que era aquilo que lhe exigiam. Quando lhe pediram que lhe lançasse a bênção assim o fez, e, olhando em roda, parecia perguntar se pretendiam ainda mais alguma coisa. A princesa Maria e Natacha estavam junto dele quando soltou o derradeiro suspiro. — Acabou! — disse a princesa Maria ao notar que o corpo, durante alguns instantes imóvel, começava a arrefecer, Natacha aproximou-se, viu-lhe os olhos sem vida e cerrou-lhes as pálpebras. Fechou-lhe os olhos, mas não os beijou: limitou-se a inclinar-se sobre o que era a sua mais recente memória. «Para onde foi ele? Onde estará agora?...» Quando, vestido e lavado, estenderam o corpo no caixão em cima da mesa, todos se aproximaram, chorando. Nikoluchka soluçava, o coração trespassado por uma perplexidade dolorosa. A condessa e Sónia choravam de compaixão por Natacha e por aquele que já não era deste mundo. O velho conde, aflito, chorava pensando que não vinha longe a sua hora. E também Natacha e a princesa Maria choravam, não de dor, mas em virtude da piedosa emoção que lhes enchia a alma perante o simples e solene mistério da morte que acabava de cumprir-se na sua presença. SEGUNDA PARTE [I] [II] [III] [IV] [V] [VI] [VII] [VIII] [IX] [X] [XI] [XII] [XIII] [XIV] [XV] [XVI] [XVII] [XVIII] [XIX] [I] A razão humana não pode compreender a correlação das causas e dos acontecimentos, mas a necessidade de em tudo achar uma causa é inerente ao espírito humano. Eis porque a inteligência, incapaz de penetrar as razões infinitas e infinitamente complicadas dos acontecimentos, as quais, cada uma de per si, podem fazer figura de causa, lança mão da primeira que lhe aparece, seja a mais acessível das coincidências, e proclama: Esta é a causa! Nos factos históricos que têm por objecto de estudo as acções humanas a mais vulgar coincidência costuma ser a vontade dos deuses, e depois a dos homens colocados em situação de destaque, os chamados «heróis da história». Basta, no entanto, aprofundar um pouco qualquer facto histórico, isto é, ver agir as massas de homens que tomaram parte nele, para nos persuadirmos de que não é a vontade deste ou daquele herói que conduz as massas, mas, muito pelo contrário, é essa mesma massa que a todo o momento é conduzida. Dir-se-á ser indiferente que os acontecimentos se expliquem desta ou daquela maneira. Mas entre aquele que afirma que os povos do Ocidente se dirigiram para o Oriente porque Napoleão assim o quis, e aquele que sustenta que tal coisa aconteceu porque assim tinha de acontecer, existe a mesma diferença que entre os que proclamam que a Terra está imóvel e que os planetas giram em torno dela e os que confessam ignorar o que mantém a Terra no espaço, embora saibam que há leis que regem o movimento da Terra e dos planetas. Não há nem pode haver outras causas dos factos históricos que não seja a causa de todas as causas, mas há leis que as conduzem, umas vezes des— conhecidas, outras acessíveis à nossa razão. A descoberta destas leis não é possível todavia senão na medida em que renunciar-mos deliberadamente a atribuir as causas à vontade de um só homem, como acontece com a descoberta das leis do movimento planetário, as quais apenas se tornaram viáveis a partir da altura em que se pôs de parte o princípio da imobilidade da Terra. Depois da batalha de Borodino, da ocupação e do incêndio de Moscovo, oepisódio mais importante da guerra de 1812 teria sido, na opinião dos historiadores, o movimento do exército russo ao deixar a estrada de Riazan para seguir pela de Kaluga, dirigindo-se para o campo de Tarutino, isto é, aquilo a que se chamou «a marcha de flanco» para Krasnaia Pakra. Atribuem eles a glória deste acto genial a diferentes pessoas e discutem a quem pertence realmente. Os estrangeiros, de maneira geral, e os próprios Franceses, prestam jus ao génio militar dos generais russos sempre que falam desta marcha de flanco. Mas difícil de compreender é a razão por que os escritores militares, e de todos os demais na sua esteira, admitem que esta famosa marcha de flanco seja uma invenção profunda de um indivíduo determinado para salvar a Rússia e perder Bonaparte. Aliás é difícil de compreender, de facto, a genialidade deste movimento, pois a verdade é que se não carece de grande rasgo de inteligência para compreender-se que a melhor posição de um exército não atacado é aquela que lhe oferece mais nutrido abastecimento. Qualquer pessoa, até a menos esperta das crianças, sem grande esforço, compreenderia que, em 1812, a estrada de Kaluga era o caminho mais vantajoso para a retirada do exército depois da capitulação de Moscovo. E é impossível compreender-se à custa de que deduções chegam os historiadores a atribuir tamanha profundeza a esta manobra. E ainda mais difícil é admitir como podem eles descobrir que esta manobra salvava os Russos e perdia os Franceses, quando é certo que, muito pelo contrário, em consequência das circunstâncias que a precederam, a acompanharam ou se lhe seguiram, essa manobra poderia ter sido fatal para o exército russo, dando a vitória ao exército francês. Se, com efeito, a partir do momento em que esse movimento se realizou, a situação dos Russos beneficiou, não é razão para se dizer que a causa disso fosse esse mesmo movimento. Não só podia não ter trazido qualquer vantagem ao exército russo esta marcha de flanco, como podia mesmo ter sido a causa da sua perda. Para isso bastava que outras circunstâncias não tivessem surgido. Que teria acontecido se se não tivesse dado o incêndio de Moscovo, se Murat não houvesse perdido o contacto com os Russos, se Bonaparte não tivesse sido forçado à inacção, se o exército russo houvesse travado batalha em Krasnaia Pakra, como queriam Bennigsen e Barclay? Que teria acontecido se os Franceses tivessem atacado os Russos durante a marcha sobre Pakra ou se, em seguida, Napoleão houvesse atacado os Russos em Tarutino, apenas com a décima parte da energia que empregara em Smolensk?Que teria acontecido se os Franceses tives— sem marchado sobre Petersburgo?... Em qualquer destas eventualidades a salvadora marcha de flanco teria redundado num desastre. Por último, o que é ainda mais inconcebível, as pessoas que estudaram a história de peito feito não querem ver que a marcha de flanco não podia de maneira alguma ser atribuída à vontade de um só homem, que nunca ninguém a previra, que esta manobra, tal como aconteceu com a retirada de Fili, nunca fora em verdade encarada por quem quer que fosse no seu conjunto, mas era apenas o resultado de um número infinito de circunstâncias variadas, só sendo considerada em toda a sua amplitude quando se concluiu e já pertencia ao passado. No conselho de guerra de Fili o comando russo teve como ideia dominante a retirada, coisa óbvia, em linha recta, isto é, pela estrada de Njjni— Novgorod. A prova está no facto de a maioria das vozes se terem pronunciado nesse sentido e sobretudo na célebre conversa do general-chefe, após o conselho, com Lanskoi, intendente -geral. Lanskoi informou Kutuzov de que os abastecimentos tinham sido principalmente concentrados ao longo do no Oka, através do qual seria impossível transportá-los nos prin— cípios do Inverno. Foi esta, portanto, uma das primeiras razões que determinaram o abandono do plano de retirada em linha recta, aparentemente o mais natural. As tropas mantiveram-se, pois, mais ao sul, na estrada de Riazan, mais próximas, por conseguinte, dos seus abastecimentos. Posteriormente, a inactividade dos Franceses, que chegaram, mesmo a perder o contacto com os Russos, a preocupação de defender as manufacturas de Tula e sobretudo a vantagem de estar mais perto dos abastecimentos ebrigaram o exército a obliquar mais para sul ainda, na direc— ção da estrada de Tula. Depois de alcançarem, em marchas forçadas, a estrada de Tula, era intenção dos chefes militares não fazerem alto senão em Podolsk, e não se falava sequer, então, das posições de Tarutino, mas o caso é que uma série de circunstáricias diversas -a aparição dos Franceses, que tinham voltado a estabelecer contacto com o exército russo, projectos de batalha e sobretudo a abundância de provisões em Kaluga— levou as tropas russas a descerem ainda mais para o sul a fim de se fixarem no centro do campo de abastecimentos, dirigindo-se da estrada de Tula na direcção da de Kaluga, rumo a Tarutino. Só quando as tropas chegaram a Tarutino, mercê de um concurso de circunstâncias, e que os homens principiaram a convencer-se de que tinham desejado aquela manobra e que a liaviam planeado havia muito. [II] A famosa marcha de flanco apenas consistiu, em ultinia analisu, no seguinte, os exércitos russos, que até ai haviam retirado no sentido contrario ao da invasão, desviaram-se, uma vez que o movimento invasor cessou, da linha recta, ate então seguida, e. w verificaram que não eram perseguidos, ericaminharam-se naturalmente, na direcção das maiores reservas de abastecimentos. Admitindo que os exércitos russos nenhum chefe militur genial tivessem a comandá-los, que ninguém tivessem, mesmo, a comandá-los, não teriam podido fazer outra coisa, depois da sua retirada sobre Moscovo, senão descrever um arco de círculo na direcção do local onde se encontravam os abastecimentos e em que havia abundância de tudo. O movimento da estrada, de Nijm para a de Riazan. Tula e Kaluga era tão óbvo que nessa mesma direcção seguiam os bandos de salteadores e de Petersburgo se impunha a Kutuzov o mesmo caminho. Em Tarutino foi por assim dizer repreendido pelo imperador por ter tomado a estrada de Riazan, e de Petersburgo indicaram- lhe essa mesma posicão em frente de Kaluga, onde aliás, ele já se eencontrava quando a carta do imperador lhe chegou às mãos. Depois de rodar na direcção que a batalha de Borodino lhe impusera, a bola que era então o exército russo, após a supressão da força propulsora inicial, e na falta de novos impulsos, tomou o carninho que naturalmente se lhe impunha. O mérito de Kutuzov não está nessa manobra estratégica a que charnaramgenial, mas no facto de ter percebido por si o que, siignificava esse acto. Só ele, a partir desse momento, compreendeu a importância da inactividade do exército francês: só ele teimou em aflirmar que a batalha de Borodirio fora uma vitoria; e só ele empregou toda a sua energia em evitar que o exército se entregasse a combates inúteis, embora, na sua qualidade de general-chefe devesse ser partidário da da ofensiva. A fera atingida em Borodino continuava agora no ponto onde a linham deixado ao afastar-se, mas ainda não se sabia se estava viva, se se encontrava exausta ou se apenas o fingia. E de súbito a fera soltou um gemido.Esse gemido de fera atingida anunciando o aniquilamento foi o envio de Lauriston ao campo de Kutuzov com uma proposta de paz. Napoleão, persuadido, como sempre, de que tudo quanto fazia era perfeito, escreveu a Kutuzov nos termos que lhe vieram à cabeça, sem se dar ao cuidado de saber se era sensato o que escrevia: Senhor Priucipe Kutuzov: Envio-lhe um dos meus ajudantes-de-cuinpo para lhe falar de alguns assuntos de importància. Peço a Vossa Alteza que faça fé no que ele lhe dirá, sobretudo quando ele lhe exprimir os sentintentos de estima e de particular consideração que eu desde há muito nutro pela pessoa de Vossa Alteza. Como não e outro o firri, desta carta, iogo a Deus, Sr. Príncipe Kutuzov, que vos tenha sob a Sua santa quarda, Moscovo. 30 de Outubro de 1812, Assinado: Napoleão — Seria amaldiçoado pela posteridade se viesse a ser encarado como o primeiro motor de um acordo qualquer. Tal é o espirito presente da minha nação — respondeu Kutuzov, e continuou a fazer tudo ao seu alcance para impedir o exército russo de passar à ofensiva. Durante o mês em que o exército de Napoleão se entregara ío saque de Moscovo e o russo acampava, tranquilamente, em Tarutino, uma mudança importante se verificara quer nas forcas dos dois adversários, quer no espirito que os animava: o fiel da balança inclinou-se a favor dos Russos. Embora eles não conhecessem a situação exacta do exército francés e as mudanças tssaz rápidas que nele se tinham operado, a necessidade de passar a ofensiva traduzia-se agora em infinitos sintomas. Grande numero de razões os compelia a isso: a missão de Lauriston, abundância de abastecimentos em Tarutino, as notícias provenientes de todos os lados sobre a inactividade das tropas francesas e as desordens que entre elas lavravam, a reconstituição dos regimentos russos pela incorporação de novosrecrutas, tempo, o prolongado repouso de que os soldados tinham beneficiado, a impaciência que em geral se manifesta entre as tropas em descanso ansiosas de cumprir a sua missão, a curiosidade de saber o que acontecera ao exército francês que há tanto tinham perdido de vista, a audácia com que os postos avançados russos perseguiam os franceses desgarrados nas imediações de Tarutino, os guerrilheiros e a emulação que daí resultava, o desejo de vingança que exaltava a alma de cada russo desde que os Franceses se encontravam em Moscovo, principalmente o sentimento obscuro, latente em todos, de que se modificara a situação das tropas frente a frente, e que eram os Russos que tinham agora superioridade sobre o inimigo. Se a proporção das tropas era outra, a ofensiva tornava-se indispensável. E o certo é que, tal como acontece ao relógio pronto a dar horas quando os ponteiros percorrem os devidos pontos do mostrador, assim também nas altas esferas principiara um movimento acelerado de acordo com a mudança produzida entre as tropas. [III] O exército russo era dirigido por Kutuzov e pelo seu estado-Maior e de Petersburgo pelo próprio imperador. Mesmo antes de receber a notícia do abandono de Moscovo, se estabelecera em Petersburgo o plano pormenorizado de toda a campanha, o qual fora remetido a Kutuzov para que este o pusesse em prática. Apesar das modificações ditadas pelas circunstâncias, este plano fora adoptado pelo estado-maior e por ele posto em execução. O general-chefe apenas observara que as disposições tomadas a distância são sempre difíceis de executar. Por isso, a fim de resolver as dificuldades que sobrevieram, a cada passo estavam a enviar mensageiros portadores de novas instruções para vigiar o cumprimento dessas ordens e transmitirem os seus relatórios, Além disso, o estado-maior do exército passara por modificações profundas. Era preciso substituir Bagration, que fora morto, e Barclay, que se afastara, ofendido por se ver em posição subalterna. Tinha-se examinado com a maior severidade e que era preciso fazer: dever-se-ia colocar A no lugar de B ou R no lugar de D, ou então D onde estava A? Dir-se-ia que apenas se tratava de ser agradável a A ou a B.Em consequência da inimizade existente entre Kutuzov e o chefe do estado- maior. Bennigsen, mercê das intrigas obradas pelas pessoas de confiança enviadas pelo imperador e das modificaçães a fazer, os partidos achavam-se envolvidos numa rede muito mais complicada que de costume. A intrigava contra B, D contra C, etc., em todas as modificações e combinações possíveis, O objectivo destas múltiplas intrigas estava sobretudo nas operações militares que cada um queria orientar à sua maneira, quando a verdade é que as operações prosseguiam independentemente de tudo o que se fizesse, consoante era mister que prosseguissem, isto é, sem nunca coincidirem com o que congeminavam os homens, pois a verdade era serem uma consequência das reacções mútuas das massas. Todas aquelas combinações se cruzavam, se enredavam, reflectindo nas altas esferas a imagem exacta do que devia realizar-se. Numa carta endereçada a Kutuzov no dia 2 de Outubro, a qual ele não viria a receber senão depois da batalha de Tarutino, dizia o imperador: Principe Mikail Ilarionovitch: Desde o dia 2 de Setembro que Moscovo está nas mãos dos Franceses. Os seus últimos relatórios são datados de 20 e durante todo este tempo não só nada fez contra o inimigo no sentido de libertar a nossa primeira capital, como, in— clusivamente, nesses relatórios participa que continua a recuar. Serpukov já se encontra ocupada por um destacamento e Tula, com as suas fábricas indispensáveis ao exército, está em perigo. Por um relatório do general Wintzengerode, verifico que um corpo de exército inimigo de dez mil homens avança pela estrada de Petersburgo. Outro, composto de alguns milhares, encaminha-se para Dmitrov. Um terceiro segue pela estrada de Vladimir. E um quarto, bastante importante, está concentrado entre Ruza e Mojaisk. No dia 25 o próprio Napoleão estava em Moscovo. De acordo com todas estas indicações, e visto, que o inimigo dispersou as suas forças em destacamentos assaz iniportantes, e o próprio Napoleão ainda está em Moscovo com toda a sua guarda, será possível que as orçasque se encontram na sua frente sejam tão poderosas que não possa tentar a ofensiva? É de supor, muito pelo contrário, com toda a verosimilhança, que o inimigo o esteja a perseguir com destacamentos ou, mais rigorosamente, com um corpo de tropas muito mais fraco que o exército que lhe esta confiado a si. É de crer que, tirando partido destas circunstância, e lhe seja possível, com vantagem evidente, atacar o inimigo, em número inferior às forças que comanda, e exterminá-lo ou, pelo menos, obrigá-lo a recuar, permitindo que continuem nas nossas mãos a maior parte dos distritos actualmente ocupados, e deste modo afastando o perigo que pesa sobre Tula e as demais cidades do interior, Se o inimigo estiver em condições de marchar com um importante corpo de tropas sobre Petersburgo, a fim de ameaçar esta capital, quase inteiramente desguarnecida, a responsabilidade será sua, pois a verdade é que com o exército de que dispõe, agindo com decisão e energia, tem nas suas mãos todos os meios para evitar esta nova desgraça. Lembre-se de que já tem de prestar contas à Pátria, indignada pela perda de Moscovo. Sabe, por experiência, que estou sempre disposto a recompensá-lo. Esta minha boa disposição não se pode dizer de qualquer modo afectada, mas tanto a Rússia como eu temos o direito de esperar de si todo o zelo, toda a firmeza e os êxitos que a vossa inteligência, os vossos talentos militares e a valentia das tropas que comanda nos autorizam a esperar. Esta carta prova que em Petersburgo se sabia com exactidão qual o cômputo das tropas em presença, mas ainda ela vinha a caminho e já Kutuzov não podia impedir o exército sob o seu comando de tomar a ofensiva. A batalha já estava travada. No dia 2 de Outubro, o cossaco Chapovalov, no decurso de uma patrulha, matou uma lebre e feriu outra. Ao perseguir esta ultima foi levado para longe dafloresta e deparou-se-lhe o flanco esquerdo do exército de Murat, que se encontrava nessas paragens sem qualquer precaução ou cobertura, Rindo, contou o cossaco aos camaradas como ia caindo nas mãos dos Franceses. Ao ouvir isto, o capitão contou o caso ao seu comandante. Mandaram chamar o cossaco, interrogaram-no: os coman— dantes lembraram- se de aproveitar esta circunstância para capturar alguns cavalos, e um dos comandantes, que estava em relaçêes com graduados do exército, participou o caso a um general do estado-maior. Ultimamente a situação estava muito tensa no estado-maior. Ermolovo, alguns dias antes, viera procurar Bennigsen para lhe pedir que usasse da sua influência sobre o general-chefe para que se desencadeasse a ofensiva. — Se eu o não conhecesse — replicou Bennigsen — diria que era exactamente o contrário que pretendia, Basta que eu aconselhe seja o que for para o Sereníssimo fazer exactamente o contrário. A nova divulgada pelo cossaco, e confirmada por várias patrulhas, veio demonstrar que as coisas estavam definitivamente maduras. As cordas distenderam-se, o relógio estremeceu e as horas ressoaram. Apesar de todo o seu presumível poder, da sua inteligência, do seu conhecimento dos homens. Kutuzov acabou por tomar em consideração não só o pedido de Bennigsen, que, aliás, apresentara directamente ao imperador um relatório da situação, mas o desejo unânime dos generais, o presurnível apelo do imperador e as informações prestadas pelos cossacos. Não podendo deter um movimento que se tornara inevitável, deu ordens para que se fizesse o que ele considerava inútil e perigoso: aprovou o facto consumado. [IV] O relatório de Bennigsen e as informações dos cossacos confirmando que o flanco esquerdo dos Franceses se encontrava descoberto levaram definitivamente a fixar a ofensiva para o dia 5 de Outubro. No dia 4, de manhã, Kutuzov assinou a respectiva ordem. Toll leu-a a Ermolov, propondo-lhe que se encarregasse de tomar as últimas medidas.«Está bem, está bem, agora não tenho tempo», disse este, e saiu. O dispositivo estabelecido por Toll era excelente. Como acontecera com o de Austerlitz, aí se dizia, embora não em alemão: A primeira coluna marcha em direcção a tal parte, a segunda coluna marcha (Em alemão no texto original. (N. dos T.) em direcção a tal outra, e assim por diante. Todas estas colunas, pelo menos no papel, chegavam ao local designado no momento previsto, esmagando o inimigo. Como sempre acontece em todo e qualquer dispositivo no papel, tudo estava admiràvelmente organizado, mas a verdade é que, como aliás sempre acontece com todos os dispositivos, nenhuma das colunas chegou a tempo aos lugares designados. Quando houve número suficiente de exemplares do dispositivo, chamou-se um oficial que foi enviado a Ermolov com a ordem de o mandar por em execução. Este jovem oficial da guarda montada, ajudante-de-campo de Kutuzov, orgulhoso da missão que lhe tinham confiado, apresentou-se nas instalações de Ermolov. — Não está — volveu-lhe um impedido. O oficial dirigiu-se à instalação de um general onde Ermolov ia, muitas vezes. — O general não está. O oficial, montando de novo, dirigiu-se a casa de outro general. — Não, o general saiu. «Que grande contrariedade! Contanto que me não responsabilizem pelo atraso!», dizia ele, de si para consigo, enquanto percorria o acampamento de ponta a ponta. Houve quem lhe dissesse ter visto Ermolov com outros generais, e quem lhe sugerisse que naturalmente regressara ao seu aquartelamento. Sem comer, c oficial prosseguiu nas suas buscas até às seis horas da tarde. Ermolov não estava em parte ’alguma e ninguém sabia do seu paradeiro. Comeu qualquer coisa, mesmo de pé, em casa de um camarada, e voltou para os postos -avançados à procura de Miloradovitch, que também não estava. Disseram-lhe encontrar-se num baile em casa do general Kikine e que naturalmente Ermolov também aí estaria. — E onde fica isso? — Lá adiante, em Etchkino — explicou— lhe um oficial de cossacos, apontando- lhe, na distância, uma casa senhorial. — Quê? Lá adiante? Para lá das linhas? — Mandaram para ali dois dos nossos regimentos. Estão numa paródia doida! Têm duas bandas regimentais e três coros de cantores.O oficial dirigiu-se para os lados de Etchkino. Já de longe, antes de chegar à casa senhorial, ouviu as notas alegres e bem destacadas de uma bailata de soldados. «Pelos campos fora... Pelos campos fora.» Pífaros e pandeiros acompanhavam o canto, e de quando em quando ouviam-se sons de vozes. Grande alegria sentiu o oficial ao ouvir aquelas canções, ao mesmo tempo que o acicatavam os remorsos por tanto tardar em transmitir a ordem importante de que era portador. Já eram nove horas. Apeou-se do cavalo e subiu os degraus do alpendre da grande casa senhorial, intacta apesar de situada na linha entre Russos e Franceses. No vestíbulo e na sala de jantar passavam correndo lacaios ajoujados com vinhos e manjares. Os cantores estavam ao pé das janelas. Fizeram-no entrar e de súbito achou-se na presença de todos os principais generais do exército, inclusivamente da alta e imponente figur2 de Ermolov. De túnicas desabotoadas, muito corados, formando roda, riam a bom rir. No meio do salão, um deles, belo homem de pequena estatura, muito vermelho, bailava o trepak galhardamente. — Ah!, ah!, ah! Bravo, Nicolau Ivanovitch! Ah!, ah!... O mensageiro pensou que se se apresentasse naquele momento com ordens tão importantes seria duas vezes culpado, e resolveu esperar. Mas um dos generais viu-o, e, como se soubesse a razão que o trazia ali, chamou para ele a atenção de Ermolov. Este dirigiu-se-lhe, contrariado, e, depois de ouví-lo, pegou no papel de que ele era portador, sem dizer palavra. — Julgas, talvez, que não desapareceu de propósito observou, nessa mesma noite, ao oficial emissário o seu camarada do estado-maior, referindo-se a Ermolov. — Pois enganas-te. Foi de propósito, de caso pensado. Quer fazer uma partida a Konovnitzine. Vais ver o pé-de-vento que se levanta amanhã. [V] No dia seguinte, o velho Kutuzov, que dera ordens para que o chamassem muito cedo, fez as suas orações, vestiu-se, e com a desagradável impressão de que tinha de dirigir uma batalha nada do seu agrado, meteu-se na carruagem e dirigiu-se de Letachovka, a cinco verstas de Tarutino, para o local onde deviam reunir-se a, colunas que iam atacar. No caminho, quando não dormitava, apurava o ouvido, na esperança de ouvir o canhoneio que deveria principiar à direita da estrada, sinal do início da operação. Mas nada ouvia, Era uma manhã de Outono húmida e sombria. Ao aproximar-se de Tarutino notou que alguns soldados de cavalaria atravessavam a estrada por onde rodava a sua carruagem conduzindo, pela arreata, cavalos ao bebedouro. Atentou neles, mandou parar o carro e perguntou- lhes a que regimento pertenciam, Faziam parte da coluna que a essa hora devia encontrar-se já muito longe dali, pronta para uma emboscada. «Há engano, naturalmente», disse de si para consigo o velho general. Prosseguindo no seu caminho, viu regimentos de infantaria de armas ensarilhadas, cujos homens, em ceroulas, preparavam o rancho e acarretavam lenha. Mandou chamar um dos oficiais. Este disse-lhe não ter recebido qualquer ordem de ataque. — Como é, que... — ia a dizer, mas calou-se e ordenou que chamassem o comandante. Entretanto apeou-se e, calado, ficou à espera, de cabeça baixa, a respiração opressa, passeando de um lado para o outro. Assim que apareceu o oficial do estado-maior que ele tinha convocado, um tal Eichen, Kutuzov ficou muito corado, não porque esse oficial fosse culpado de alguma coisa, mas apenas por tratar-se de alguém que podia ser vítima da cólera em que refervia. Trêmulo dos pés à cabeça, ofegante, tamanha era a ira do velho general que dir-se-ia capaz de se rolar no chão, num ataque de raiva Assim se lançou sobre o oficial, de punhos erguidos, gritando e cobrindo-o de grosseiras Outro oficial que por acaso entretanto apareceu, o capitão Brozine, e que, aliás, nenhuma responsabilidade tinha no caso, teve de suportar os mesmos insultos- — E este canalha quem é? Fuzilem-no Miserável! — vociferava, rouco, gesticulando, cambaleante. Dir-se ia experimentar uma dor física, como era possível que ele, generalissimo, Sereníssimo, homem com poderes como ainda outro não tivera em toda a Rússia, se visse numa situação daquelas, ridicularizado por todo o exército? «Foi então debalde que tanto rezei por este dia? Foi em vão que levei a noite inteira acordado a fazer cálculos minuciosos?», dizia de si para consigo. «Quando eu era o fedelho de um oficial ninguém se atreveria a fazer pouco de mim a este ponto, mas agora...» E a dor física que sentia era a mesma que se lhe tivessemaplicado castigo corporal. Não podia deixar de soltar gritos de raiva e dor. Não tardou, porém, que as forças o abandonassem, e compreendendo então que se zangara de mais, voltou a subir para a carruagem, regressando pelo mesmo caminho, sem dizer mais palavra Este acesso de ira não voltou a repetir-se. Foi com um ligeiro piscar de olho que ele ouviu as justificações, a defesa e as instâncias de Bennigsen, de Konovnitzine e de Toll propondo-lhe que se transferisse para o dia seguinte o movimento que fracassara. Ermolov, esse, apenas apareceu dois dias depois. E Kutuzov teve de voltar a dar-lhe o seu consentimento. [VI] No dia seguinte, ao fim da tarde, as tropas concentraram-se nos lugares indicados e a partida principiou durante a noite. O tempo era bem de Outono. Havia nuvens no céu azul-violáceo, mas não chovia. A terra estava impregnada de humidade, embora não houvesse lama. As tropas marchavam em silêncio e so de vez em quando se ouvia o ressoar metálico da artilharia. Era proibido falar alto, fumar, riscar a pederneira. Tanto quanto possível, procurava-se impedir os cavalos de relinchar. O mistério que envolvia o empreendimento ainda o tornava mais atraente. As tropas marchavam alegres. Algumas colunas fizeram alto, os homens ensarilharam armas e estenderam-se na terra fria, julgando-se chegados ao seu destino. A maioria, porém, marchou toda a santa noite e como era natural as tropas não puderam chegar onde era mister que chegassem, O conde Orlov, Denissov e os seus cossacos, o destacamento menos numeroso, foram os únicos a chegar a horas ao local designado. Instalaram-se na orla extrema da floresta, ao longo do caminho que de Stromilovo levava a Dmitrovskoie. Ainda não era manhã acordaram o conde Orlov, que dormi— tava. Tinham filado um desertor do campo francês. Era um sar,ento polaco do corpo de Poniatowski, Explicou, em polaco, que desertara, pois estava a ser vítima de uma injustiça: há muito já que devia ter sido promovido a oficial, era o mais valente de todos. Por isso os abandonara, disposto a vingar-se. Dizia ele que Muratpernoitava a uma versta do local onde se encontravam e que, se lhe proporcionassem uma escolta de cem homens, tinha a certeza de o apanhar vivo. O conde Orlov-Denissov quis saber a opinião dos seus camaradas. A proposta era por de mais atraente para repeli-la. Todos queriam partir, todos eram de opinião de que se devia tentar o feito. Após muitas discussões e conferências, o general Grekov, à frente de dois regimentos de cossacos, resolveu acompanhar o desertor. — Mas lembra-te do que te digo — ameaçou Orlov-Denissov, despedindo-o —; se mentiste, mando-te enforcar como um cão, mas se falaste verdade tens cem ducados às tuas ordens. Sem responder a estas palavras, o sargento montou a cavalo e, resoluto, abalou seguido de Grekov. Desapareceram na floresta. O conde Orlov, tiritando — a manhã estava fresca e a aurora Principiava a raiar—, apreensivo pela responsabilidade que assumira, depois de ceavalgar por algum tempo ao lado de Grekov, afastou-se da mata para perscrutar o campo inimigo, que vagamente se descobria agora a luz do sol-nascente e das fogueiras do bivaque que se iam apagando. As colunas russas deviam surgir pela direita, na vertente de uma colina descoberta. Olhou para esse lado, mas nada viu, embora o terreno fosse bem visível. No acampamento francês. Iwito ciiianto lhe era dado perceber, e graças ao auxílio dos penetrantes olhos do seu ajudante-de -campo, parecia notar-se uma certa agitação. — Ah! Receio que seja tarde de mais — observou, depois do perscrutador olhar. Como costuma acontecer muitas vezes ao afastar-se alguém da influência do homem em quem confia, afigurou-se-lhe subitamente que o sargento era um traidor, que mentira, e que apenas quisera comprometer o êxito do ataque distraindo aqueles dois regimentos só Deus sabia para onde. Em que cabeça caberia poder surpreender-se o general-chefe no meio de tantas tropas! — Não há dúvida, aquele ladrão mentiu — acrescentou. — Podemos mandá-lo retroceder -arguiu alguém do séquito, que, como Orlov, duvidava do êxito daquela empresa, agora diante do acampamento inimigo. — Sim, realmente! Que acha? Devemos mandá-lo retroceder, ou não? — Quer que o vá procurar? — Pois bem. É melhor! Que volte para trás — disse o conde, subitamenteresoluto. E acrescentou, depois de consultar o relógio: — Tarde de mais, já é dia alto. O ajudante-de-campo, a galope, meteu pela floresta dentro, na intenção de alcançar Grekov. Quando voltou, o conde, excitado pelo fracasso da tentativa e da baldada espera das colunas de infantaria, que continuavam a não aparecer, e também pela proximidade do inimigo, resolveu atacar. Os homens do séquito partilhavam dos seus sentimentos. Em voz baixa ordenou «Montar!», e cada um se dirigiu para o seu posto, persignando-se. «Que Deus nos proteja!» Um «hurra!» ressoou floresta além, e, pelotão após pelotão, os cossacos dispersaram-se, como grãos que caíssem de um saco, e, de lança em riste, cavalgaram direitos ao campo inimigo atravessando um riacho. O primeiro francês que viu os cossacos soltou um grito de desespero e os outros, meio vestidos, acordados em sobressalto, abandonaram canhões, espingardas, cavalos e deram às de vila-diogo. Se os cossacos tivessem perseguido os fugitivos sem se preocupar com os despojos que estes deixavam após si, teriam, por certo, apanhado Murat e todos os que com ele se encontravam. Eis, aliás, o que os chefes pretendiam. Mas não foi possível obrigá-los a marchar enquanto houve que pilhar e prisioneiros a fazer. Ninguém mais ouviu as ordens dos comandantes. Ali se fizeram mil e quinhentos prisioneiros, se tomaram trinta e oito bocas de fogo, bandeiras, e, coisa muito mais importante para cossacos, cavalos, selas, cobertores e grande número de diversos objectos. Era preciso põr em lugar seguro os prisioneiros e os canhões, dividir os despojos, discutir, chegar-se mesmo a vias de facto, e de tudo isto houve um pouco. Os Franceses, ao ver que não eram perseguidos, ganharam coragem, reuniram- se e abriram fogo. Orlov-Denissov, que continuava à espera das suas colunas, não avançou mais. Entretanto, em virtude do dispositivo: «A primeira coluna marcha, etc.», os soldados de infantaria das colunas atrasadas, comandadas por Bennigsen e superiormente dirigidas por TolI, tinham-se posto em marcha de acordo com o programa estabelecido, e, na verdade, cumprindo as ordens, chegaram quando deviam, mas não ao local que lhes havia sido designado. Como era de esperar, oshomens, que alegremente tinham partido, não tardaram a aborrecer-se. Em alta voz havia quem mostrasse o seu descontentamento, a desordem surgiu entre as fileiras, alguns retrocederam. Os ajudantes— de -campo galopavam por aqui e por ali, os generais gritavam, coléricos, discutiam entre si, diziam que se tinham enganado, que estavam atrasados, acusavam este ou aquele. Toda a gente, por fim, abandonou o terreno, e foi dali sem saber para onde. «Havernos de ir parar a algures!», exclamavam. E, com efeito, acabaram por chegar, mas não onde era mister, e, se alguns chegaram, era tarde de mais e sem outra utilidade além da de servirem de alvo ao inimigo. TolI, que nesta batalha desempenhara o papel de Weirother em Austerlitz, galopava em todos os sentidos, dando-se conta de que tudo se fizera ao contrário do que era preciso. E assim veio a encontrar-se no meio da floresta com o corpo de exército de Bagovut já dia claro e quando havia muito devia estar junto dos cossacos de Orlov-Denissov. Fora de si por causa daquele fracasso e desejoso de encontrar alguém sobre quem pudesse descarregar a sua ira, Toll galopou imediatamente ao encontro do comandante do corpo e pôs-se a increpá-lo violentamente e a dizer que o que ele pre— cisava era de ser fuzilado. Bagovut, velho e valente general, habitualmente sereno, exasperado também com todo aquele atraso, com aquelas ordens contraditórias e confusas, destemperou, ante a surpresa de todos, e, num ataque de cólera completamente imprevisto no seu temperamento, respondeu à letra a Toll: «Não aceito lições seja de quem for, e sei morrer com os meus soldados tão bem como qualquer outro», exclamou, prosseguindo avante, seguido da sua divisão. Ao chegar a campo aberto, sob a fuzilaria dos Franceses, o valente Bagovut, num acesso de fúria, sem querer saber se era ou não útil travar batalha naquela altura, só com a sua divisão, marchou direito ao inimigo. Eis do que precisava naquele momento: perigo, balas, projécteis. Uma das primeiras balas prostrou-o e as que logo se lhe seguiram abateram muitos dos seus soldados. E assim, sem qualquer necessidade, ali esteve, exposta ao fogo dos Franceses, aquela divisão. [VII] Entretanto, outra coluna devia atacar o inimigo, mas essa coluna estava junto de Kutuzov. Este sabia perfeitamente que daquela batalha, iniciada contra sua vontade, só podia resultar um fracasso, e por isso retinha as tropas tanto quanto lhe era possível, Não se movia do lugar em que estava. Montado no seu cavalito cinzento, ali permanecia, calado, respondendo, preguiçosam ente, às propostas de ataque que lhe dirigiam. — Não fala noutra coisa senão em atacar e está demonstrado que não sabemos fazer manobras complicadas — observou a Miloradovitch, que pedia que o deixasse seguir para a frente. — O senhor não soube esta manhã deitar a mão a Murat nem chegar a tempo ao local que lhe estava designado. Agora nada mais há a fazer! — respondeu a outro general. Quando lhe vieram anunciar que na retaguarda dos Franceses, segundo informações fornecidas pelos cossacos, desguarnecida até então, se enccitravam agora dois batalhões polacos, relanceou a vista, pelo canto do olho, a Ermolov, pessoa a quem ele desde a véspera não dirigia a palavra. — Como vê, reclamam uma ofensiva, poem-se em prática diversos dispositivos, e quando chega o momento de agir nada está preparado, e o ininigo, prevenido, toma as suas precauções. Ermolov piscou o olho e sorriu ligeiramente ao ouvir estas palavras. Percebeu a tempestade passara e que Kutuzov se limitaria àquela obse-vação. — Diverte-se à minha custa — murmurou Ermolov, em voz muito baixa, tocando no joelho de Raievski, que estava a seu lado. Pouco depois, Ermolov aproximou-se de Kutuzov e disse-lhe, respeitosamente: — Ainda é tempo, alteza, o inimigo ainda se não foi embora... Se quiser dar ordens para a ofensiva. De outra maneira, guarda nem sequer cheirará a pólvora. Kutuzov não respondeu e quando lhe participaram que Murat se retirava, deu ordem de marcha, embora de cem em cem passos mandasse fazer alto por três quartos de hora. Toda a batalha se resumiu, portanto, à expedição dos cossacos de Orlov- Denissov e à perda inútil de algumas centenas de homens. O resultado desta batalha foi que Kutuzov recebeu uma condecoração de diamantes, e Bennigsen igualmente, além de cem mil rublos; outros chefes obtiveram também pingues beneficios, consoante os postos, e houve de novo modificações no estado-maior.«É sempre assim na Rússia, faz-se tudo ao contrário!», diziam, depois de Tarutino, os oficiais e os generais russos, como ainda hoje o repetem, para darem a perceber que, se houve um imbecil que fez tudo ao contrário, eles, no seu caso, teriam procedido de maneira muito diferente. A verdade, porém, é que aqueles que assim falam ou não conhecem o assunto de que se trata, ou então se enganam redondamente. As batalhas, seja a de Tarutino, a de Borodino ou de Austerlitz, nunca decorrem segundo as previsões daqueles que as dirigem. Eis um facto essencial. Número infinito de forças independentes -em nenhuma outra circunstância é o homem mais livre que numa batalha, para ele questão de vida ou de morte — influem na marcha das operações, e esta marcha nunca poderá ser conhecida antecipadamente, nem nunca coincidirá com a direcção que lhe tenha fixado tal ou qual força individual única. Quando sobre um determinado corpo agem, ao mesmo tempo de vários lados, variadas forças, a direcção do movimento não pode ser a de nenhuma dessas forças, mas como que a média de todas elas, o que em mecânica costuma exprimir- se pela diagonal do paralelogramo das forças. Quando os historiadores, especialmente os franceses, afirmam que as suas guerras ou as suas batalhas se desenrolam segundo um plano antecipadamente estabelecido, a única conclusão que podemos tirar das suas descrições é que são inexactas. O combate de Tarutino, evidentemente, não atingiu o resultado que Toll se propunha, isto é, conduzir as tropas em perfeita ordem ao ponto fixado pelo dispositivo, nem tão-pouco aquele que desejava o conde Orlov, isto é, fazer prisioneiro Murat, ou o de Bennigsen e de outros, o de esmagar instantâneamente o corpo inimigo; ou ainda o dos oficiais desejosos de tomarem Parte numa acção e de se distinguirem; ou o dos cossacos, que não conseguiram recolher todos os despojos que apanharam, e assim por diante. Mas se o objectivo real era justamente aquele que se alcançou e o que todos os russos unanimemente desejavam: expulsar os Franceses e destruir o seu exército. é evidente que a batalha de Tarutino, graças, precisamente, a isso mesmo, aos erros cometidos, foi a única eficiente naquele momento da campanha. Era difícil e mesmo impossível imaginar resultado de batalha mais favorável. Com os mais mesquinhos esforços, no meio dos maiores erros, e com perdas quase insignificantes, adquiriram-se osmaiores resultados de toda a campanha: pass.ou-se da retirada à ofensiva. Foi demonstrada a fraqueza dos Franceses, e os Russos provocaram o choque que os exércitos de Napoleão esperavam para empreender a fuga. [VIII] Napoleão entra em Moscovo depois da brilhante vitória do Moskva; não há dúvida de que a vitória foi dele, pois o campo de batalha ficou nas mãos dos Franceses. Os Russos recuam e abandonam a capital. Moscovo, a abarrotar de provisões, de armas, de munições e de riquezas sem conta, está nas mãos de Napoleão. O exército russo, duas vezes mais fraco que o francês, durante trinta dias não esboça a mais pequena tentativa de ataque. Não pode ser mais brilhante a posição de Bonaparte. Para cair com forças duas vezes superiores sobre os restos do exército russo e esmagá-lo; para propor uma paz, vantajosa ou, em caso de recusa, esboçar um movimento ameaçador sobre Petersburgo; para, mesmo no caso de desastre, retirar sobre Smolensk ou Vilna, em vez de ficar em Moscovo; numa palavra, para conservar a situação admirável em que os Franceses se encontravam, parece que não era necessário ser-se um génio militar extraordinário. Bastava fazer a coisa mais simples e mais fácil deste mundo: impedir que as tropas se entregassem ao saque, preparar roupas de Inverno, roupas que Moscovo estava em condições de fornecer para o exército inteiro, e regulamentar a distribuição de alimentos, os quais, na opinião dos historiadores franceses, eram suficientes para seis meses. Napoleão, esse génio dos génios, senhor de plenos poderes sobre o exército, segundo referem os historiadores, não soube pôr em prática esta coisa simplíssima. E não só nada disto fez, mas serviu-se de todo o seu poder para escolher, de entre todas as medidas a tomar, a mais absurda e a mais nefasta; de tudo o que podia fazer — hibernar em Moscovo, marchar sobre Petersburgo ou sobre Nijni- Novgorod, ou retroceder, quer pelo norte, quer pelo sul, pela estrada que depois seguiu Kutuzov—, escolheu a mais absurda e mais perigosa: ficar em Moscovo até Outubro, deixando que os seus soldados saqueassem a cidade, e em seguidahesitar entre manter uma guarnição na capital, sair dela ao azar, aproximar-se de Kutuzov, não decidir travar batalha, passar pela direita, alcançar MaloIaroslavets sem correr o risco de um recontro; o não tomar a estrada que seguira Kutuzov, mas regressar a Mojaisk pela estrada escalavrada de Smolensk. Nada se pode imaginar de mais insensato nem de mais nefasto, como ficou amplamente provado pelas consequências. Admitindo que Napoleão tivesse como objectivo perder o seu exército, teria sido difícil aos mais hábeis estrategos imaginar plano de operações mais eficaz para a destruição completa desse exército, e isso independentemente de tudo quanto o próprio exército russo pudesse ter feito nesse sentido! E no entanto foi isto mesmo que o genial Napoleão acabou por fazer. E, apesar de tudo, afirmar que este perdeu o seu exército porque quis ou porque não passava de um tolo seria tão errado como dizer que ele levara as suas tropas até Moscovo por ter sido esse o seu desejo e porque era uma inteligência e um génio. Quer num quer no outro caso, a sua acção pessoal, não mais influente que a do mais insignificante dos seus soldados, limitou-se a conformar-se com as leis que presidiam ao acontecimento. Estão em erro os historiadores que nos apresentam Napoleão intelectualmente deprimido em Moscovo, simplesmente porque os resultados não justificam a sua acção. Nesse momento, como antes e depois, em 1813, Napoleão serviu-se de toda a sua força moral para agir o melhor possível no interesse próprio e no interesse do seu próprio exército. Então a sua actividade não foi menos surpreendente do que a que empregou no Egipto, na Itália, na Áustria e na Prússia. A verdade é que não sabemos com precisão até que ponto se revelou o seu génio no Egipto, onde quarenta séculos contemplaram a sua grandeza, visto os seus feitos nos terem sido relatados por franceses. É-nos impossível apreciar no seu justo valor o génio por ele demonstrado na Áustria e na Prússia, pois a verdade é que não podemos conhecer os seus actos senão através de fontes francesas e alemãs, e os Alemães não podem explicar a capitulação sem combate do seu corpo de exército e capitulação sem cercos em forma das suas fortalezas desde que não recorram ao reconhecimento do génio que Bonaparte exibiu na guerra da Alemanha. No que diz respeito aos Russos, esses, graças a Deus, não têm qualquer razão para se inclinarem perante essas qualidades excepcionais no intuito de esconderem a sua vergonha. Os Russos pagaram caro de mais o direito de julgar os seus actos com justeza e sem disfarces e não estão dispostos aabandonar o diieito que lhes assiste. A actividade de Napoleão em Moscovo foi tão espantosa e tão inspirada pelo génio como em qualquer outra parte. Ordens e planos não cessaram de lhe emanar da cabeça desde que entrou em Moscovo até, que partiu da capital russa. Não o impressionam nem a ausência dos habitantes nem das deputações, como o não impressiona o próprio incêndio da cidade. Não perde de vista nem o bem-estar do seu exército nem os movimentos do inimigo, tão-pouco esquece o bem-estar das populacões russas, a administração dos negócios públicos de Paris e as considerações diplornáticas relativas às condições de paz. [IX] No ponto de vista militar, Napoleão, assim que entrou em Moscovo, deu ordens severas ao general Sebastiani para que seguisse exactamente os movimentos do exército russo e enviasse corpos de tropas em várias direcções, tendo prescrito a Murar que descobrisse o paradeiro de Kutuzov. Em seguida torna medidas severas para fortificar o Kremlin e estabelece um plano adinírável para a sua futura campanha na Rússia. No ponto de vista diplomático convoca o capitão Iakovlev, irruinado e andrajoso, que não sabia como sair de Moscovo, para lhe expor detalhadamente a sua política, e a sua magnanimidade, e entrega-lhe uma carta para o imperador Alexandre, onde se, sente no dever de o pôr ao corrente do comportamento censurável de Rostoptchine, ordenando-lhe que a leve a Petersburgo. E expõe igualmente os seus magnânimos projectos a Tutolmina e manda também este ancião a Petersburgo como parlamentário. No que diz respeito a assuntos judiciais, após os incêndios ordena que se procurem e punam os culpados. E o malfeitor do Rostoptchine é castigado, ordenando-se que lhe deitem fogo às próprias casas. Em matéria administrativa, oferece a Moscovo uma constituição. Cria-se uma municipalidade e afixa-se a seguinte proelamação: Habitantes de Moscovo! São grandes as vossas desgraças, mas Sua Majestade o Imperador e Rei quer pôr termo aos vossos sofrimentos. Terríveis exemplos vos mostraram já a maneira como ele castiga a desobediência e o crime. Severas medidas foram tomadas para acabar com as desordens e dar lugar a que se restabeleça a segurança de todos os indivíduos, Unta administração paternal, composta de homens escolhidos de entre vós, formará a vossa municipalidade. O corpo administrativo chamará a si cuidar de vós, das vossas necessidades, dos vossos interesses. Os membros desta municipalidade distinguir-se-ão por urra faixa vermelha a tiracolo. O governador civil, além da faixa, tera uma cinta branca. Fora das horas de serviço, porém, os membros da municipalidade apenas usarão hraçadeira vermelha no braço esquerdo. A polícia municipal é instituída de acordo com o antigo regulamento, e graças à vigilãneia por ela exercida a ordem na cidade já é outra. O Governo nomeou dois comissários-gerais, ou police-meister, e vinte comissários, ou tchastni pristavs, para todos os bairros da cidade. Conhecem-se pela braçadeira branca no braço esquerdo. Várias igrejas afectas a cultos diversos estão abertas e as solenidades religiosas realizam-se sem obstáculos. Os vossos concidadãos estão todos os dias a regressar aos seus lares e deram-se ínstruções para que lhes seja prestada ajuda e protecção, como é devido a quem sofre. Eis os meios pelos quais o Governo espera restabelecer a ordem e minorar as vossas privações. Mas para se chegar a este objectivo é preciso que junteis os vossos esforços aos desta gente, que esqueceis, e for possível, os sofrimentos por que acabais de passar, que tenhais esperanças num futuro menos cruel, que estejais convencidos de que a morte inevitável e infamante pesará sobre todos aqueles que atentem contra a vossa vidaou contra a vossa propriedade, e sobretudo que não tenhais dúvidas de que os vossos bens serão respeitados, que tal é o desejo do maior e do mais justo de todos os monarcas, Soldados e habitantes, seja qual for a vossa nacionalidade! Restabelecei a confiança pública, essa fonte de felicidade de todos os governos, vivei em paz, ajudai-vos e protegei-vos uns aos outros, uni-vos para combater as tentativas dos criminosos; obedecei às autoridades militares e municipais e não tarda que deixem de correr lágrimas dos vossos olhos. No que dizia respeito a subsistências, Napoleão ordenou às tropas que viessem à vez a Moscovo. à rapina, para assim arranjarem alimentos para que o exército pudesse fazer face ao futuro. No que tocava à religião, deu ordeni de trazerem os popes e de recomeçarem nas igrejas as cerimónias religiosas. Mandou afixar por toda a parte a seguinte proclamação, relativa às transacções comerciais e ao fornecimento de subsis— tências ao exército: Pacíficos habitantes de Moscovo, homens de artes e ofícios que as desgraças afastaram da cidade, e também vós outros agricultores dispersos, escondidos pelos campos, aterrorizados sem qualquer fundamento, ouvi! A calma res — tabeleceu-se na capital e a ordem reina por toda a parte. Os vossos compatriotas abandonam sem medo os seus refúgios, pois sabem que serão respeitados. Qualquer acto de violência exercido contra eles ou em prejuízo dos seus bens é punido acto contínuo. Sua Majestade o Imperador e Rei protege-vos e só considera inimigos aqueles que de entre vós desobedecerem às suas ordens. É seu desejo pôr fim às vossas infelicidades e restituir-vos a vossos lares e a vossas famílias. Correspondei às suas benévolas medidas voltando a casa sem temor algum. Habitantes! Artesãos e trabalhadores laboriosos! Retomai as vossas actividades: os vossos lares, as vossas tendas, protegidas por patrulhas, esperam-vos, e o vosso trabalhoserá recompensado. E vós, camponeses, abandonai as florestas onde vos refugiastes levados pelo medo, regressai às vossas isbás, certos de que vos saberemos proteger. Criaram-se nas cidades grandes armazéns onde os camponeses podenz colocar os produtos da lavoura que excedam as suas necessidades. Para garantir a livre circulação destes produtos, o Governo tomou as seguintes medidas: 1º De hoje em diante os camponeses, lavradores e demais habitantes dos arrabaldes de Moscovo, sem qualquer risco, podem trazer à capital os seus produtos e colocá-los em dois dos armazéns montados para esse fim, um na Rua Mokovaia e outro no Mercado Okotni. 2º Estes produtos serão adquiridos ao preço que se convencione entre o vendedor e o comprador; porém se aquele que vende não encontrar quem lhe pague preço justo tem o direito de tornar a levar a sua mercadoria, sem que ninguém o possa impedir. 3º Em vista disto, semanalmente, aos domingos e quartas-feiras, haverá feiras, e para esse efeito aos sábados e terças-feiras serão destacadas tropas em número sujiciente para protegerem os comboios ao longo de todas as estradas, até certa distância da capital. 4º Iguais medidas se adoptaram para proteger o regresso dos camponeses às suas aldeias. 5º Procurar-se-d restabelecer no prazo mais breve possível os mercados ordinários. Habitantes da cidade e das aldeias, e vós, artesãos, operários, qualquer que seja a vossa nacionalidade! Apelamos para vós, rogando-vos que vos conformeis com as paternais instruções de Sua Majestade o Imperador e Rei e que o ajudeis a contribuir para o bem- estar comum. Depositai a seus pés o respeito e a confiança e não vos demoreis a juntar-vos connosco! No intuito de elevar o moral das tropas e do povo, havia frequentes paradas e distribuíam-se condecorações. O imperador percorria as ruas a cavalo, consolandoos habitantes, e apesar das muitas preocupações que lhe causavam os negócios públicos aparecia nos espectáculos organizados segundo inspiração sua. No que diz respeito a beneficência, a melhor virtude dos soberanos, Napoleão fez também tudo que dependia dele. Deu ordem para que se inscrevesse no frontão dos estabelecimentos de beneficênci,—: Casa de minha mãe, maneira de associar, assim, o terno afecto filial à magnanimidade do monarca. Visita o asilo das crianças abandonadas, dá a beijar a sua branca mão aos órfãos que salvou e conversa c ondescendentem ente com Tutolmine. Enfim, segundo o eloquente relato de Thiers, manda pagar o soldo dos seus soldados com o dinheiro russo por ele falsificada. «Relevando o emprego dos seus recursos por um acto digno de si e do exército francès, mandou distribuir socorros aos sinistrados. Mas como os víveres eram demasiado preciosos para serem dados a estrangeiros, a maior parte dos quais inimigos, Napoleão preferiu distribuir-lhes dinheiro para que eles se abastecessem fora da cidade, e mandou distríbuir-lhes rublos-papel.» Enfim, no, desejo de manter a disciplina do exército, constantemente expede ordens severas para que sejam punidas as infracções ao regulamento e o saque. [X] Mas, coisa estranha, todas estas medidas, todas estas ordens e todos estes planos, em nada piores que os tomados em circunstâncias idênticas, não afectavam a essência da questão, como acontece aos ponteiros de um quadrante que, quando desligados do maquinismo, giram arbitrariamente e sem objectivo, alheios às engrenagens que os accionam. No ponto de vista militar, este genial plano de campanha, a respeito do qual Thiers disse «que o seu génio nunca imaginara nada de mais profundo, de mais hábil e de mais admirável», e a propósito do qual., na sua polémica com M. Fain, se empenha em demonstrar ter sido redigido não a 4, mas a, 15 de Outubro, este plano nunca foi nem nunca poderia ter sido executado, pois a verdade é que em coisa alguma se aplicava às eircunstãneias de momento. A fortificação do KrernIin, que implicava a, demolição de a Mesquita, que assim chamava Napoleão à igreja de Basílio, o Bem— Aventurado, provou ser absolutamente inútil. As minascavadas no subsolo do Kremlin apenas serviram para ajudar o imperador a por em prática o seu projecto de o fazer ir pelos ares aquando da sua partida de Moscovo, no mesmo espírito com que uma pessoa fustiga o soalho que fez cair uma criança. A perseguição do exército russo, que tanto o preocupou, proporcionou aos observadores um espectáculo extraordinário. Os generais franceses perderam a pista de sessenta mil russos, e, segundo Thiers, só graças à habilidade, e talvez mesmo ao génio de Murat, foi possível encontrá-los, como se se tratasse de um simples alfinete perdido, Na actividade diplomática, os argumentos que Napoleão desenrolou para demonstrar a sua generosidade e o seu espírito de justiça diante de Tutolmina e de IakovIev, o qual, entre parêntesis se diga, se preocupava sobretudo em arranjar um bom capote e uma carruagem, resultaram também inúteis, Alexandre I não recebeu esses embaixadores e não respondeu às cartas de que eram portadores. E no que diz respeito às suas medidas judiciárias? Apesar de ter sido executado grande número de falsos incendiários, o que restava de Moscovo acabou por arder. E quanto às suas medidas administrativas? A constituição de uma municipalidade não só não deteve o saque, como só foi útil às pessoas que dela fizeram parte, as quais, a pretexto de manterem a ordem, se entregaram à pilhagem ou apenas se de— ram ao cuidado de proteger o que era seu contra a pilhagem alheia. No que toca a matéria religiosa, as medidas postas em prática no Egipto, como as visitas às mesquitas, que aí deram tão bons resultados, em Moscovo não produziram efeito algum. Os dois ou três padres que estavam em Moscovo procuraram pôr em execução a vontade imperial, mas um deles foi esbofeteado por certo soldado francês durante o serviço divino e acerca de outro escreveu um funcionário de Napoleão o que se segue: «O padre que eu descobrira, e a quem convidara a celebrar missa, limpou e fechou a igreja. Nessa noite vieram de novo arrombar as portas, partir os cadeados, rasgar os livros e praticar outras desordens.» No que se refere a assuntos comerciais, a proclamação aos artesãos e camponeses não encontrou o mais pequeno eco. Já não havia «trabalhadores laboriosos»: e, quanto aos camponeses, esses deitaram a mão aos comissários portadores das proclamações que se aventuraram longe de mais e mataram-nos.Tão-pouco deram resultado os espectáculos destinados a divertír o público e as tropas. Os teatros organizados no Kremlin e em casa de Posniakov foram imediatamente fechados, pois actores e actrizes viram-se despojados de tudo quanto tinham. Também a beneficência foi estéril. Moscovo viu-se inundada de papel-moeda, quer falso quer verdadeiro, que logo perdeu todo o seu valor, Os Franceses, só preocupados em encher as algibeiras, apenas queriam ouro. Não só carecia de valor a moeda falsa que Napoleão distribuía tão generosamente pelos desgraçados, como as próprias moedas de prata se trocavam por moedas de ouro muito abaixo do seu valor. Mas o exemplo mais impressionante da ineficácia das medidas tornadas nas altas esferas revelou-se na inutilidade dos esforços do imperador para deter a pilhagem e restabelecei, a disciplina. Eis aqui informações das autoridades militares: «O saque continua na cidade, apesar das ordens dadas para que cessasse. A ordem, por enquanto, não está restabelecida e ainda não lia um único comerciante que pratique comércio legal. Apenas os cantineiros se arriscam a vender, mas objectos proveiiientes do saque.» «A parte do meu bairro continua a ser saqueada pelos soldados do 3º corpo, os quais, não se contentando em arrancar aos desgraçados refugiados nos subterrúncos o pouco que lhes resta, se mostram tão ferozes que os ferem à sabrada, como eu próprio Pude observar.» «Nada de novo, além de que os soldados continuam a roubar e a saquear, 9 de Outubro.» «O roubo e o saque continuam. Há um bando de ladrões no nosso bairro que é preciso mandar prender por uma força poderosa. 11 de Outubro.» «O imperador está muito descontente com o facto de, apesar das ordens severas dadas para se acabar com a pilhagem, só ver chegar ao Kremlini destacamentos de merodistas da guarda. Na velha guarda renovaram-se ontem e hoje com mais intensidade do que nunca os actos de pilhagem. O imperador tem o desgosto de verificar que soldados de escol, destinados a defender a sua própria segurança, e que deviam dar exemplo de acatar as ordens, levam tão longe a desobediência que saqueiam os próprios armazén’s e as lojas preparadasexpressamente para o exército. Alguns tão baixo desceram que já não obedecem às sentinelas, antes as injuriam e as abatem a tiro.» «O grande marechal do palácio queixa-se», escrevia o governador, «de que, apesar das reiteradas proibições, os soldados continuam a fazer as suas necessidades em todos os pátios e até mesmo debaixo das janelas do imperador.» O exército francês, como um rebanho que pisasse aos pés o pasto destinado a salvá-lo da fome, dispersava-se e perecia, pouco a pouco, mercê daquela longa permanência em Moscovo. E a verdade é que se não movia. Não se moveu até ao dia em que de súbito o assaltou um medo pânico, e isso veio a dar-se quando os soldados souberam que haviam sido capturados comboios na estrada de Smolensk e que se dera a batalha de Tarutino. A notícia desta batalha, inopinadamente levada ao conhecimento de Napoleão durante uma parada militar, despertou no imperador o desejo de castigar os Russos, como refere Thiers, e foi então que deu a ordem de marcha reclamada pelo exército inteiro. Ao abalarem de Moscovo, os soldados levavam consigo tudo quanto tinham podido apanhar. O próprio Napoleão fugia com o seu tesouro. Perante os pesados carregamentos que o exército levava, segundo diz Thiers, Napoleão ganhou medo. Mas, com a sua experiência da guerra, não mandou queimar todas as bagagens supérfluas, como fizera com as carroças de um dos seus marechais, ao aproximar-se de Moscovo. Ao ver essas seges e essas carruagens apinhadas de soldados, achou que estavam bem e que esses carros podenam vir a ser utilizados mais tarde para transportar abastecimentos, doentes e feridos. A situação do exército francês fazia lembrar a de uma fera atingida que sabe próximo o seu fim e já não atina com o que deve fazer. Estudar as hábeis manobras e os planos de campanha de Napoleão e do seu exército desde a entrada em Moscovo até à destruição deste é como estudar os pinchos e as convulsões de um animal ferido de morte. Acontece muitas vezes que esse animal, assustado Por um ruído qualquer, se atira para debaixo da espingarda do caçador, corre direito a ele, volta para trás, precipitando deste modo o seu próprio fim. Eis o que fez Napoleão sob a pressão do seu exército. A notícia da batalha de Tarutino encheu de medo o animal, que se atirou para debaixo da espingarda, chegou até junto do caçador, voltou para trás e, por fim, como sempre acontece, se precipitou nocaminho mais desvantajoso e mais perigoso, pois os seus trilhos já lhe eram conhecidos. Tal como aos olhos dos selvagens a figura esculpida à proa do barco se lhes afigura a força que o faz mover, Napoleão, que nos é apresentado como o dirigente de todo este movimento, na realidade, durante todo este período da sua vida, foi apenas a criança que, agarrada às correias do interior de um carro, julga estar a dirigi-lo. [XI] No dia 6 de Outubro, de manhã muito cedo, Pedro saiu da sua barraca, e, ao regressar a ela, deteve-se no limiar da porta a brincar com um cachorrito pardacento de pernas curtas e tortas que pulava à sua volta. Este animalzinho vivia na barraca e dormia com Karataiev. As vezes ousava sair à rua, mas voltava sempre para casa. A ninguém pertencia, naquele momento não era de quem quer que fosse e não dava por nome algum. Os Franceses chamavam-lhe Açor; um soldado apreciador de histórias, Femgalka; Karataiev e os outros, Sierii e às vezes Vislii (Nomes vulgarmente dados aos cães na Rússia (N. dos T.). O pobre animal parecia não se preocupar com o facto de não ter dono, nem nome, nem raça bem definida, nem cor muito distinta. Trazia a empenachada cauda bem alçada, e as suas patitas tortas cumpriam tão bem ou tão mal a sua função que, por vezes, esquecendo-se de usar das quatro pernas, soerguia uma das da retaguarda, graciosamente, e nas outras três trotava agilmente. Para ele tudo era motivo de alegria: ora se esfregava no chão de barriga para o ar, ora se aquecia ao sol com modos pensativos e importantes, ou ainda brincava com um pedaço de Pau ou um bocado de palha. Pedro, vestido com uma camisa suja esfarrapada, tudo quanto lhe restava dos seus antigos atavios, trazia pantalona de soldado amarradas nos artelhos, para andar mais quente, como o aconselhara Karataiev, um cafetã e um gorro de camponês. Mudara muito fisicamente. Não parecia tão gordo, embora mantivesse a mesma corpulência e a mesma força natural. Grande barba e farto bigode lhe revestiam os lábios e o mente. Por debaixo do gorro saíam-lhe umas farripas muitocrescidas e emaranhadas inçadas de piolhos. Tinha no olhar Lima expressão decidida, serena e resoluta como nunca. O relaxamento que outrora se lhe lia nos olhos desaparecera para dar lugar a uma decisão e a uma energia prontas a agir e a lutar. Andava descalço. Pedro ora mirava os campos, onde nessa manhã passavam comboios de carros e gente a cavalo, ora estendia a vista para além do rio, um pouco mais para longe, ora ainda punha os olhos no cachorrito que fingia mordê-lo, quando não rios seus próprios pés descalços, que se entretinha a mudar de posição, remexendo os sujos dedos polegares. De cada vez que fitava os pés descalços perpassava-lhe pelos lábios um sorriso de alegria e satisfação. Esse espectáculo trazia-lhe a mente tudo quanto sofrera o também o muito que aprendera nos últimos tempos e era-lhe agradável lembrar-se de tudo isso. O tempo ultimamente estava calmo e límpido, apenas pela manhã havia ligeiras geadas brancas: era, então, o Estio das mulheres. Ao ar livre, enquanto havia sol, estava quente, e este calor, após o fresco estimulante das geadas matinais, não deixava, de ter os seus encantos. Todos os objectos, próximos ou distantes, pareciam mergulhar nessa claridade feérica e cristalina como só há nessa época do Outono. Na distância divisavam-se os montes Vorobi, com a sua povoação, a sua igreja e uma casa branca. E as árvores despidas, a areia, as pedras, os telhados, o cata-vento verde da igreja, os cunhais da casa branca, lá longe, tudo isto, com uma nitidez quase irreal, se desenhava em finíssimos cor)tornos atrás da atmosfera diáfana. Num plano mais perto perfilavam-se as ruínas dessa casa senhorial, meio lambida pelo fogo, ocupada pelos Franceses, com os canteiros de lilases que adornavam o jardim ainda vestidos da sua sombria verdura. E até dessa casa meio arruinada e suja, cuja fealdade era hostil em dias sombrios, agora, iluminada por essa luz imóvel e viva, emanava uma espécie de apaziguadora beleza. Um cabo francês, que, para estar à vontade, desabotoara o dólman, de gorro de polícia e cachimbo nos dentes, saiu de um dos ângulos do abarracamento e, com uma amistosa piscadela de olhos, aproximou-se de Pedro. — Que sol, hem?, Monsieur Kiril, — assim lhe chamavam todos os franceses. — Parece que estamos na Primavera. Encostando-se à ombreira da porta, ofereceu-lhe uma cachimbada, coisa que Pedro sempre recusava.— Se tivéssemos um tempo destes para caminhar — principiou ele. Pedro perguntou-lhe o que havia sobre a próxima partida, e por ele soube que quase todas as tropas iam deixar Moscovo e que naquele mesmo dia deveria sair uma ordem determinando o destino dos prisioneiros. Na barraca de Pedro havia um soldado. Sokolov de, nome, que estava na agonia, e Pedro chamou a atenção do cabo para, a necessidade de se tomarem quaisquer medidas acerca dele. Foi-lhe respondido que podia estar sossegado, que existiam ambulâncias e hospitais permanentes, que os doentes seriam tratados e que aliás as autoridades já tinham sido prevenidas. — E depois, Monsieur Kiril, basta que diga uma palavrinha ao capitão, bem sabe. Oh!, é um b.... que nunca se esquece de nada. Diga ao capitão, quando ele vier fazer a ronda, fará tudo por si... Esse capitão tinha às vezes longas conversas com Pedro e mostrava por ele certa parcialidade. — Estás a ver, Saint-Thomas, o que ele me dizia no outro dia: Kiril é, um homem instruído, que fala francês; é um fidalgo russo, que teve pouca sorte, mas e um homem. E ele lá se entende, o b... Se ele quer alguma coisa, que mo diga, não se lhe recusa nada. Quando uma pessoa tem estudos, gosta da instrução e das pessoas decentes. É por si que eu digo isto, Monsieur Kiril. No caso do outro dia, se não fosse o senhor, aquilo acabava mal. Depois de dar à língua ainda algum tempo, foi-se o cabo. O caso do «outro dia» a que ele se referira dizia respeito a uma altercação entre prisioneiros e franceses que Pedro conseguira harmonizar. Alguns dos presos que tinham ouvido a conversa entre o compatriota e o cabo francês perguntaram- lhe de que haviam falado. Como Pedro lhes dissesse que se falava numa próxima partida, um soldado francês, magro, amarelento e esfarrapado, aproximou-se deles. Enquanto levava dois dedos à pala da barretina, num gesto rápido e algo acanhado, à guisa de continência, perguntou-lhe se o soldado Platoche, a quem confiara a camisa para remendar, não estaria por ali. Na semana anterior, os Franceses tinham recebido pano e cabedal para botas e haviam confiado aos prisioneiros o seu calçado e as suas camisas para remendar. — Está pronta, está pronta, meu falcãozito — exclamou Karataiev, que aparecera à porta com a camisa dobrada, Por causa do calor, e para estar mais à vontade, Karataiev estava apenas emceroulas e vestia uma camisola negra como um tição. À maneira dos artesãos, amarrara os cabelos com pedaços de cânhamo, e a sua cara redonda ainda parecia mais redonda agradável do que habitualmente. — Contratos são contratos. Se eu disse que estava pronta sexta-feira, está pronta sexta-feira — rematou Platão, sorrindo enquanto desdobrava a camisa. O francês olhou inquieto à sua roda e, dominando a indecisão que o tomava, despiu rapidamente o uniforme e enfiou a camisa. Sobre o desnudo corpo delgado e amarelento trazia, a servir de camisa, um folgado colete de seda floreado, muito sebento, que mal lhe cobria a pele. Receando, sem dúvida, que os prisioneiros se rissem dele, deu-se pressa em meter a cabeça pelo decote da camisa. Mas ninguém disse fosse o que fosse. — Fica-te bem — observou Platão, puxando-lhe pela camisa. Quando conseguiu meter a cabeça e os braços dentro da camisa, o francês, sem erguer os olhos, pôs- se a examinar as costuras. — Que queres tu, falcãozito, isto aqui não é uma oficina de costura, faltam-me as ferramentas necessárias. É bem verdade o que se costuma dizer: sem ter com quê, nem a pulga um homem pode matar. — E todo ele, toda a redondeza da sua cara, era riso, satisfeitíssimo com o seu trabalho. — Está bem, está bem, obrigado; mas tu deves ter pano de sobra — disse o francês. — E ainda te ficará melhor depois de se te ajeitar ao corpo — comentou Karataiev, que continuava a admirar a sua obra. — Vais-te sentir bem e à vontade. — Obrigado, obrigado, meu velho, o resto... — voltou o francês, sorrindo e metendo uma nota na mão de Karataiev. — Mas o resto... Pedro percebeu que Platão não tinha grande empenho em compreender o que dizia o seu cliente, e olhava para ambos sem abrir a boca. Karataiev agradecia o que lhe davam e continuava a admirar a sua obra. O francês teimava em que ele lhe desse o resto do pano, e acabou por pedir a Pedro que lhe servisse de intérprete. — E para que quer ele as sobras? — perguntou Karataiev. — Para nós podiam servir para fazermos umas ricas polainas para as pernas. Mas já que ele as quer... E, de súbito, numa expressão triste, tirou de dentro da camisa um embrulhito com umas sobras de pano e entregou-lho sem olhar para ele.— Que pena! — exclamou, voltando-lhe as costas. O francês pôs-se a examinar os bocados de pano, pareceu indeciso, interrogou Pedro com os olhos e como se este lhe tivesse dito alguma coisa: — Platoche, ouve lá, Platoche — gritou, corando. — Guarda-as para ti. — E, estendendo-lhe o embrulho com as sobras do pano, deu meia volta e afastou-se. — É como vês — comentou Karataiev, abanando a cabeça. — Dizem que não são cristãos. Mas sempre têm alma. Os velhos têm razão. Mão suada é dadivosa, mão enxuta é avara. Está nu e assim mesmo dá-me as sobras. Karataiev ficou pensativo, calado, de olhos fitos nos bocados de pano. — É o que te digo, amigo, vou fazer daqui umas ricas polainas — comentou, voltando a entrar na barraca. [XII] Quatro semanas tinham decorrido desde que Pedro caíra prisioneiro. Embora os Franceses o tivessem querido transferir da barraca dos soldados para a dos oficiais, continuara sempre naquela onde o tinham metido no primeiro dia. Em Moscovo, arruinada e incendiada, Pedro chegara quase ao limite extremo das privações que um homem pode suportar, porém a sua forte constituição e a sua saúde até então nunca experimentadas, e sobretudo o facto de essas privações se terem verificado pouco a pouco, fizeram que ele as suportasse não só com facilidade, mas até com alegria. Precisamente naquela altura atingia ele aquela serenidade e aquela satisfação de si próprio a que debalde aspirara outrora. Por muito tempo, no decorrer da sua vida, procurara, de vários modos e em várias direcções, aquela tranquilidade, aquele acordo consigo próprio, que tão profundamente o impressionara nos soldados durante a batalha de Borodino. Procurara-os na filantropia, na franco-maçonaria, nas distracções da vida mundana, no vinho, na heróica abnegação, no romanesco amor por Natacha; procurara-os pelas vias do puro pensamento e sempre e em toda a parte só encontrara decepções. Mas agora, espontaneamente, sem pensar nisso, ei-lo que achara essa serenidade nos horrores passados diante da morte, nas privações, aceitando e compreendendo a alma de Karataiev.Os horríveis momentos que vivera durante a execução dos incendiários pareciam ter-lhe varrido para sempre do espírito e da memória os pensamentos e os sentimentos que o inquietavam até então e que tão importantes se lhe afiguravam. Já não pensava na Rússia, nem na guerra, nem na política, nem em Napoleão. Era evidente que nada disso lhe dizia respeito, que lhe não pertencia apreciar essas coisas e mesmo que o quisesse não podia. «A Rússia e o Verão não se casarão», costumava dizer, repetindo certo dito de Karataiev, e estas palavras tão simples davam-lhe uma serenidade estranha. Agora encarava como incompreensível e até ridículo o seu projecto de matar Bonaparte e bem assim as suas lucubrações à volta do algarismo cabalístico e da Besta do Apocalipse. A ira que a mulher lhe despertara e o receio de que o seu nome tivesse sido desonrado pareciam-lhe agora não só coisas vãs mas até ridículas. Que lhe importava a ele que essa mulher levasse a vida que queria? Que lhe importava a ele principalmente que soubessem ou não que aquele prisioneiro era o conde Bezukov? Pensava muitas vezes na conversa que tivera com o príncipe André e dava-lhe inteira razão, embora lhe interpretasse o pensamento de maneira um pouco diferente. O príncipe André pensava e dizia que a felicidade apenas tinha carácter negativo, e isto não sem que o dissesse e pensasse com um misto de amargura e ironia. Pensando assim, parecia querer dizer que todas as aspirações do homem à felicidade positiva lhe não tinham sido dadas senão para o atormentar, insatisfeitas que sempre eram. Sem qualquer pensamento reservado, Pedro adoptara esta maneira de pensar. A ausência da dor, a satisfação de todas as necessidades, e, como consequência, a liberdade da escolha das suas próprias ocupações, isto é, do género de vida que mais lhe quadrava, afiguravam-se-lhe, a Pedro, incontestavelmente, o ideal da felicidade humana. Mas agora compreendera pela primeira vez o prazer de comer quando se tem fome, de beber quando se tem sede, de dormir quando se tem sono, de se aquecer quando se tem frio, de falar quando apetece ouvir uma voz humana. A satisfação das necessidades, uma boa alimentação, o asseio, a liberdade, agora, que estava privado de tudo isso, apareciam-lhe como o supra-sumo da felicidade, e a liberdade da escolha das suas ocupações, isto é., a própria vida, agora, que tão limitada lhe estava essa escolha, parecia-lhe coisa tão fácil que esquecia que o próprio excesso das comodidades da existência destrói toda a felicidade que resulta da satisfaçãodas necessidades e que uma perfeita liberdade de acção, essa liberdade que lhe proporcionara a instrução, a fortuna, a posição na sociedade, torna a escolha das ocupações excessivamente difícil e por isso mesmo destrói a necessidade e o desejo de acção. Todos os pensamentos de Pedro se reportavam agora ao momento em que o restituíssem à liberdade. E, no entanto, depois, e até ao fim dos seus dias, alegremente recordaria aquele mês de prisão e com entusiasmo falaria das fortes e inapagáveis alegrias que experimentara então e sobretudo da serenidade moral perfeita, da completa liberdade interior que só nessa quadra da sua existência profundamente conhecera. No primeiro dia de cativeiro, quando, depois de se levantar muito cedo, viu, ao sair da barraca, as cúpulas e as cruzes sombrias do Mosteiro Novodievitchii, o orvalho gelado sobre a erva poeirenta, os cumes dos montes Vorobi e as orlas cobertas de arvoredo do no que serpeava perdendo-se na distância violácea; quando sentiu a brisa fresca soprar-lhe na cara e ouviu o grasnido das gralhas que debandavam de Moscovo através dos campos, quando, de súbito, a luz surgiu do Oriente, o Sol se ergueu, solene, por cima das nuvens, e as cúpulas, as cruzes, o orvalho, a distância, o rio, tudo resplandeceu no meio dessa alegre claridade, uma felicidade nova, uma alegria nunca experimentada o tomou, enchendo-o de desconhecido júbilo. Este sentimento nunca o abandonara enquanto estivera prisioneiro. Pelo contrário, fora crescendo à medida que se agravavam as dificuldades da sua situação. Nesta disposição de espírito e na aceitação de tudo que lhe acontecia e ainda no revigoramento das suas forças morais muito o ajudou a elevada opinião que dele tiveram sempre os seus companheiros de cativeiro desde que chegara ali. O saber vários idiomas, o respeito que lhe testemunhavam os Franceses, a sua simplicidade, a maneira que tinha de dar tudo quanto lhe pediam, particularmente os três rublos que semanalmente recebia como pré de oficial, a sua robustez física, que maravilhara os soldados ao verem-no enterrar com as mãos alguns cravos na parede da barraca, a sua humildade no trato com os camaradas, as suas maneiras, para eles incompreensíveis, ao quedar-se horas imóvel e sem fazer nada, cismando, tudo isto junto lhe dera, aos olhos deles, ares de criatura misteriosa. Estas qualidades, que até ali, na sociedade em que vivera, apenas lhe tinham sidoprejudiciais e embaraçosas, a sua força, o seu desprezo pelas comodidades da vida, o seu ar distraído, a sua simplicidade, ali, entre aquela gente, quase faziam dele um herói. E Pedro sentia que esta opinião a seu respeito lhe criava obrigações. [XIII] Durante a noite de 6 para 7 de Outubro começou a retirada dos Franceses. Demoliram-se as cozinhas e as barracas, carregaram-se as galeras, e soldados e bagagens puseram-se em marcha. As sete da manhã um pelotão de franceses com uniforme de campanha, barretinas, arma ao ombro, mochila às costas e grandes bornais a abarrotar, alinhou diante dos abarracamentos e foi um nunca acabar de gritos e graçolas ao longo das fileiras. No interior das barracas todos estavam a postos, vestidos, calçados, aguardando ordem de marcha. Só Sokolov, o soldado doente, pálido e magro, não estava nem equipado nem calçado, Sentado no seu canto, os olhos fora das órbitas, de grandes olheiras, castigado pelo sofrimento, interrogava em silêncio os seus companheiros indiferentes, gemendo de vez em quando. O que lhe ditava aquela queixa era menos a desinteria que o prostrava que o terror e a tristeza que lhe causavam a ideia de ficar só para ali. Pedro, com umas botifarras que Karataiev lhe fizera de um pedaço de couro que um francês lhe trouxera para ele lhe pôr meias solas numas botas, à cinta uma corda que lhe cingia os rins, aproximou-se do enfermo e agachou-se junto dele. — Escuta, Sokolov, eles não se vão embora de vez. Têm aqui um hospital. Naturalmente ainda vais ficar melhor do que nós — disse-lhe ele. — Ai, meu Deus! Vou morrer! Ai, meu Deus! — gemia o desgraçado. — Eu vou falar com eles — animou-o Pedro, dirigindo-se para a porta da barraca. Nesse momento vinha entrando, acompanhado de dois soldados, o cabo que na véspera oferecera uma cachimbada a Pedro. Todos envergavam uniforme de campanha, com barretinas e bornais e o francalete por debaixo do queixo, o que lhes dava outro aspecto.O cabo recebera ordem para conservar a porta fechada. Antes da partida, tinha de proceder à chamada dos prisioneiros. — Cabo, que vais tu fazer do doente?... — perguntou Pedro. E enquanto isto lhe dizia. Pedro perguntava a si próprio se realmente estaria falando com o cabo seu conhecido ou com outro homem, pois a verdade é que não parecia o mesmo. O cabo, ao ouvir as palavras de Pedro, franziu o sobrolho e fechou a porta ruidosamente, soltando uma grosseria. A barraca ficou imersa numa semi- obscuridade. O rufar de tambores que de repente se ouviu dos dois lados da barraca abafava as queixas do doente. «Ah! Aí está outra vez... », pensou Pedro, e um calafrio lhe percorreu a espinha. Voltara a encontrar na fisionomia transfigurada do cabo, no tom da sua voz, no rufar ensurdecedor dos tambores que tocavam a reunir, aquela força misteriosa e impassível que levava os homens a matarem-se uns aos outros mesmo sem quererem, essa força cujos efeitos vira aquando das execuções. Ter medo, procurar evitar esta força, suplicar ou admoestar aqueles que se lhe rendiam, era absolutamente inútil. Eis o que Pedro compreendia agora. Era preciso esperar e ter paciência. Não voltou ao pé do doente e não lhe disse qualquer outra palavra de consolo. Ali ficou, de pé, junto da porta da barraca, mudo, as sobrancelhas franzidas. Quando as portas voltaram a abrir-se e os prisioneiros, como um rebanho de carneiros, empurrando-se uns aos outros, se amontoaram à saída, Pedro abriu caminho pelo meio deles e avançou até junto do capitão que, no dizer do cabo, estava disposto a tudo fazer por ele. Também este capitão envergava fardamento de campanha e no seu frio rosto reflectia-se essa mesma coisa terrível traduzida nas palavras do cabo e no rufar dos tambores. — Toca a andar, toca a andar! — gritava ele, olhando severamente os prisioneiros que se comprimiam uns contra os outros na sua frente. Pedro, embora certo de que seria inútil o que ia tentar, aproximou-se dele. — Então, que é que há? — exclamou o oficial, relanceando-lhe um frio olhar, como se o não conhecesse. Pedro lembrou-lhe o doente. — Que diabo, ele pode caminhar! — replicou o capitão, e sem olhar para Pedro: — Toca a andar, toca a andar! — prosseguiu.— Não pode, está a morrer — insistiu Pedro. — Fazem favor!... — gritou o capitão iracundo. Tan, rataplã, continuavam os tambores. E Pedro compreendeu que aqueles homens estavam completamente dominados pelo poder da força misteriosa que ele sentia ali presente e que era inútil dizer fosse o que fosse. Separaram os soldados dos oficiais prisioneiros e, deram-lhes ordem de marchar na vanguarda. Com Pedro, eram trinta — os soldados eram trezentos. Pedro não conhecia os oficiais das outras barracas, que se apresentavam muito melhor. Olharam, desconfiados e hostis, Para ele e para as botas que tinha nos pés. Bastante perto dele marchava um gordo major, que parecia respeitado por todos os demais: vestia um roupão tártaro de Kazan, cingido por uma toalha, a sua cara, opada e amarelenta, tinha qualquer coisa de iracundo. Uma das mãos, que segurava a bolsa do tabaco, apoiava-se na abertura da camisa e a no chibuque (Cachimbo turco (N. dos T.) . Resfolegando e soprando, resmoneava, zangado com toda a gente, dizendo que o empurravam, que todos estavam com pressa sem razão alguma, que não havia motivo para surpresas. Outro, pequenino e magricela, ia interrogando toda a gente, perguntando para onde os levavam o que percurso teriam de fazer naquele dia. Um funcionário, de uniforme de comissário e botas de feltro, corria daqui para ali, observando Moscovo e fazendo comentários em volta sobre este e aquele bairro ainda fumegantes. Outro ainda, um polaco, a avaliar pelo sotaque, discutia com o funcionário, pretendendo mostrar-lhe que se enganava a respeito dos bairros que ia designando. — Para que serve discutir? — exclamou o major colérico. — Tanto faz que seja S. Nicolau como Vlass: é o mesmo. Como vêem, está tudo queimado e isso é um facto... Para que empurram? Não lhes chega o espaço que têm? — acrescentou, dirigido-se àquele que vinha atrás dele e que o não empurrava de lacto. — Oh! Que terrível coisa fizeram! — exclamavam os prisioneiros, contemplando as ruínas. — E o Zamoskvorietche e Zubovo e o Kremlin... Olhem, não ficou nem metade. Eu bem lhes disse que tinha ardido todo o Zamoskvorietche, e é verdade. Aí têm. — Bom, está bem, já sabem que ardeu a cidade inteira. De que lhes serve discutir? — resmungava o major.Ao atravessarem Kamovniki, um dos poucos bairros intactos, ao pé da igreja, os prisioneiros correram de súbito todos para o mesmo lado, e ouviram-se exclamações de horror e repulsa. — Oh! Que canalhas! Bem se vê que não são cristãos. Olhem, o morto, o morto... Borraram-lhe a cara. Pedro também se aproximou da igreja para saber a causa daquelas exclamações, e viu então qualquer coisa encostada ao muro do templo. Pelos seus camaradas, que viam melhor do que ele, soube que era um cadáver de pé contra a grade e ao qual tinham besuntado a cara com sebo. — Marchem, caramba... Marchem... trinta mil diabos! — vociferaram os soldados da escolta, e com renovada, ira puseram-se a destroçar a coronhada a multidão dos prisioneiros que ficara para trás olhando o cadáver. [XIV] Pelas ruelas de Kamovniki foram seguindo os prisioneiros com a sua escolta, mais as carroças e as galeras que vinham atrás deles, sem encontrar ninguém no caminho. Mas ao desembocarem junto dos armazéns de subsistências, deparou-se- lhes um grande comboio de artilharia que avançava, penosamente, entravado por um engarrafamento de viaturas particulares. Ao chegarem à ponte, tiveram de estacar para darem tempo a que passassem os que iam na vanguarda. Passada a ponte, puderam ver que tanto na sua frente como na sua retaguarda tudo eram filas intermináveis de carros. À direita, no local em que a Calçada de Kaluga forma uma curva diante de Neskutchni, perdendo-se na distância, desfilavam filas imensas de soldados e de bagagens. Eram as tropas do corpo de Beauharmais, as primeiras a sair da cidade. Atrás, ao longo do cais e da ponte de Pedro, marchava, o corpo de exército de Ney, com as suas respectivas viaturas. As tropas de Davout, de que os prisioneiros faziam parte, atravessaram o vau de Krimski e meteram por um troço da Rua de Kaluga. Mas a fila era tão longa que as últimas viaturas de Beauharmais ainda não tinham saído de Moscovo quando a vanguarda das tropas de Ney principiava a desembocar na Grande Ordinka.Após terem atravessado o vau de Krimski, os prisioneiros, depois de darem alguns passos, pararam, para de novo se porem em marcha: de todos os lados se comprimiam contra eles cada vez mais homens e viaturas. Levaram mais de uma hora para Percorrer a escassa centena de passos que separa a ponte da Rua de Kaluga, e, ao chegarem à praça onde a Rua de Zamoskvorietche se encontra com a de Kaluga, pararam, comprimidos numa massa compacta, e ali ficaram algumas horas naquela encruzilhada. Por toda a parte se ouviam, num rindo semelhante ao do mar, e rolar das rodas, os passos dos soldados e gritos furiosos e intermináveis injúrias. Pedro, de pé, comprimido contra a parede de uma casa incendiada, ouvia aquele rumor que na sua imaginação se fundia com o rufar dos tambores. Alguns oficiais prisioneiros, para verem melhor, treparam ao alto das paredes da casa junto à qual se encontrava Pedro. — Tanta gente! Ah! Tanta gente!... Até há homens em cima dos canhões! Olhem para as peles’... Ah!, que crápulas! O que eles roubaram! Olha para aquele, o que ele leva no carro... Deve ter tirado aquilo a um ícone... São alemães. é mais que certo! Onde estão os nossos camponeses?... Canalhas!... Olha para o que aquele leva. Nem pode andar! E aqueles, aqueles apanharam uma carruagem de fidalgo! E aquele além! Sentado em cima dos baús! Ah! Santos Padres! Isto é que foi roubar! — Sim, sim! Chega-lhe nas ventas! Sim, senhor, não salinos daqui antes da noite! Olha, olha... Se calhar é do Napoleão. Repara! Que belos cavalos! Um escudo e a coroa! Parece uma casa desmontável! Olha, aquele perdeu o saco e, não deu por isso. Quê, mais zaragatas? Uma mulher com o filho. Não é qualquer peste. Claro, assim, hão-de deixar-te passar, Olhem! Nunca mais acaba! Moças russas, palavra de honra! Sim, moças russas1 Aquilo é que elas se rebolam nos carros. De novo um acesso de curiosidade, como junto da igreja de Kamovniki, precipitou os prisioneiros para diante, e Pedro, graças à sua estatura avantajada, pôde ver por cima das cabeças o que assim chamava a atenção. Em três carruagens. à mistura com os armões da artilharia, aglomeradas umas sobre as outras, viam-se umas mulheres muito pintadas, com vestidos ultragarridos, que gritavam em altos berros. Desde o momento em que Pedro dera pela presença daquela força misteriosa e brutal que a certa altura se apodera dos homens, nada lhe parecia já estranhonem horrível: nem aquele cadáver borrado de sebo, nem aquelas mulheres empilhadas dentro de um carro, nem mesmo os escombros do incêndio. Já nada o comovia: dir-se-ia que a sua alma, preparando-se para uma luta difícil, repelia de si toda a emoção capaz de a debilitar. O carro das mulheres passara. Atrás dele vinha uma grande fileira de carroças, de soldados, de galeras: depois, de novo soldados, furgões, veículos; e outra vez soldados, armes e mais soldados: de quando em quando algumas mulheres. Pedro ninguém via individualmente, mas apenas massas de gente em movimento. Toda aquela gente, todos aqueles cavalos, pareciam impulsionados por uma força invisível. Em todos eles, afluindo das diversas ruas, não havia senão um único e mesmo desejo: passar o mais depressa que pudessem. Empurravam-se, irritavam-se, agrediam-se, viam-se dentes ranger, franziam-se sobrancelhas, injuriavam-se uns aos outros, e todos os rostos reflectiam a mesma expressão resoluta, cruel, fria, a expressão que o impressionara logo pela manhã na máscara do cabo, quando principiara a rufar o tambor. Para o fim da tarde, o comandante do comboio conseguiu agrupar o seu destacamento, que entre gritos e zaragatas acabou por unir-se aos demais comboios, e os prisioneiros, escoltados por todos os lados, entraram, a pé, na estrada de Kaluga. A marcha foi rápida, sem interrupções, e apenas pararam ao pôr do Sol. As carroças alinharam umas atrás das outras e os homens prepararam-se para passar ali a noite. Toda a gente parecia irritada e descontente. Por muito tempo se ouviram, por todos os lados, injúrias, obscenidades, disputas. Uma carruagem que vinha atrás do comboio abalroou com uma carroça e meteu-lhe dentro os taipais com a lança dos cavalos. Acorreram vários soldados: uns fustigavam a cabeça das bestas atreladas à carruagem, para obrigá-las a recuar, outros agrediam-se entre si, e Pedro viu um alemão gravemente ferido na cabeça por uma espadeirada. Aquela gente, ali parada em pleno campo, no meio das fria, trevas de uma noite de Outono, experimentava a desagradável sensação de quem desperta depois da confusão e da precipitação em que vivera à saída da capital. Todos pareciam compreender ser desconhecido o destino que levavam e que muitos tormentos e muitas dificuldades os aguardavam ainda. Neste primeiro descanso, os soldados da escolta ainda trataram os prisioneiroscom mais dureza que no momento da partida. Pela primeira vez receberam como ração carne de cavalo. Desde os oficiais até ao mais humilde dos soldados, todos mostravam uma espécie de irritação particular para com os prisioneiros, contraste flagrante com o amistoso tratamento que até então tinham tido. Essa irritação ainda mais se agravou quando, no momento de se fazer a chamada, verificaram que tinha fugido um soldado russo, que se queixara de uma indisposição de barriga. Pedro viu Um francês agredir um russo por se ter afastado da estrada e Ouviu o capitão seu amigo repreender severamente o sargento por causa do desaparecimento do prisioneiro, ameaçando-o com um conselho de guerra. Respondendo-lhe o sargento que o soldado estava, doente e não podia caminhar, o oficial replicou-lhe que havia ordens para fuzilar os retardatários. Pedro sentiu que aquela força fatal e bruta que pesara sobre ele na altura, da execução dos incendiários, aligeirando-se durante o período do cativeiro, voltava de novo a impor-se-lhe. Um grande terror se apoderou dele: mas ao mesmo tempo sentia que, enquanto esta força procurava esmagá-lo, outra, poderosa e independente dela, espécie de energia vital, crescia e lhe fortalecia a alma Ceou papas de farinha e centeio e um pedaço de carne de cavalo e pôs-se a falar com os companheiros. Nem Pedro nem qualquer dos outros aludiu ao que tinham, visto em Moscovo, nem tão-pouco à brutalidade dos Franceses nem à ordem de disparar sobre eles em caso de fuga. Como para contrabalançar a gravidade da situação que atravessavam, pareciam especialmente alegres e ruidosos. Lembravam recordações pessoais, cenas cómicas a que tinham assistido durante a campanha, e as histórias que contavam faziam-nos esquecer o momento que passava. Há muito que, se havia posto o Sol. Estrelas brilhantes surgiam aqui e ali no alto céu, O globo da lua cheia, cor de fogo, espalhava o seu fulgor no horizonte, balouçando-se de maneira estranha no meio da bruma acinzentada. Era como se fosse dia claro. O crepúsculo ainda não acabara e a noite ainda não principiara. Pedro, afastando-se do grupo dos seus novos amigos, atravessou pelo meio das fogueiras do acampamento para o outro lado da estrada onde lhe haviam dito haver também prisioneiros, Desejava conversar com eles. Uma sentinela francesa mandou-o fazer alto, ordenando-lhe que voltasse para trás. Pedro obedeceu-lhe, mas, em vez de voltar para o bivaque onde estavam oscompanheiros, encaminhou-se para uma carroça desatrelada em que ninguém havia. Sentou-se no chão, acocorado, e de cabeça baixa, sob a caixa da carroça, por muito tempo ali ficou imóvel, absorto nos seus pensamentos. Passou-se mais de uma hora, Ninguém se lembrava dele. De súbito rompeu uma gargalhada tão franca e estrepitosa que toda a gente se voltou para ver donde partia aquela estranha jovialidade. «Ah!, ah!, ah!», gargalhava Pedro. E em voz alta ia dizendo para si mesmo: «O soldado não me deixou passar, apanharam-me, encarceraram— me, fizeram-me prisioneiro. Mas a quem? A mim. à minha alma imortal? «Ah!, ah!, ah…» E de tanto rir enchiam-se-lhe os olhos de lágrimas. Um dos prisioneiros levantou-se e aproximou-se para ver qual a causa da hilaridade daquele homem gordo e estranho, Pedro deixou de rir, levantou-se e, afastando-se do indiscreto, olhou em torno de si. O acampamento, ainda há momentos animado pelo crepitar das fogueiras e das conversas ruidosas, serenara até onde a vista alcançava; as chamas vermelhas empalideciam e apagavam-se. A lua cheia estava agora lá no alto do firmamento inundado de luar, As florestas e os campos, até então invisíveis para além do acampamento, avultavam ao longe. E para além dessas florestas , desses campos, a distancia infinita iluminada pelo luar parecia mover-se e chamá-lo para si. Ergueu os olhos para o céu, para as profundezas onde se perdiam as estrelas cintilando. «E tudo isto me pertence, tudo isto está em mim e tudo isto sou eu!», exclamou. «E a tudo isto deitaram eles a mão e tudo isto enceraram numa barraca de madeira!» Sorriu e foi deitar-se junto dos companheiros. [XV] Nos primeiros dias de Outubro. Kutuzov voltara ainda a receber uma carta de Napoleão, com propostas de paz, que lhe fora confiada por um parlamentário, carta falsamente datada de Moscovo, pois o imperador já se encontrava para além do exército russo, na velha estrada de Kaluga. Kutuzov repetiu o que respondera à primeira que lhe fora apresentada por Lauriston: que não queria ouvir falar em paz.Pouco tempo depois, o destacamento de guerrilheiros comandado por Dolokov, que operava à esquerda de Tarutino, comunicou que haviam desaparecido tropas francesas em Fominskoie, e que, essas tropas eram formadas pela divisão Broussier, a qual, isolada do resto do exército, facilmente podia ser dizimada. Soldados e oficiais exigiam, gritando, que os deixassem combater. Os generais do estado-maior, encorajados pela vitória fácil de Tarutino, insistiam com o generalíssimo para que a proposta de Dolokov fosse aceite. Kutuzov continuava a considerar inoportuna qualquer actividade. Foi então resolvido tomar uma medida intermédia: enviou-se um pequeno destacamento a Fominskoie com o propósito de atacar Broussier. Por um estranho acaso, esta missão — a mais difícil e a mais importante de todas, como depois se verificou — foi confiada a Dokturov, esse pequeno e modesto Dokturov, que ninguém concebia a gizar planos de batalha, e lançar-se à frente dos seus regimentos, ou a espalhar cruzes às mãos-cheias peias baterias, esse homem que tinha fama de indeciso, e que, no entanto, em todas as operações contra os Franceses, de Austerlitz até 1813, estivera sempre na posição de comando onde a situação era mais difícil. Em Austerlitz fora o último a abandonar o dique de Augezd, reunindo os regimentos, salvando o que podia, quando todos debandavam ou tinham sido mortos e mais nenhum general havia na linha de fogo, Enfermo e cheio de febre, acorreu a Smolensk com vinte mil homens para defender a cidade contra o exército de Napoleão. Em Smolensk, num grande acesso febril, passa pelo sono na Porta de Malakov. O tiroteio desperta-o e a cidade aguenta-se todo o dia, Em Borodino, depois que Bagration foi morto e os Russos perderam, na sua ala esquerda, um por cada nove soldados, e quando toda a artilharia francesa despejava metralha sobre eles. é ainda este indeciso e imprevidente Dokturov quem vai substituir um general mal escolhido numa infeliz decisão de Kutuzov. E apresenta-se este miúdo, este modestíssimo Dokturov, e Borodino transforma-se numa das mais brilhantes glórias russas. No entanto, embora sejam muitos os heróis celebrados em prosa e verso, de Dokturov ninguém fala. Foi ainda Dokturov o general enviado a Fominskoie e daí a Malii Iaroslavets, local em que se travou a última verdadeira batalha contra os Franceses, e onde, de facto, verdadeiramente, principiou a derrocada dos exércitos napoleónicos. E, embora sejam muitos os génios e os heróis glorificados desta campanha, deDokturov ou não se fala ou apenas se lhe dedicam algumas palavras de elogio equívoco. O silêncio à volta deste homem é a mais evidente prova dos seus méritos. É natural que um homem que não conhece o funcionamento de uma máquina atribua grande importância ao cisco que por acaso se introduziu nas suas engrenagens e a não deixa funcionar. Sem conhecer a sua construção, esse homem não pode compreender que o órgão essencial da máquina é a pequena roda que gira sem ruído. No dia 10 de Outubro, dia em que Dokturov, tendo percorrido metade do caminho para atingir Fominskoie, se deteve na povoação de Aristovo, onde se dispunha a executar com toda a exactidão a ordem recebida, o exército francês, que, impelido por um movimento compulsivo, chegara até junto da posição ocupada por Murat para aí travar batalha, segundo parece, imediatamente e sem motivo algum virou para a esquerda, pela estrada nova de, Kaluga, e penetrou em Fominskoie, onde até essa data só se encontrava Broussier. Naquele momento. Dokturov apenas tinha sob o seu comando o destacamento de Dolokov e dois outros, menos importantes, o de Figner e o de Sesslavine. Na noite de 11 de Outubro, Sesslavine chegou a Aristovo e apresentou-se na sede do comando com um soldado francês da Guarda que acabava de ser feito prisioneiro. Este disse que as tropas que nesse mesmo dia tinham entrado em Fominskoie constituíam a guarda-avançada de todo o exército, que Napoleão se encontrava junto delas e que havia quatro dias que tinham deixado Moscovo. Nessa mesma noite, um criado-servo que chegava de Borovska, contou que vira um importante corpo de exército penetrar na cidade. Cossacos do destacamento de Dolokov confirmaram que a guarda francesa marchava pela estrada de Borovska. De harmonia com todas estas informações, tornou-se evidente que naquele ponto, onde esperavam encontrar apenas uma divisão, se achava todo o exército francês, que deixara Moscovo, e o qual seguia direcção imprevista, a velha estrada de Kaluga. Dokturov, hesitante, não sabia que decisão tomar, pois não via agora com clareza o que tinha a fazer. Recebera ordem para atacar Fominskoie. Mas aí, onde anteriormente apenas se encontrava Broussier, estava agora todo o exército francês. Ermolov teria desejado agir a seu talante, mas Dokturov insistiu na necessidade de se recorrer à decisão do Sereníssimo. E foi resolvido enviar-se um relatório ao estado-maior.Para essa missão escolheu-se Bolkovitinov, um oficial inteligente, o qual, além do relatório escrito, devia prestar completas explicações orais, A meia-noite, Bolkovitinov, depois de ter recebido o relatório e as respectivas ordens verbais, partiu a galope ao encontro do estado-maior, seguido de um cossaco e de cavalos de muda. [XVI] A noite de Outono estava escura e quente. Há três dias que chovia, Depois de mudar duas vezes de cavalos e de ter percorrido trinta verstas em hora e meia, por uma estrada lamacenta e escorregadia, Bolkovitinov chegou a Letachovka às duas da madrugada. Apeando-se diante de uma isbá em cuja porta havia um letreiro com a inscrição «Estado— Maior», penetrou no vestíbulo escuro. — É urgente, o general de serviço! Extremamente urgente! — disse ele a um homem que se perfilou, sobressaltado, no meio das trevas. — Está muito doente desde ontem, ha duas noites que não dorme — deu-se pressa em responder um impedido baixando a voz. — É melhor acordar primeiro o capitão. — É muito importante. Da parte do general Dokturov — insistiu Bolkovitinov, entrando, às apalpadelas — pela porta dentro. O impedido adiantou-se-lhe e fez menção de acordar alguém que estava a dormir. — Excelência, Excelência, um correio. — Hem? Quê? Da parte de quem? — inquiriu uma voz ensonada. — Da parte de Dokturov, Alexis Petrovitch. Napoleão está em Fominskoie -— disse Bolkovitinov, que, na obscuridade, não conseguia ver a pessoa que falara, reconhecendo, no entanto, pela voz, que não era Konovnitsine. O homem pôs-se a bocejar e a espreguiçar-se. — Não estou com vontade de o acordar — disse ele, tacteando nas trevas. — Está muito doente e naturalmente isso são boatos. — Aqui tem o relatório — volveu Bolkovitinov — Tenho ordem de o entregar imediatamente ao general de serviço.— Espere, vou acender a luz. Onde a meteste, malvado? — disse para o impedido o militar que acordara e, era Chtcherbinine, o ajudante-de-campo de Konovnitsine. — Ah! Aqui está ela, aqui está ela. O impedido riscou a pederneira enquanto o oficial procurava vela tacteando no escuro. — Ah, malandros! — exclamou, arreliado. A claridade das chispas, Bolkovitinov reconheceu a cara moça de Chtcherbinine, que tinha uma vela na mão, e a um canto, na sua frente, viu alguém que dormia. Era Konovnitsine. Quando a chama da isca, primeiro azul, se tornou vermelha, Chtcherbinine acendeu a vela de sebo. As baratas que a devoravam fugiram e ele pôs-se a examinar o mensageiro. Bolkovitinov, coberto de lama, ao tentar enxugar-se com a manga da farda, mascarrou a cara. — E quem prestou estas informações? — perguntou Chtcherbinine, pegando no sobrescrito. — As informações são de confiança — replicou o correio. Prisioneiros, cossacos, espiões, são unânimes a dizer o mesmo. — Não há outro remédio, tenho de o acordar — murmurou Chtcherbinine, erguendo-se e aproximando-se do homem que ressonava com a cabeça metida num barrete de dormir e o capote por cima. — Piotre Petrovitch! — chamou ele, Konovnitsine não se mexeu. — Ao estado-maior! — acrescentou, sorrindo, certo de que estas palavras chegariam para o acordar. Com efeito, a cabeça com o barrete de dormir soergueu-se imediatamente. O belo e enérgico rosto de Konovnitsine, afogueado pela febre, permaneceu ainda por momentos numa espécie de entressonho, muito longe, por certo, da realidade. Depois teve um sobressalto e recuperou a sua expressão habitual cheia de serenidade e firmeza. — De que se tratai? Da parte de quem? — perguntou imediatamente, mas sem grandes pressas, piscando os olhos em frente da luz da vela. Enquanto ouvia o relatório oral do emissário abriu o sobrescrito e percorrer a mensagem com os olhos. Assim que terminou a leitura, pousou no sobrado os pés, onde enfiara meias de lã, e pôs-se a calçar as botas, Em seguida tirou o barrete de dormir, alisou o cabelo nas fontes e pôs a barretina. — Vieste depressa! Vamos ao Sereníssinio.Konovnitsine compreendera imediatamente a extrema importância das notícias trazidas pelo correio e, que não havia tempo a perder. Não sabia nem se perguntava a si mesmo se as notícias eram boas ou mas. Não pensava nisso nem estava disposto a interrogar-se sobre o assunto. Não o interessava. A guerra, para ele, não era nem questão de inteligência nem de raciocínio. Era qualquer coisa de muito diferente. Tinha a convicção profunda, e nunca expressa de que, evidentemente, tudo acabaria bem, mas que era preciso não acreditar em tal e muito menos não manifestar essa opinião. Havia apenas que cumprir a tarefa. E essa tarefa cumpria-a ele consagrando-lhe roda a sua energia. Piotre Petrovitch Konovinitsine, assim como Dokturov, parece não terem sido incluídos na lista dos heróis de 1812 — os Barclay, os Raievski, os Ermolov, os Platov e os Miloradovitch — apenas por uma questão de pura formalidade. Tal como a de Dokturov, a sua reputação era a de um homem de min escassas capacidades, conhecimentos e, assim como o seu émulo, também ele nunca gizara planos de campanha, embora sempre viesse a encontrar-se nos pontos em que a situação era mais grave. Desde que fora nomeado general de serviço que dormia de porta aberta e dava ordens para que o chamassem à chegada de qualquer correio, Era sempre o primeiro na linha de fogo Kutuzov repreendia-o por tanto se expor, e hesitava mesmo em dar-lhe ordens. Eis porque, como Dokturov, era uma dessas engrenagens invisíveis que sem fazer qualquer ruído constituem um dos órgãos essenciais de qualquer máquina. Ao ver-se exposto à humidade da escura noite, assim que saiu da isbá, Konovnitsine sentiu-se mal, eram muito fortes as suas dores de cabeça e a barafunda que aquelas notícias iam causar na esfera das graúdas engrenagens do estado-maior, principalmente em Bennigsen, que desde Tarutino andava a ferro e fogo com Kutuzov, impressionava— o. Que propostas surgiriam? E as discussões que ia haver! As mudanças! Era penosa a impressão que lhe causava pensar nisso, tanto mais quanto considerava inevitável o que ia acontecer. E, com efeito, Toll, a cujos aposentos se dirigiu para dar-lhe parte do ocorrido, pôs-se imediatamente a expor as suas ideias ao general seu companheiro de casa, e Konovnitsine, que o ouvia sem dizer palavra, com um ar cansado, viu-se obrigado a lembrar-lhe a conveniência de apresentarem o caso ao Sereníssimo. [XVII] Kutuzov, como todos os velhos, pouco dormia de noite. De dia acontecia-lhe muitas vezes cabecear com sono; de noite estendia-se na cama sem se despir, e geralmente pensava, não dormia. Era o que sucedia naquele momento. Estava estendido na cama, com a grande e pesada máscara, toda sulcada de cicatrizes, absorta em pensamentos e o único olho muito aberto na escuridão. Desde que Bennigsen, que mantinha correspondência directa com o imperador e era preponderante no estado-maior, evitava Kutuzov, este sentia-se mais tranquilo, pois ninguém apertava com ele para lançar as tropas em aventurosas ofensivas. A lição de Tarutino e do que se passara na véspera da batalha, lembrança que ainda o impressionava desagradavelmente, devia tê-los feito reflectir. «Devem compreender que só temos a perder tomando a iniciativa de atacar», pensava, «A paciência e o tempo, eis os meus dois grandes heróis!» Estava certo de que se não devia arrancar a maçã da árvore enquanto ela estivesse verde. Quando amadurecer cairá por si; apanhar a maçã verde é estragar a fruta e a árvore. E a única coisa que podemos ganhar é os dentes botos. Caçador experimentado que era, estava seguro de que a fera fora atingida e ferida, sem dúvida, depois de sentir o peso do poderio russo. Se a ferida era mortal ou não, isso ainda o não sabia. Naquele momento, depois das diligências de Lauriston e de Berthier e das informações colhidas pelos guerrilheiros, estava quase certo de que seria mortal. Mas era preciso obter provas irrefutáveis esperar ainda, «Estão sempre com vontade de ir ver se mataram a presa. Esperem, terão tempo de ver mais tarde», dizia ele de si para consigo. «Manobras e mais manobras, ataques e mais ataques. Para quê? Para se distinguirem! Como se fosse coisa muito agradável travar uma batalha! Parecem crianças. Não são capazes de contar como as coisas se passaram. O que eles querem é mostrar que se bateram bem. Mas não é disso que se trata neste momento. «E que manobras são essas que eles me estão sempre a propor? Lá porque imaginaram dois ou três casos», acrescentou, pensando no general que lhe mandaram de Petersburgo, «julgara ter previsto todos os que podem surgir. Ascontingências são infinitas!» Havia já um mês que Kutuzov perguntava a si mesmo ansiosamente se o ferimento de Borodino seria ou não mortal. É certo que os Franceses estavam na posse de Moscovo. Mas, por outro lado, sentia, com todas as fibras da sua alma, que o golpe terrível que lhe vibrara com todas as tropas russas tinha de ser mortal. Em todo o caso precisava de provas e havia um mês que as esperava. E quanto mais o tempo ia passando mais impaciente parecia. Estendido na cama durante as longas insónias, fazia exacta— mente o mesmo que todos os seus jovens generais, aquilo mesmo por que os repreendia, Tal como eles, imaginava todos os casos possíveis. Só com uma diferença: que nada edificava sobre tais hipóteses e que não formulava apenas duas ou três, mas milhares. Quanto mais pensava maior era o número de circunstâncias que via. Representava-se a si mesmo toda a espécie de movimentos do grosso do exército napoleónico, em direcção a Petersburgo ou apenas de uma das suas partes, avançando sobre ele, graças a um envolvimento, E pensava, e era o que mais temia, na hipótese de Napoleão empregar para com ele as mesmas armas de que ele próprio se utilizava: no caso de ele ficar em Moscovo aguardando-o. Admitia mesmo que os Franceses fizessem um movimento de recuo sobre Medine e Iuknev, E, no entanto, a única coisa que não pudera prever fora precisamente o que veio a dar-se, a saber, esse vaivém de Napoleão, insensato, quase convulsivo, durante os onze dias após a evacuação de Moscovo, vaivém que tornou possível uma coisa em que Kutuzov não ousava ainda pensar: a destruição completa do exército francês. A informação de Dokturov sobre a divisão Broussier, as comunicações dos guerrilheiros sobre a desorientação que se sentia no exército napoleónico, o que constara acerca dos pormenores da partida de Moscovo, tudo confirmava a hipótese de que as tropas inimigas estavam perdidas e se dispunham a bater em retirada. No entanto, tudo isto eram suposições, talvez convincentes aos olhos de todos os jovens que o rodeavam, mas não aos seus. Com os seus sessenta anos de experiência, sabia a importância que devia atribuir-se aos boatos. E também sabia que quando se deseja muito qualquer coisa, pode uma pessoa acabar por preparar as notícias de sorte a que elas confirmem o que se deseja, tendo o cuidado de guardar silêncio sobre tudo que contradiga o que se pretende. Por isso, quanto mais desejava que fosse essa a solução, menos se permitia a si próprio acreditar nela. O problema do estado do exército francês absorvia todas as suas faculdadesintelectuais: o mais, para ele, era acessório, o trem habitual da vida. Entre as suas ocupações quotidianas figuravam as conversas com o estado-maior, a correspondência com Madame de Staël, que punha em dia desde Tarutino, a leitura de romances, a distribuição de recompensas, as cartas que enviava para Petersburgo e outras coisas semelhantes, Porém, o seu único e mais ardente desejo era a derrota dos Franceses, derrota que ele, aliás, e só ele, previa. Na noite de 11 de Outubro Kutuzov ali estava, pois, com a cabeça entre as mãos, absorto em seus pensamentos. Um ruído se ouviu tio quarto contíguo: era Toll, Konovnitsine e Bolkovitinov que chegavam. — Quem está aí? Entre, entrem. Que há de novo? — interrogou ele. Enquanto o criado acendia uma vela, Toll pô-lo ao corrente das notícias acabadas de chegar. — Quem as trouxe? — perguntou o generalíssimo com tinia expressão tão severa e fria que Toll se sentiu impressionado quando lhe pode ver o rosto. — Bolkovitivov, Excelência. Não pode haver dúvidas. — Diga-lhe que entre, que entre! Kutuzov, sentado na cairia com uma das pernas pendentes, deixava descair a volumosa barriga sobre a outra perna encolhida. Piscando o único olho para melhor ver o emissário, procurava ler-lhe no rosto o que absorvia. — Conta, vamos, conta meu amigo. — disse ele a Bolkovitinov, na sua tranquila voz de ancião, apertando contra o peito a camisa entreaberta. — Vem cá, aproxima-te. Que notícias me, trazes tu? Hem! Napoleão abandonou Moscovo? É verdade? Hem? Bolkovitinov pôs-se primeiro a expor-lhe em pormenor as instruções orais que recebera. — Fala, fala depressa, não me atormentes — interrompeu— o Kutuzov. O emissário, ao acabar a sua comunicação, calou-se, aguardando ordens. Toll tentou dizer fosse o que fosse, mas o general-chefe interrompeu-o com um gesto. Quis pronunciar qualquer coisa, mas o rosto contraiu-se-lhe de súbito; virou-se para o outro lado, para o recanto da isbá onde estavam os ícones. — Senhor, criador nosso! Ouviste a nossa oração... — exclamou em voz trémula, juntando as mãos.— A Rússia está salva! Obrigado, meu Deus! — E rompeu a chorar. [XVIII] A partir daquele momento e até ao fim da campanha, Kutuzov não teve outro objectivo senão o de impedir pela autoridade, pela astúcia ou pela súplica que as suas tropas se metessem em ofensivas ou executassem manobras que conduzissem a recontros estéreis com o inimigo, cuja perda desde esse momento era certa. É verdade que Dokturov se dirige para Maloiaroslavets, mas Kutuzov não se dá pressa em fazer que todas as tropas o sigam e ordena a evacuação de Kaluga, retirada que lhe parece perfeitamente possível. Kutuzov recua por toda a parte, mas o inimigo, sem esperar que ele recue, foge em direcção oposta. Os historiadores de Napoleão descrevem todas estas hábeis manobras em direcção a Tarutino e Maloiaroslavets e fazem prognósticos sobre o que teria acontecido se o imperador tivesse podido penetrar nas ricas províncias do Sul. Mas a verdade é que, além de ninguém o impedir de penetrar nessas províncias, uma vez que o exército russo lhe abria o caminho para elas, esses historiadores esquecem-se de que nada podia já então salvar o exército napoleónico, visto ele transportar consigo inevitáveis germes de morte. Esse exército, que encontrara em Moscovo abundantes abastecimentos, e que, em vez de os conservar, os desperdiçara por completo, esse exército, que ao chegar a Smolensk, em lugar de repartir os mantimentos entre os seus homens, deixara que os pilhassem, estaria esse exército em condições de recuperar forças na província de Kaluga, cujos habitantes sentiam e pensavam como os de Moscovo e tinham, como eles, o fogo à sua disposição? Tal exército irão tinha maneira de se refazer fosse onde, fosse. Depois de Borodino e do saque de Moscovo, havia nele elementos de decomposição por assim dizer químicos, Os soldados deste, por assim dizer, ex-exército fugiam com os seus comandantes sem saber para onde, não desejando — tanto Napoleão como qualquer dos seus soldados — senão uma coisa: sair, pessoalmente, o mais breve possível, daquela situação sem apelo, de que todos se davam conta, emboraconfusamente. Eis porque, em Maloiaroslavets, onde os generais, simulando um conselho de guerra, emitiram vários pareceres, o ultimo, o do cândido soldado que era Mouton, exprimindo o que estava no pensamento de todos, que o que havia a fazer era abalarem o mais depressa possível, tapou a boca a toda a gente e ninguém, nem o próprio Napoleão, ousou objectar fosse o que fosse a essa indiscutível verdade. No entanto, por mais que reconhecessem que era preciso partir, tinham vergonha ainda de confessar a necessidade da fuga. Era preciso um impulso exterior para vencer essa relutância humana. E esse impulso veio a produzir-se no momento necessário. Foi o que os Franceses chamaram o «hurra do imperador». No dia seguinte, após este conselho de guerra, Napoleão, de madrugada, com o pretexto de inspeccionar as tropas e o campo das batalhas passadas e futuras, aventurou-se com a sua escolta até às primeiras linhas. Alguns cossacos que andavam na pilhagem surpreenderam o imperador e por pouco não lhe deitaram a mão. Se desta vez o não apanharam, salvou-o, precisamente, o que fora a causa da derrota dos Franceses: o saque, que naquele caso, como antes, em Tarutino, levou os cossacos a não pensarem noutra coisa. Sem repararem em Napoleão, entregaram-se à pilhagem, e assim o imperador pode escapar-se-lhe das mãos. Desde que os rapazes do Dom tinham a possibilidade de o apanhar no meio do seu próprio exército, era evidente não haver outra coisa a fazer senão fugir o mais depressa possível pela estrada mais curta. Napoleão, com os seus quarenta anos e a sua barriguinha, já se não sentia com a elasticidade e a audácia de outrora, e compreendeu a advertência. O medo que os cossacos lhe provocaram levou-o a aceitar imediatamente o parecer de Mouton. E deu ordem de retirar, assim o dizem os seus historiadores, pela estrada de Smolensk. O facto de Bonaparte se ter mostrado de acordo com Moutou e a circunstância de o seu exército ter batido em retirada não provam de maneira alguma que a decisão haja partido dele, mas apenas que as forças ocultas, agindo sobre os seus homens, e impelindo-os a tomar a estrada de Mojaisk, também agiam sobre Napoleão. [XIX] Quando um homem se move, o seu movimento tem sempre uma finalidade. Para percorrer mil verstas é preciso, necessariamente, que o homem se figure que ao cabo dessas mil verstas há qualquer coisa de muito agradável à sua espera. Para se resolver a marchar tem de apetecer a terra prometida. A terra prometida, para os Franceses, no momento em que invadiam a Rússia era Moscovo; na altura da retirada a terra prometida era a pátria. Mas a pátria estava muito longe, e o homem com mil verstas a percorrer tem, necessariamente, de principiar por se dizer a si próprio que fará hoje quarenta verstas, ao cabo das quais poderá descansar, dormir e olvidar o termo da jornada. O primeiro descanso fá-lo esquecer a meta a atingir e todos os seus desejos e todas as suas esperanças aí se concentram. E o que se verifica com o indivíduo isolado em mais alto grau se observa quando se trata da multidão. Para os Franceses em retirada pela antiga estrada de Smolensk, a pátria estava ainda muito longe e por isso o termo mais próximo a que aspiravam todas as suas energias, mais ardentes ainda por se tratar de um exército inteiro, era Smolensk. Não que eles soubessem existir nessa cidade grandes reservas de mantimentos ou esperassem aí encontrar tropas francesas — ninguém lhes dissera uma coisa dessas, e não só os oficiais superiores como o próprio Napoleão sabiam perfeitamente serem escassos o mantimentos aí existentes. No entanto, essa perspectiva dava-lhes coragem para caminhar e para suportar as privações bem reais. E tanto os que sabiam como os que não sabiam, atraídos elo engodo, se precipitaram em, direcção a Smolensk como se caminhassem para uma terra da promissão. Assim que atingiram a estrada real, os Franceses, com uma energia extraordinária, uma rapidez incrível, deram-se pressa de alcançar o fim almejado. Além das razões já apontadas, nova causa os compelia para diante em massa compacta: o seu grande número. Esta enorme massa, graças à própria lei da atracção, dos corpos, chamava a si os átomos individuais. Avançava num bloco de cem mil homens como se fosse um Estado inteiro em marcha. Cada um de per si apenas desejava uma coisa: cair prisioneiro. Era a maneira de se livrar de todos aqueles horrores e de todo aquele sofrimento. Em primeiro lugar, no entanto, a força que os compelia para Smolensk arrastava-os a todosnuma única e mesma direcção. E mais: não podia um corpo de exército inteiro entregar-se a uma simples companhia e conquanto os soldados aproveitassem todas as oportunidades para se separarem uns dos outros e se servissem do mais pequeno pretexto para se entregarem, as ocasiões eram raras. A circunstância de serem muitos e a rapidez da marcha que levavam tiravam-lhes a possibilidade de o conseguirem e tornava-se difícil, e por assim dizer impossível para os Russos, deter um movimento em que punham toda a sua energia. O desgarramento interior deste corpo não podia acelerar além de uma certa medida o processo de decomposição que o ameaçava. É impossível derreter instantaneamente uma bola de neve. Tem de decorrer um certo lapso de tempo antes que o calor o consiga, por maior que seja. Pelo contrário, quanto maior é o calor mais a neve endurece. Eis o que nenhum dos chefes russos compreendera, à excepção de Kutuzov. Desde que se teve a certeza de qual a direcção que tomara o exército francês em fuga pela estrada de Smolensk, principiou a realizar-se o que Konovnitsine previra na noite de 11 de Outubro. Os altos postos não pensaram noutra coisa senão em distinguir-se, cortando a retirada aos Franceses, cercando-os, fazendo-os prisioneiros, aniquilando-os: todos, à compita, exigiam lima ofensiva. Kutuzov era o único a empregar todas as suas forças — e as forças do comandante-chefe são por vezes escassas em casos destes — para se opor aos desígnios dos altos postos. Não lhe era possível argumentar com eles como agora pode argumentar-se. Para quê uma batalha? Para quê cortar-lhes as estradas, perder homens, chacinar desumanamente tantos desgraçados? Para quê tudo isto, quando é certo que entre Moscovo e Viazma a terça parte deste exército se derreteu sem uma única batalha em forma? Na sua sageza de velho apenas lhes dizia o que lhes era possível, a eles, compreenderem, falando-lhes na «ponte de ouro» (Kutuzov dissera para o inglês que acompanhava as operações como representante dos Aliados que preferia construir uma «ponte de ouro» par),; Franceses passarem que sacrificar os seus homens. (N. dos T.). E eles zombavam do velho, caluniavam-no, mostrando a sua bravura no lombo da fera morta. Em Viazma, Ermolov, Miloradovitch. Platov, ao verem-se perto dos Franceses, não puderam refrear os seus ímpetos e aniquilaram dois corpos de exército inimigos. Para informarem Kutuzov da sua intenção enviaram ao Sereníssimo,dentro de um sobrescrito. à guisa de relatório, uma folha de papel em branco. E, apesar dos esforços do general-chefe para os reter, os soldados russos atacaram no intuito de tolher o passo aos Franceses. Segundo se disse, regimentos de infantaria marcharam para a linha de fogo com bandas e tambores à frente, perdendo e matando milhares de homens. Mas quanto a tolherem-lhes o passo, não tolheram coisa alguma nem aniquilaram ninguém. E o exército francês, mais coeso graças ao perigo, prosseguiu na sua caminhada fatal em direcção a Smolensk, esgotando-se pouco a pouco. TERCEIRA PARTE [I] [II] [III] [IV] [V] [VI] [VII] [VIII] [IX] [X] [XI] [XII] [XIII] [XIV] [XV] [XVI] [XVII] [XVIII] [XIX] [I] A batalha de Borodino, a ocupação de Moscovo, que se lhe seguiu, e a retirada dos Franceses sem novos combates constituem acontecimentos históricos instrutivos. Todos os historiadores estão de acordo em afirmar que a actividade externa dos povos e dos impérios se traduz nas suas colisões mútuas representadas pelas guerras e que a força política dos países aumenta ou diminui na razão directa dos êxitos militares maiores ou menores. São sem dúvida estranhas as descrições dos historiadores em que se relata que tal ou qual rei ou imperador, em conflito com tal ou qual outro rei ou imperador, convocou o seu exército, se bateu contra o exército inimigo, saiu vitorioso, causou a morte de três, cinco, dez mil homens, em virtude do que conquistou determinado Estado e um povo inteiro composto de muitos milhões de habitantes. Que a derrota de um exército, apenas a centésima parte das forças de um povo inteiro, leve à submissão desse povo, eis o que não pode deixar de ser incompreensível. No entanto, estes factos, na medida em que chegam ao nosso conhecimento, confirmam a justeza do que se diz acerca das vitórias militares, causa essencial da grandeza dos povos. Ganha um exército uma batalha e imediatamente os direitos do vencedor prosperam em detrimento dos do vencido. É uma derrota que o atinge, e logo o povo perde os seus direitos na proporção do desastre sofrido, e se porventura o seu exército é esmagado não tem mais que submeter-se por completo. Assim tem sucedido, diz a História, desde os tempos mais recuados até aos nossos dias. Todas as guerras de Napoleão confirmam afinal esta regra. A medida que os exércitos austríacos são derrotados, a Áustria perde certos dos seus direitos, enquanto os da França aumentam, crescendo o seu poderio proporcionalmente. As vitórias de Iena e de Auerstedt representam o fim da, independência da Prússia.No entanto, em 1812, os Franceses obtêm a vitória em Moscovo, ocupam a cidade, e o certo é que, sem novas batalhas, não é a Rússia que deixa de existir, mas, em primeiro lugar, esse imenso exército de seiscentos mil homens e depois a própria França de Napoleão. Tentar pôr de acordo os factos com as leis históricas, afirmar que o campo de batalha de Borodino ficou nas mãos dos Russos, que depois de Moscovo se travaram combates que aniquilaram o exército napoleónico, eis o que é impossível, Após a vitória dos Franceses em Borodino, não tornou a haver mais nenhuma batalha geral, nem sequer houve qualquer recontro importante, e, no entanto, o exército francês foi destruído. Que significa isto? Se se tratasse de um acontecimento da história da China, ainda poderíamos sustentar que se não tratava de um fenómeno histórico, recurso habitual dos historiadores quando alguma coisa não joga perfeitamente com as suas teorias. E ainda se se não tratasse senão de um conflito bastante episódico, em que apenas tivesse tomado parte número restrito de tropas, isso ainda nos habilitaria a, sustentar que estávamos perante uma excepção. Mas o acontecimento deu-se quando os nossos pais eram vivos e se debatia a questão de vida ou de morte da sua pátria, e essa guerra foi a maior de todas as guerras conhecidas. O período da campanha de 1812 que vai de Borodino à expulsão dos Franceses não só demonstrou que uma batalha vitoriosa não é só por si razão suficiente da conquista de um país, mas nem sequer disso é mesmo sintoma. Provou, pelo contrário, que a força que decide do destino dos povos nem está nos conquistadores, nem nos seus exércitos, nem mesmo nas batalhas que eles travam. Está em qualquer outra coisa. Os historiadores franceses, ao referirem-se à situação do exército napoleónico antes da sua retirada de Moscovo, afirmam que a ordem reinava em todos os corpos excepto na cavalaria, na artilharia e no trem hipomóvel, acrescentando existir falta de forragens para os cavalos e para o gado, penúria irremediável, uma vez que os camponeses dos arredores preferiam queimar a palha a, entregá-la aos Franceses. A vitória não trouxe consigo os resultados habituais, porque os camponeses, os Karp e os Vlas, trataram de saquear Moscovo quando os Franceses abandonaram a capital, não dando provas, em geral, de grande heroísmo, e porque muitos outros preferiram queimar a palha a vendê-la ao invasor por elevado preço.Imaginemos dois homens dispostos a bater-se em duelo à espada de acordo com todas as regras da esgrima. A peleja dura muito tempo. De súbito, um deles, ao sentir-se ferido e ao compreender que se não trata de uma brincadeira, pois é a sua própria vida que está em risco, joga fora, a espada e, deitando a mão ao primeiro cacete que lhe aparece, põe-se a riscar com ele. Suponhamos porém que esse duelista que com tanta oportunidade empregou o melhor meio e o mais simples para conseguir os seus fins, animado pela tradição cavalheiresca, procura ocultar a verdade e insiste em dizer que venceu o seu rival com todas as regras. Poder-se-á fazer uma pequena ideia da confusão que resultaria se ele porventura se pusesse a descrever o seu duelo? O esgrimista que exige que o combate decorra de acordo com todas as regras do duelo é o francês; o adversário que jogou fora a espada e sacou do cacete é o russo:, as pessoas que procuram tudo explicar pelas regras da esgrima são os historiadores que se ocuparam do acontecimento. A partir do incêndio de Smolensk principiou uma guerra a que se não pode aplicar qualquer das tradições guerreiras conhecidas até então. O incêndio das cidades e das aldeias, a retirada após as batalhas, o golpe de Borodino e a nova retirada, os acontecimentos de Moscovo, a caça aos merodistas, a captura dos transportes., as guerras dos partidários, tudo isto estava à margem das regras ordinárias e das tradições bélicas. Napoleão deu por isso, e desde o momento em que se deteve em Moscovo na atitude correcta imposta pela esgrima e se deu conta de que o adversário, em vez de brandir uma espada, manejava um cacete, logo se pôs a queixar-se a Kutuzov e a Alexandre, alegando que a guerra estava a ser conduzida de maneira contrária a todas as regras, como se em verdade pudesse haver regras para matar criaturas humanas. Mas, apesar das queixas dos Franceses e da vergonha que sentiam certas altas personalidades russas por se verem obrigadas a bater-se com cacetes quando desejavam seguir as regras, colocando-se em posição de em quarta, ou em terceira, e atacando em primeira, etc., o certo é que o cacete da guerra civil nacional se levantou com força majestosa e devastadora e sem querer saber dos gostos de cada um o das respectivas regras, simples e brutal, mas confiante nos seus golpes, caiu sobre os Franceses e zurziu-lhes as costas até os invasores ficarem completamente aniquilados. Ditoso o povo que, ao contrário dos Franceses em 1813, os quais saudaramsegundo os princípios da arte de esgrima, entregando a espada cortês, graciosamente, ao magnânimo vencedor, ditoso do povo que, num momento de provação, sem querer saber como se conduziriam os outros em caso semelhante, ergue, fácil e simplesmente, o primeiro cacete que lhe vem às mãos e zurze com ele o inimigo até que na alma lhe desponte, em vez da ofensa e da vergonha, o sentimento do desprezo e da compaixão. [II] Uma das mais impressionantes e fecundas excepções às pretensas leis da guerra é a acção de indivíduos isolados contra as massas compactas de tropas. Eis um género de operações que vem a produzir-se sempre nas guerras de carácter nacional. Em lugar de se oporem em massa, os homens dividem-se em pequenos destacamentos, atacam isoladamente e fogem desde que enfrentados por grandes forças, atacando outra vez logo que a oportunidade se oferece. Foi o que fizeram os guerrilheiros em Espanha, assim agiram os montanheses no Cáucaso e os Russos em 1812 não procederam de outra maneira. A esta forma de combater deu-se o nome de «guerra de guerrilhas» e ao designá-la dessa sorte pensou-se explicar a sua significação. Na verdade, pode considerar-se à margem de todas as regras e até mesmo em oposição aos princípios tácticos mais conhecidos e tidos por infalíveis. Segundo esses princípios, aquele que ataca deve concentrar as suas tropas de maneira a que na altura do combate se encontre mais forte que o adversário. A guerra de guerrilhas, sempre bem sucedida, como a história o demonstra, desmente categoricamente tal princípio. A contradição deve-se ao facto de que a arte militar supõe que a força de um exército está em relação com o número dos seus homens. Segundo ela, quanto mais numeroso é um exército mais forte resulta. Os batalhões pesados têm sempre razão. Ao sustentar esta afirmação, a ciência militar parece-se com a teoria da mecânica afirmando que as forças estão na relação directa das massas e que as forças são iguais entre si consoante as massas são ou não iguais, também.A força como quantidade de movimento é o produto da massa pela velocidade. Na guerra, a força das tropas é realmente o produto das massas, mas multiplicado por uma incógnita x. A ciência militar, ao encontrar na história numerosos exemplos em que a massa dos soldados não coincide com a sua força real, pois pequenos destacamentos vencem por vezes grandes concentrações de tropas, admite confusamente a existência desse multiplicador desconhecido e procura descobri-lo, quer na construção geométrica de um plano, quer na superioridade do armamento, quer, mais geralmente, no génio dos chefes. Mas os resultados obtidos por estes diversos multiplicadores estão longe de poderem explicar os factos históricos. Basta, porém, renunciar a atribuir importância, como em geral acontece, para agrado dos heróis, às disposições tomadas pelo alto comando durante uma guerra, para se descobrir, finalmente, essa famosa incógnita. Este x é o moral das tropas, isto é, o desejo mais ou menos vivo de os homens de que se compõe o exército se exporem ao perigo, independentemente da questão de saberem se se batem sob as ordens de um génio ou não, em duas ou três linhas, ou com cacetes ou espingardas capazes de disparar trinta tiros por minuto. Os que tiverem o desejo mais vivo de se bater serão os que se encontram nas condições mais favoráveis para a luta. O moral das tropas, eis o multiplicador da massa cujo produto é a força. Precisar e definir o valor do moral, esse multiplicador desconhecido, eis o que a ciência da guerra tem de fazer. A resolução deste problema apenas se tornará possível no dia em que deixemos de substituir arbitrariamente a incógnita, pelas condições que manifesta a força, quer dizer, as disposições tornadas, o armamento, etc., atribuindo-lhes o valor do multiplicador e— reconhecendo essa incógnita, em toda a sua integridade, como um maior ou menor desejo de bater-se e de expor-se ao perigo. Só então, ao exprimir por equações os factos históricos, e tendo em conta o valor relativo da incógnita, pode esperar-se encontrar esta última. Dez homens, dez batalhões ou dez divisões, combatendo contra quinze homens, quinze batalhões ou quinze divisões, vencem-nos, quer dizer, mataram e fizeram prisioneiros todos os seus inimigos, perdendo os vencedores quatro unidades. Por conseguinte, de um lado caíram quatro e do outro quinze. Logo, 4 é igual a 15, ouseja, 4x = 15y. Assim, pois, x:y = 15:4. Esta equação não dá o valor da incógnita, mas a relação entre as duas incógnitas. Ao aplicar o sistema das equações aos diferentes acontecimentos históricos considerados separadamente — batalhas, campanhas, períodos de guerra — poder-se-á obter uma série de números em que devem existir leis susceptíveis de se revelar. A regra táctica que prescreve que se deve agir por massas no ataque e em ordem dispersa na retirada confirma, involuntariamente, a verdade segundo a qual o poderio de um exército depende do espírito que o anima. Para se levarem os homens para a linha de fogo é preciso muito maior disciplina — e essa disciplina apenas se consegue pelas massas em movimento — do que para escapar aos assaltantes. Mas toda a regra que não tenha em conta a questão do moral das tropas é infalivelmente falsa e está mesmo em absoluta oposição com os factos, ali onde se manifestar uma violenta exaltação ou uma grande depressão no espírito do exército, principalmente nas guerras civis de carácter nacional. Os Franceses, durante a sua retirada de 1812, quando, segundo a táctica, deveriam defender-se, isoladamente, concentram-se, pelo contrário, em massa, pois o certo é que, o moral das tropas estava de tal modo quebrantado que a massa era u única forma de manter a unidade. Os Russos, que, segundo a táctica, deveriam atacar em massa, dispersam-se, pelo contrário, uma vez que o seu moral era de tal ordem que os homens isolados não precisavam de ordem para combater os Franceses nem de disciplina para se exporem ao perigo e à fadiga. [III] A guerra de guerrilha, principiou no dia em que os Franceses entraram em Smolensk. Muito antes de esta guerra vir a ser reconhecida oficialmente pelo Governo russo, já muitos milhares de homens do exército inimigo — desertores, merodistas, forrageadores — haviam sido exterminados pelos cossacos e pelos camponeses e com tão poucos escrúpulos como se se tratasse de cães danados. Denis Davidov foi o primeiro, com o seu faro patriótico, a reconhecer a importância desta terrível guerra de cacete, sem quaisquer preocupações com as regras da arte militar,matava numerosos franceses, e a ele pertence a glória de, ter principiado por regularizar esta nova maneira de combater. No dia 24 de Agosto estava organizado o primeiro destacamento de guerrilheiros, e a ele logo se seguiram muitos outros. Quanto mais se prolongava a campanha maior era o número destes destacamentos. Os guerrilheiros iam destruindo, por partes, o grande exército. Varriam as folhas que caíam da árvore seca que era o exército francês e por vezes chegavam a abanar-lhe o tronco. No mês de Outubro, enquanto os Franceses fugiam em direcção a Smolensk, formavam-se centenas destes destacamentos com efectivos e carácter diferentes. Tinham uns a aparência de tropas regulares, com infantaria, artilharia, estado-maior e fartos abastecimentos: outros apenas eram constituídos por cavalaria e cossacos; havia alguns, pouco importantes, formados por tropas mistas de infantaria e de cavalaria; e outros, enfim, compostos de camponeses e de proprietários rurais, completamente desconhecidos. Só um sacristão, à frente de um grupo de guerrilheiros, conseguiu num mês fazer centenas de prisioneiros, e a mulher de um estaroste, uma tal Vassilissa, dizimou um centenar de franceses. Nos últimos dias de Outubro atingia a guerra de guerrilhas seu apogeu. Passara o período inicial durante o qual os guerrilheiros se surpreendiam com a sua própria audácia, receando a cada momento ver-se cercados pelos Franceses. Quase não desmontavam dos seus cavalos e escondiam-se nas florestas, sempre a espera de serem perseguidos. Agora as guerrilhas estavam organizadas, e todos sabiam claramente o que podiam ou não fazer para atacar o inimigo. Só os comandantes de destacamento, que no séquito do estado-maior, consoante as ordens recebidas, se mantinham afastados dos Franceses, consideravam impossível certos empreendimentos. Os comandantes dos pequenos grupos de guerrilheiros, já bastante experimentados e que perseguiam o inimigo de perto, consideravam realizáveis coisas em que os demais nem sequer teriam ousado pensar. Quanto aos cossacos e aos camponeses que se infiltravam nas próprias linhas inimigas, esses pensavam que doravante tudo era possível. No dia 22 de Outubro. Denissov, que comandava um destacamento de guerrilheiros, encontrava-se, tanto ele como os seus companheiros, em pleno entusiasmo pela nova guerra. Desde madrugada que andava em campo com os seus homens. Durante o dia inteiro tinham espiado, através das grandes florestas que marginavam a estrada, um imenso comboio de material de cavalaria e deprisioneiros russos, o qual, separado do resto do exército, se dirigia para Smolensk, fortemente escoltado, como tinham sabido por alguns espiões e por prisioneiros evadidos. A passagem deste comboio havia sido assinalada não só a Denissov e a Dolokov, o qual, comandante também de um pequeno grupo de guerrilheiros, operava nas mesmas paragens, mas outrossim aos comandantes de fortes destacamentos e aos respectivos estados-maiores. Toda a gente estava, pois, avisada e, como dizia Denissov, todos aguçavam o dente de antemão. Dois dos comandantes destes destacamentos, um polaco e outro alemão, quase ao mesmo tempo, mandaram pedir a Denissov que se juntasse a eles para atacarem juntos. — Não, amigo, eu sei o que faço — disse Denissov, depois de ler as duas missivas. E respondeu ao alemão que, apesar do sincero desejo que tinha de obedecer às ordens de um general tão brilhante e tão ilustre, se via obrigado a privar-se dessa honra, uma vez que se encontrava já sob as ordens do polaco. E com a mesma pena escreveu ao general polaco informando-o de que se encontrava já comprometido com o alemão. Se tomou estas disposições foi porque tinha a intenção, sem informar disso o alto comando, de atacar o comboio de acordo com Dolokov e de se apoderar dele com os seus escassos recursos, No dia 22 de Outubro dirigia-se da povoação de Milculino para a de Chamchevo. A esquerda da estrada, entre essas duas aldeias, sucediam-se matas espessas, que por vezes vinham mesmo bordejar o caminho, afastando-se dele, outras vezes, para cima de uma versta. Foi essa floresta que Denissov bateu todo o dia, ora entrando por ela dentro até ao mais espesso da mata, ora surgindo na sua orla, sem nunca perder de vista os movimentos dos Franceses. De manhã, não muito longe de Mikulino, num dos pontos em que as árvores chegavam à estrada, os seus cossacos haviam capturado dois carros cobertos carregados de selas de cavalaria e arreios, os quais tinham caído num atoleiro. Desde então e até à noite observara o inimigo sem o atacar. Era preciso não dar o alarme para que os Franceses se aproximassem tranquilamente de Chamchevo, e então, reunindo-se a Denissov, que à noitinha devia encontrar-se em certo local da floresta, a uma versta da povoação, para com ele estabelecer contacto, cairiam, dos dois lados ao mesmo tempo, inesperadamente, sobre o comboio e de uma só vez apoderar-se-iam dele, destruindo-o. Na retaguarda, a duas verstas de Mikulino, num ponto em que a floresta vinhaaté à estrada, tinham ficado seis cossacos emboscados para dar o alarme assim que aparecessem novas colunas francesas. Para lá de Chamchevo, Dolokov devia igualmente explorar a estrada na intenção de saber a que distância poderiam encontrar-se outras tropas inimigas. Calculavam-se em mil e quinhentos os homens que serviam de escolta ao comboio. Denissov dispunha de duzentos homens: Dolokov pouco mais teria. Mas a superioridade numérica do inimigo não detinha Denissov. A única coisa que queria saber é que tropas eram essas; e com esse objectivo precisava de «prendre langue» (Expressão em francês no texto original. (N. dos T.), isto é, capturar um prisioneiro. O ataque matutino às carroças cobertas fora tão inesperado que os franceses da escolta tinham sido todos mortos e apenas haviam aprisionado vivo um pequeno tambor, o qual, porque seguia na retaguarda, nada pôde dizer de preciso acerca da composição da coluna. Tentar um segundo ataque afigurava-se perigoso a Denissov, pois não convinha alertar a coluna inteira. Eis porque enviou a Chamchevo um camponês chamado Tikon Chtcherbatov, um dos ,seus partidários, com a missão de capturar pelo menos um dos furriéis franceses da vanguarda que se deviam encontrar ali. [IV] Era um dia de Outono chuvoso e temperado. O céu e o horizonte estavam envoltos na mesma aguada turva. Ora tombava uma espécie de neblina ora, de repente, se punham a cair obliquamente grossas gotas de água. Denissov, envolto numa burka (Capote sem mangas. (N. dos T.) e de gorro de peles na cabeça, ensopado até aos ossos, montava um cavalo de raça, magro e de flancos escorridos. Tanto ele como a montada, que abanava a cabeça e arrebitava as orelhas, se encolhiam e olhavam desassossegados sob a chuva que os fustigava. O rosto de Denissov, esquálido e picado por uma espessa e curta barba preta, parecia desconfiado e pouco contente. A seu lado cavalgava o ajudante, um capitão de cossacos, fardado da mesma maneira, montando um corcel do Dom muito bem tratado. O terceiro companheiro era o capitão de cossacos Lovaiski, que vestia idênticofardamento. Tratava-se de um homem comprido e chato como uma prancha, louro, de tez branca, com uns olhitos claros e um ar de calma segurança que lhe transparecia não só no rosto como em todo o corpo. Embora não fosse fácil dizer em que consistia a particularidade daquele cavaleiro e do seu cavalo, bastava relancear-lhe um olhar para se ver que, se Denissov, encharcado e de má catadura, dava a impressão de alguém que monta a cavalo um pouco por acaso, o capitão de cossacos, esse, pelo contrário, parecia à sua vontade, tranquilo como sempre, e que ele e o seu cavalo dir-se-iam uma só peça. A frente cavalgava o guia, um camponês, molhado até aos ossos, de cafetã cinzento sujo e gorro branco. A retaguarda, a certa distancia, montado num cavalo quirguiz magro e franzino, de grandes crinas e cauda farta, a boca ensanguentada pelo freio, trotava um jovem oficial com o capote azul dos Franceses. A seu lado cavalgava um hússar que levava na garupa um garoto fardado à francesa, todo esfarrapado e de quépi azul na cabeça, Fincado com as mãos vermelhas de frio às costas do hússar, para as aquecer batia com as pernas nuas contra os flancos do cavalo enquanto relanceava olhares assustados à sua roda. Era o tamborzito capturado pela manhã. Atrás deles, alinhados a três e quatro de fundo, trotavam os hússares pela estreita vereda coberta de folhas da floresta, depois vinham os cossacos, uns envoltos em burkas, outros envergando capotes franceses e outros ainda com as gualdrapas dos cavalos pela cabeça. Os ginetes, quer os baios quer os alazões, pareciam pretos tanta a chuva que os ensopava. As crinas encharcadas colavam- se-lhes às cabeças singularmente delgadas, Um vapor espesso irradiava-lhes do corpo. Fardas, selas, arreios, tudo estava ensopado, viscoso, lustroso, como, aliás, a terra e as folhas mortas que recobriam o caminho. Os homens, direitos nas selas, mantinham-se imóveis para que a água que lhes escorria pelo corpo pudesse aquecer e para que os não trespassasse a que continuava a cair-lhes em cima. No meio dos cossacos rodavam duas carroças cobertas, tiradas por cavalos franceses, selados à cossaca, que faziam estalar os ramos secos e esparrinhar a água das poças. Ao contornar um lodaçal do caminho, o cavalo de Denissov ladeou e o cavaleiro bateu com um joelho numa árvore. «Diabos te levem!», gritou ele, furioso. E, rangendo os dentes, fustigou o cavalo com duas ou três chicotadas que o esparrinharam de lama a ele e aos companheiros. Não estava de boa catadura.Sentia-se ensopado e faminto, pois desde manhã que nada comia. E depois Dolokov ainda não dera sinal de vida o soldado que fora «prendre tangue» nunca mais aparecera. «Não se arranja outra oportunidade como esta para assaltarmos um comboio. Atacar sozinho seria muito arriscado e adiar a expedição é o mesmo que dizer que outro destacamento de mais peso nos levará a presa», dizia ele com os seus botões, sempre de olhos fitos no horizonte, na esperança de descobrir o mensageiro esperado que Dolokov lhe enviaria. Ao chegarem a uma clareira, que deixava a descoberto o horizonte à direita, Denissov estacou. — Vem lá gente — disse. O capitão olhou para onde Denissov apontava. — São dois, um oficial e um cossaco. Mas o tenente-coronel que não. — observou o capitão de cossacos, que gostava de empregar palavras pouco usadas entre os seus homens. Os referidos cavaleiros, que desciam uma encosta, deixaram de ver-se, para voltarem a aparecer alguns minutos depois. A frente, e chicoteando o cavalo para o manter a galope, vinha um oficial esguedelhado, molhado até aos ossos, com as calças arregaçadas até aos joelhos. Atrás dele, de pé nos estribos, trotava um cossaco. O oficial, rapazola muito novo, gordalhudo e rubicundo, os olhos muito vivos, alegríssimos, aproximou-se de Denissov e entregou-lhe um sobrescrito todo molhado. — Da parte do general — disse ele — Desculpe se vem um pouco molhado... Denissov, franzindo as sobrancelhas, pegou no sobrescrito e abriu-o. — Só me diziam que era perigoso, muito perigoso — ia dizendo o oficial, voltado para o capitão de cossacos, enquanto Denissov lia a mensagem. — Por isso o Komarov e eu tratámos de tomar as nossas precauções — acrescentou, apontando o cossaco que o acompanhava. — Cada um traz duas pisto... O que é? — perguntou ao ver o tamborzito. — Um prisioneiro? Já se bateram? Posso falar com ele? — Hem? Rostov? Pétia! — exclamou subitamente Denissov, que tinha acabado de ler a missiva — Porque não disseste que eras tu? — E Denissov, voltando-se para o oficial, estendeu-lhe mão, muito sorridente: era Pétia Rostov. Todo o caminho Pétia estudara a atitude que devia tomar diante de Denissov, a atitude que convinha a um homem feito, a um oficial, sem fazer a mais pequenaalusão ao seu antigo conhecimento. Mas assim que Denissov se sorriu para ele, a cara de Pétia iluminou-se, corou de satisfação e esqueceu-se por completo do ai, marcial que estudara para a oportunidade. Pôs-se a contar-lhe como passara diante dos Franceses e a satisfação que sentia por cumprir a missão que lhe fora confiada e como já estivera sob o fogo do inimigo em Viazma, onde por sinal se distinguira o hússar que era ele próprio. — Pois é verdade, estou contentíssimo por te ver — interrompeu Denissov, em cujo rosto reaparecera a expressão preocupada. — Mikail Feoklitich — exclamou, virando-se para o capitão de cossacos. — Cá temos outra vez o alemão. Este está adido a ele. E explicou que o papel que acabavam de lhe entregar encerrava um novo pedido do general alemão para que Denissov se lhe juntasse no intuito de atacarem o comboio. — Se não nos apoderamos dele amanhã, deitam-lhe a mão mesmo nas nossas barbas — concluiu. Enquanto Denissov falava com o capitão, Pétia, desorientado pelo tom frio do oficial e persuadido de que a causa disso eram as suas calças arregaçadas, tratou de as puxar para baixo dissimuladamente, procurando assumir uma atitude o mais marcial que podia. — Que ordens tem Vossa Excelência a dar-me? — inquiriu de Denissov, levando a mão à pala da barretina e retomando a postura de um ajudante-de- campo na presença do seu general, a tal atitude que ele estudara de antemão. — Ou deverei continuar aqui ao pé de Vossa Excelência? — Ordens?... — repetiu Denissov pensativo. — Podes ficar aqui até amanhã? — Oh! Com todo o gosto... Posso ficar ao pé de si? — inquiriu Pétia. — Que ordens te deu o general, no fim de contas? Que voltasses imediatamente? — perguntou Denissov. Pétia corou. — Nada me disse. Então? Posso ficar? — interrogou ele. — Bom, fica. E, voltando-se para os subordinados, Denissov deu-lhes instruções para a força se dirigir ao ponto designado na floresta e ai fazer alto. Em seguida mandou o oficial que montava o cavalo quirguiz, desempenhando junto dele funções de ajudante-de-campo, saber onde se encontrava Dolokov e se chegaria pela noite. Entretanto, ele próprio, na companhia do capitão de cossacos e de Pétia, pensavadirigir-se para a orla da floresta, nas imediações de Chamchevo, no intuito de observar a posição dos Franceses, que atacaria no dia segui-te. — Vamos, barbaças — ordenou ele para o camponês que desempenhava as funções de guia. — Leva-nos a Chamchevo. Denissov, Pétia e o capitão, seguidos de alguns cossacos e do hússar encarregado do prisioneiro, tomaram o caminho à esquerda, através de uma ravina, na intenção de alcançarem a orla da floresta. [V] A chuva cessara, caía apenas uma cacimba e os ramos das árvores gotejavam. Denissov, o capitão e Pétia seguiam silenciosos o camponês, de gorro na cabeça e laptis nos pés, que caminhava ligeiro e sem ruído por cima das raízes e das folhas molhadas, encaminhando-se para a orla da floresta. Ao chegar a um talude, o guia parou e, depois de inspeccionar o sítio, dirigiu-se para um renque de árvores bastante afastadas umas das outras. Quando chegou junto de um carvalho, ainda coberto de folhagem, pôs-se a chamar com um misterioso aceno de mão. Denissov e Pétia aproximaram-se. Dali podiam ver-se os Franceses. Logo adiante da floresta havia um campo de trigo sobre uma colina. Ã direita, para além de uma abrupta ravina, descobria-se um povoado e uma casa senhorial com o telhado desmantelado. Na povoação, na casa, ao longo da colina, no jardim, junto do poço e ao pé do tanque, em todo o percurso da estrada que da ponte subia para a aldeia, numa distância de mais de duzentas sagenas, entreviam-se grupos de homens através da neblina flutuante. Ouviam-se distintamente os gritos, que soltavam em língua estrangeira, incitando os animais a transpor a rampa e chamando uns pelos outros, — Traz o prisioneiro — disse Denissov, em voz baixa, sem perder de vista os Franceses. O cossaco apeou-se, ajudou o garoto a desmontar e conduziu-o junto de Denissov. Este apontou-lhe os Franceses e perguntou-lhe que tropas eram aquelas. O prisioneiro, que enfiara as mãos transidas de frio nas algibeiras, ergueu os olhos assustados para o oficial e, embora fosse seu desejo dizer o que sabia, de tal modose lhe entaramelou a língua que apenas se limitou a responder afirmativamente às perguntas que lhe faziam. Denissov franziu as sobrancelhas, voltou-lhe as costas e disse para o capitão de cossacos quais as suas intenções. Pétia, azafamado e curioso, ora fitava o tamborzito, ora Denissov, ora o capitão de cossacos, ora ainda os Franceses lá adiante, na aldeia, e na estrada além, para nada perder do espectáculo. — Quer o Dolokov venha ou não, temos de cair em cima deles, não acham? — exclamou Denissov esfregando as mãos e os olhos a brilhar de satisfação. — Sim, o sítio é bom — confirmou o capitão de cossacos. — Destacaremos a infantaria pela parte de baixo, pelo lado dos pântanos — prosseguiu Denissov. — Infiltrar-se-á até ao jardim. Tu e os cossacos saltam por ali — continuou, apontando para a mata por detrás da povoação — e eu, com os meus hússares, por aqui. E ao primeiro tiro de espingarda... — Não se pode atravessar o barranco, há ali um lodaçal. Os cavalos são capazes de se atolar. É preciso ir um pouco mais pela esquerda. Quando assim conversavam em voz baixa, no barranco, para lados do tanque, soou um tiro, viu-se um fumozinho branco, e logo outro tiro, seguido de grande algazarra, jovial, ao que parecia, de todos os franceses que estavam na ladeira. No primeiro momento, Denissov e o capitão de cossacos recuaram. Tão perto estavam do inimigo que supuseram serem eles a causa dos tiros e os gritos. Mas não, No terreno pantanoso, em baixo, patinhava um homem vestido de encarnado. Eis, evidentemente, a causa dos tiros e do clamor. — Mas e o nosso Tikon — exclamou o capitão. — Realmente. é ele! — Patife! — vociferou Denissov. — Escapará? — murmurou o capitão, piscando os olhos. O homem, a quem chamaram Tikon correu para o rio, e chafurdando, com a água a saltar de todos os lados, desapareceu por momentos, para logo em seguida, coberto de lodo negro, emergir da água, de gatas, afastando-se a correr. Os Franceses, depois de o perseguirem algum tempo, acabaram por desistir — Não é peco! — comentou o capitão. — Que grande animal! — voltou Denissov, enfadado com o que via. — Que terá estado ele a fazer ate agora? — Quem é? — inquiriu, Pétia.— É o nosso espião. Tinha-o mandado saber coisas. — Ah!, sim! — acrescentou Pétia, aprovando com um aceno de, cabeça, embora não tivesse percebido patavina do que Denissov dissera. Tikon Chtcherbatii, dos homens mais úteis do grupo, era um camponês de Pokrovskoie, dos sítios de Gjat. Quando no princípio da sua actividade de guerrilheiro. Denissov apareceu naquela terreola, e, consoante o seu costume, falou com o estaroste sobre o que havia acerca dos Franceses, este respondeu-lhe, como aliás todos os seus parceiros, cheio de prudência, dizendo que para falar a verdade não sabia coisa alguma. Mas como Denissov lhe explicasse que pensava atacar os Franceses e lhe perguntasse se não havia, inimigos por aqueles sítios, o funcionário acabou por dizer que vira, realmente, alguns salteadores, mas que em todo o povoado só uma pessoa sabia do assunto, um tal Tikon Chtcherbatii. O oficial mandou chamar Tikon, felicitou-o, e, na presença do estaroste, disse-lhe qualquer coisa a respeito da fidelidade ao czar e à pátria e do ódio que todos os seus filhos deviam alimentar pelos Franceses. — Não fizemos mal algum aos Franceses — disse Tikon, um pouco embaraçado com os elogios de Denissov. — É como quem diz, apenas rios divertimos com eles. Matámos aí duas dúzias de salteadores, mas não lhes fizemos mal algum... No dia seguinte, quando Denissov, que já esquecera o tal camponês, deixava a aldeia, vieram dizer-lhe que Tikon se juntara ao grupo dos guerrilheiros e pedia licença para se alistar. Denissov consentiu. Ao princípio Tikon foi encarregado dos serviços mais pesados, de acender o lume, de ir buscar água, de esfolar os cavalos, mas não tardou a mostrar ser excelentemente dotado para aquele género de guerra. A noite despedia para os assaltos e voltava sempre com roupas e armas que pilhara aos Franceses e quando para tal recebia ordens regressava, mesmo, com os seus prisioneiros. Denissov dispensou-o, pois, dos trabalhos pesados, passou a, levá-lo consigo nas suas expedições e colocou-o entre os cossacos. Tikon não gostava por aí além de montar a cavalo. Preferia caminhar a pé, sem nunca se distanciar muito dos cavaleiros. Andava armado com um mosquete, que trazia consigo mais por graça que por outra coisa, com um chuço e com um machado, de Que se servia como o lobo se serve dos dentes, tão capaz de com ele matar pulgas como de quebrar os ossos mais duros. Tão habilmente rachava aomeio, de um só golpe, uma prancha de madeira como aparava finas réguas ou talhava uma colher pegando no machado pela cabeça. Desempenhava no grupo um cargo particular, excepcional. Sempre que havia qualquer coisa a fazer perigosa ou especialmente difícil, como desatolar um carro. â força de músculos, ou arrancar de um atoleiro, puxando-lhe pela cauda, o cavalo que se atolou ou ainda arrancar-lhe a pele ou infiltrar-se pelo meio dos Franceses, ou percorrer numa só jornada cinquenta verstas, chocarreando, toda a gente apontava Tikon. — Que diabo, faz isso com uma, perna às costas, ninguém pode com a vida dele! — diziam. Certo dia um francês a quem Tikon acabava de deitar a mão alvejou-o à queima-roupa, atingindo-o nas espáduas. E este ferimento, que Tikon tratou a sua maneira, com copinhos de aguardente por dentro e por fora, converteu-se em pretexto de intermináveis gracejos por todo o destacamento, gracejos a que ele, aliás, se prestava de bom grado. — Que contas tu de novo, irmão? Chegaram para ti, hem? — diziam, rindo, os cossacos. Tikon, de cariz macambúzio e mal humorado, ia cobrindo os Franceses de divertidos impropérios. O resultado desta aventura foi passar a não trazer tão frequentemente como até ai prisioneiros franceses. Era o mais útil e o mais valente de todos os homens do grupo. Ninguém sabia tão bem como ele preparar uma emboscada, nem ninguém matara ou capturara tantos franceses. E assim se converteu no bobo favorito de todos os hússares e cossacos, aceitando de boa mente a promoção. Nessa mesma noite, efectivamente, tinham-no enviado a Chamchevo colher informações. Mas ou fosse porque se não contentara em abordar só um francês, ou porque dormira toda a noite, escondido atrás de uns arbustos, ei-lo que, mal desponta o dia, tenta introduzir-se no meio do inimigo. E foi assim que viera a ser descoberto, como Denissov pudera ver do alto do seu observatório. [VI] Depois de trocar ainda algumas impressões com o capitão de cossacos acercado projectado ataque do dia seguinte, por que definitivamente se decidira, em virtude da proximidade dos Franceses. Denissov virou de rédea, voltando ao ponto de partida. — Bom, amigo, agora vamos tratar de nos enxugarmos — disse para Pétia. Quando chegaram à casa do guarda na floresta, parou, inspeccionando os arredores. E viu, então, avançando do matagal, um homem de longas pernas e grandes braços balouçantes. De cafetã curto, laptis nos pés e um gorro de Kazan na cabeça, trazia uma espingarda em bandoleira e um machado à cinta. Ao ver Denissov tratou de arremessar qualquer coisa para uma moita e, tirando o gorro encharcado, de abas caídas, aproximou-se do chefe. Era Tikon. As suas faces picadas das bexigas e sulcadas de rugas, os olhitos pespontados, resplandeciam de satisfação. Erguendo muito a cabeça e como se fizesse o possível para não rir, parou diante de Denissov. — Onde te meteste, homem? — perguntou-lhe este. — Eu? Andei à caça aos Franceses — deu-se pressa em dizer Tikon resolutamente na sua rouca voz de baixo, mas cantante. — Que estavas tu ali a fazer em pleno dia, animal? Então, apanhaste algum?... — Apanhar, apanhei — respondeu ele. — E onde está? — Sim, apanhei um logo de princípio; ainda não nascera o dia — prosseguiu Tikon, afastando os pés chatos enfiados nos laptis — e levei-o comigo para a floresta. Mas só então vi que para nada prestava. E disse com os meus botões: «Volto lá e apanho outro que me sirva melhor.» — Ah, patife! Foi por isso — exclamou Denissov para o capitão de cossacos. — E porque o não trouxeste, então? — Para que o queria eu? — interrompeu Tikon de má catadura. — Para nada prestava. Como se eu não soubesse do que o meu oficial precisa? — Sempre me saíste um animal! E então?... — Fui arranjar outro — prosseguiu Tikon. — Arrastei-me até à floresta e deitei-me no chão. — E ei-lo que se atira ao chão de barriga para baixo a explicar o que fizera. — E lá vem um. Salto-lhe em cima deste jeito. — E dizendo o que, dá um pulo cheio de agilidade. — «Vamos», virei-me para ele. «toca daí para o meu coronel.» Então o homem não se me põe a gritar? E aí me caem em cima mais quatro, de baionetas desembainhadas. Mas eu saco do machado e aí vai disto.«Vamos, desamparem-me a loja!», ameacei-os. — E Tikon pôs-se a repetir com o braço o gesto que fizera, assumindo uma expressão terrível e arqueando o peito. — Sim, sim, nós bem vimos do nosso esconderijo como davas às de vila-diogo pelo pântano dentro — disse o capitão, cujos olhos cintilavam. Pétia a custo reprimia o riso, fazendo-o apenas porque os outros se conservavam muito sérios. E ia fitando Denissov, depois o capitão e Tikon, sem poder compreender o que tudo aquilo significava. — Bom, deixa-te de tolices — disse Denissov, que parecia furioso. — Porque não trouxeste tu o primeiro? Tikon, coçando as costas com uma das mãos e a cabeça com a outra, pôs-se de súbito a rir, um franco riso animal, que lhe descobria a cova de um dente, origem da alcunha por que era conhecido: Chtcherbatii. Denissov sorriu e Pétia prorrompeu numa alegre gargalhada, que Tikon acompanhou. — É o que lhe digo, para nada prestava — continuou ele. — Estava muito mal vestido; para que teria servido trazê-lo? E que insolente, Excelência. «Eu, um filho de um amaral» (Palavra francesa deformada pelo povo russo. Queria dizer «general». (N. dos T.), dizia ele, «Não vou!» — Animal! — voltou Denissov. — Era interrogá-lo... — Mas eu interroguei-o — continuou Tikon. — E ele disse-me: «Não sei coisas por aí além. Sim, os nossos são muitos, mas não valem nada. Basta dar-lhes um grito e eles caem-vos todos no papo.» — E Tikon, enquanto falava, ia fixando o chefe com, o seu olhar alegre e decidido. — Bom, estou a ver que tenho de aplicar-te o correctivo se continuas a fazer-te parvo — disse Denissov severamente. — — Para que se há-de zangar? — voltou Tikon. — Julga que eu não sei o que são os seus Franceses? Deixe só que escureça um pouco, e eu lhe trarei quantos quiser, três de uma só vez, se for preciso. — Vamos, a caminho — exclamou Denissov, e até chegarem ao posto conservou-se calado e com cara de poucos amigos. Tikon ia atrás e Pétia ouvia os cossacos que riam com ele e o troçavam por causa das botas que ele escondera numa moita. Quando se lhe foi o riso que lhe provocaram as palavras de Tikon, Pétia percebeu que este matara o francês e um sentimento de desgosto o pungiu. E depois, pousando os olhos no pobre tambor, o coração apertou-se-lhe, Mas foiobra de um momento, Percebeu que devia conservar a cabeça direita, mostrar-se mais marcial, e com um olhar cheio de embófia interrogou o capitão de cossacos sobre o empreendimento do dia seguinte, para que o não julgassem indigno da companhia em que estava. O oficial que Denissov expedira veio ao seu encontro, no meio do caminho, com a notícia de que Dolokov ia chegar de um momento para o outro e que da sua parte tudo caminhava bem. De súbito Denissov recuperou a, sua boa disposição e, chamando Pétia, pôs-se a conversar com ele: — Vamos, conta-me o que tens feito. [VII] Pétia, ao sair de Moscovo e depois de se ter separado dos pais, juntara-se ao seu regimento, sendo daí a pouco colocado como oficial de ordenança de um general que comandava um importante destacamento. Desde que fora promovido a oficial, e sobretudo desde que ingressara no exército activo, tomando parte na batalha de Viazma, estava sempre num estado de espírito alegre e excitado, pois se sentia um homem e não queria perder a ocasião de se comportar como herói. Tudo quanto vira e experimentara no exército o encantava, embora tivesse a impressão de que onde ele não estava é que se praticavam os mais belos actos de bravura. Assim vivia no desejo de estar onde não estava. No dia 21 de Outubro, quando o general falou em designar alguém para delegado junto do destacamento de Denissov, tais foram os pedidos que ele lhe fez que este lhe não pôde recusar autorização de partir. Lembrando-se, porém, da loucura que Pétia cometera em Viazma, pois, em vez de seguir por onde o tinham mandado, se pusera a galopar para as linhas inimigas debaixo do fogo dos Franceses, disparando a pistola, proibiu-o, formal— mente, de tomar parte fosse em que operação fosse sob o comando de Denissov. Eis porque Pétia corara e se sentira embaraçado quando Denissov lhe perguntou se podia ficar junto dele. Antes de chegar à orla da floresta, dissera de si para consigo que ia voltar imediatamente, mas assim que viu os Franceses e Tikon e que soube que nessamesma noite, naturalmente, haveria um ataque, graças a mobilidade de ideias a que os jovens são sujeitos, resolveu que o seu general, a quem até ai respeitara, não valia grande coisa, pois era alemão, e que Denissov, esse, era um herói e que o capitão de cossacos também e que Tikon ia pelo mesmo caminho, e que seria uma vergonha abandoná-los naquela difícil emergência. Já era noite quando os três chegaram à casa do guarda. Na semi-obscuridade lobrigavam-se cavalos selados, cossacos, hússares, que armavam tendas na clareira ou acendiam fogueiras no fundo de um barranco para que os Franceses não vissem fumo. No vestíbulo da pequena isbá, um cossaco, de mangas arregaçadas, trinchava um cordeiro e, na sala viam-se três oficiais do destacamento de Denissov que preparavam uma mesa servindo-se de uma porta. Para se enxugar, Pétia despiu o uniforme molhado e pôs-se imediatamente a ajudar os oficiais a dispor a mesa para a ceia. Passados dez minutos, estava pronta a mesa com a sua toalha e os seus guardanapos. Havia vodka, um frasquito de rum, pão branco, sal e cordeiro assado. Abancado à mesa na companhia dos oficiais, Pétia partia à mão o cordeiro suculento e oloroso, cuja gordura lhe escorria pelos dedos, expandindo-se numa ternura infantil por toda a gente, certo de que todos sentiam o mesmo por ele. — Que acha, Vassili Fedorovitch? — perguntou a Denissov. — Acha que não faz mal que eu aqui fique até amanhã? — E, sem esperar resposta, ele próprio respondeu: — Sim, deram-me ordens para me informar, e é o que estou a fazer... Mas só lhes peço uma coisa, que me deixem ir ao ponto principal... Não preciso de recompensas... Mas gostaria... De dentes cerrados, lançou um olhar cheio de altivez à sua roda, erguendo a cabeça e fazendo um gesto ameaçador. — Sim, onde a batalha for mais acesa — confirmou Denissov, sorrindo. — Sim, por favor, dêem-me um comando qualquer, por mais insignificante que seja, que eu comande, pelo menos. Sim, que lhes custa? Ah! Quer a minha navalha? — continuou, dirigindo-se a um dos oficiais que se preparava para trinchar a carne. E puxou da navalha. O oficial achou-a muito bonita. — Fique com ela, faça favor. Tenho muitas iguais... — disse Pétia corando. — Ah! Santos Padres! Tinha-me esquecido completamente — exclamou, de súbito. — Tenho ali umas passas magníficas, sem grainhas, sabe. Temos um cantineiro novo. Que coisas óptimas ele tem! Comprei-lhe dez libras de passas. Estou habituado asguloseimas. Querem?... — E precipitou-se para o vestíbulo, à procura do seu cossaco, voltando daí a pouco com uma alcofa com umas cinco libras de passas. — Toca a comer, meus senhores, fazem favor de se servir. Não precisarão de uma cafeteira? — continuou, dirigindo-se ao capitão de cossacos — Comprei uma de primeira ordem ao meu cantineiro! Tem coisas tão bonitas! E é um homem sério. E isso é o mais importante. Vou mandar-vo-lo. Talvez as vossas pederneiras estejam gastas, isso acontece. Tenho algumas comigo. Ali, naquele saco, umas cem. Comprei-as baratíssimas. Façam favor, tirem as que quiserem, todas, se for preciso... De súbito calou-se, muito enleado, corando, como se se perguntasse se não estaria dizendo muita tolice. E relembrou tudo o que se passara horas atrás, procurando inteirar-se se não teria cometido outras tolices, A figura do tamborzito veio-lhe à memória. «Nós, aqui, que bem que estamos, mas ele, que será feito dele? Onde o teriam metido? Ter-lhe-iam dado de comer? Não lhe teriam feito mal?» Ao lembrar-se, porém, de que mentira a propósito das pederneiras, nada ousou perguntar a respeito dele. «Se eu lhes perguntasse, seriam capazes de dizer que era um garoto a perguntar por outro garoto!», disse com os seus botões. «Mas amanhã eu lhes direi se sou um garoto! Que vergonha haveria em perguntar por ele? Ora, tanto faz!» E, de súbito, corando muito e olhando bem para os oficiais, como para ver se eles não troçariam dele, acrescentou: — Dão-me licença que eu mande chamar o rapazito prisioneiro? Não lhe poderíamos dar qualquer coisa a comer?... Claro, pobre pequeno — contraveio Denissov, que nada tinha a censurar à ideia do moço oficial. — Chama-o. Chama-se Vincent Bosse. Chama-o. — Vou buscá-lo — disse Pétia. — Muito bem, muito bem, vai, anda. Coitado do pequeno! — repetiu Denissov. Pétia já ia a caminho da porta, porém voltou para trás, aproximou-se de novo dos oficiais e chegou-se a Denissov. — Consinta que o beije, meu amigo — exclamou. — Ah! Assim, sim, como é bonito da sua parte! E, depois de o beijar, saiu correndo. — Bosse! Vincent! — gritou no limiar da porta. — Quem chama, meu oficial? — respondeu uma voz na obscuridade.Pétia explicou que chamava o rapazito que fora feito prisioneiro nesse dia. — Ah! Vessionii! — exclamou o cossaco. Os cossacos de Vincent já o tinham feito nada menos que Vessionii enquanto os camponeses e os soldados lhe chamavam Vissénia. Em qualquer dos casos, a alusão à «Primavera» assentava como uma luva, na juventude do tamborzito (Vesna quer dizer «a Primavera», vessionú «primaveril». (N. dos T) .— Está a aquecer-se lá em baixo no acampamento. Eh! Vissénia! Vissénia! Vessionii! — gritavam vozes na obscuridade à mistura com a sua gargalhada. — Ah!, o garoto é manhoso! — exclamou um cossaco ao lado de Pétia. — Ainda agora lhe deram de comer, Aquilo é que era uma fome! Ouviram-se passos nas trevas, pés descalços que chapinhavam na lama e o tambor apareceu à porta da isbá. — Ah!, sois vós! — disse-lhe Pétia. — Quer comer? Não tenha medo, ninguém lhe faz mal. — E, timidamente, carinhosamente, pousou-lhe a mão no braço. — Entre, entre. — Obrigado, senhor — murmurou o garoto, numa voz hesitante e quase infantil, limpando os pés cheios de lama no limiar da porta. Pétia tinha vontade de lhe dizer muita coisa, mas não ousava. Ali, estava de pé, ao lado dele, no vestíbulo, sem saber o que havia de fazer. Por fim, pegou-lhe na mão e apertou-a entre as suas. — Entre, entre — repetia, em voz baixa e com todo o carinho. «Ah! Que poderei eu fazer por ele?», disse de si para consigo, ao abrir a porta e deixando que ele passasse adiante. Assim que o garoto entrou na sala, Pétia conservou-se afastado dele, pensando que naturalmente lhe não ficaria bem dar- lhe importância de mais. Limitou-se a apertar, na algibeira, o dinheiro que trazia consigo, pensando se não lhe ficaria mal passar-lho para as mãos. [VIII] Denissov mandou que dessem ao tamborzito vodka e um pedaço de cordeiro e que lhe vestissem um cafetã russo, para que ele se não confundisse com os demais prisioneiros, no intuito de o conservar no seu destacamento. Mas a atenção dePétia em breve se desviou do pobre pequeno graças à chegada de Dolokov. Ouvira falar muito da extraordinária bravura deste homem e da sua crueldade para, com os Franceses. Assim que ele entrou, nunca mais Pétia o perdeu de vista, procurando assumir ares importantes, de cabeça muito erguida, para não parecer indigno da companhia, O aspecto exterior de Dolokov impressionou o jovem oficial pela sua extrema correcção. Denissov envergava o tchekmene (Cafetã curto. (N. dos T.), usava a barba crescida e trazia ao peito uma imagem de Nicolau, o Taumaturgo. Tanto na sua maneira de falar como nos seus modos, procurava dar a entender que não pertencia ao exército regular. Pelo contrário, Dolokov, que outrora, em Moscovo, dava nas vistas com o seu trajo persa, apresentava-se agora como o mais elegante dos oficiais da Guarda. Escrupulosamente barbeado, vestia a túnica almofadada do seu regimento, com a cruz de S. Jorge na botoeira, e na cabeça trazia um gorro pequeno muito simples. Depois de despir o capote todo molhado, sem cumprimentar ninguém, aproximou-se de Denissov e imediatamente se pôs a falar do ataque. Este explicou-lhe quais as intenções dos grandes destacamentos quanto à captura do comboio, falou-lhe da missão de Pétia e da resposta que dera aos dois generais. Por fim, pô-lo ao corrente de tudo quanto sabia acerca do destacamento francês. — Está bem, Mas é preciso saber que tropas são estas e de quantos homens dispõem — observou Dolokov. — É preciso ir ver. Não nos devemos meter nisto sem sabermos ao certo quantos homens temos pela frente, Gosto de fazer as coisas com limpeza. Não haverá aqui alguém, entre os senhores oficiais, que esteja disposto a acompanhar-me ao acampamento inimigo? Tenho um uniforme francês a mais. — Eu, eu, eu acompanho-o! — exclamou Pétia, — Não é, preciso — atalhou Denissov — E, quanto a ti, não te deixarei sair daqui por nada deste mundo. — Que história é esta? — volveu Pétia — Porque não posso eu ir? — Porque é inútil. — Perdão, porque... porque... vou mesmo, e é que vou! Leva-me? — inquiriu, dirigindo-se a Dolokov. — E porque não?... — replicou este, distraidamente, pois estava a observar o tambor francês — Há muito que tens contigo este garoto? — perguntou aDenissov. — Aprisionaram-no hoje, mas nada sabe e resolvi conservá-lo ao pé de mim. — Ah! E os outros, onde os guardas? — inquiriu Dolokov. — Onde os guardo? Expeço-os contra recibo — volveu Denissov, muito corado. — E posso dizer que nenhuma morte me pesa na consciência. Pois não será mais simples evacuar trinta ou trezentos homens para a cidade, com uma boa escolta, a manchar a nossa honra de soldado? — Ora aí está uma dessas gentilezas que ficariam bem na boca deste condezito de dezasseis anos — volveu Dolokov, com um frio sorriso. — Mas tu há muito que te devias ter deixado disso. — Eu nada digo, insisto apenas em ir consigo. — Quanto a nós, amigo, já é tempo de pormos de lado todas estas lindas coisas — prosseguiu Dolokov, como se sentisse prazer especial em falar de um assunto que exasperava Denissov. — Vamos a ver porque ficaste com este? Naturalmente porque tiveste perna dele. E depois a gente sabe muitíssimo bem o valor que eles dão aos tais recibos. Remetes-lhes cem, e ao destino chegam apenas trinta. Ou morrem de fome ou matam-nos pelo caminho. Pois não dará o mesmo resultado deixarmo-nos de fazer prisioneiros? O capitão de cossacos, que piscava os olhos claros, aprovou com um aceno de cabeça. — Não discuto se o resultado é ou não o mesmo. Seja como for o que não quero é tomar essa responsabilidade. Achas tu que eles morrem da mesma maneira? É possível, mas não nas minhas mãos. Dolokov soltou uma gargalhada. — Julgas que não terão recebido mais de vinte vezes ordem para me apanharem? E o certo é que se nos apanhassem, a mim ou a ti, apesar de todos os teus sentimentos cavalheirescos, íamos acabar igualmente enforcados. — E após alguns momentos de silêncio: — E não ficamos por aqui. Precisamos de falar a sério. O meu cossaco que me traga a minha bagagem. Tenho dois uniformes franceses. Bom! — Vens então comigo, não é verdade? — perguntou a Pétia. — Vou, vou, está decidido — exclamou o rapaz, que fitara Denissov, corando muito. Durante a discussão dos dois oficiais acerca da maneira de tratar osprisioneiros, Pétia sentira-se embaraçado, embora não tivesse percebido muito bem o que eles pensavam, realmente, a respeito desses homens. «Se as pessoas de idade e experimentadas pensam assim. é que assim tem de ser, com toda a certeza», dizia ele com os seus botões. «Assim é que está certo. Mas é preciso que Denissov se não convença de que eu estou disposto a obedecer-lhe em tudo, que me pode dar ordens. Seja como for, hei-de acompanhar Dolokov ao acampamento francês. Se ele o pode fazer, porque não hei-de eu fazê-lo também?» A todas as admoestações de Denissov, Pétia replicou que também ele estava habituado a fazer as coisas como era mister, e não à maluca, e que de resto nunca pensava no perigo. — E a verdade, tem de o confessar. é que se não soubermos precisamente quantos soldados eles têm... arriscamo-nos a expor a vida de centenas de homens, e nós, nós somos apenas dois. Enfim, quero tanto ir que vou seja como for. E não procure impedir-me — acrescentou — porque então ainda seria pior. [IX] Depois de enfiarem os capotes franceses e de se cobrirem com as barretinas do exército napoleónico, Pétia e Dolokov dirigiram-se à clareira donde Denissov examinara o acampamento do inimigo, Assim que saíram da floresta, protegidos pelas trevas cerradas da noite, desceram até ao fundo do barranco. Ao chegarem aí, Dolokov disse aos cossacos que o acompanhavam que esperassem por ele ali, e a trote meteu pela estrada em direcção à ponte. Pétia, emocionadíssimo, cavalgava a seu lado. — Se eles nos atacarem, vivo é que me não apanham. Tenho a minha pistola — disse em voz baixa. — Não fales russo — ripostou Dolokov em voz baixa também. Nesse instante, nas trevas, soou o grito: «Qui vive?», ao mesmo tempo que se ouvia o engatilhar de uma espingarda. Pétia sentiu que o sangue lhe subia à cara e levou a mão à pistola. — Lanceiros do 6º — gritou Dolokov, sem travar a marcha do seu cavalo. A negra figura da sentinela destacava-se na ponte.— A senha. Dolokov refreou o cavalo e continuou a passo. — Diga-me cá, o coronel Gérard está aí? — perguntou. — A senha — repetiu a sentinela, sem responder e atravessando-se no caminho. — Quando um oficial faz a ronda, as sentinelas não pedem a senha... — exclamou Dolokov fora de si, arrojando o cavalo sobre a sentinela. — Pergunto-te se está cá o coronel. E sem esperar resposta da sentinela, que se afastara, indiferente, pôs-se a subir a ladeira a passo. Ao divisar a silhueta de um homem que atravessava a estrada, mandou-o parar para lhe perguntar onde estavam o comandante do regimento e os respectivos oficiais. O soldado, que levava um saco às costas, parou, aproximou-se do cavalo de Dolokov, passou-lhe a mão pelo lombo e contou, com a maior simplicidade e no tom mais amistoso deste mundo, que os oficiais estavam um pouco mais acima, na rampa, à direita, no pátio de uma quinta, que assim designou a casa senhorial. Dolokov prosseguiu estrada além. Dos dois lados, nos acampamentos, ouviam- se conversas em francês. Entrou no pátio da casa senhorial. Junto do portão desmontou, aproximou-se de uma grande fogueira em volta da qual um grupo de homens conversava em voz alta. Numa marmita, sobre as chamas, fumegava o rancho de um soldado, o qual, de quépi e capote azul, todo banhado pela luz da fogueira, remexia a panela com uma vareta de espingarda. — Oh!, é duro de roer — dizia um dos oficiais na sombra, do outro lado. — Este lhes dará o arroz, cambada — respondeu outro, rindo. Ambos se calaram ao ouvirem, no meio das trevas, os passos de Dolokov e de Pétia, que se aproximavam com os cavalos pela arreata. — Bom dia, meus senhores! — saudou Dolokov em voz clara e vibrante. Os oficiais agitaram-se no escuro e um deles, um alto, de pescoço esgalgado, deu a volta à fogueira para se aproximar. — É você, Clément? — exclamou ele. — Donde diabo...? — Mas não concluiu a frase, reconhecendo o engano em que caíra. Franziu as sobrancelhas e saudou Dolokov como desconhecido, que era, perguntando-lhe que desejava. Dolokov contou-lhe que ele e o seu camarada procuravam reunir-se ao seuregimento, e em seguida, dirigindo-se ao grupo, perguntou se eles não saberiam, porventura, onde se encontrava o 6.o de lanceiros. Ninguém sabia, e Pétia percebeu que os estavam examinando com hostilidade e desconfiança. Toda a gente se calou por momentos. — Se conta com a sopa da noite, chega tarde — disse, junto da fogueira, a voz de alguém que continha o riso. Dolokov respondeu que já haviam comido e que tinham de prosseguir no seu caminho aquela mesma noite. Entregou as rédeas do cavalo ao soldado que mexia o rancho e pôs-se de cócoras diante das chamas, ao lado do oficial do pescoço esgalgado. Este, mirando Dolokov com obstinação, perguntou-lhe mais uma vez a que regimento pertencia. Dolokov fingiu não ouvir e pôs-se a fumar por um cachimbo curto, francês, que retirara da algibeira enquanto perguntava aos oficiais se as estradas estavam em segurança, pois dizia-se que os cossacos andavam pelos campos. — Esses bandidos estão em toda a parte — replicou o oficial que estava perto da fogueira. Dolokov sustentou que os cossacos não eram perigosos senão para os retardatários como ele e o seu companheiro, mas que não seriam capazes de atacar os grandes destacamentos. Ninguém respondeu. «É agora que ele se vai embora», dizia Pétia com os seus botões, de pé diante da fogueira, escutando a conversa. Dolokov rompeu o silêncio para perguntar quantos homens tinham eles no batalha, quantos batalhões havia e quantos eram os prisioneiros. A propósito destes, observou: — Que raio de ideia trazer esses cadáveres a reboque. Era melhor fuzilar essa canalha. — E ao dizer isto, soltou uma gargalhada tão estranha que. Pétia, pensando que os franceses iam descobrir o embuste, deu um passo à retaguarda. Ninguém respondeu fosse o que fosse à gargalhada de Dolokov, e um dos oficiais na sombra, enrolado no capote estendido no chão, soergueu-se, e murmurou qualquer coisa ao ouvido de, um camarada. Dolokov ergueu-se então e chamou o soldado que segurava os cavalos. «Teremos cavalos ou não?», murmurou Pétia de si para consigo, aproximando- se de Dolokov. Os cavalos apareceram. — Bom dia, meus senhores — disse Dolokov.Pétia teria gostado de pronunciar «boa noite», mas foi-lhe impossível articular a palavra. Os oficiais sussurraram qualquer coisa entre si. Dolokov levou tempo a montar, porque o cavalo não havia maneira de estar quieto. Depois saiu a passo pelo portão do pátio. Pétia acompanhava-o, desejoso de se voltar para ver se não eram perseguidos, mas não ousava fazê-lo. Ao atingir a estrada, Dolokov, em vez de se meter pelos campos, seguiu ao longo da povoação. A determinada altura parou para escutar. «Estás a ouvir?», murmurou. Pétia reconheceu que se falava russo ali, e junto das fogueiras viu as silhuetas negras dos prisioneiros. Depois de terem descido até à ponte, cruzaram a sentinela que continuava de guarda, e nada lhes disse, alcançando em seguida o barranco onde os esperavam os cossacos. — Bom, agora adeus. Diz ao Denissov que lá o espero de madrugada, ao primeiro tiro — observou Dolokov, afastando-se. Pétia, porém, agarrou-o, por um braço. — Ah! É um herói! Ah! Que bem! Magnífico! Muito gosto de si! — Bom, bom — replicou Dolokov. Pétia, porém, não o largava, e Dolokov viu, no meio das trevas, que o rapaz se debruçava para ele, querendo beijá-lo. Dolokov beijou-o, rindo, e dando meia volta desapareceu no meio da noite. [X] No regresso à casa do guarda, Pétia encontrou Denissov no vestíbulo. Agitado, inquieto, furioso consigo próprio por tê-lo deixado partir, estava à espera dele. — Louvado seja Deus! Sim, louvado seja Deus! — repetia enquanto ia ouvindo o relato entusiasta de Pétia. — Diabos te levem, tiraste-me o sono! Graças a Deus, agora vai deitar-te. Ainda podemos dormir um bocado até de madrugada. — Não, não — discordou Pétia. — Não tenho sono. E se adormeço, já sei, não acordo mais. De resto, não costumo dormir antes das batalhas. Pétia permaneceu, pois, ainda algum tempo na isbá, recordando os pormenores da expedição e pensando no que iria suceder no dia seguinte. Depois, vendo que Denissov adormecera, levantou-se e saiu. Cá fora as trevas eram cerradas. A chuva deixara de cair, mas as folhas dasárvores gotejavam. Ali perto via-se o vulto negro das tendas dos cossacos e dos cavalos atados uns aos outros. Lá para trás desenhava-se o perfil de dois carroções rodeados de cavalos e na ravina as fogueiras apagavam-se. Nem todos os cossacos e hússares estavam a dormir: aqui e ali. à mistura com o ruído das gotas de água que caíam e do mastigar dos cavalos que roíam a sua aveia, ouviam-se vozes murmurar. Pétia saiu do vestíbulo, perscrutou a obscuridade e aproximou-se dos carroções. Estendido sobre um deles um homem ressonava, enquanto à sua volta cavalos selados comiam aveia. Nas trevas reconheceu o seu cavalo, o Karabak, e aproximou-se dele. — Eh, Karabak, amanhã temos que fazer — disse-lhe, beijando-lhe o focinho. — Ainda está acordado? — murmurou o cossaco estendido em cima do carroção. — Estou, mas escuta... Chamas-te Likatchov, não é? Acabo de chegar. Fomos visitar os Franceses. E Pétia contou ao cossaco, por miúdo, não só a expedição em que tomara parte, mas porque participara nela e como era preferível arriscar a vida a deixar que os outros fossem às cegas para o combate. — Sim, sim, mas era melhor que dormisse — observou o cossaco. — Não, estou habituado — replicou ele. — As pederneiras da tua pistola não estão gastas? Se quiseres algumas, tenho aqui. Se precisas, toma lá. O cossaco ergueu a cabeça e espreitou cá para fora, para melhor examinar o que se passava. — Gosto de fazer as coisas com todo o cuidado — continuou Pétia. — Há alguns que não tomam precauções e depois é tarde. Não gosto disso. — Tem razão — volveu o cossaco. — E olha, espera lá, rapaz, afia-me o sabre, se queres. Está rombo... — Mas, para não mentir, calou-se. Nunca mandara afiar o sabre. — Posso contar contigo? — Claro, porque não? Likatchov levantou-se, remexeu no fundo da carroça, e daí a pouco Pétia ouvia o ruído bem marcial do aço contra a pedra de afiar. Trepou para cima do carroção e sentou-se. O cossaco continuava a sua tarefa. — E os rapazes, estão todos a dormir? — perguntou Pétia. — Uns dormem, outros não.— E o garoto, que está ele a fazer? — Vessionii? Está lá adiante, deitado no vestíbulo. Depois de tanto medo que teve, adormeceu. Que contente ele estava! Pétia ficou depois calado por muito tempo, sempre de ouvido à escuta. Ouviram-se passos na escuridão e um vulto apareceu. — Que estas tu a afiar? — perguntou o recém-chegado, aproximando-se. — O sabre deste senhor. — Muito bem — replicou o homem que Pétia supôs ser um hússar. — Não haverá por aqui uma tigela? — Há, sim, ali, ao pé da roda. O hússar pegou na tigela. — Não falta muito para amanhecer — disse ele, bocejando, enquanto se afastava. Pétia sabia que estava no meio da floresta, entre os soldados de Denissov, a uma versta da estrada real. Sabia que estava sentado em cima de uma carroça apanhada aos Franceses, à volta da qual havia cavalos amarrados, sabia que ali ao pé estava o cossaco Likatchov tratando de lhe afiar o sabre, sabia que aquela mancha negra lá adiante era a casa do guarda e que a mancha vermelho-clara em baixo era a fogueira do bivaque que se apagava, sabia que o homem que viera buscar a tigela era um hússar com sede, Sabia tudo isto, e era como se de nada quisesse saber. Flutuava num reino encantado onde nada se parecia com a realidade. Talvez que aquela mancha preta fosse, de facto, a casa do guarda, mas também podia ser uma caverna que se abria até às entranhas da Terra. E talvez que efectivamente aquela mancha encarnada fosse, realmente, lume, mas também podia ser o olho de um monstro enorme. Bem podia ser estar sentado numa carroça, mas talvez aquilo não fosse uma carroça, mas uma torre altíssima, do alto da qual, se porventura lhe acontecesse vir a cair, voaria na direcção da terra durante um dia, durante um mês, sem nunca mais poder chegar ao chão. Era possível que ao pé da carroça apenas estivesse o cossaco Likatchov, mas também podia acontecer que esse homem fosse o homem melhor, mais valente, mais extraordinário, maior, que existisse no mundo, um homem que ninguém conhecesse. E também podia ser que houvesse por ali um hússar procurando água no barranco, mas também podia acontecer que se tivesse desvanecido e desaparecido e ninguém o tivesse visto.Nada o surpreendia mais do que o que os seus olhos viam. Ei-lo num mundo encantado onde tudo era possível. Ergueu os olhos ao céu. E o céu, tal qual como a terra, era um sítio encantado. Iluminava-se e no topo das árvores corriam nuvens rápidas que pareciam descobrir as estrelas, As vezes parecia que o firmamento se limpava por inteiro e via-se então aparecer um céu negro e puro. Ora aquelas manchas escuras lhe pareciam nuvens, ora a abóbada celeste se lhe afigurava muito alto por cima da sua cabeça, ora descer de tal sorte que lhe seria possível tocar-lhe com a ponta dos dedos. Pétia fechou os olhos e sentiu que a cabeça lhe andava à roda Ouviam-se as gotas de água que continuavam a cair, as conversas sussurradas, os cavalos a escarvar o chão e a agitar-se, algures o ressonar de alguém. Zig, zig, zig.... fazia o aço do sabre que o cossaco afiava e de súbito Pétia ouviu uma orquestra harmoniosíssima, que tocava um hino qualquer desconhecido e de uma solene suavidade. Como Natacha, e ainda mais que Nicolau, também ele gostava muito de música, mas nunca pensara aprender a tocar, por isso os motivos que espontaneamente lhe chegaram ao ouvido lhe pareciam tão novos. E a música era cada vez mais vibrante. A melodia ampliava-se como se de um instrumento fosse passando a outro. Era uma fuga, mas Pétia não fazia a mais pequena ideia disso. Cada um dos instrumentos, ora como se fossem violinos, ora como se fossem trombetas, embora de som muito mais fino e muito mais puro, tocava o seu motivo próprio, que, sem chegar ao fim da sua modelação, se fundia noutro, que principiava por assim dizer o mesmo motivo, e depois ainda com outro e com outro ainda, confundindo-se todos, por fim, para se separarem e voltarem a confundir-se num cântico religioso e solene ou numa ária triunfal clara e brilhante. «Ah!, mas estou a sonhar», dizia Pétia de si para consigo, perdendo por assim dizer o equilíbrio. «São os meus ouvidos que ressoam. Ou talvez seja a minha orquestra própria a tocar. Então, mais uma vez. Vamos, minha orquestra! Vamos!..» Fechou os olhos. E de todos os lados, como se viessem de muito longe, vibravam acordes em uníssono ou se dissipavam, para de novo se fundirem, e outra vez o hino recomeçava, solene e cheio de suavidade. «Ah! Que maravilha! E pelo tempo que quero e como quero!», dizia de si para consigo. E tentava reger aquela imensa orquestra. «Mais piano, agora mais piano, até deixar de se ouvir.» E os sons obedeciam-lhe. «Vá, agora mais alto, mais alegre. Mais, mais, mais alegre.» E de desconhecidas profundezas irradiavam acordes largos e magníficos. «E agora, vós, as vozes!», comandava ele. E vozes de homem chegavam da distância, e em seguida vozes de mulher, e essas vozes iam crescendo, pouco a pouco, até atingirem tinia imponente vibração. Pétia sentia-se ao mesmo tempo temeroso e fascinado com aquela surpreendente beleza. O canto alargava, transformando-se numa solene marcha Triunfal, enquanto as árvores continuavam a gotejar, o aço a ranger e os cavalos a relinchar e a escarvar o chão, sem que nada perturbasse o coro, mas como se fizesse parte nele. Pétia não saberia dizer o tempo que isto teria durado. Sentia um infinito prazer, estava como que deslumbrado e só lamentava não poder partilhar com outro tudo quanto experimentava. Foi a voz afável de Likatchov que o acordou. — Aqui o tem, Excelência. Pode rachar um francês ao meio. Pétia despertou do seu torpor. — Já é manhã, já é dia! — exclamou ele. Agora já se viam os cavalos, até então invisíveis. Através dos ramos despidos de folhas transparecia uma claridade húmida. Pétia espreguiçou-se, saltou do alto da carroça, puxou de um rublo da algibeira e deu-o a Likatchov. Depois brandiu o sabre, para o experimentar, e enfiou-o a seguir na bainha. Os cossacos, entre— tanto, selavam os cavalos. — Aí vem o comandante — exclamou Likatchov. Denissov, que saía da isbá, chamou Pétia e deu-lhe ordem de se preparar para partir. [XI] Rapidamente, na semi-obscuridade, cada um lançou mão do seu cavalo, ajustou o selim e ocupou o seu lugar. Denissov, de pé junto da casa do guarda, dava as suas ordens. A infantaria, patinhando na lama, foi a primeira a partir, desaparecendo daí a pouco, por entre as árvores, no meio da neblina matinal. O capitão de cossacos deu as instruções aos seus homens. Pétia, com o cavalo pela arreata, aguardava, impaciente, o momento de montar. Embora tivessemergulhado a cara em água fria, sentia no rosto, e especialmente nos olhos, um ardor febril. Já não tinha arrepios ao longo da espinha, mas todo o seu corpo se agitava em movimentos nervosos. — Está tudo pronto? — interrogou Denissov. — Venham os cavalos! Os cavalos apareceram. Denissov repreendeu o seu cossaco porque a sela estava mal afivelada, depois saltou para a, garupa do ginete. Pétia meteu o pé no estribo. Como de costume, o cavalo procurou mordisca-lo na perna, mas ele, leve como uma pluma, saltou-lhe para cima e lançando um golpe de vista aos hússares que principiavam a mover-se na sua retaguarda aproximou-se de Denissov. — Vassili Federovitch, não se esquece de me dar um comando, não é verdade? Peço-lhe — disse ele. Dir-se-ia que Denissov se esquecera da existência de Pétia. Relanceou-lhe um olhar. — Só te peço uma coisa — disse-lhe com severidade — que me obedeças e que não metas o nariz onde não és chamado. Durante o resto do percurso, Denissov não voltou a trocar palavra com ele, cavalgando em silêncio. Principiava a clarear por sobre os campos quando chegaram à orla da floresta. Denissov disse qualquer coisa em voz baixa ao capitão de cossacos e os seus homens desfilaram diante deles. Depois de eles passarem, Denissov pôs-se a descer a encosta atrás da coluna, Escorregando e retesando as patas, atingiram os cavalos o fundo do barranco. Pétia ia ao lado de Denissov. Cada vez tremia mais. O dia ia raiando e a neblina apenas envolvia agora os objectos muito distantes. Ao chegar ao fundo, Denissov, voltando-se, fez um aceno de cabeça ao cossaco mais perto dele. — O sinal! — ordenou. O cossaco ergueu a mão e um tiro ressoou. No mesmo instante, os cavalos despediram a galope, enquanto se ouviam gritos de todos os lados e novos tiros ressoavam. No mesmo momento, igualmente, Pétia esporeou o cavalo e soltou-lhe as rédeas, e sem ouvir Denissov, que o chamava, aos gritos, debandou a galope. Afigurara-se-lhe, de súbito, no momento em que ressoou o primeiro tiro, que tudo ficara claro como se fosse dia alto. Alcançou a ponte. Os cossacos galopavam diante dele. Em cima da ponte esbarrou com um retardatário e continuou galopando. Por diante dele, alguns homens, franceses, naturalmente, passavam, assodados, do lado direito da estrada para e, lado esquerdo. Um deles estatelou-se na lama mesmo debaixo das patas do seu cavalo. A porta de uma casa um grupo de cossacos fazia fosse o que fosse. Um grito terrível saiu do grupo. Pétia, que passava nesse instante a galope, a primeira coisa que viu foi o rosto pálido e convulsionado de um francês que sustinha a vara de uma lança apontada ao peito. «Hurra!... Rapazes!...», gritou Pétia. E esporeando o cavalo, excitado pela corrida, meteu pela rua da povoação. Diante dele ressoaram tiros. Cossacos, hússares e prisioneiros russos esfarrapados corriam pelos dois lados da rua, soltando gritos estridentes e ininteligíveis. Um francês, de cabeça descoberta, o rosto vermelho e crispado, de capote azul, defendia-se dos hússares com a baioneta. Quando Pétia chegou junto dele, já estava prostrado no chão. «Outra vez tarde de mais», disse de si para consigo o moço oficial, num relâmpago, e dirigiu-se para o ponto onde a fuzilaria era mais nutrida. No pátio da casa senhorial em que estivera nessa mesma noite com Dolokov o tiroteio crepitava. Os Franceses, entrincheirados atrás da espessa sebe do jardim, visavam os cossacos amontoados junto da porta principal. Assim que chegou ali, Pétia viu logo, através da fumarada. Dolokov, o rosto pálido e esverdeado, que gritava aos seus homens: — Cerquem-nos pelo outro lado! Esperem a infantaria! — Quê? Esperar?... Hurra! — exclamou Pétia e, sem mais detenças, avançou para o local onde o tiroteio e a fumarada eram maiores. Uma salva se ouviu, balas perdidas assobiaram e vieram cravar-se aqui e ali. Dolokov e os cossacos enfiaram, atrás de Pétia, pelo portão do pátio. Os Franceses, no meio de uma densa fumarada, atiravam fora as armas e saíam da sebe para se precipitar em na direcção dos cossacos, enquanto outros galgavam a encosta em direcção ao tanque. Pétia continuava a galopar pelo pátio dentro, mas abandonara as rédeas, os braços gesticulavam-lhe de maneira estranha e ia tombando cada vez mais para cima da sela. O cavalo, que pousara as patas sobre os carvões ardentes de uma fogueira visível graças à claridade da manhã, parou bruscamente e o cavaleiro foi precipitado no chão, Os cossacos ainda viram agitar- se os braços e as pernas de Pétia enquanto a cabeça lhe descaía sem vida. Uma bala atravessara-lhe o crânio. Depois de trocar algumas palavras com o comandante do destacamento francês que saíra do edifício com um lenço amarrado à ponta da espada, em sinalde rendição, Dolokov desmontou e aproximou-se de Pétia, estendido no chão, imóvel, com os braços em cruz. — Este já tem a sua conta — disse, franzindo o sobrecenho. E foi ao encontro de Denissov, que nessa altura aparecia à porta do pátio. — Morto? — exclamou, ao ver o corpo de Pétia estendido no chão e evidentemente sem vida. — Já tem a sua conta — repetiu Dolokov, como se sentisse prazer em empregar essa expressão, e seguiu na direcção dos prisioneiros que os cossacos cercavam. — Nada de prisioneiros! gritou ele para Denissov. Denissov não respondeu. Aproximou-se de Pétia, desmontou, e de mãos trémulas voltou para si o rosto do moço, empapado em sangue e lama, já de uma palidez cadavérica. «Estou habituado às guloseimas, óptimas passas, tomem-nas todas... » Lembrava-se das palavras dele Os cossacos olhavam-no estupefactos: soluços em que havia fosse o que fosse dos uivos de um cão lhe saíam do peito, enquanto desviava a cabeça e, cambaleante, se aproximava da sebe para se segurar de pé. Entre os prisioneiros russos libertos por Denissov e Dolokov encontrava-se Pedro Bezukov. [XII] As autoridades francesas não tinham tomado novas disposições para o transporte do destacamento de prisioneiros de que fazia parte Pedro durante a retirada. No dia 22 de Outubro já não se encontrava com as tropas com que saíra de Moscovo. Metade do comboio de biscoitos que os seguira durante as primeiras jornadas fora pilhada pelos cossacos e a outra metade seguira adiante. Dos cavaleiros que abriam a marcha, nem falar: todos tinham desaparecido, A artilharia, que nos primeiros dias constituíra a guarda avançada, fora substituída pelas imensas bagagens do marechal Junot, que eram escoltadas pelos westfalianos. Atrás dos prisioneiros vinham as bagagens da cavalaria. A partir de Viazma, as tropas, que até aí marchavam em três colunas, transformaram-se num verdadeiro rebanho. Os indícios de desorganização quePedro observara já durante a primeira jornada eram agora evidentes. A estrada, de um lado e outro, estava juncada de cadáveres de cavalos; soldados esfarrapados, retardatários de diversas armas, que se sucediam continuamente, ora se reuniam à coluna em marcha, ora ficavam de novo para trás. Por várias vezes, durante a marcha, houvera rebates falsos. Os soldados da escolta pegavam nas armas, disparavam ao acaso, fugiam a mais não poderem, esbarrando uns nos outros, e depois tornavam a formar, acusando-se mutuamente dos seus loucos terrores. O depósito da cavalaria, os prisioneiros e as bagagens de Junot, que compunham a coluna, formavam ainda uma espécie de todo, mas esse mesmo todo ia-se desfazendo rapidamente. O depósito, que de princípio era formado por cento e vinte viaturas, estava reduzido a sessenta no máximo: todas as outras tinham sido pilhadas ou abandonadas. Algumas das viaturas das bagagens de Junot também se haviam perdido. Três, pelo menos, tinham sido assaltadas por retardatários do corpo de exército de Davout. Pedro percebera, pelas conversas dos alemães, que esse comboio era guardado com mais cuidado que o dos prisioneiros e que um soldado que fazia parte da escolta, um alemão, fora fuzilado por ordem do marechal, por lhe terem encontrado uma colher de prata com as suas insígnias. Mas o grupo mais reduzido era o dos prisioneiros. Dos trezentos e trinta homens que o formavam à partida de Moscovo, restavam agora menos de cem. E causavam maior embaraço às tropas que os escoltavam que o depósito de cavalaria ou as bagagens de Junot. Esses soldados compreendiam muito bem que as selas de cavalaria ou as colheres do Sr. Marechal podiam tentar este ou aquele, mas para que estarem de sentinela, eles, cheios de fome e de frio, a esses russos, esfomeados e transidos como eles, que iam ficando pelo caminho ou enregelavam nos acampamentos e contra os quais havia ordem de fuzilamento? Eis o que não podiam compreender e os descoroçoava. Eles, tia mesma penosa condição, tinham medo de se deixar comover diante desses desgraçados, agravando a sua própria situação, e esse o motivo por que os tratavam cada vez mais severamente. Em Dorogobuje, enquanto os soldados da escolta, depois de fecharem os prisioneiros numa cavalariça, foram pilhar as lojas, alguns dos cativos abriram um buraco na parede e fugiram. Apanhados daí a pouco, eram passados pelas armas. O regime fixado na altura da saída de Moscovo, segundo o qual os oficiaisdeviam estar separados dos soldados, há muito fora abolido. Todos os que podiam caminhar seguiam juntos, e Pedro, após a terceira jornada, voltara a encontrar-se com Karataiev e o seu cãozito arruivado, de pernas tortas, que o adoptara como dono. Dois dias após a partida de Moscovo, Karataiev fora de novo acometido p(,.Ias febres que o tinham levado ao hospital e à medida que piorava Pedro afastava-se dele instintivamente. Não dava muito por isso, mas o certo é que devia fazer um grande esforço sobre si mesmo para se aproximar dele, os gemidos do desgraçado quando se deitava no fim da jornada e o cheiro acre que exalava afastavam Pedro e tornavam menos íntimas as suas relações. Enquanto estivera fechado no abarracamento, Pedro adquirira a convicção, não racional, mas graças ao sentimento íntimo de todo o seu ser, de que o homem nascera para a felicidade, de que a felicidade estava nele, homem, na satisfação das suas tendências naturais, e de que todas as desgraças eram antes consequência de excessos que propriamente de privações. Mas depois daquelas três últimas semanas de marcha, nova e consoladora verdade se lhe revelara, a saber, que neste mundo nada há de verdadeiramente terrível. Assim como o homem nunca consegue ser perfeitamente feliz e livre, também não há situação alguma em que seja completamente infeliz e escravo, Assim como há limite para o sofrimento, também há limite para a liberdade, e esses limites tocam-se mutuamente. Agora sabia que o homem que sofre porque, deitado em cama de rosas, o magoa uma ruga das suas pétalas, era tão infeliz como ele próprio, dormindo na terra húmida e nua, com frio por um lado e calor pelo outro. Lembrava-se de que quando, outrora, enfiava nos pés uns escarpins de baile muito apertados sofria tanto ou mais que actualmente, que caminhava descalço, pois as botas há muito as não podia calçar e tinha os pés cobertos de pústulas. Sabia que na altura do seu casamento, na aparência perfeitamente livre, não era mais livre que neste momento, que passava a noite fechado numa cavalariça. De todos os sofrimentos de que mais tarde se lembrava, e então o deixavam quase insensível, o pior fora o ver os pés cheios de feridas e crostas. A carne de cavalo agradava-lhe e era nutritiva; essa espécie de sabor a pólvora do sal de nitro empregado em vez do sal propriamente dito era mesmo agradável; o frio não era muito intenso: de dia tinham sempre calor durante as marchas e à noite acendiam fogueiras; os piolhos que o devoravam aqueciam-no.Só uma coisa o fizera sofrer realmente nos primeiros tempos: os pés. Na segunda jornada, ao examinar as feridas ao clarão das fogueiras, dissera de si para consigo que não poderia dar mais um passo; mas quando os companheiros se puseram a caminho lá os foi seguindo, embora coxeando, e assim que os pés lhe aqueceram não mais os sentiu, embora ficasse aterrado quando à noite tornou a olhar para eles. E decidiu não lhes pôr mais a vista em cima e pensar noutra coisa. Só agora, realmente, sabia até que ponto o homem pode resistir e quanto valia o poder de distracção que lhe foi dado, espécie de válvula de segurança das caldeiras a vapor para quando a pressão ultrapassa a normal. Não queria ver nem ouvir fuzilar prisioneiros retardatários, embora para cima de cem já lá ficassem para trás. Já não pensava em Karataiev, que, de dia para dia mais fraco, não tardaria, evidentemente, a ter o destino dos demais. E nele próprio ainda pensava menos. Quando mais difícil se tornava a situação, quando mais sombrio se lhe antolhava o futuro, mais ele se desprendia de tudo o que o cercava e mais suaves e consoladores eram os seus pensamentos, as suas recordações e os seus devaneios de imaginação. [XIII] A 22, por volta do meio-dia, subia Pedro uma ladeira coberta de lama escorregadia, atento às irregularidades do terreno e aos sítios em que punha os pés. De quando em quando erguia os olhos para o grupo dos companheiros e de novo voltava a pousá-los no chão. Não assistia a um espectáculo novo. Sierii, o cachorrito das pernas tortas, pulava pela berma da estrada, e de vez em quando, para mostrar ligeireza e contentamento, erguia uma das patas traseiras e trotava nas outras três, voltando daí a pouco ., trotar nas quatro para ladrar aos corvos que pousavam em cima dos cadáveres. Sierii sentia-se ali muito mais feliz e contente que em Moscovo. Por toda a parte havia cadáveres de cavalos e de homens, em variado estado de decomposição, em que ele podia saciar-se à vontade, e o trânsito contínuo das tropas, mantendo os lobos a distância, permitia-lhe refastelar-se. Desde manhã que chovia, e não havia esperança de deixar de chover, pois,mesmo quando o céu clareava, era para chover ainda mais, após uma breve pausa. A estrada, alagada, não podia absorver mais água e as valetas eram verdadeiros rios. Pedro, de olhos no chão, à medida que caminhava, contava pelos dedos, de três em três passos. Para si mesmo, pensando na chuva, dizia: «Vamos, vamos, mais, mais, continua.» Dir-se-ia já não ter em que pensar, mas na realidade a sua alma cada vez mergulhava mais fundo em pensamentos graves e consoladores. Eis a subtil lição que extraía da conversa da véspera com Karataiev. Na véspera, durante o descanso da noite, transido de frio junto de uma fogueira apagada, Pedro levantara-se e aproximara-se da fogueira vizinha, que ardia melhor. Junto dela, Platão, envolto na sua capa, como um padre na sua casula, contava aos soldados, na sua voz de enfermo, cheia e agradável, mas fraca, uma história que Pedro já conhecia. Passava da meia-noite. Era , hora em que lhe descia o febrão e o deixava habitualmente mais animado. Assim que Pedro se aproximou da fogueira, ouviu a voz débil do pobre homem e lhe viu o lastimoso rosto vivamente iluminado, sentiu confranger-se-lhe o coração. Quis afastar-se, tanto o afligia o estado do desgraçado, mas, como não havia outra fogueira acesa, acocorou-se ali mesmo, procurando não olhar para ele. — E então, como vai essa saúde? — perguntou-lhe Pedro. — A saúde? Chorarmos a nossa saúde não impede que Deus nos dê a morte — respondeu Karataiev, que logo continuou a sua história. — E aqui tens, meu amiguinho — prosseguiu, com um sorriso que lhe iluminava o pálido e magro rosto e os olhos brilhantes. — Aqui tens, meu amiguinho... Há muito que Pedro conhecia aquela história. Karataiev contara-lha cinco ou seis vezes, sempre com grande satisfação. Mas, embora a conhecesse muito bem, dir-se-ia ouvi-la pela primeira vez. A animação contida do narrador comunicava-se- lhe a ele, Era a história de um velho mercador que vivia no meio dos seus, honestamente e no temor de Deus. Certo dia, com um dos seus camaradas, dirigiu- se à, feira de Makarié. Pernoitaram numa estalagem, e no dia seguinte o seu companheiro foi encontrado morto e roubado. Debaixo da almofada do honesto mercador encontraram uma faca cheia de sangue. Julgaram-no, flagelaram-no, arrancaram- lhe as narinas «como era de justiça e de acordo com as leis estabelecidas»,acrescentava, Karataiev, e por fim foi enviado para as galés. -...E aqui tens, meu amiguinho. — Nesta altura da história que Pedro apareceu. — Passaram dez ou mais anos, E o velho nas galés, obediente a tudo, sem fazer mal a ninguém. Só pedia a Deus que o levasse. Pois bem! — Uma noite os condenados reuniram-se, como nós neste momento. O velhinho estava com eles. E puseram-se a contar uns aos outros porque tinham sido condenados e porque eram culpados perante Deus. ’rodos contaram a sua história: um deles matara um homem, outro, dois; este era incendiário, aquele, servo fugitivo. Interrogaram o velho: «E tu, avô, porque padeces?» «Eu, meus irmãos», disse ele, «eu sofro pelos meus pecados e pelos pecados dos outros, E a verdade é que não matei nem furtei o que era de outros, muito pelo contrário, costumava dar aos pobres. Eu, meus irmãos, era mercador e tinha o meu pé-de-meia.» Eis, palavra por palavra, o que ele lhes disse. E contou-lhes, por miúdo, tudo o que se passara, «Por mim», disse- lhes ele, «não me queixo. Isto só quer dizer que Deus me escolheu. Só tenho pena de uma coisa, da minha velha e dos meus filhos.» E então pôs-se a chorar. E eis que por acaso, no meio deles, está o homem que matara o mercador. «Onde foi isso, avó?», inquiriu ele. «Há quanto tempo? Em que mês?» — E o velho deu conta de tudo. O coração do outro confrange-se-lhe. Eis que se aproxima do velho e, zás, ajoelha-se-lhe aos pés. «É por minha causa», diz ele, «é por minha causa, velho, que aqui estás. Podem crer, rapazes, este homem está inocente. Fui eu», confessou, «que matei o homem e escondi a faca debaixo da almofada enquanto ele dormia. Perdoa-me, avô, perdoa-me em nome de Cristo!» Karataiev calou-se, os olhos fitos na chama, sorrindo docemente. Depois ajeitou as achas. — E o velho disse: «Deus te perdoará: de resto, todos somos pecadores diante de Deus. É pelos meus pecados que sofro.» E ele próprio se pós a chorar amargamente. E que pensas tu, meu falcãozinho — acrescentou Karataiev, cujo rosto se iluminava por uma espécie de sorriso de triunfo, como se, no que tinha a dizer agora, estivesse todo o encanto e todo o valor da sua história. — Que te parece? o verdadeiro assassino foi confessar-se às autoridades. «Matei», disse ele, «matei seis almas humanas» — era um grande malfeitor — «mas a que me mete mais dó é a deste pobre velho. Não quero que ele chore por minha causa.» Escreveram tudo num papel e mandaram esse papel para a justiça, Era muito longe, foi preciso muito tempo para que o tribunal resolvesse, para queescrevessem todos os papéis que eram precisos, como as autoridades costumam fazer, claro está. A questão foi até à presença do czar. Por fim veio o ucasse do imperador: «Ponha-se o mercador em liberdade e dê-se-lhe uma recompensa, de acordo com o que foi resolvido.» Chegou o papel. Puseram-se à procura do velho. Onde está esse velho condenado inocentemente? Chegou o papel do czar. Procuram. — Aqui o queixo de Karataiev teve um tremor convulsivo. — Deus já lhe tinha perdoado. Morrera. Pois é o que te digo, meu falcãozinho — concluiu ele; por muito tempo, calado, sorrindo, ficou a olhar o espaço diante dele. Não era a história em si, mas o seu misterioso significado e aquela serena exaltação que iluminava o rosto de Karataiev enquanto ele falava, o misterioso significado dessa exaltação, era tudo isso que enchia agora a alma de Pedro de uma felicidade indefinível. [XIV] — A postos! — gritou, de, súbito, uma voz. Uma alegre agitação se produziu entre os prisioneiros e os soldados da escolta, na esperança de um acontecimento importante e feliz. Por todos os lados se ouviram vozes de comando, e à esquerda da coluna apareceram, galopando, cavaleiros bem vestidos, montados em bons cavalos. Todos os rostos exprimiram a tensão que em geral se produz aquando da chegada de grandes personalidades. Os prisioneiros amontoaram-se a um lado para deixar a estrada desimpedida. Os soldados da escolta alinharam: — O imperador! O imperador! O marechal! O duque! Mal acabara de desfilar a escolta, chegava uma carruagem tirada por cavalos cinzentos, no meio de grande fragor. Pedro viu, à passagem, uma figura de rosto sereno, cheio e branco, com um bicorne na cabeça. Era um dos marechais. O seu olhar deteve-se na alta estatura de Pedro que sobressaía no meio da multidão, e, pela maneira como franziu as sobrancelhas e virou a cara, a prisioneiro julgou perceber que procurava ocultar um sentimento de piedade. O general comandante do depósito, muito corado e cara de susto, esporeou o cavalo para seguir a carruagem. Alguns oficiais formaram grupo e os soldados juntaram-se em torno deles. Todos pareciam perturbados e inquietos.— Que é que há? Que disse ele? — repetiam. Enquanto o marechal passava, como os prisioneiros se tinham aglomerado, Pedro viu Karataiev, em quem ainda não pusera os olhos nessa manhã. Embrulhado no capote, estava sentado, encostado a um álamo. No seu rosto, com a mesma expressão de enternecida suavidade que tinha na véspera ao contar a sua história, havia agora um calmo sorriso. Fitava Pedro com os seus bondosos olhos redondos velados de lágrimas, e via- se que o chamava, como se lhe quisesse falar. Mas Pedro tinha medo de si mesmo. Fingiu não ver esse olhar e desviou a cara apressadamente. Quando a coluna retomou a marcha, Pedro olhou para trás. Karataiev continuava sentado à beira da estrada, encostado ao álamo; dois franceses, apontando-o, diziam qualquer coisa entre si. Não mais se voltou e subiu a ladeira a coxear. Lá para trás, para o sítio onde estava Karataiev, um tiro soou. Ouviu-o nitidamente, mas nesse mesmo instante lembrou-se de que quando o marechal aparecera calculava ele o número de jornadas que ainda teriam até Smolensk. Voltou aos seus cálculos. Dois soldados franceses, um dos quais com a espingarda ainda fumegante, passaram por ele a correr. Muito pálidos, enquanto um deles o olhava com timidez, Pedro descobriu-lhe no rosto a mesma expressão que vira estampada na cara do soldado aquando da execução dos incendiários. E Pedro reconheceu-o: era o mesmo que na antevéspera queimara a camisa estando a enxugá-la na fogueira do bivaque e que fora troçado pelos camaradas. Lá para trás, para onde ficara Karataiev, um cão uivou. «Porque está aquele imbecil a uivar?», disse Pedro com os seus botões. Os soldados prisioneiros que marchavam a seu lado não voltaram a cabeça, como ele, para onde soara o tiro e depois o uivo do cão. Uma expressão sinistra se lhes pintava na cara. [XV] O depósito de cavalaria, os prisioneiros e as bagagens do marechal fizeram alto na aldeia de Chamchevo. Toda a gente se juntou em volta dos bivaques. Pedro aproximou-se de uma das fogueiras, comeu um pedaço de carne de cavalo, deitou-se, de costas para a fogueira, e adormeceu imediatamente. Mergulhou numsono tão pesado como em Mojaisk, depois da batalha de Borodino. Tal como então, também agora os acontecimentos reais se confundiram com visões imaginárias, e uma voz, a sua própria voz ou a de qualquer outra pessoa, repetiu-lhe as mesmas frases que ouvira nessa altura. — A vida é tudo. A vida é Deus. Tudo vai e vem, tudo se move, e esse movimento é Deus. E enquanto há vida, há a satisfação de reconhecermos a divindade. Amar a vida é amar a Deus. O mais difícil e meritório é amar a vida nas suas dores, nos seus sofrimentos imerecidos. «Karataiev!» Esse nome surgiu-lhe de súbito no pensamento, e de súbito viu, como se estivesse vivo, um velho mestre, de que há muito se esquecera, que na Suíça lhe ensinara geografia. «Espera», dizia-lhe o velho, mostrando-lhe o globo terrestre. Esse globo era uma esfera viva, oscilando e sem contornos definidos. Toda a sua superfície era formada por gotas de água muito uni— das umas às outras, e essas gotas de água evoluíam, deslocavam-se, ora unindo-se numa gota mais grossa, ora dividindo-se de novo. Cada gota procurava dilatar-se, ocupar o maior espaço possível, mas, como as outras faziam o mesmo, apertavam-na, obrigando-a a desaparecer, por momentos, e misturando-se com ela outras vezes. «Eis a imagem da vida», dizia-lhe, o velho. «Como é simples e claro», pensava Pedro. «Com o não compreendi eu há mais tempo?» Deus está no centro e cada uma das gotas tenta alargar-se, na esperança de O reflectir na sua maior extensão. E cresce, alarga-se, comprime-se e desaparece da superfície, mergulha e volta depois a sobrenadar. Por exemplo, Karataiev dilatou- se e desapareceu. «Compreende, meu filho?», dizia-lhe o mestre. — Compreendeu. Caramba! — gritava uma voz, e Pedro acordou. Endireitou-se, ficando sentado no chão. Ao clarão da fogueira, sentado de cócoras, um francês, que acabava de empurrar um soldado russo, assava um pedaço de carne na ponta da vareta de uma espingarda. As suas mãos vermelhas e peludas, de dedos curtos e musculosos, manejavam a vareta com perícia. O seu rosto, de cor terrosa e sobrecenho franzido, recebia em cheio o clarão das brasas. — Isso é-lhe indiferente — resmungou, dirigindo-se a um soldado de pé atrás dele. — Bandido! Ala! O soldado que manuseava a vareta da espingarda relanceou um soturno olhar para o lado onde estava Pedro. Este voltou-se e pôs-se a fitar o escuro. Um dosprisioneiros, esse mesmo que o francês empurrara, estava sentado junto da fogueira e parecia acariciar com a mão fosse o que fosse. Pedro olhou mais atentamente e viu o cachorrito arruivado abanando a cauda, ao pé do soldado. — Ah!, voltou? — disse Pedro. — Eh! Pla. Mas não pode concluir. De súbito, na imaginação, misturaram-se-lhe ao mesmo tempo e olhar que lhe lançara Platão sentado de encontro à árvore, o tiro que ressoara para esses lados, os uivos o cão e a expressão comprometida dos dois franceses passando a correr diante dele, com a espingarda ainda fumegante. E juntando a isso o desaparecimento de Karataiev só então pareceu compreender que o desgraçado fora abatido. No mesmo instante, porém, sem saber como, passou-lhe por diante dos olhos a varanda da sua casa de Kiev, onde passara uma noite de Verão com uma linda polaca, Sem relacionar estas lembranças com as impressões de momento, e sem nada concluir, Pedro fechou os olhos, e o quadro que evocara — a noite de Estio —, trazendo-lhe à ideia um banho refrescante e a esfera líquida em movimento, fê-lo sentir-se afundar numa massa de água onde todo ele desaparecia. Antes do nascer do Sol acordou com um vivo tiroteio e uma grande algazarra. Os franceses corriam como loucos. — Os cossacos — gritava um deles e instantes depois Pedro estava rodeado de caras russas. Levou tempo a compreender o que se passava. Ouviam-se por todos os lados exclamações entusiastas dos seus compatriotas. — Meus irmãos! Meus amigos! Meus queridos camaradas! — gritavam, com as lágrimas nos olhos, velhos soldados, apertando nos braços cossacos e hússares. Estes cercavam os prisioneiros e ofereciam-lhes, à discrição, pão, roupas, botas. Pedro, no meio deles, soluçava, incapaz de articular palavra. Porém, tomando nos braços o primeiro soldado que lhe apareceu, beijou-o, chorando. Dolokov estava de pé diante do portão da casa em ruínas assistindo ao desfile das tropas francesas desarmadas. Estas, desorientadas com o que acontecera, falavam entre si em alta voz, mas, ao passarem diante de Dolokov, que fustigava as botas com a chibata, fitando-as com olhos frios e vidrados, onde nada de bom se lia, calavam-se. Ao lado dele, o cossaco contava os prisioneiros, marcando a giz, na porta, centena por centena. — Quantos? — perguntou-lhe Dolokov.— É a segunda centena — respondeu-lhe ele. — Toca a andar, toca a andar! — dizia Dolokov, que aprendera com os franceses esta expressão. E o seu olhar, quando se encontrava com o dos prisioneiros, despedia centelhas de crueldade. Denissov, de ar triste e cabeça descoberta, seguia atrás dos, cossacos que transportavam o corpo de Pétia Rostov, que ia a enterrar num fosso aberto no jardim. [XVI] A partir de 28 de Outubro, data em que principiaram os frios, a retirada francesa assumiu um aspecto trágico. Alguns homens morriam gelados, outros tentavam aquecer-se junto de fogueiras; outros ainda, embrulhados em quentes peliças, continuavam a fuga, levando nas seges os bens do imperador, dos reis e dos duques. No conjunto, porém, nada mudara no estado de decomposição do exército em retirada. De Moscovo a Viazma, os seiscentos e treze mil homens de que se compunha o exército francês ficaram reduzidos a pouco mais de trinta e seis mil, sem contar a Guarda, a qual, durante toda a campanha, outra coisa não fizera que pilhar. Dos seus trinta e seis mil homens, no máximo não apareceram no campo de batalha mais de cinco mil. Eis o primeiro termo da proporção que pode determinar exactamente o que veio a ocorrer depois. O exército francês liquefez-se e desapareceu, na mesma proporção, de Moscovo a Viazma, de Smolensk ao Beresina, do Beresina a Vilna, independentemente do frio mais ou menos intenso, em consequência da perseguição que lhe moviam os Russos, dos obstáculos que encontravam no caminho ou de todas as outras circunstâncias isoladamente. Berthier escrevia ao amo nos termos seguintes, e toda a gente sabe quanto se afastam da verdade os chefes que descrevem a situação do seu exercito: Creio dever levar ao conhecimento de Vossa Majestade o estado das suas tropas nos vários corpos de exército, o qual pude verificar em diferentes pontos de há dois ou trêsdias para cá. Estão por assim dizer em debandada. Os soldados que seguem as bandeiras são apenas a quarta parte dos efectivos em todos os regimentos; os demais marcham isoladamente, em diversas direcções, e por conta própria, na esperança de encontrarem que comer e para se verem livres da disciplina. Em geral consideram Smolensk o ponto onde se reorganizarão. Nestes últimos dias, numerosos soldados deitaram fora as armas e os cartuchos. Perante tal estado de coisas, o serviço de Vossa Majestade exige, sejam, quais forem os objectivos ulteriores, que as tropas se reorganizem em Smolensk, principiando por desembaraçá-las dos não combatentes, ou seja, dos homens a pé, das bagagens inúteis e do material de artilharia, em desproporção com as forças actuais. Além de dias de descanso são necessários mantimentos para os soldados extenuados pela fome e pela fadiga; nos últimos dias morreram muitos nas estradas e nos bivaques. Este estado de coisas vai de mal a pior e faz-nos recear, caso se lhe não dê pronto remédio, não termos mão nas tropas para as obrigar a combater. 9 de Novembro, a trinta verstas de Smolensk. Ao atingirem Smolensk, para os soldados uma espécie de terra de promissão, matam-se uns aos outros pelo pão para a boca, assaltam os seus próprios armazéns e quando tudo se acaba continuam a sua rota. Todos caminhavam sem saber porque avançavam nem onde iam e ainda menos do que ninguém o sabia o próprio Napoleão, esse génio, ele que não recebia ordens de quem quer que fosse. Mas nem por isso deixavam de seguir os velhos hábitos, ele e os seus generais; lá continuavam, como sempre, a expedir instruções, mensagens, relatórios, ordens do dia, e a dizer uns para os outros: «Sire, meu primo, príncipe de Eckmühl, rei de Nápoles.» No entanto, todas estas ordens, todos estes relatórios, não passavam do papel. Já nada se executava, porque nada podia ser executado, e, apesar de todos os pomposos títulos que se davam uns aos outros, sentiam que não passavam de pobres e miseráveiscriaturas, que muito mal haviam feito, e agora tinham de prestar contas. E, embora se fingissem interessados pelo destino do exército, só numa coisa pensavam, lá no seu íntimo: fugirem o mais depressa que pudessem e salvarem-se, se ainda fossem a tempo. [XVII] Os movimentos das tropas russas e francesas durante a retirada de Moscovo ao Niémen fazem lembrar o jogo da cabra-cega. E como se vendassem os olhos dos jogadores, e um deles, de tempos a tempos, tocasse numa sineta a desafiar o outro. De princípio, toca destemido, mas, quando se vê em posição desvantajosa, trata de fugir do parceiro em silêncio; e, no entanto, cai-lhe amiúde nas mãos. Nos primeiros tempos, os exércitos de Napoleão assinalavam a sua presença: foi isso no início da retirada pela estrada de Kaluga. Mais tarde, quando meteram pela de Smolensk, fugiram, com o badalo da sineta bem seguro, e por mais de uma vez, pensando que escapavam, foram cair no papo dos Russos. Graças à rapidez da fuga dos Franceses perseguidos pelos Russos, e à fadiga dos cavalos que daí resultava, a melhor maneira de conhecerem, aproximadamente, a posição do inimigo, isto é, os reconhecimentos de cavalaria, era coisa que não existia. Além disso, resultado das mudanças rápidas na situação recíproca dos dois exércitos, as informações, quaisquer que fossem, não chegavam a tempo. Se no dia 2 do mês vinham a saber que e exército inimigo se encontrava no dia 1 em tal sítio, no dia 3, data em que era possível empreender qualquer acção, o dito exército já fizera duas jornadas de marcha e ocupava outra posição, Um dos exércitos fugia, o outro perseguia-o. A partir de Smolensk, várias eram as estradas que se ofereciam aos Franceses. Era de supor que após quatro dias de permanência ali lhes fosse possível saber com exactidão onde estava o inimigo, permitindo-lhes traçar um plano favorável e tentar nova campanha. Mas, passados esses quatro dias, os bandos escaparam-se pela direita e pela esquerda, sem um movimento definitivo ou um percurso previsto, tomando a antiga estrada, a mais perigosa, a estrada por Krasnoie e Orcha, via já por eles percorrida. Supondo terem o inimigo na retaguarda, e não na vanguarda, fugiram,deixando entre eles intervalos de mais de vinte e quatro horas de marcha. A frente vinha o imperador, depois os reis e os duques. O exército russo, persuadido de que Napoleão ia meter pela direita e atravessar o Dniepre, aliás a única estrada razoável, seguiu esta direcção, desembocando na estrada real para Krasnoie. E foi ali, como se jogassem a cabra-cega, que os Franceses encontraram a vanguarda russa. Tomados de pânico perante a inesperada aparição, pararam, mas depressa se puseram em fuga, abandonando os que vinham atrás deles. Eis (,orno, durante três dias, passaram corpos separados uns atrás dos outros através da torrente das forças russas, primeiro o do vice-rei, depois o de Davout, em seguida o de Ney, Abandonaram-se mutuamente à sua infeliz sorte, perdendo as bagagens, a artilharia, metade dos homens, fugindo, com um único pensamento: contornarem os Russos pela direita a coberto da noite.. Ney, que, apesar da infeliz situação das tropas , talvez precisamente por essa circunstância, ficara para trás ocupado a fazer saltar as muralhas de Smolensk, que a ninguém incomodavam, só para castigo da terra que determinara a sua perda, era o último a marchar com o seu corpo de dez mil homens. Reunira-se a Napoleão em Orcha, reduzido a mil homens, depois de ter espalhado o resto, bem como os canhões, em marchas nocturnas através dos bosques para alcançar o Dniepre. De Orcha prosseguiram a sua rota para Vilna, sempre a jogar à cabra-cega com o exército que os perseguia. No Beresina, nova confusão: muitos afogaram-se, outros renderam-se: mas os que conseguiram atravessar o no lá continuaram. Entretanto o seu grande chefe enfiava uma peliça, sentava-se num trenó e fugia sozinho, abandonando os companheiros. Os que puderam fizeram o mesmo, os que não puderam deixaram-se apanhar ou morreram. [XVIII] Dir-se-ia que perante esta fuga doida dos Franceses, quando eles faziam tudo para se perderem a si mesmos, quando todos os seus movimentos, desde o desvio pela estrada de Kaluga até à fuga atrás do chefe do exército, eram desprovidos de qualquer bom senso, dir-se-ia que, ao menos, para este primeiro período da campanha, os historiadores, que atribuem a acção das massas à vontade de um sóhomem, confessassem o erro das suas teorias ao descreverem esta retirada. Montanhas de livros se escreveram sobre esta campanha e em toda a parte se encontram exaltadas as disposições tomadas por Napoleão, a argúcia dos seus planos e das suas manobras e o génio dos seus marechais. Explicam-nos, por uma série de profundos raciocínios, o motivo da retirada dos Franceses de Maloiaroslovets por uma estrada devastada quando se lhes deixava a passagem livre por uma região rica em abastecimentos e se lhes oferecia o caminho paralelo que seguiu posteriormente Kutuzov para os perseguir. Também se nos explica assim a retirada de Smolensk para Orcha. Em seguida traçam-nos um quadro do comportamento heróico de Napoleão em Krasnoie, onde, ao que parece, teve intenção de travar batalha e pôr-se à frente das suas tropas. E mostram-no-lo de um lado para o outro, com uma vara de olmo na mão, dizendo — Já estou farto de fazer de imperador, é tempo de fazer de general. — O que o não impediu, pouco depois, de prosseguir na fuga, abandonando à sua triste sorte todos os corpos de exército dispersos que o seguiam. Descrevem-nos igualmente a bravura dos marechais, particularmente a de Ney, bravura que se limitou a operar um desvio pela floresta a fim de atravessar o Dniepre de noite e fugir na direcção de Orcha, depois de perder as bandeiras, a artilharia e nove décimos dos efectivos. Enfim, o abandono pelo grande imperador do seu heróico exército é-nos apresentado como uma grande acção e um rasgo de génio. Até mesmo o empreendimento final da sua fuga, que em qualquer língua só pode ter um nome, a última das cobardias, acto que envergonharia uma criança, até mesmo isso encontra a sua justificação na pena dos historiadores. Quando já lhes não é possível estenderem mais o fio elástico dos raciocínios, quando o acto é realmente contrário ao que os homens chamam o bem e a justiça, recorrem. à míngua de argumentos. à noção de grandeza. A grandeza parece excluir a possibilidade de apreciar o bem e o mal. O mal não existe para o que é grande. Quem é grande nunca poderá ser acusado de uma atrocidade. «É grande!», dizem os historiadores, e então deixa de existir o bem e o mal, para só haver o que é grande e o que não é grande. O que é grande é o bem, o que não é grande é, o mal. O grande é, segundo eles, privilégio de indivíduos especiais que recebem a classificação de heróis. Napoleão, muito bem embrulhado numa peliça, volta para casa, deixando morrer não só companheiros, mas pessoasque, assim ele o confessou, arrastara atrás de si. Para si mesmo diz: sou o grande, e a alma tranquiliza-se-lhe. «Do sublime ao ridículo vai apenas um passo», dizia Napoleão, e o sublime era ele próprio. E de há cinquenta anos para cá o universo inteiro repete: «Sublime! Grande! Napoleão, o Grande! Do sublime ao ridículo vai apenas um passo!» E a ninguém ocorre que confessar que a grandeza está para além do bem e do mal é como reconhecer ao mesmo tempo a sua inferioridade e a sua infinita pequenez. Para nós, que recebemos de Cristo a medida do bem e do mal, nada existe fora dessa medida. Não há autêntica grandeza sem espontaneidade, bondade e verdade. [XIX] Haverá algum russo que ao ler as descrições do último período da campanha de 1812 não tenha experimentado um penoso sentimento de despeito, descontentamento e inquietação? Quem não terá perguntado a si próprio: porque não fizeram prisioneiros, porque não exterminaram todos os franceses, tendo três exércitos muito superiores em número a cercá-los, e eles, em debandada, morrendo de fome e de frio, se entregavam em massa, e sabendo nós, assim no-lo diz a história, que o objectivo dos Russos era precisamente deter, cortar a retirada e capturar todos os franceses? Como se explica que o exército russo, menos numeroso que o francês, tenha travado a batalha de Borodino e não haja atingido o seu objectivo quando cercava o inimigo por três lados e a sua intenção era aniquilá-lo? Tinham então os Franceses tão grande superioridade sobre nós que os não podíamos bater mesmo cercados por forças esmagadoras? Como pôde acontecer uma coisa destas? A história, pelo menos a que se vangloria de tal nome, responde que a culpa foi de Kutuzov, Tormassov, Tchitchagov, deste e daquele, que não fizeram estes ou aqueles movimentos. Mas porque não fizeram eles esses movimentos? Partindo do princípio de que eram culpados de não terem sabido atingir o objectivo previsto, porque não foram eles submetidos a conselho de guerra e devidamente castigados? E, se se admiteque Kutuzov, Tchitchagov e os outros são culpados de tais reveses, não se compreende, mesmo nas condições em que se encontravam as tropas russas em Krasnoie e no Beresina — e em ambos os casos a sua superioridade era esmagadora —, não se compreende porque o exército francês não foi capturado com os seus marechais, os seus reis e o seu imperador, uma vez que essa era a finalidade dos Russos. A explicação deste facto estranho, dada pelos historiadores russos, qual seja que Kutuzov se teria oposto ao ataque, cai pela base, pois toda a gente sabe que a vontade do general-chefe não evitara o ataque em Viazma e em Tarutino. Porque é que este exército russo, que, com forças inferiores, em Borodino, alcançou uma vitória sobre um inimigo em pleno vigor, veio a ser vencido por bandos desorganizados de franceses em Krasnoie e no Beresina, quando dispunha, então, de superioridade esmagadora? Se o objectivo dos Russos era cortar a retirada ao exército francês e aprisionar o imperador e os seus marechais, o certo é que esse objectivo não só não foi alcançado, como todos os esforços no sentido de o conseguir foram malogrados de maneira lamentável, de tal modo que o último período da campanha se apresenta, com justa razão, como uma série de vitórias dos Franceses e que os historiadores russos se enganam redondamente ao considerá-lo vitorioso. Os historiadores russos, forçados a admitir a lógica, chegam fatalmente a esta conclusão, e a verdade é que, não obstante as suas pomposas frases sobre a coragem e a dedicação, se vêem obrigados a admitir que a retirada de Moscovo é assinalada por uma série de vitórias de Napoleão e de derrotas de Kutuzov. No entanto, pondo de parte todas as questões de amor-próprio nacional, sente-se que esta conclusão encerra em si uma contradição, pois essa série de vitórias levou os Franceses ao aniquilamento total, enquanto as derrotas dos Russos os levaram ao esmagamento do inimigo e à libertação da Pátria. A razão desta contradição está no facto seguinte: que os historiadores, que estudam os acontecimentos de harmonia com a correspondência dos imperadores e dos generais e segundo relatórios, relações ou planos, pressupõem um objectivo errado, que nunca existiu no período final da guerra de 1812, o qual era cortar a retirada aos exércitos franceses e capturar Napoleão com os seus marechais. Nunca existiu semelhante objectivo, nem podia existir, visto não ter o mais pequeno sentido e ser absolutamente impossível de alcançar.Semelhante finalidade não tinha o mais pequeno sentido, primeiro porque o exército derrotado de Napoleão fugia da Rússia o mais depressa que podia, isto é, procedia exactamente de acordo com os desejos dos Russos. Para quê operações contra os Franceses, quando eram eles próprios quem retirava a toda a pressa? Em segundo lugar, era absurdo cortar a retirada a quem se empenhava em fugir com toda a força. Em terceiro lugar, era estúpido sacrificar as próprias forças para esmagar os exércitos franceses, os quais, sem causas exteriores, desapareciam numa proporção tal que, sem que se opusesse qualquer obstáculo à sua fuga, se lhes tornava mesmo assim impossível transpor a fronteira (como o vieram a conseguir em Dezembro) senão reduzidos à centésima parte dos seus efectivos. Em último lugar, o projecto para aprisionar o imperador, os reis e os duques era ridículo, pois a captura de tais personalidades só teria servido para prejudicar a política russa, como o reconheceram os melhores diplomatas da época. Joseph de Maistre e outros. E ainda era mais insensato quererem os Russos apoderar-se dos corpos franceses quando as tropas russas estavam reduzidas a metade antes de Krasnoie e seria precisa uma divisão de escolta para guardar os prisioneiros, quando era certo que os soldados russos nem sempre tinham a sua ração completa e que os franceses já capturados morriam de fome. Esta profunda concepção segundo a qual se deveria cortar a retirada aos exércitos franceses e aprisionar Napoleão faz lembrar a atitude de um hortelão que para enxotar o gado que lhe espezinha a horta corre à porta da quinta e se põe a bater na cabeça dos animais. Só um excesso de ira justificaria semelhante atitude. Mas nem isto era de invocar para justificação dos autores do projecto, pois a verdade é que não tinham tido sequer o horto espezinhado. Aliás, cortar a retirada a Napoleão e ao seu exército era uma operação não só absurda, mas impossível. Impossível, primeiro, porque, se é verdade que a experiência ensina que um movimento executado a cinco verstas de um campo de batalha nunca se harmoniza com o plano primitivo, era tão inverosímil que Tchitchagov, Kutuzov e Wittgenstein chegassem a tempo ao local determinado que pode dizer-se impossível. Tal a opinião de Kutuzov ao saber da existência do plano, dizendo que uma diversão a grandes distâncias não pode dar o resultado esperado.Em segundo lugar, impossível porque, para se conseguir paralisar a força da inércia que fazia recuar o exército francês, era preciso dispor de tropas a incomparavelmente superiores àquelas que os Russos tinham. Em terceiro lugar, ainda impossível porque a expressão militar de «cortar a retirada» a um exército não tem sentido. Pode cortar-se um bocado de pão, mas um exército, de maneira nenhuma. Cortar a retirada a um exército, isto é, cortar- lhe o caminho, não é coisa que se possa fazer, pois há sempre maneira de contornar o obstáculo, e há a noite, durante a qual todo e qualquer movimento se torna desapercebido, coisa de que os especialistas militares Puderam persuadir-se graças a Krasnoie e ao Beresina. É absolutamente impossível aprisionar seja quem for, a menos que o aprisionado consinta, pela mesma razão de que então é possível apanhar uma andorinha, a não ser que ela venha pousar na nossa mão. Capturam-se aqueles que se entregam, como os Alemães, segundo as regras da estratégia e da táctica. Mas os Franceses não viam nisso vantagem alguma, pois em fuga ou capturados só a fome e o frio os esperavam. Em quarto lugar, sobretudo, deve considerar-se que desde que o mundo é mundo nunca houve guerra em condições tão terríveis como a de 1812, e que os exércitos russos, para perseguirem os Franceses, haviam posto em jogo todas as suas forças e não podiam fazer mais sem se aniquilarem a si próprios. Durante a sua marcha de Tarutino para Krasnoie, os Russos Perderam cinquenta mil doentes e retardatários, quer dizer, um número de homens igual à população de uma importante cidade de província. Metade do exército perdeu-se, sem combate. A propósito deste período da campanha em que as tropas, sem botas e sem agasalhos, com abastecimentos insuficientíssimos, sem vodka, tiveram de passar as suas noites, durante meses, no meio da neve, com temperaturas de quinze graus negativos em que os dias apenas tinham sete ou oito horas de luz solar e as noites eram sem fim, o que tornava impossível toda a disciplina eficaz: em que os homens, não como numa batalha, onde não vêem a morte diante dos olhos senão durante algumas horas, Passavam meses inteiros receando, a cada instante, morrer de fome e de frio; em que, no decurso de um mês, metade do exército soçobrou, a este propósito vêm os historiadores contar-nos tranquilamente como Miloradovitch se viu obrigado a fazer uma marcha de flanco em tal sítio, Tormassov em tal outro e Tchitchagov se viu forçado a deslocar-se paradeterminado ponto, deslocação levada a cabo com neve para cima dos joelhos dos homens, e como fulano caiu em cima do inimigo e lhe cortou a retirada, etc. Os Russos, reduzidos, por morte, a metade dos seus efectivos, fizeram tudo o que puderam e deviam fazer para atingir um objectivo digno e a culpa não é sua se outros russos houve que, fechados em quartos confortáveis, gizaram planos que se não podiam pôr em prática. Esta contradição estranha, que se não compreende nos nossos dias, entre os factos e as descrições dos historiadores resulta apenas de estes terem querido fazer a história dos belos discursos de certos generais em vez de contarem os acontecimentos. Interessante para eles são as palavras de Miloradovitch, as condecorações recebidas por este ou por aquele general, os planos propostos. Os cinquenta mil desgraçados que ficaram nos hospitais ou caíram por terra não lhes interessam, porque não dizem respeito aos seus estudos. E, no entanto, basta voltarmos as costas ao exame dos relatórios e dos planos para vermos remexer essas centenas de milhares de homens que tomaram parte directa e imediata nos acontecimentos e tudo o que anteriormente nos parecia insolúvel se nos apresentar desde logo como a solução mais fácil e mais simples. O intento de cortar a retirada a Napoleão e ao seu exército apenas existiu na imaginação de meia dúzia de indivíduos. Era irrealizável, por absurdo e impossível. O povo só queria uma coisa: libertar o solo pátrio da invasão. Esse objectivo alcançou-se, primeiro sem a intervenção fosse de quem fosse, visto que os Franceses fugiam e bastava deixá-los fugir; em segundo lugar, graças à guerra patriótica que exterminava os Franceses; e por fim porque um poderoso exército russo seguia de perto o inimigo, pronto a utilizar a força caso os Franceses parassem no caminho. O exército russo devia agir como o chicote no dorso do animal que foge. E os pastores hábeis sabem que a melhor maneira de conduzir o gado é segurar o chicote ameaçador no ar sem fustigar a cabeça dos animais. QUARTA PARTE [I] [II] [III] [IV] [V] [VI] [VII] [VIII] [IX] [X] [XI] [XII] [XIII] [XIV] [XV] [XVI] [XVII] [XVIII] [XIX] [XX] [XXI] [I] Quando o homem vê morrer um animal, fica aterrorizado. A qualidade de ser vivo de que ele próprio participa desaparece diante dos seus olhos, deixa de existir. Mas quando aquele que morre é um ser humano, e um ser querido, além desse horror perante a vida que desaparece, o homem sente um dilaceramento, uma ferida moral que, como o ferimento físico, em certos casos leva à morte, noutras cura-se e por vezes também continua sensível e receia os contactos exteriores. Depois da morte do príncipe, Natacha e a princesa Maria passaram ambas por essa experiência. Prostradas moralmente, esmagadas sob a terrível nuvem da morte que se estendera sobre elas, deixaram de ser capazes de olhar a vida cara a cara. Preservavam cuidadosamente a sua ferida, que ainda sangrava, contra qualquer contacto capaz de a irritar. Uma carruagem que passava depressa de mais na rua, o anunciarem estar o jantar na mesa, a pergunta de uma criada relativa ao fato que era preciso preparar, e, ainda mais, uma palavra de simpatia pouco sincera, ou expressa de maneira superficial, tudo lhes irritava dolorosamente a ferida, produzindo-lhes a impressão de um ultraje, rompendo a calma que lhes era necessária para estarem atentas ao coro terrível e severo que não deixava de lhes ressoar na imaginação e as impedia de contemplar as distâncias misteriosas e infinitas que por instantes se haviam desvendado diante delas. Só quando estavam sós nada as feria ou lhes fazia mal. Trocavam poucas palavras entre si. Quando falavam, era das coisas mais insignificantes. Tanto uma como outra evitavam toda a espécie de alusões ao que pudesse ser o futuro. Admitirem sequer a possibilidade de um futuro era uma ofensa à sua saudade. E ainda eram mais cautelosas em evitar que nas suas conversas se filtrasse fosse o que fosse alusivo ao defunto. Afigurava-se-lhes que as provas e as impressões por que tinham passado não podiam exprimir-se por meio de palavras.Parecia-lhes que qualquer alusão a pormenores da sua vida quebrava a majestade e a santidade do mistério que passara diante dos seus olhos. A discrição que punham rias palavras, o silêncio em relação a qualquer coisa que o pudesse lembrar, a maneira de se manterem sempre na reserva, só concorriam para lhes aguçar a sensibilidade. Mas é tão impossível uma dor pura e perfeita como uma pura e perfeita alegria, A princesa Maria, de então para cá única senhora do seu destino, tutora e educadora do sobrinho, foi a primeira a ouvir a voz da vida chamando-a para fora dessa atmosfera de tristeza em que vivera as duas primeiras semanas. Teve de responder a cartas de parentes seus. O quarto em que dormia Nikoluchka era húmido e a criança principiou a tossir. Alpatitch chegou a Iaroslav com as suas contas, propondo e aconselhando o regresso a Moscovo, pois a casa da Vozdvienka ficara intacta e apenas precisava, para ser ocupada, de algumas pequenas reparações. A vida não parava e era preciso viver. Por mais penoso que fosse para ela sair daquela solidão contemplativa em que vivera até aí, por mais escrúpulos e por mais que lhe custasse deixar Natacha sozinha, a vida reclamava-a, e ela não tinha outro remédio se não submeter-se-lhe. Verificou as contas de Alpatitch, aconselhou-se com Dessales a respeito do sobrinho e preparou as coisas para regressar a Moscovo. Natacha, só, evitava vê-la sequer desde que ela se pusera a preparar a partida. A princesa Maria pediu licença à condessa para que Natacha a acompanhasse, e o pai e a mãe consentiram da melhor vontade, pois notavam que as forças físicas da filha diminuíam a olhos vistos. Pensavam que uma mudança de ares lhe seria favorável e que podia consultar os médicos de Moscovo. — Não irei a parte alguma — respondeu Natacha às propostas que lhe fizeram —, só desejo uma coisa, que me deixem em paz — E dizendo isto fugiu, retendo dificilmente as lágrimas menos de dor que de despeito e cólera. Desde que se sentira abandonada pela companheira e entregue sozinha à sua dor passava a maior parte do tempo no quarto, enterrada no canto do divã, entretendo os dedos finos e ágeis nalgum trabalho maquinal, os olhos fixos obstinadamente, e sem verem, num ponto qualquer na sua frente. Esta solidão esgotava-a, fazia-lhe mal, mas era-lhe necessária. Quando alguém entrava noquarto, levantava-se imediatamente, mudava de atitude, modificava a expressão do olhar e punha-se a ler ou a coser, esperando, impaciente, que o importuno voltasse a sair. Parecia-lhe sempre estar a ponto de compreender e penetrar o terrível e, acabrunhador problema que lhe tomava todas as forças espirituais. No fim de Dezembro, com um vestido de lã preto, a trança negligentemente amarrada no alto da cabeça, magra e pálida, Natacha estava acocorada no seu divã, desfiando inconscientemente a ponta do cinto, os olhos fitos no àrigulo da porta. Olhava o ponto donde ele partira para a outra vida. E essa outra vida em que ela não pensara antes, que se lhe afigurava tão distante, tão inverosímil, era-lhe agora próxima e familiar, muito mais inteligível que a vida presente, onde só havia futilidades e ruínas, sofrimento e dor. Olhava para o ponto onde ela sabia que ele estava, mas não podia vê-lo senão como o vira nos últimos tempos. Via-o como ele estava em Mitichtchi, em Troisa, em Iaroslav. Via-lhe o rosto, ouvia-lhe a voz, repetia as suas próprias palavras e as que ele lhe dirigia e por vezes imaginava ainda frases que poderiam ter trocado. Ele ali estava, estendido na poltrona, com o casaco forrado de veludo, a cabeça apoiada na mão magra e pálida. Tem o peito metido para dentro e os ombros salientes, os lábios cerrados, os olhos brilhantes e rugas lhe aparecem e desaparecem na testa pálida. Uma das suas pernas agita-se nervosamente de maneira quase insensível. Natacha pensa que ele está lutando naquele momento contra uma dor pungentíssima. Que dor? Porquê essa dor? Que sente ele? Que espécie de dor é a sua?, pensa Natacha. Ele, porém, reparou que ela está inquieta, ergueu os olhos e pôs-se a falar sem sorrir. «Que coisa horrível ligar-se uma mulher para toda a vida a um homem doente. É um suplício perpétuo.» E, falando assim, olhava-a escrutadoramente. Natacha, como sempre, responde-lhe sem reflectir no que lhe diz: «Isso não pode continuar assim, não pode ser, há-de recuperar a saúde por completo.» Só agora podia ler no seu pensamento e reviver os seus sentimentos de então. Lembrava-se do triste e severo olhar que por muito tempo pousara nela quando falara e compreendeu a espécie de reproche e de desespero que esse olhar encerrava. «Era de considerar», dizia ela agora, «horrível ele permanecer sempre naquelesofrimento. Falei então desse modo porque, efectivamente, seria horrível para ele, mas ele interpretou as minhas palavras de outra maneira. Julgou que eu queria dizer que seria horrível para mim. Nessa altura ainda ele tinha amor à vida, ainda tinha medo de morrer. Fui estúpida, brutal. Falei sem reflectir. Estava a pensar em coisa muito diferente. Se eu me tivesse expressado como realmente pensava, ter-lhe-ia dito que seria feliz vendo-o agonizante, sempre agonizante diante dos meus olhos, que preferia isso a sofrer como hoje sofro. Hoje nada mais existe, ninguém. Teria ele compreendido o fundo do meu pensamento? Não, não o compreendeu nem nunca o poderá conhecer. E agora nunca, nunca mais poderei reparar a falta que cometi.» E lá está ele a dirigir-lhe as mesmas palavras e mental— mente ela a responder-lhe de maneira totalmente diferente. Fá-lo calar e diz-lhe: «Isso é horrível para si, mas não para mim. Sem si, a vida, para mim, não tem sentido, e sofrer consigo seria, para mim, a maior das felicidades.» E ele, então, pega-lhe na mão e aperta-a entre as suas, como nessa medonha noite, quatro dias antes do fim. E imaginava palavras de ternura e amor que então lhe não saíram dos lábios, mas que lhe dizia agora, «Amo-te!... Sim, amo-te, amo-te», repetia ela, juntando convulsivamente as mãos e apertando os dentes uns contra os outros com a maior violência. E então invadia-a uma dor menos amarga e as lágrimas saltavam-lhe dos olhos. De súbito, porém, perguntava a si própria a quem estava a falar. «Onde está ele e quem é ele agora?» E de novo se sentia submersa numa cruel incerteza, que lhe detinha as efusões, e de sobrancelhas carregadas fixava os olhos no espaço, na direcção onde ele podia estar. E pouco a pouco julgava ter penetrado o mistério... No momento, porém, em que julgava que o incognoscível se lhe ia revelar, um golpe violento no fecho da porta lhe impressiona o ouvido. Sem pedir licença, o rosto pálido e descomposto, entra no quarto Duniacha, a criada. — Depressa, o pai, depressa — exclama Duniacha vivamente e retendo os soluços. — Uma desgraça, Piotre Ilitch... Uma carta. [II] A aversão que Natacha sentia por toda a gente ainda era mais acentuadapelas pessoas da família. Todos os seus, o pai, a mãe, Sónia, lhe eram tão próximos, tão familiares, via-os tanta vez, que as suas palavras, os sentimentos que eles exprimiam, lhe pareciam uma ofensa a esse mundo ideal em que vivia naqueles últimos tempos, e testemunhava-lhes não só indiferença, mas uma espécie de hostilidade. Ouviu sem compreender Duniacha, que lhe falava de Piotre Ilitch e de uma desgraça. «De que desgraça me está ela a falar, que desgraça pode ter acontecido? Para eles, os dias decorrem sempre da mesma maneira, por hábito, tranquilamente», dizia de si para consigo. Ao entrar no salão viu o pai sair bruscamente do quarto da condessa, o rosto contraído e banhado de lágrimas. Via-se que saíra do quarto contíguo para poder expandir a sua dor. Ao ver Natacha fez um gesto de desespero e soltou uns soluços convulsivos que lhe contraíram a grossa e plácida figura. — Pétia... Pétia... Depressa... Ela... chama-te. — E, a chorar como uma criança, aproximou-se, em passos miúdos, de uma cadeira, as pernas a tremer. Deixou-se cair nela, cobrindo a cara com as mãos. De súbito como que uma descarga eléctrica percorreu Natacha dos pés à cabeça. Sentiu um golpe terrível no coração, Julgou que qualquer coisa se rompera nela e que ia morrer. Mas a dor foi imediatamente seguida do sentimento de se haver libertado da interdição de viver que sobre ela pesava. A presença do pai, os gritos medonhos e selvagens da mãe, ressoando no aposento vizinho, fizeram-na esquecer a sua própria dor. Correu para o pai, mas este, num gesto impotente, indicou-lhe a porta do quarto. A princesa Maria, pálida e trémula, surgiu no limiar da porta, e, pegando na mão de Natacha, disse-lhe qualquer coisa. Natacha, sem a ver, sem a ouvir, encaminhou-se rapidamente para o quarto contíguo, parou, irresoluta, alguns instantes, depois correu para a mãe. A condessa estava estendida numa poltrona, sacudida por estranhas convulsões nervosas, e batia com a cabeça na parede. Sónia e a criada seguravam- lhe os braços. — Natacha, chamem a Natacha!... Não é verdade... Mentem... Onde está a Natacha? — gritava, repelindo as pessoas que a rodeavam. — Vão-se todos embora, não é verdade! Mataram-no!... Ah! Ah! Ah!... Não é verdade! Natacha ajoelhou-se, inclinou-se para ela, tornou-a nos braços, levantou-a comuma força inesperada e, voltando para a sua a cara da mãe, encostou-lhe os lábios. — Mãe!... Mãezinha!... Estou aqui, minha mãezinha dizia-lhe ela muito baixinho e incessantemente. Não a deixou um só minuto; lutava ternamente contra ela, pedia almofadas, água, desapertava-lhe o vestido. — Minha querida mãe!... Minha mãezinha! — continuava, beijando-a na cabeça, nas mãos, nas faces, e sentindo lágrimas inexauríveis correr-lhe, em torrente, pela cara abaixo. A condessa apertou-lhe a mão, fechou os olhos e serenou por momentos. De súbito ergueu-se com uma energia insuspeitada, lançou à sua volta um olhar esgazeado, e, vendo Natacha, estreitou-lhe com toda a força a cabeça entre as mãos. Em seguida, voltando contra o seu esse rosto contraído pela dor, fitou-o longamente. — Natacha, gostas de mim? — disse-lhe muito baixinho, num tom confiante — Natacha, tu não me enganas? Vais dizer-me toda a verdade. Natacha fitou-a com os olhos velados pelas lágrimas. Parecia implorar-lhe o seu perdão e o seu amor. — Minha querida mãezinha — repetia, dilatando todas as f orças do seu amor, como a tentar chamar a si parte da dor que esmagava a mãe. E na sua luta impotente contra a realidade, esta, recusando-se a acreditar que pudesse continuar a viver, uma vez que o seu querido filhinho morrera na flor da idade, de novo se evadiu para o mundo do delírio, fugindo, assim, à terrível evidência. Natacha nunca soube dizer depois o que passara naquele dia, naquela noite, no dia seguinte e na noite do dia seguinte. Não dormiu e não deixou a mãe um só instante. O seu amor obstinado, paciente, que não procurava explicar nem consolar, envolvia-a por todos os lados e a cada momento numa ternura que era como que um apelo à vida. Na terceira noite a condessa serenou por alguns instantes e Natacha aproveitou a circunstância para fechar os olhos, a cabeça apoiada no braço de uma poltrona. Ao ouvir a cama ranger abriu os olhos e viu a mãe sentada no leito a falar baixo sozinha. — Como me sinto feliz que tenhas voltado. Estás cansado, meu menino, queres tomar chá?Natacha, ao ouvir estas palavras, aproximou-se da cama. — Que grande e lindo que tu és! — continuava a condessa, apertando o braço da filha. — Mãezinha, que estás tu a dizer? — Natacha, acabou-se, acabou-se. E, abraçando a filha, pela primeira vez rompeu a chorar. [III] A princesa Maria adiara a partida. Sónia e o conde haviam tentado debalde substituir Natacha. Reconheciam que só ela seria capaz de deter a mãe à beira de um desespero vizinho da loucura. Durante três semanas Natacha manteve-se continua— mente ao lado da condessa; dormia numa poltrona, dava-lhe de comer e beber, falava-lhe constantemente, pois sabia que só a sua voz terna e carinhosa a podia serenar. A ferida moral da pobre senhora não podia curar-se. A morte de Pétia levara- lhe o melhor da sua vida. Um mês depois de ter conhecimento da terrível notícia, essa mulher de cinquenta anos, ágil e robusta, ao voltar a sair pela primeira vez, não passava de uma velha meio morta, sem o mais pequeno interesse na vida. No entanto a ferida que fulminara a condessa, por sua vez chamara à vida Natacha. Por estranha que pareça, a verdade é que a ferida moral produzida por um desregramento do espírito cicatriza-se, pouco a pouco, como uma ferida física, renovando ela própria os seus tecidos, graças à força vital que vem de dentro. Assim cicatrizou a ferida de Natacha. Julgava ela que a vida se lhe acabara. Mas, de súbito, o amor pela mãe deu-lhe a prova de que a essência da sua vida, o amor, continuava a viver dentro dela. Despertando o amor, também despertara a vida. Os últimos dias do príncipe André já tinham unido Natacha e a princesa Maria. Esta nova desgraça ainda mais as aproximou. Maria adiara para mais tarde a sua partida e durante aquelas três últimas semanas cuidara de Natacha como de uma criança doente. As semanas passadas ao pé da mãe tinham abalado gravemente as forças físicas da jovem. Certa vez a princesa Maria, ao reparar que Natacha, em pleno dia, tinha arrepios de febre, levou-a para o seu quarto e obrigou-a a deitar-se, mas quandoMaria, depois de puxar os estores, ia sair, chamou-a. — Não me apetece dormir, Maria. Fica ao pé de mim. — Estás fatigada, procura dormir. — Não, não. Porque me trouxeste para aqui? Ela vai chamar-me. — Está muito melhor. Falou hoje com muito juízo — disse Maria. Natacha, estendida na cama, olhava para Maria na obscuridade do quarto. «Parece-se com ele?», interrogava-se ela. «Parece-se e não se parece. Há nela qualquer coisa de particular, de estranho, de completamente novo, que eu não conheço. E gosta de mim. Que haverá no seu coração? Nada que não seja de primeira ordem. Mas em que pensa ela? Que opinião tem de mim? Sim. é uma bela alma.» — Macha — chamou-a timidamente, puxando para si a mão da amiga. — Macha, não vás pensar que sou má. Sim, Macha, minha querida Macha. Gosto muito de ti. Sejamos amigas, amigas completas. E Natacha, abraçando-a, beijou-lhe o rosto e as mãos. A princesa Maria, um pouco confusa, respondeu, no entanto, com alegria a estas efusões. A partir daquele dia houve entre elas uma amizade apaixonada e carinhosa, só possível entre mulheres. Beijavam-se a todo o momento, diziam uma à outra palavras ternas e passavam quase todo o tempo juntas. Quando uma se ausentava, logo a outra ficava inquieta e se dava pressa em ir ao seu encontro. Sentiam-se mais em paz consigo próprias juntas que quando separadas e entregues a si mesmas. Um sentimento mais forte mesmo que a amizade as unia: a convicção de não poderem viver uma sem a outra. Algumas vezes ficavam horas inteiras sem falar; outras, assim que se deitavam, punham-se a tagarelar até de manhã. A princesa Maria falava da sua infância, da mãe, do pai, dos seus sonhos; e Natacha, que outrora se afastara com tranquila indiferença daquela vida de abnegação e submissão, dessa abnegação cristã de que desconhecia a poesia, agora, que estava unida a Maria por laços tão ternos, adorava o seu passado, compreendia uma vida cujo sentido até aí lhe escapara. Não pensava em praticar aquela submissão e aquela abnegação absolutas, pois estava habituada a outras satisfações, mas compreendia e apreciava noutrem virtudes que antes lhe eram inacessíveis. A princesa Maria, ao ouvir a história da infância e da primeira juventude de Natacha, descobriu, pela sua parte, um mundo desconhecido para ela: a fé na vida e nos seus prazeres.Quase nunca falavam dele, realmente, para não perturbarem, assim pelo menos o supunham, a elevação dos sentimentos que lhes enchiam a alma, e o silêncio que mantinham fizera que elas, Pouco a pouco, sem mesmo darem por isso, acabassem por esquecê-lo. Natacha estava magra e pálida, e tão fraca que todos se preocupavam com a sua Saúde, o que lhe dava um certo prazer. Outras vezes, porém, sentia-se subitamente dominada, senão pelo medo da morte, pelo menos pelo receio de estar doente, de per— der as forças e a beleza, e surpreendia-se a contemplar espantada as suas mãos descarnadas ou, pela manhã, a mirar no espelho o rosto que se lhe afigurava repuxado e doentio. De si para consigo dizia que assim tinha de ser, mas nem por isso deixava de ser triste e assustador. Um dia, depois de subir umas escadas apressadamente, sentiu-se sufocar. Acto contínuo imaginou um motivo para voltar a descer as escadas e de novo subi-las, na intenção de observar e medir as suas forças. De outra vez, ao chamar Duniacha, faltou-lhe a voz. Chamou-a de novo, embora estivesse a ouvir-lhe os passos, com essa voz do peito que usava para cantar e ficou-se à escuta. Não o sabia nem poderia acreditar que assim fosse, mas a verdade é que sob a espessa camada de húmus que lhe revestia a alma, parecia despontar já uma plantazinha tenra que não tardaria a crescer e a estender os seus vigorosos rebentos sobre a dor que a esmagava, dor que não tardaria muito a não ser visível nem perceptível. A sua ferida cicatrizara pelo interior. No fim de Janeiro a princesa Maria partiu para Moscovo e o conde insistiu para que Natacha a acompanhasse na intenção de consultar os médicos. [IV] Depois do choque dos exércitos em Viazma, onde Kutuzov não pudera refrear o desejo das suas tropas ansiosas por aniquilar e cortar a retirada ao inimigo, o movimento de recuo dos Franceses, perseguidos pelos Russos, continuou até Krasnoie sem outra batalha. A fuga era tão rápida que o exército russo não podia acompanhar os Franceses. Havia falta de cavalos na cavalaria e na artilharia e nãose sabia com precisão onde o inimigo estava. Os homens, extenuados por esta marcha ininterrupta, à razão de quarenta verstas em vinte e quatro horas, não podiam andar mais depressa. Para que possa compreender-se o grau de esgotamento do exército russo basta verificar-se o seguinte: se desde Tarutino esse exército não perdera, entre mortos e feridos, mais de cinco mil homens, além de uma centena de prisioneiros, e se à saída de Tarutino contava cem mil homens, o certo é que, ao chegar a Krasnoie os seus efectivos não iam a mais de cinquenta mil, A rapidez da perseguição agia sobre o exército russo de maneira tão dissolvente como a fuga no exército francês. A única diferença estava nisto: que o exército russo avançava a seu talante, sem a ameaça que a cada momento pesava sobre o exército francês, que via os retardatários doentes caírem nas mãos do inimigo. Os Russos sempre estavam em sua casa. A causa principal das perdas do exército napoleónico foi a rapidez da sua marcha e a prova incontestável está nas perdas idênticas das tropas russas. Kutuzov, tanto em Tarutino como em Viazma, fez tudo o que pôde para não entravar a retirada mortífera dos Franceses, como queriam Petersburgo e os generais do exército, antes, pelo contrário, favoreceu-a, facilitando o movimento avante dessas tropas. Mas, além da lassidão das tropas e das perdas que sofreram, consequência da marcha acelerada. Kutuzov ainda tinha outro motivo para moderar os seus ímpetos e ganhar tempo. Evidentemente que o objectivo dos Russos era perseguir os Franceses. A estrada que estes seguiam não era conhecida daí, quanto mais os Russos lhe seguiam o rastro, mais distanciados eles estavam. Só seguindo-os a uma distância respeitável era possível, metendo por atalhos, cortar os ziguezagues que o inimigo efectuava na sua marcha. As sábias manobras propostas pelos generais traduziam-se em toda a sorte de movimentos de tropas, numa multiplicação das jornadas e a única coisa razoável a fazer era reduzir o número destas marchas. Foi esse o objectivo que Kutuzov procurou realizar energicamente, durante toda a campanha, de Moscovo a Vilna, não temporariamente ou ao acaso, mas com um tal espírito de continuidade que dele se não desviou uma só vez. Kutuzov, não graças a um esforço de raciocínio ou mercê dos seus conhecimentos militares, mas instintivamente, com todas as fibras do seu ser, sentia que todos os seus soldados acreditavam na derrota dos Franceses, que oinimigo fugia e que era necessário reconduzi-lo. Ao mesmo tempo, porém, tanto ele como os seus homens, davam-se conta do fardo que representava esta campanha inaudita na sua rapidez e na estação do ano em que se realizava. Quanto aos generais, sobretudo os que não eram russos, e não queriam outra coisa senão distinguir-se, provocar surpresa, aprisionar um duque ou um rei, esses eram de opinião de que, para travar batalha e vencer, o movimento era preciso. E nada teria sido mais absurdo e mais culpável. Kutuzov limitava-se a encolher os ombros quando general após general lhe vinham apresentar os seus planos de movimentos com soldados mal calçados, sem roupas quentes e esfomeados. Num mês, sem travar batalha, o exército russo perdera metade dos seus efectivos, e nas condições mais favoráveis ainda tinha de percorrer até à fronteira uma distancia maior do que a que percorrera já. Esta ânsia de se distinguirem, de manobrarem, de esmagarem ou cortarem a retirada ao inimigo, manifestava-se sobretudo sempre que os Russos vinham a encontrar-se na presença do exército francês. Assim aconteceu em Krasnoie, onde julgaram ter pela frente uma das três colunas francesas e onde vieram a defrontar o próprio Napoleão e dezasseis mil homens. Apesar de todos os esforços de Kutuzov para evitar um conflito funesto e poupar os seus homens, as tropas russas extenuadas levaram três dias a aniquilar os bandos franceses. Toll redigiu o dispositivo: «die erste Kolonne marschirt» (Em alemão no texto original «A primeira coluna marcha, etc.». (N dos T.), etc., E, como sempre, nada se fez segundo o dispositivo. O príncipe Eugénio de Wurtemberg fuzilava do alto de um monte os franceses que fugiam e pedia reforços, que nunca chegaram. Os Franceses, iludindo os Russos, durante a noite, espalharam-se, esconderam-se lias florestas e acabaram por escapar-se-lhes. Milarodovitch, que dizia não querer saber das necessidades materiais do seu destacamento, e nunca ninguém encontrava onde era preciso, esse «cavaleiro sem medo e sem mácula», como se cognominava a si mesmo, esse amador de entendimentos com os Franceses, enviou-lhes parlamentários com a intimação de se renderem, perdeu o seu tempo e acabou por fazer, precisamente, que lhe não tinham ordenado. — Rapazes, ofereço-vos esta coluna — dizia ele para os seus soldados de cavalaria, mostrando-lhes os Franceses.E a cavalaria, em cima de cavalos que mal se podiam mexer, instigados à força de espora e sabre, marchou a trote curto, penosamente, sobre a coluna que ele lhe oferecia, isto é, sobre um bando de homens mortos de fome e enregelados. E a coluna, lançando fora as suas armas, fez o que há muito desejava: rendeu-se. Em Krasnoie fizeram vinte e seis mil prisioneiros, tomaram centenas de canhões e um bastão, que se dizia ser de marechal, houve discussões sobre quem mais se distinguira, e sentiram-se contentes com isso, lamentando muito, todavia, não terem capturado Napoleão ou outro qualquer herói, um marechal, por exemplo, e disso se acusaram uns aos outros, responsabilizando sobretudo Kutuzov. Estes homens, que só davam ouvidos às suas próprias paixões, não passavam de cegos instrumentos de uma triste e inexorável fatalidade. Mas estavam convencidos de que eram heróis e julgavam cumprir a mais bela e a mais nobre das missões. Acusavam Kutuzov e diziam que desde que a campanha principiara não fizera outra coisa senão impedi-los de vencer Napoleão, que apenas pensava em satisfazer as suas paixões e não queria abandonar as suas «casas de pano», pois só aí se sentia em sossego: que em Krasnoie detivera o exército, pois, ao saber da presença de Napoleão, perdera por completo a cabeça; que estava em contacto com ele e que fora comprado pelo imperador dos Franceses, etc. (Memórias de Wilson. (Nota de Tolstoi). Não só os contemporâneos, cegos de paixão, falaram assim. A posteridade proclamou Napoleão grande e os historiadores estrangeiros disseram que Kutuzov era um velho cortesão, débil, manhoso e corrupto. E os Russos, esses, pintaram-no como uma criatura indefinível, espécie de palhaço, apenas útil em determinado momento, graças ao seu nome essencialmente eslavo. [V] Durante os anos de 1812 e 1813, Kutuzov foi francamente acusado pelos seus erros. O imperador estava descontente com ele. Uma história escrita nessa altura dizia que ele era um cortesão lisonjeador e embusteiro, que tremia só de ouvir o nome de Napoleão e, mercê dos erros que cometera em Krasnoie e no Beresina,privara o exército russo de obter uma completa vitória sobre os Franceses (História do Ano 1812, por Bogdanovitch; retrato de Kutuzov e dissertações sobre os resultados insuficientes da batalha de Krasnoie. (Nota de Tolstoi).. Tal é o destino dos homens superiores que não se atribuem a si próprios o título de «grandes homens», tão contrário ao temperamento russo, dessas raras e únicas personalidades que, interpretando os desígnios da Providência, a ela submetem os seus próprios. O ódio e o desprezo da multidão castigam estes homens por haverem previsto leis superiores. Para os historiadores russos, por estranho e penoso que isso pareça, Napoleão, esse insignificante instrumento da história, que nunca e em circunstância alguma, nem mesmo no exílio, deu provas de dignidade humana, esse Napoleão é motivo de entusiasmo e exaltações: é grande. Kutuzov, pelo contrário, ele, que desde o começo, em 1812, até ao fim da sua acção, de Borodino a Vilna, nem uma só vez se contradisse por palavras ou actos, esse homem, que é o exemplo mais notável da história de sacrifício e clarividência do futuro na realidade presente. Kutuzov, aos olhos deles, não passa de qualquer coisa de indefinível e lamentável e parece quase sempre envergonhado de falar de si próprio e dos acontecimentos em que participou. E no entanto é difícil conceber uma personagem histórica cujos actos tenham sido dirigidos com maior perseverança para um só e único fim. É difícil imaginar escopo mais nobre e mais de acordo com a vontade de todo um povo. E ainda é mais difícil encontrar na história um objectivo de antemão assinalado que haja sido mais completamente realizado que aquele que se propôs Kutuzov em 1812. Kutuzov nunca falou dos «quarenta séculos que nos contemplam do alto das Pirâmides», dos sacrifícios que fez pela pátria, do que tencionava fazer ou do que realizou; nunca falou propriamente de si próprio, nunca se propôs representar um papel. Sempre teve o aspecto do homem mais simples e mais comum, dizendo as coisas mais simples e mais banais. Escrevia às filhas e a Madame de Staël, lia romances, gostava do convívio das mulheres bonitas, gracejava com os generais, os oficiais e os soldados, e nunca desmentia as pessoas que lhe queriam provar fosse o que fosse. Quando Rostoptchine, na ponte de Iauza, lhe veio fazer censuras pessoais, acusando-o de responsável pela perda de Moscovo e declarando-lhe: «Pois quê, o senhor prometera entregar a cidade sem combate?», ele respondeu- lhe: «Mas não a entregarei sem combate!», quando é certo que a cidade a essahora já caíra nas mãos dos Franceses. Quando, tendo-o procurado em nome do imperador, Araktcheiev lhe disse ser preciso nomear Ermolov para o comando da artilharia, ele respondeu-lhe: «Sim, era precisamente isso que eu dizia», embora momentos antes tivesse dito exactamente o contrário. Que lhe importava a ele, a única pessoa no meio daquela gente absurda que o cercava que compreendia então o sentido formidável dos acontecimentos, que lhe importava que a infeliz sorte da capital fosse atribuída a Rostoptchine ou a ele próprio? E se isso lhe não importava, como lhe havia de importar o nome do comandante da artilharia? Não só nestes casos, mas constantemente, este velho, que adquirira, pela sua experiência da vida, a convicção de que tudo quanto se possa pensar ou dizer está longe de influir na direcção dos homens, apenas dizia palavras insignificantes, as primeiras que lhe vinham à cabeça. Contudo este homem, que tão pouca importância atribuía às suas palavras, nunca em toda a sua vida activa pronunciou uma palavra que não tivesse em vista o objectivo único que se propusera no decurso de toda a guerra. No entanto, a involuntariamente, é certo, apesar de ter a certeza, bem triste, de que o não compreenderiam, mais de uma vez, em circunstâncias muito diferentes, exprimiu o fundo do seu pensamento. Não foi ele, depois da batalha de Borodino, causa inicial das dissensões com os homens que o rodeavam, o único a exprimir a opinião de que aquela batalha constituía uma vitória, opinião que repetiu tanto oralmente como nos seus relatórios e até nos seus relatos, até à sua derradeira hora? Só ele também se atreveu a dizer que a perda de Moscovo não era a perda da Rússia. Na sua resposta a Lauriston, que pedia a paz, não é certo ter afirmado que a paz não era possível porque o povo a não queria? Não foi ele o único, durante a retirada dos Franceses, que garantiu que os movimentos russos eram inúteis, que as coisas se arranjariam por si melhor do que o que se podia desejar, que ao inimigo que foge «ponte de euro», que não tinham sido necessários nem o combate de Tarutino nem os de Viazma ou de Krasnoie, que era preciso atingir a fronteira com forças suficientes, que não daria um soldado russo por dez franceses? E foi só ele, esse homem que nos pintam como se fosse um cortesão, e que dizem ter mentido a Araktcheiev para agradar ao imperador, foi ele quem ousou, em Vilna, sabendo que desagradava ao seu monarca, afirmar que a continuação da guerra para lá da fronteira seria prejudicial e sem sentido.Não disse estas palavras apenas para provar que compreendia muitíssimo bem o sentido dos acontecimentos. Os seus actos, todos, sem excepção alguma, visaram este tríplice objectivo: concentrar todas as suas forças no intuito de fazer frente aos Franceses, vencer o, inimigo e por fim expulsá-lo da Rússia, minorando quanto possível os sofrimentos do povo e do exército. Só ele, Kutuzov, o contemporizador, cujo lema era: «Paciência e Tempo», só ele, o inimigo dos actos decisivos, trava a batalha de Borodino dando aos preparativos dela uma solenidade sem exemplo. Esse Kutuzov, que em Austerlitz previra que a batalha seria perdida em Borodino, a despeito da opinião dos generais que afirmavam certa a derrota, a despeito do exemplo único na história de um exército vitorioso que abandona o campo de batalha, afirma, só e até à morte, contra a opinião de todo o mundo, que essa batalha constitui uma vitória. Só ele, enquanto dura a retirada, insiste para que se não travem novos combates, que eram inúteis, sustentando que se não devia começar nova guerra, nem atravessar a fronteira. Hoje, desde que se ponham de lado todos esses objectivos que só um reduzido número de homens concebia, é fácil darmo-nos conta dos acontecimentos, pois estão a ver-se agora todas as suas consequências. Mas como é que esse velho, sozinho contra a opinião de todos os outros, pôde adivinhar tão bem o instinto popular na inteligência dos factos que nunca o atraiçoou? Essa extraordinária clarividência tinha a sua fonte no sentimento patriótico que nele vibrava em toda a sua força e em toda a sua pureza. O povo, por estranhas vias, soube reconhecer naquele homem esse sentimento intenso e escolher esse velho, então do desagrado do monarca, contra a vontade do czar, para que fosse ele a, conduzir a guerra patriótica. E só esse sentimento o colocou em tal altura moral e fez que, generalíssimo, empregasse todos os seus esforços, não para que fossem mortos e exterminados os seus homens, mas salvos e poupados. Esta figura simples, modesta e por conseguinte magna figura, não podia amoldar-se à forma mentirosa do herói europeu, pseudo-dominador dos povos, que a história imaginou. Não há grandes homens para o seu criado de quarto, porque o criado de quarto tem a sua maneira pessoal de compreender a grandeza. [VI] O dia 5 de Novembro foi o primeiro dia da batalha conhecida pela «batalha de Krasnoie». Para a noite, depois de muitos debates e de falsas manobras dos generais, após numerosas expedições de ajudantes-de-campo portadores de ordens contraditórias, quando se tornou evidente que o inimigo fugia por todos os lados e que era impossível travar batalha, Kutuzov seguiu de Krasnoie para Dobroie, para onde fora transferido, durante o dia, o quartel-general. Fazia um tempo claro e frio. Kutuzov, seguido de uma imponente comitiva de generais, que em voz baixa exprimiam o seu descontentamento, dirigia-se para Dobroie, montado no seu bem nutrido cavalo branco. Ao longo da estrada, em volta das fogueiras, juntavam-se os prisioneiros franceses capturados durante o dia, num total de sete mil. A pequena distância da aldeia um grande grupo desses prisioneiros esfarrapados, embrulhados nos primeiros trapos que tinham encontrado à mão, falava em tom elevado, junto de uma longa fila de peças francesas desatreladas. Quando o general-chefe se aproximou, as conversas cessaram e todos os olhares convergiram para Kutuzov, que, com um gorro branco de rebordos vermelhos, embrulhado numa capa almofadada, caminhava lentamente, as costas vergadas e esbarrondado sobre o cavalo. Um general ia-lhe explicando onde tinham sido apreendidas as peças e capturados os prisioneiros. Kutuzov, preocupado, não ouvia o que lhe diziam. Piscava o seu único olho com uma expressão descontente e observava os prisioneiros, de aspecto particularmente lamentável. A maior parte deles tinham as faces e o nariz gelados e os olhos vermelhos, inchados e lacrimosos. Um grupo encontrava-se mesmo junto do caminho, e dois soldados, um dos quais com a cara cheia de pústulas, rasgavam à mão um pedaço de carne crua. No olhar furtivo que lançaram aos generais havia qualquer coisa de terrível e bestial e o soldado do rosto em ferida teve uma expressão feroz quando viu Kutuzov, voltando-se em seguida e continuando a sua tarefa. O general-chefe contemplou por algum tempo esses dois soldados. Com uma expressão cada vez mais preocupada, abanava pensativamente a cabeça. Noutroponto reparou num soldado russo que, rindo e batendo familiarmente no ombro de um francês, lhe falava amistosamente, Kutuzov teve idêntico abanar de cabeça. — Que estás tu a dizer? — perguntou ele ao general que continuava a fazer o seu relatório, procurando chamar-lhe a atenção para as bandeiras francesas capturadas que, hasteadas, se encontravam diante do regimento Preobrajenski. — Ah! As bandeiras! — exclamou Kutuzov, arrancando-se, penosamente, ao curso das suas reflexões. E lançou à sua roda um olhar distraído. Milhares de olhos, à sua volta, se fixaram nele, aguardando o que ele ia dizer. Diante do regimento Preobrajenski parou, soltou um profundo suspiro e fechou os olhos. Alguém da comitiva fez sinal aos soldados que empunhavam as bandeiras para que se aproximassem e estes agruparam-se em volta do general-chefe, empunhando os estandartes. Kutuzov esteve calado alguns instantes, e, sem grande prazer, apenas como se se submetesse às circunstâncias, ergueu a cabeça e pôs-se a falar. A chusma dos oficiais envolveu-o. Kutuzov percorreu-os atentamente com o olhar, reconhecendo alguns. — Agradeço-vos a todos! — disse, primeiro virado para os soldados e depois para os oficiais. E no silêncio que reinava as suas palavras destacavam-se nitidamente. — Agradeço-vos o vosso penoso e fiel serviço, A vitória é completa e a Rússia não vos esquecerá. Que a glória seja convosco para sempre! Calou-se e olhou em volta de si. — Abaixa-lhe, abaixa-lhe a cabeça! — gritou ele a um soldado que inclinava, sem querer, a águia francesa diante da bandeira do regimento Preobrajenski. — Mais, mais para baixo, assim. Hurra!, rapazes! — gritou, dirigindo-se aos soldados com uma contracção nervosa do queixo. — Hurra! Hurra! — rugiram milhares de vozes. Enquanto os soldados gritavam, ele, debruçado sobre a sela, inclinava a cabeça, e pelo seu único olho perpassou-lhe um lampejo ligeiramente trocista. — Ouçam-me, rapazes — principiou, quando as vozes se calaram. E de súbito a sua voz e a expressão do rosto mudaram por completo. Já não era o general quem falava, mas um velho, simplesmente, que queria agora comunicar coisas urgentes aos seus camaradas. Houve uma agitação no meio dos oficiais e nas fileiras dos soldados, todos tentando ouvir o melhor possível o que ele ia dizer.— Ouçam, rapazes. Eu bem sei que é duro, mas que havemos de fazer? Tenham paciência. Já não é por muito tempo. Vamos acompanhar os nossos hóspedes e depois toca a descansar. O czar não esquecerá os vossos serviços. É duro, mas, seja como for, vocês estão naquilo que vos pertence: em vossa casa. Mas esses, olhem para eles, onde estão eles? — acrescentou, apontando para os prisioneiros. — Estão em pior estado que os mais miseráveis bandidos, Quando eram poderosos, não tínhamos que nos compadecer deles, mas agora também os podemos lamentar. São homens como nós. Não é verdade, rapazes? Kutuzov olhou à sua volta, e em todos os olhares atentos, respeitosamente interrogadores, fixados nele, havia simpatia pelas suas palavras. O rosto cada vez se lhe iluminava mais do seu bom sorriso de velho, que lhe abria estrelas de rugas nas comissuras dos lábios e no canto dos olhos. Calou-se e baixou a cabeça: dir-se-ia irresoluto. — Mas, para falar verdade, quem os mandou cá vir? É bem feito, com mil bombas! — disse, de súbito, erguendo a cabeça. Brandindo o látego, abalou a galope, pela primeira vez em toda a campanha, no meio dos risos e dos hurras alegres dos soldados, que principiavam a destroçar. Evidentemente que nem todos os soldados tinham compreendido as palavras de Kutuzov. Ninguém seria capaz de repetir textualmente este discurso, solene no princípio e de uma simplicidade cheia de bonomia nas suas últimas frases. A verdade, porém, é que o seu sentido íntimo não só foi bem compreendido, mas chegou ao fundo da alma dos soldados. Esses sentimentos de grandeza majestosa aliados à piedade para com o inimigo e à consciência de que a razão estava do seu lado, expressos na imprecação característica do velho, correspondiam ao que eles próprios sentiam, Essa a razão por que soltaram prolongadas e alegres aclamações. Quando em seguida um dos generais veio perguntar ao generalíssimo se ele queria seguir de carruagem. Kutuzov respondeu-lhe com um soluço, tão viva era a emoção que, sentia. [VII] A 8 de Novembro, último dia dos combates de Krasnoie, já era noite quando astropas chegaram aos bivaques. O dia fora tranquilo, frio e com alguns raros flocos de neve que esvoaçavam pelo ar. Para a noite o tempo clareou: através da neve ligeira surgiu um céu estrelado, negro-violeta, e o frio tornou-se mais vivo. O regimento de fuzileiros, que partira de Tarutino com três mil homens e estava agora reduzido a novecentos, foi um dos primeiros a chegar ao ponto indicado, uma aldeia situada na estrada real. Os forrageiros que tinham saído ao seu encontro declararam que todas as isbás estavam ocupadas por doentes ou cadáveres de franceses, a cavalaria e o estado-maior. Apenas restava uma para o comandante do regimento. Este último dirigiu-se à isbá devoluta. O regimento atravessou a povoação e ensarilhou armas nas últimas casas à beira da estrada. Como um grande animal de muitos braços, o regimento pôs-se a organizar o seu alojamento e a tratar do rancho. Parte dos soldados, com neve até aos joelhos, dispersou-se pela mata de álamos, à direita da aldeia, e logo se ouviram machados e pederneiras, estalar de ramos quebrados e vozes joviais; outra parte azafamava-se em volta das viaturas regimentais e dos cavalos agrupados no mesmo sítio. Dos carros tiraram marmitas e biscoitos e deram aos cavalos a sua ração. Ainda outros soldados se espalharam pela aldeia em busca de instalações para o estado-maior, retirando os cadáveres dos franceses que atulhavam as isbás, arrastando pranchas, lenha ou palha arrancada dos tectos das casas para alimentar as fogueiras, demolindo os tabiques para com eles arranjar abrigos. No extremo da povoação, uns quinze homens tratavam de derrubar, no meio de alegre gritaria, o alto tabique de uma granja cujo telhado já fora arrancado. — Força, força, empurremos todos juntos! — gritavam, e no meio das trevas ouvia-se o ruído seco da divisória que estremecia, completamente coberta de neve. O rangido era cada vez maior e por fim toda aquela massa cedeu com os soldados que a ela se apoiavam. Ouviram-se grandes risadas e altos gritos. — Agarrem-na os dois. Tragam uma alavanca! Assim! Onde é que te meteste? — Força! Todos ao mesmo tempo!... Força, rapazes!... Cantem... A compasso! Todos se calaram: depois uma voz bastante fraca, de timbre agradável, entoou uma canção. No final da terceira estrofe, quando a última nota se extinguiu, vinte vozes gritaram em coro: — Uuupa! — Uuupa! Todos à uma, rapazes! Isto vai! Apesar dos esforços de todos, o tabique não se movia, e no meio do silêncio que reinou de novo ouviu-se o resfolgar dos peitos cansados.— E então vocês, os da 6ª! Diabos vos levem! Ajudem aqui!... A gente depois vos ajudará noutra coisa! Uns vinte homens da 6ª companhia que iam passando juntaram-se aos que faziam força, e daí a pouco o tabique, que tinha cinco sagenas de comprido por uma de altura, seguia aos ombros dos soldados, ajoujados, pelas ruas da povoação além. — Eh, tu, lá adiante! Porque páras? Assim não. — Os gracejos, as interpelações joviais sucediam-se. — Que estão vocês a fazer? — gritou, de súbito, um sargento, numa voz de comando, correndo atrás dos homens que levavam às costas o tabique — Estão aí os patrões! Está aí o general! Ah!, seus malandros! Eu ajustarei contas com vocês! — E deixou cair o punho fechado em cima do primeiro soldado que lhe passou à mão. — Não podem fazer menos barulho? Os soldados calaram-se. Aquele que apanhara o murro do sargento, resmoneando, pôs-se a limpar a cara, que sangrava por ter batido contra o tabique. — Ah! Raios o partam! Isto é maneira de bater num homem? Pôs-me a cara em lindo estado! — exclamou, sem levantar a voz, quando o sargento se afastou. — Hem? Não gostaste!? — gracejou um deles. E os soldados prosseguiram a sua marcha, procurando não gritar num tom tão elevado. A saída da aldeia tornaram de novo à risota e aos ditos inofensivos. Na isbá diante da qual os soldados tinham passado estava reunido o alto comando, e enquanto bebiam chá os oficiais iam discutindo animadamente o dia que findara e as manobras projectadas para depois. Tinham proposto uma marcha de flanco sobre a esquerda, cortando a retirada ao vice-rei e capturando-o. Quando os soldados chegaram com o tabique demolido, já por toda a parte estavam acesas as fogueiras do rancho. A lenha estralejava, a neve derretia-se e as sombras negras dos soldados enchiam o espaço coberto de gelo espezinhado. Por todos os lados se ouviam machados e pederneiras. Tudo se fazia sem ordens de comando. Acumulavam lenha para a noite, levantavam barracas para os comandantes, a sopa cozia nas marmitas, limpavam-se as espingardas e os fardamentos. O tabique que a 8ª companhia transportara foi colocado em semicírculo do lado do vento, firmado no chão por estacas, e, abrigado por ele, montaram um bivaque.Tocou a recolher, fez-se a chamada, os homens cearam e aninharam-se para a noite diante das fogueiras, uns remendando as botas, outros fumando cachimbo, outros despindo-se para catar os piolhos. [VIII] Dir-se-ia que nas condições extremamente penosas em que se encontravam naquele momento os soldados russos, sem botas de Inverno nem peliças e acampando a céu aberto, com temperaturas de dezoito graus abaixo de zero, sem mesmo saberem o que era rancho regulamentar, pois a pitança nem sempre chegava a horas, deviam oferecer o mais lamentável e o mais desolador dos espectáculos. E no entanto nunca os soldados tinham estado tão alegres e animados, nem mesmo durante a época em que se encontravam em situação material mais favorável. E isto explica-se, pois, à medida que o tempo ia passando, do meio deles desaparecia tudo quanto era tristeza e fraqueza. Todos os que se haviam debilitado física ou moralmente ficavam para trás. O que estava ali agora era a fina flor do exército, do ponto de vista moral e do vigor físico. Atrás do abrigo da 8ª companhia abrigara-se uma grande multidão. Tinham-se- lhe juntado dois sargentos e as fogueiras ardiam ali melhor que em qualquer outra parte. Para se ter o direito de estar sentado atrás do tabique era mister fornecer lenha para o fogo. — Eh! Makaiev, que estás a fazer?... Perdeste-te ou foste comido pelos lobos? Anda, traz-me lenha — gritava um soldado ruivo de ventas iluminadas, com os olhos vermelhos muito piscos por causa do fumo, e que nem assim deixava a fogueira. — Anda, traz lenha, vadio! — dizia ele para o camarada. Não era sargento nem cabo, mas soldado vigoroso, por isso se dava ao luxo de mandar nos mais fracos. O soldado magro, pequenito, de nariz aguçado, a que ele chamara vadio, ergueu-se docilmente e preparava-se para cumprir a ordem recebida quando surgiu junto da fogueira a silhueta fina e agradável de um moço soldado sobraçando um molho de lenha. — Traz para aqui! Bem bom! Quebraram os ramos, deitaram-nos na fogueira, e, soprando e agitando oscapotes, não tardou que o lume, reanimado, se pusesse a crepitar. O moço soldado de, bela figura firmou as mãos na cinta e pôs-se a bater vigorosamente com os pés no chão. — «Ah, mãezinha, a cacimba está fria, mas é bonita!» — cantarolou ele, suspirando entre cada sílaba da canção. — Eh!, era melhor que remendasses as botas em vez de dançares! — gritou- lhe o soldado ruivo ao ver a badalar uma das solas do dançarino. O dançarino deteve-se, arrancou o bocado de sola e atirou com ela para a fogueira. — É o que estás vendo, irmão — disse ele, sentando-se. E tirou do bornal um pedaço de pano azul, resto de um uniforme francês, e embrulhou-o em volta do pé. — As duas lá se foram acrescentou, estendendo os pés para a fogueira. — Não tarda que nos estejam a dar umas novas. Segundo dizem, quando chegar o fim, recebemos o pré a dobrar. — Pois não queres saber? Esse filho de uma cadela do Petrov ficou pelo caminho — disse um sargento. — Sim, já tinha dado por isso há tempo — comentou outro. — Que queres? Soldados de papelão!... — Na 3ª, parece que ontem faltaram nove a chamada. — Sabes?, quando nos gelam os pés, a gente não pode andar, — Deixa-te de tolices! — comentou o sargento. — Querias tu, naturalmente, que te sucedesse o mesmo — disse um velho soldado dirigindo-se, mal-humorado, ao que falara em pés gelados. — E que julgas tu? — interveio, de súbito, soerguendo-se, numa voz estrídula e trémula, o soldado de nariz aguçado a quem tinham chamado vadio. — Por mais que uma pessoa esteja fresca e bem disposta, vamos emagrecendo, apesar de tudo, e quando a gente emagrece lá está a morte à nossa espera. Olhem, eu não posso mais — acrescentou, de repente, em tom enérgico, dirigindo-se ao sargento. — Mande-me baixar ao hospital. Estou tolhido de reumatismo, De outra maneira, acabo pelo caminho, como os outros. — Basta, basta! — disse tranquilamente o sargento. O soldado enfezado calou-se e a conversa continuou. — Isso é que foi hoje um apanhar de franceses! Mas a respeito de botas, valha a verdade, nem um par para amostra comentou um soldado para mudar deassunto. — São os cossacos quem lhas tiram. Limparam a isbá para instalar o coronel e tiraram-nos todos lá de dentro. Corta o coração vê-los, rapazes — exclamou então o soldado que dançara. — Tiraram-lhes tudo. Um deles ainda estava vivo, e lá ia dizendo qualquer coisa na sua língua. — E é gente apurada, rapazes — voltou o primeiro. — São brancos, brancos como os álamos, E alguns parecem valentes, é o que te digo, e há os que são nobres. — É verdade, tens razão. Recrutam homens de todas as classes. — E não sabem uma palavra de russo — prosseguiu o outro com um ingénuo espanto. — Perguntei a um a que coroa pertencia, e ele pôs-se a arengar qualquer coisa lá na língua dele. São tipos estranhos. — Sim, rapazes, é curioso — continuou o que se surpreendera com a brancura da pele dos Franceses. — Disseram os camponeses que em Mojaisk, quando contaram os mortos, depois da batalha, que hão-de eles ver? Havia quase um mês que tinham morrido. E estavam ali estendidos, diziam eles, brancos como uma folha de papel, e limpos, nem sombra de cheiro. — Ora, é por causa do frio — objectou um deles. — Sempre és muito esperto! O frio? Mas fazia calor! E se fosse por causa do frio também os nossos não apodreciam. E quando aparecia um dos nossos estava sempre coberto de bichos, e de tal maneira, diziam eles, que era preciso pôr um lenço na boca e virar a cara para o lado quando carregavam com eles. Não se podia aguentar. Enquanto os franceses estavam brancos como uma folha de papel, e nem sombra de cheiro. Toda a gente se calou. — É talvez por causa do que comem — disse o sargento. — Comem que nem senhores. Ninguém objectou fosse o que fosse. — E esse camponês de Mojaisk, onde se travou a batalha, contou que evacuaram mortos de mais de dez aldeias, que os andaram a acarretar durante vinte dias e que não conseguiram levá-los todos. E que havia por lá cada lobo, dizem eles... — Sim, aquela, sim, foi uma verdadeira batalha — comentou o velho soldado. — Nunca mais a esqueceremos. Mas o que depois aconteceu... Só para fazer sofreros soldados. — Queres saber, tio? Antes de ontem foram atrás deles. E eles não nos deixam sequer aproximar. Deitam fora as armas e põem-se logo de joelhos! «Perdão!», dizem eles. E aqui tens outra. Parece que o Platov já por duas vezes esteve a ponto de deitar a mão ao próprio Polião. Mas ele não sabe a palavra mágica. Prende-o, prende-o, mas aí está, o outro, uma vez nas suas mãos, transforma-se num pássaro e lá vai ele a voar, a voar. E dizem também que não há maneira de o matarem. — És danado para a mentira, Kisseliev! — Quê? Mentiras? É a verdade pura! — Pois bem, eu, se o tivesse apanhado, tinha-o enterrado vivo. E com uma estaca de faia, ainda por cima. A gente que ele tem matado! — Seja como for, há-de ter a sua conta, não escapa. — concluiu o velho soldado, bocejando. A conversa ficou por ali e os soldados aninharam-se para dormir. — Olha lá para cima. Aquilo é que são estrelas! Que me dizes? As mulheres puseram a roupa a, enxugar! — disse um soldado que admirava a Via Láctea. — É sinal de que vamos ter ano farto, rapazes! — Era precisa mais lenha na fogueira. — Temos as costas quentes e a barriga fria, Não é brincadeira! — Oh! Deus meu! — Que estás tu a empurrar, é só para ti o fogo, porventura? Não querem ver como ele se estende! No meio do silêncio que se começava a estabelecer ouviu-se o ressonar de alguns homens. Os outros continuavam a dar voltas e reviravoltas para se aquecerem, trocando entre si raras palavras. De um bivaque afastado um cento de passos chegava um rumor de gargalhadas. — Estás a ouvir o que eles se divertem na 5ª? — disse um soldado. — E a quantidade de gente que eles lá têm! Levantou-se para ver o que se passava na 5ª companhia. — Tem graça! — disse ele, quando voltou. — Apareceram dois franceses. Um deles está todo gelado, mas o outro, aquilo é que é divertido! Está a cantar cantigas lá deles. — Então vamos ouvi-lo. E alguns soldados encaminharam-se para a 5ª companhia. [IX] A 5ª companhia estava mesmo junto da floresta. Uma grande fogueira ardia no meio da neve, iluminando os ramos das árvores carregados de gelo. No meio da noite, os homens daquela companhia tinham ouvido, na floresta, um ruído de passos e de ramos pisados. — Rapazes! Um urso! — disse um deles. Todos levantaram a cabeça, de ouvido alerta, e viram surgir da floresta, iluminadas pela chama da fogueira, duas formas humanas amparando-se uma à outra, estranhamente vestidas. Eram dois franceses que se haviam escondido na mata. Pronunciando palavras numa voz rouca em língua desconhecida dos soldados, aproximaram-se da fogueira. Um deles, bastante alto, de barretina de oficial, parecia muito debilitado. Assim que chegou, deixou-se cair praticamente no chão. O outro, soldado raso, mais pequeno, gordinho, com os queixos amarrados, parecia em melhor estado. Ajudou a erguer o companheiro e pronunciou algumas palavras mostrando a boca. Os soldados russos juntaram-se à sua volta, estenderam uma manta sobre o doente e deram-lhes cacha e vodka. O oficial doente era Ramballe e o soldado dos queixos amarrados o seu impedido, Morel. Morel, depois de emborcar a vodka e engolir uma marmita de cacha, sentiu-se, de repente, tomado por um verdadeiro acesso de alegria, e pôs-se, sem se calar, a contar uma quantidade de coisas absolutamente incompreensíveis para os soldados russos. Ramballe não quis comer e ficou encostado, sem dizer palavra junto da fogueira, fitando os soldados russos com os seus olhos vermelhos vazios de expressão. De vez em quando soltava um profundo suspiro, depois voltava a ficar silencioso. Morel, apontando-lhe para as charlateiras, procurava explicar aos soldado que era oficial e que era preciso aquecê-lo. Um oficial russo que se aproximara mandou perguntar ao coronel se não quereria dai, hospitalidade a um oficial francês. O coronel deu ordem para o conduzirem e os soldados persuadiram Ramballe a aceitar o convite. Este ergueu-se e tentou caminhar, mas tropeçou eteria caído se um soldado o não tem amparado. — Então, que é isso? Não podes andar? — disse a Ramballe um soldado, trocista. — Imbecil! Que estás tu a dizer? — acorreram logo outros, indignados com o gracejo do camarada. — Não passas de um rústico, sim, de um rústico. Rodearam Ramballe, dois pegaram-lhe por debaixo dos braços e transportaram — no para a isbá do coronel. Ramballe, com os braços à roda do pescoço dos que o levavam, murmurava em voz lamentosa: — Oh!, meus valentes, oh!, meus valentes, meus bons amigos! Isto é que são homens! Oh!, meus valentes, meus bons amigos! — E, como uma criança, deixava descair a cabeça ora no ombro de um ora no ombro do outro dos homens que o ajudavam. Entretanto, Morel instalara-se no melhor lugar, no meio de uma roda de curiosos. O atarracado francês, de olhos inchados e lacrimosos, o lenço amarrado aos queixos como uma mulher, tinha vestido uma peliça de senhora. Naturalmente já de grão na asa, abraçava-se ao soldado que lhe ficava ao lado e cantava, em voz entrecortada rouca, uma canção francesa. Os soldados riam a bandeiras despregadas. — Anda, ensina-nos a cantiga. Como é isso? Eu apanho logo música. Como é isso? — pedia-lhe o rústico, apreciador de cantigas, que Morel abraçava carinhosamente. — Viva Henrique IV! Viva esse valente rei! — cantarolava Morel, piscando os olhos. — Esse diabo a quatro... — Vivariká! Vif seruvaru!, sidiablaka... (Algaravia russa que pretende reproduzir a letra da melodia francesa. (N. dos T.) — repetia o soldado gesticulando e seguindo, realmente, a música da canção. — Bravo! Bravo! exclamavam várias vozes, à mistura com gargalhadas. Morel ria também. — Bem, anda, mais, mais! — Que teve o triplo talento de beber, de batalhar e de ser um galanteador... — Caramba! Isto soa bem ao ouvido! Agora tu, Zaletaiev, repete!... — Kiu, kiu, kiu... — entoou Zaletaiev com dificuldade, fazendo um momo com os lábios — lietriptala dié bu dié ba a dietravagala (Algaravia russa que pretende reproduzir a letra da melodia francesa. (N. dos T.).— Muito bem! Muito bem! Pareces mesmo um francês! Ah! Ah! Ah! Olha lá, ainda tens fome? — Dá-lhe mais cacha. Não é tão depressa que ele se ,ai sentir farto. Deram-lhe uma nova tigela de cacha e Morel, muito risonho, pôs-se logo a emborcá-la. A soldadesca nova estava alegre na sua companhia. Os velhos soldados, que achavam, impróprias aquelas necedades, formavam grupo à parte, mas de quando em quando, soerguendo-se nos cotovelos, olhavam para o francês e sorriam. — Eles também são homens — observou um deles, e aconchegando-se no capote. — Até o absinto deita raízes. (O absinto é considerado planta de mau agoiro. (N. dos T.) — Oh! Meu Deus, meu Deus! Tantas estrelas! Que geleira aí vem! Tudo foi serenando As estrelas, como se soubessem que já mais ninguém havia para as ver, iam cintilando, qual delas a mais brilhante, no céu de breu. Ora chispando, ora apagando-se ou chispando ainda mais, dir-se-ia participarem umas as outras qualquer misteriosa e alegre notícia. [X] As tropas francesas continuavam a decompor-se regularmente segundo uma progressão matemática. A travessia do Beresina, sobre que se escreveu tanta coisa, não foi mais que um incidente intercalar na obra de destruição e de modo algum um episódio decisivo da campanha. Se muito se escreveu, se ainda continua a escrever-se a este respeito, é que, do lado francês, esta ponte, que foi pelos ares, sintetizava, por assim dizer, as desgraças, até aí mais ou menos iguais umas às outras, experimentadas pelo exército francês, num espectáculo trágico, que para sempre ficou na memória de todos. Se os Russos, pela sua parte, muito comentaram este caso, é porque, longe do teatro da guerra, em Petersburgo, um plano estabelecido por Pfuhl previra a ratoeira estratégica do Beresina. Ali toda a gente estava, convencida de que na realidade tudo se passaria como estava previsto no plano e por isso mesmo atribuíram à passagem do no a perda dos Franceses. A verdade, porém. é que as consequências foram muito menosdesastrosas para eles, em homens e canhões, que as de Krasnoie, por exemplo, como se pode provar com algarismos. O caso do Beresina só numa coisa é importante: em ter demonstrado de maneira evidente e incontestável que todos os planos para cortar a retirada ao inimigo eram errados e que a única coisa sensata era o que exigia Kutuzov e a massa das tropas, isto é, que se seguisse o inimigo de perto. Os Franceses fugiam cada vez mais depressa, não pensando noutra coisa senão em chegar onde queriam. Fugiam como um animal ferido e não lhes era possível deterem-se no caminho. E isso ficou bem demonstrado menos pela própria organização da travessia do no que pela passagem das pontes. As pontes tinham ido pelos ares, e toda aquela gente, soldados desarmados, habitantes de Moscovo, mulheres e crianças que acompanhavam as bagagens dos Franceses, graças à velocidade adquirida, em vez de se resignar a esperar, precipitou-se para a frente, para dentro das barcas, e para cima das águas geladas. Compreendia-se esta precipitação. Tão má era a situação dos que fugiam como a dos que os perseguiam. Conservando-se ao lado dos seus, na sua desgraça, cada um esperava o auxílio do camarada, tinha o seu lugar entre eles. Se se entregassem aos Russos, era para continuarem na mesma desgraçada situação, passando a ser contados entre os últimos com direito a receber mantimentos. Os Franceses não precisavam de informações precisas para saberem que metade dos prisioneiros nas mãos dos Russos — e o certo é que estes não sabiam que destino dar-lhes, por mais que quisessem salvá-los — morriam de fome e de frio. Pressentiam que assim tinha de ser. Os chefes russos mais compassivos e que mais simpatias tinham pelos Franceses, os próprios franceses ao serviço dos Russos, nada podiam fazer pelos prisioneiros. A ma situação em que se encontrava o exercito russo concorria para a perdição dos Franceses. Era impossível tirar pão e roupa a soldados esfomeados e cheios de privações para dá-los aos Franceses, evidentemente inofensivos, nem sequer hostis ou culpados, simplesmente inúteis. Alguns o fizeram, mas só excepcionalmente. Voltar para trás era a perdição certa: avançar, a esperança. Tinham-se queimado as embarcações, só havia uma salvação, a fuga em comum, e todas as forças francesas tendiam para essa meta Quanto mais demorada era a retirada, mais lamentável o aspecto que ofereciam os restos do exército francês, sobretudo depois do Beresina, que fizeranascer, graças ao plano de Petersburgo, esperanças particulares, e mais se exasperavam as paixões dos chefes russos, que se culpavam uns aos outros e principalmente Kutuzov. Diziam que ele seria chamado à responsabilidade pelo malogro do plano do Beresina estabelecido em Petersburgo, o que tornava maior o descontentamento, o desdém e a troça que ele inspirava. Claro que tanto a troça, como as provas de desconsideração exprimiam-se de uma forma respeitosa, e de tal sorte que o próprio interessado nem sequer podia perguntar de que o acusavam. Não lhe falavam a sério; quando lhe apresentavam qualquer informação ou lhe pediam uma decisão, dir-se-ia cumprirem uma cerimónia fúnebre. Por detrás das suas costas piscavam o olho uns aos outros e faziam o que podiam para o enganar. Todos aqueles homens, precisamente porque o não podiam compreender, estavam convencidos de que era inútil discutir com semelhante velho, incapaz de entender jamais a profundidade dos seus planos, o qual sempre lhes respondia com uma das suas frases, para eles frases apenas, como a da «ponte de ouro» e que não era possível chegar à fronteira com aqueles bandos de esfarrapados, e coisas no mesmo género. Há muito que lhe conheciam semelhante estribilho. Tudo quanto ele dizia: que era preciso esperar pelos mantimentos, que os homens não tinham botas para calçar, tudo era de uma simplicidade infantil, enquanto eles propunham coisas complicadíssimas e sábias. E daí tornar-se evidente que Kutuzov não passava de um velho imbecil enquanto eles, cabos-de-guerra geniais, ali estavam sem poderes para realizar o que congeminavam. Depois da junção do exército de Kutuzov com o do preclaro almirante Wittgenstein, herói de Petersburgo, todas essas malévolas disposições e todas essas intrigas do estado-maior se agravaram ainda mais. Kutuzov, ao dar por isso, limitava-se a despedir um suspiro e a encolher os ombros. Só uma vez, depois do Beresina, se zangou e escreveu a Bennigsen, o autor das informações particulares enviadas ao imperador, a carta seguinte: Rogo a Vossa Excelência que, ao receber esta carta, se apresente em Kaluga, em virtude do seu estado de saúde pouco satisfatório, onde aguardara ordens ulteriores de Sua Majestade Imperial. Como resultado do afastamento de Bennigsen, o grão-duque Constantino Pavlovitch, que havia tomado parte na primeira fase da campanha e fora afastado por Kutuzov, foi reintegrado no exército. Ao chegar informou o general-chefe de que o czar estava muito descontente com os ligeiros êxitos das tropas russas e a lentidão dos seus movimentos e anunciou-lhe que o imperador tinha a intenção de visitar pessoalmente, o exército. Kutuzov, esse velho, tão experimentado cortesão quão bom militar, que em Agosto desse ano fora nomeado generalíssimo contra a vontade do imperador, que determinara o abandono de Moscovo, esse homem compreendeu imediatamente que a sua hora tinha soado, que o seu papel acabara e que os supostos poderes que ainda lhe pertenciam lhe iam ser retirados. E não só como cortesão compreendia que assim era. Percebia que a acção militar em que desempenhara o seu papel estava no fim, que a sua missão terminara. Por outro lado, principiava ao mesmo tempo a sentir que o corpo, quebrado pela idade, cansado, pedia descanso. [XI] No dia 29 de Novembro, Kutuzov entrou em Vilna, na sua querida Vilna, como ele dizia. Duas vezes na sua carreira fora governador da cidade. Na rica Vilna, que se conservava intacta, além das comodidades de que por tanto tempo estivera privado, encontrava velhos amigos e boas recordações. Liberto, de súbito, de todas as preocupações oficiais e militares, entregou-se a uma vida regular e tranquila, na medida em que o permitiam as paixões que germinavam à sua roda, como se tudo que se estivesse a passar naquele momento, e que ainda tinha de se cumprir como acontecimento histórico, lhe fosse de todo indiferente. Tchitchagov um dos mais ardorosos partidários da ideia de se cercarem e derrotarem os Franceses, que a princípio quisera levar a cabo uma diversão militar na Grécia, e depois em Varsóvia, mas que nunca se apresentava onde o mandavam, esse homem célebre pela ousadia com que falara ao imperador, que ao mesmo se considerava protector de Kutuzov, pois, quando si fora à Turquia, em 1811, incumbido da missão de concluir a paz, ao saber que a paz já fora concluída, dissera ao imperador que o mérito de tal missão pertencia a Kutuzov —Tchitchagov foi o primeiro a receber o generalíssimo junto do castelo de Vilna, onde este devia hospedar-se. Com o seu uniforme de marinheiro, de espada à cinta, o chapéu debaixo do braço, apresentou a Kutuzov o seu relatório sobre o estado da guarnição e as chaves da cidade. A deferência um tanto desdenhosa que a juventude testemunhava a um velho que ela entendia chegado â segunda meninice traduzia-se no mais alto grau na maneira de agir de Tchitchagov, ao corrente das acusações que faziam ao generalíssimo. Na conversa que teve com ele, Kutuzov dissera-lhe, entre outras coisas, que as suas bagagens tornadas em Borissov, com toda a sua baixela, estavam intactas e lhe iam ser entregues. — É para me dizer que eu não tenho que comer... Estou habilitado, pelo contrário, a fornecer-lhe seja o que for, mesmo que pretenda oferecer banquetes — respondeu-lhe Tchitchagov acaloradamente. Queria mostrar-se importante em cada uma das palavras que dizia e estava persuadido de que essa era a intenção do seu interlocutor. Kutuzov teve um sorriso fino e penetrante e respondeu encolhendo os ombros: — É apenas para lhe dizer o que lhe estou a dizer. Ao contrário do que o imperador queria, o generalíssimo mandou que se detivesse em Vilna a maior parte das suas tropas. Na opinião das pessoas que o rodeavam, decaíra muito fisicamente durante a sua permanência nesta cidade. Só muito ao de leve se preocupava com os assuntos militares, deixando que os generais fizessem tudo, e enquanto aguardava a chegada, do imperador entregava-se ao prazer. Tendo saído de Petersburgo com a sua comitiva no dia 7 de Dezembro — o conde Tolstoi, o príncipe Volkonski, Araktcheiev e outros — o imperador chegou a Vilna no dia 11, dirigindo-se imediatamente ao castelo no seu trenó de viagem. Apesar do frio que fazia, esperavam-no, cá fora, uma centena de generais e de oficiais do estado-maior, de uniforme de gala, bem como uma guarda de honra do regimento Semionovski. O correio que precedia o czar chegou ao castelo, numa troika, coberto de suor, e gritou: — O imperador! Konovnitsine precipitou-se no vestíbulo para advertir Kutuzov, que esperava no compartimento do porteiro.Um minuto depois, Kutuzov, no seu uniforme de gala, com todas as condecorações e cobrindo-lhe o peito por completo, uma faixa a apertar-lhe o ventre, surgia no alpendre em passos titubeantes. Cobriu a cabeça, como se estivesse a comandar o exército, pegou nas luvas, desceu com dificuldade os degraus do alpendre e pegou no relatório que ia ser apresentado ao czar. Um grande alarido se ouviu, uma troika passou vertiginosa a toda a gente fixou os olhos no trenó que chegava, a galope, onde se destacavam as silhuetas do imperador e de Volkonski. Apesar de mais de cinquenta anos de experiência, esta chegada não deixou de impressionar, como sempre, o velho general. Apalpou-se, febrilmente, à pressa, ajeitou o gorro e as condecorações, enquanto o imperador, apeando-se do trenó, erguia para ele os olhos. Depois apresentou-lhe o relatório, dominando a emoção que o tomava, sem perder o aprumo militar, e pôs-se a falar numa voz comedida e insinuante. O imperador olhou-o rapidamente da cabeça aos pés, franziu as sobrancelhas por segundos, mas, dominando-se imediatamente, aproximou-se e, de braços abertos, apertou-o contra o peito, Esta atitude do imperador, acordando-lhe velhas impressões e pensamentos íntimos, produziu em Kutuzov o efeito habitual: rompeu em soluços. O imperador saudou os oficiais, a guarda de honra do Semionovski e, apertando mais uma vez a mão do generalíssimo, penetrou com ele no castelo. Quando ficou só com o marechal exprimiu-lhe o seu descontentamento por causa da morosidade na perseguição dos Franceses, dos erros cometidos em Krasnoie e no Beresina e pó-1o ao corrente dos seus planos sobre a futura campanha no estrangeiro. Kutuzov não fez a mais pequena observação nem teve o mais pequeno comentário. No seu rosto havia a mesma expressão submissa de sete anos antes, ao receber as ordens do soberano no campo de batalha de Austerlitz. Quando, no seu andar pesado e cambaleante, saiu do gabinete do imperador e, de cabeça baixa, atravessou o salão, uma voz deteve-o. — Sereníssimo! — dizia-lhe alguém. Kutuzov ergueu a cabeça e ficou a olhar por muito tempo o conde Tolstoi, que estava diante dele, com um minúsculo objecto dentro de uma salva de prata. Dir- se-ia não compreender o que queriam dele.De súbito pareceu recordar-se, um sorriso imperceptível lhe perpassou pelo rosto entumecido, e, inclinando-se respeitosamente, numa grande vénia, pegou no objecto que estava na salva. Era a cruz de S. Jorge de 1ª classe. [XII] No dia seguinte, o marechal ofereceu um jantar seguido de baile, que o imperador honrou com a sua presença. Kutuzov recebia a cruz de S. Jorge de 1ª classe; o imperador prestava-lhe as maiores honras; mas o descontentamento do soberano não era segredo para ninguém. Tinham-se respeitado as conveniências e ele fora o primeiro a dar o exemplo. Mas toda a gente sabia que o velho era culpado e já para nada prestava. Como Kutuzov ordenasse, de acordo com um velho costume dos tempos de Catarina, que no momento em que o imperador entrasse na sala de baile lhe depusessem aos pés os estandartes tomados ao inimigo, o soberano, descontente, franziu o sobrolho e pronunciou algumas palavras, onde alguns julgaram surpreender esta frase: «Velho comediante! » O descontentamento do czar ainda se tornou mais evidente durante a permanência em Vilna quando verificou que Kutuzov não queria ou não podia compreender a utilidade da campanha projectada. No dia seguinte ao da sua chegada, o imperador dissera aos oficiais reunidos à sua volta: — Os senhores não salvaram apenas a Rússia, os senhores salvaram a Europa. — E então todos compreenderam que a guerra não findara. Só Kutuzov não podia compreender e dizia a quem o queria ouvir que uma nova guerra não melhoraria a situação nem aumentaria a glória da Rússia, mas, muito pelo contrário, concorreria para piorar e diminuir o alto prestígio de que o país então desfrutava, segundo ele. Esforçava-se por demonstrar ao imperador a impossibilidade de convocar mais tropas, aludindo ao penoso estado das populações, à possibilidade de qualquer malogro, etc. Era evidente que, numa tal disposição de espírito. Kutuzov não podia deixar de constituir um empecilho para a guerra prevista. Para evitar qualquer conflito com o velho, acharam perfeitamente natural uma escapatória, como se fizera com Barclay aquando de Austerlitz e no começo dacampanha: retirar o poder ao generalíssimo para o confiar ao próprio imperador, sem ruído nem inúteis explicações. Nessa intenção, procedeu-se, pouco a pouco, a uma reorganização do estado- maior e todo o poder efectivo de Kutuzov foi suprimido e transmitido ao imperador. Toll, Konovnitsine, Ermolov, foram encarregados de outras missões. Dizia-se abertamente que o marechal estava muito enfraquecido e de saúde abalada. Era preciso, realmente, que a sua saúde estivesse muito abalada para transmitir as suas funções àquele que o devia substituir. E de facto estava enfermo. Tal como vera outrora da Turquia, o mais natural e simplesmente que é possível, a fim de reunir a milícia em Petersburgo e depois colocar-se à frente do exército no momento em que era indispensável, agora, o mais natural e simplesmente, e da mesma forma progressiva, terminado o seu papel, substituíam- no por uma nova engrenagem, a engrenagem que a situação requeria. A guerra de 1812 não devia conservar o seu carácter estritamente russo de guerra patriótica, mas assumir outro, tornar-se uma guerra europeia. Depois da marcha dos povos do Ocidente para o Oriente, devia verificar-se uma, marcha do Oriente para o Ocidente, e para levar a cabo esta nova guerra era necessário um homem novo, dotado de qualidades que Kutuzov não tinha, com outras vistas, outros objectivos. Para realizar esta marcha dos povos em sentido inverso e restabelecer as fronteiras, Alexandre I, eis o homem indispensável, tão indispensável quanto o fora Kutuzov para salvação e glória da Rússia. Kutuzov era refractário a estas noções: Europa, equilíbrio, Napoleão. Não podia entendê-las. O representante do povo russo, esse russo, enquanto russo, já nada tinha a fazer naquela hora em que o inimigo estava esmagado e a Rússia liberta e no pináculo da glória. O representante da guerra patriótica só tinha agora um caminho a seguir: morrer, E assim o fez. [XIII] Pedro, como sempre costuma acontecer, só sentiu o peso das privações a queestivera sujeito durante o cativeiro no dia em que as desventuras acabaram. Assim que foi posto em liberdade, dirigiu-se a Orel e no dia seguinte, na altura de se meter a caminho para Kiev, adoeceu. Três meses ficou de cama em Orel. Segundo os médicos, sofria de uma febre biliosa. Apesar de todos os cuidados que lhe dispensaram, não obstante as sangrias e os remédios, conseguiu recuperar a saúde. Pouca impressão lhe ficou do período que decorreu entre a sua libertação e o ter adoecido. Ficara-lhe apenas a lembrança de um tempo húmido e sombrio, ora de chuva ora de neve, de um enfraquecimento físico considerável, de dores nos pés e nas ilhargas; de uma série de pessoas infelizes e sofredoras: da curiosidade importuna dos oficiais e dos generais que lhe faziam perguntas; das dificuldades que tivera para arranjar um carro e cavalos: e, acima de tudo, do adormecimento moral que o prostrara durante todo esse tempo, No dia em que fora libertado vira passar o corpo de Pétia Rostov; soube também que o príncipe André ainda vivera um mês depois de ferido e que só recentemente morrera em Iaroslav, em casa dos Rostov. Denissov, ao participar-lhe esta notícia, aludiu, de passagem, à morte de Helena, pois supunha que Pedro estivesse informado disse, há muito. Todos estes pormenores o deixaram, porém, então quase indiferente. Sentia-se incapaz de apreciar a importância de todos estes acontecimentos. Só uma coisa o preocupava abandonar o mais depressa possível aquelas paragens, onde os homens se matavam uns aos outros, em busca de um refúgio mais sossegado em que pudesse coordenar as suas ideias, repousar e reflectir sobre todas essas coisas estranhas e novas que acabava de saber. Mas assim que, chegou a Orel caiu de cama. Quando melhorou, descobriu junto da sua cabeceira, além dos seus dois criados. Terenti e Vaska, vindos de Moscovo, a princesa mais velha, sua prima, que vivia numa propriedade de Pedro em Elets e que viera tratá-lo ao saber que ele fora libertado e estava doente. Durante toda a sua convalescença, as impressões daqueles últimos meses, que se lhe tinham tornado familiares, apenas se foram apagando pouco a pouco. Lentamente se ia habituando a não ser enxotado todas as manhãs como se fosse um animal, a não ser expulso da sua cama quente, ter todos os dias jantar, chá e ceia. Mas, a dormir, sonhava muitas vezes encontrar-se ainda na penosa situação do cativeiro. E levou muito tempo igualmente a compreender as coisas que lhe contaram: a morte do príncipe André, a morte da mulher, a derrota dos Franceses.A sua alma sentia-se invadida por um agradável sentimento de liberdade completa, inata no homem e que se lhe não pode arrebatar, a liberdade que sentira pela primeira vez durante a jornada que fizera ao sair de Moscovo. O que o surpreendia, porém, é que a liberdade moral, independentemente, de facto. das circunstâncias exteriores, lhe fosse concedida com tal liberdade, tal abundância, ao mesmo tempo que a liberdade material, Estava só numa cidade estranha onde ninguém conhecia. Ninguém exigia dele fosse o que fosse; ninguém lhe dava ordens. Tinha tudo que podia desejar; a lembrança da mulher, que fora para ele um tormento constante, desaparecera, visto ela própria ter desaparecido também. «Oh, que bem que se está! Que bom que é!», dizia de si para consigo, quando aproximavam dele uma mesa limpa e bem posta, com um prato de sopa bem cheiroso em cima, ou então quando, à noite, se deitava na sua cama macia e asseada ou ainda se lembrava que a mulher já não existia e que os Franceses tinham sido derrotados. «Ah!, que bom! Que bom!» E apenas por hábito antigo perguntava a si mesmo: «E agora? Que vou eu fazer agora?» Ao que respondia imediatamente: «Nada. Vou viver. Ah!, que bom!» Já não existia para ele o problema de um objectivo na vida, problema que tanto o atormentara outrora e que tão afincadamente procurara resolver. Esse objectivo já não era sequer um objectivo provisório, válido apenas para o momento presente: sentia que fora completamente abolido e que na realidade já não podia existir. E esta ausência completa de objectivo na vida dava-lhe a alegre sensação de uma liberdade sem limites, que o enchia de felicidade. Não podia ter um objectivo, porque agora tinha fé, não fé em certas regras, em certas palavras ou pensamentos convencionais, mas num Deus vivo e sempre presente. Outrora procurava Deus nas missões que a si próprio se impunha. Quando procurava um objectivo para a vida, era Deus que no fim de contas procurava. E de repente, durante o cativeiro, descobrira, não por meio de palavras ou raciocínios, mas graças a uma espécie de íntima revelação, o que a sua velha ama tantas vezes lhe dissera: «Deus está em toda a parte.» No cativeiro aprendera que o Deus de Karataiev era bem maior, mais infinito, mais inacessível que o Grande Arquitecto do Universo dos franco-mações. Dir-se-ia que achara a seus pés o que andava buscando muito longe de si. Toda a sua vida pusera os olhoslá longe, por cima da cabeça da multidão, quando não tinha mais que olhar para diante de si. Até então não conseguia descobrir em parte alguma o inacessível, o grande, o infinito. Apenas sentia que o infinito existia algures e procurava-o. Em tudo o que o rodeava, em tudo o que lhe era dado compreender, só via interesses acanhados, mesquinhos, absurdos, os interesses que a vida nos revela. E armava- se de uma espécie de óculo moral para olhar ao longe, para onde esses interesses mesquinhos, essas pequenas coisas exteriores, escondidas na névoa da distância, se lhe afiguravam como que revestidas de grandeza, verdadeiras imagens do infinito, pela simples razão de que as não via com nitidez. Assim se lhe entremostrava a vida europeia, a política, a maçonaria, a filosofia, a filantropia. Agora, porém, que se dava conta da sua fraqueza, quando o seu espírito penetrava nessas misteriosas profundezas, era para descobrir aí também essa mesma mesquinhez, esse mesmo absurdo, existentes na vida quotidiana. Agora aprendera a ver o infinito em toda a parte, em tudo, por isso achava perfeitamente natural que para usufruir da contemplação das coisas eternas já não precisasse desse óculo que lhe permitia lobrigar para além dos homens; admirava, à sua volta, com alegria, o espectáculo eternamente mutável, eternamente grande, inacessível e infinito da vida. E quanto mais de perto olhava esse espectáculo mais tranquilo e feliz se sentia. O terrível porquê que outrora fazia ruir todas as construções do seu espírito deixara de existir para ele. Agora essa interrogação angustiosa tinha uma resposta simples. Deus existia, esse Deus — o assentimento do qual nem um só cabelo cairá da cabeça !o homem. [XIV] Pedro pouco mudara exteriormente. Na aparência era o mesmo de sempre. Como antigamente, era uma pessoa triste e menos preocupada com o que tinha diante dos olhos do que com o que ocorria dentro dele próprio. A única diferença entre o passado e o presente era que, nos tempos antigos, quando se esquecia do que estava à sua roda, e não percebia o que lhe diziam, tinha uma expressão preocupada e inquieta, como se procurasse compreender qualquer coisa longínqua que lhe escapava. Agora, quando estava distraído, tinha nos lábios umimperceptível sorriso, um pouco irónico, para com o que estava diante dos seus olhos, para ouvir o que lhe diziam, estando, claro está, a pensar numa coisa completamente diferente. Outrora, conquanto tivesse sempre um ar bondoso, parecia infeliz; por isso, sem querer, afastava de si a simpatia. Hoje, no seu rosto pairava sempre um sorriso de homem contente com a vida, nos seus olhos havia bondade para todos e parecia perguntar: «Estarão todos satisfeitos como eu?» E as pessoas sentiam-se bem na sua presença. Antigamente falava muito, entusiasmava-se a falar e pouco ouvia os demais. Agora raramente achava interesse em falar e sabia ouvir tão bem que lhe confiavam espontaneamente os segredos mais íntimos. Sua prima, a princesa, que nunca gostara dele e que nutria mesmo por ele uma certa hostilidade após a morte do velho conde, pois ficara na sua dependência, depois daquele tempo, em Orel, onde viera para mostrar a Pedro que, apesar da ingratidão, entendera dever seu assistir-lhe na sua doença, com grande surpresa sua, e não sem despeito, principiara a sentir por ele uma certa afeição. E a verdade é que Pedro nada fizera pai ganhar a sua simpatia. Limitara-se a examiná- la com curiosidade. Até aí ela sentira no olhar dele indiferença e ironia, e diante dele, como diante de muitas outras pessoas, retraía-se, para apenas lhe mostrar a sua hostilidade combativa. Agora, pelo contrário, tendo percebido que ele penetrava no mais recôndito da sua natureza, primeiro desconfiada, depois grata, mostrou-lhe os lados melhores do seu carácter. O mais astucioso dos homens não teria sido capaz de ganhar a confiança da princesa ainda que evocasse as melhores recordações da sua juventude e lhe falasse comovidamente. A astúcia de Pedro limitou-se a mostrar interesse em acordar sentimentos humanos naquela criatura azeda, seca e orgulhosa. «Sim, é um homem de bom coração quando não está sob influência de gente má mas de pessoas como eu», dizia ela com os seus botões. A mudança que nele se operara fora notada igualmente, de certo modo, pelos próprios criados Terenti e Vaska. Achavam-no agora muito mais simples. As vezes Terenti, depois de ajudar a despir o amo, tomando conta das botas e do fato, desejava-lhe boas-noites e demorava-se junto dele antes de sair, na esperança de que ele lhe dirigisse a palavra. Geralmente Pedro, quando percebia que o criado tinha vontade de falar, retinha-o junto de si. — Conta-me lá, como arranjavam vocês de comer? — perguntava-lhe.E Terenti punha-se a descrever-lhe as ruínas de Moscovo, a falar-lhe do falecido conde, e ali ficava, por muito tempo, com a roupa nos braços, falando ou ouvindo o amo, e quando se afastava era com o sentimento agradável de se sentir muito próximo de Pedro e quase seu amigo. O médico que o tratava e o visitava todos os dias, embora se julgasse na obrigação, como todo o médico que se preza, de se dar ares de quem não tem um minuto a perder, pois o seu tempo é precioso para a humanidade que sofre, passava horas junto dele a contar-lhe as suas anedotas favoritas e a fazer observações sobre a sua clientela em geral e em particular as senhoras. — É verdade, dá prazer falar com um homem assim. É raro na província — dizia ele. Em Orel encontravam-se alguns oficiais do exército francês prisioneiros e o médico trouxe um dia consigo um deles, um italiano. Passou então a visitar Pedro e a princesa achava graça à ternura que ele mostrava para com o primo. Via-se que o italiano só se sentia feliz junto de Pedro e a conversar com ele, contando-lhe o seu passado, as suas questões de família, os seus amores, expandindo-se contra os Franceses e particularmente contra Napoleão. — Se todos os russos se parecem consigo — dizia-lhe ele —, é um sacrilégio guerrear um povo como o vosso. Embora eles vos tenham feito sofrer tanto, não se sente em vós qualquer ódio contra eles. E Pedro apenas conquistara esta apaixonada simpatia do italiano pelo facto de lhe ter revelado os tesouros que guardava na alma e despertado nele admiração. Nos últimos tempos que passou em Orel foi visitado por um dos seus antigos conhecidos do mundo maçónico, o conde Villarski, o mesmo que em 1807 o recebera na loja em que ele ingressara. Villarski casara com uma russa muito rica, com grandes propriedades na província de Orel, e naquela altura desempenhava funções provisórias na intendência local. Ao saber da presença de Bezukov em Orel, embora nunca tivesse sido da sua intimidade, veio visitá-lo, dando-lhe muitas provas de amizade e simpatia, como geralmente acontece com as pessoas que se encontram no meio de um deserto. Enfadava-se em Orel e era com grande satisfação que se encontrava com alguém do seu meio, e preocupado, assim ele o supunha, com interesses semelhantes aosseus. Mas, com grande surpresa sua, Villarski bem depressa se deu conta de que Pedro não o acompanhava no seu interesse pela vida actual e que se deixara cair, assim ele o pensava, pelo menos, na apatia e no egoísmo. — Está a ficar bota-de-elástico, meu caro — dizia-lhe ele. No entanto, o convívio com Pedro dava-lhe muito mais satisfação agora que antigamente e vinha visitá-lo todos os dias. Quanto a Pedro, a presença de Villarski, as suas conversas, faziam-lhe parecer estranho e inverosímil o facto de ele próprio, e muito recentemente, ter podido ser um homem do mesmo género. Villarski, casado e pai de família, ocupado ao mesmo tempo com os interesses da mulher, as suas funções e os filhos, considerava estas diversas preocupações como obstáculo à realização da sua vida e menosprezava-as por o obrigarem a não pensar senão no seu bem-estar pessoal e no dos seus. As questões militares, administrativas, políticas e os problemas maçónicos absorviam-lhe por completo a atenção. E Pedro, sem pretender levá-lo a modificar o seu ponto de vista, sem se atrever a julgá-lo, com o seu ar manso e a sua tranquila ironia, que não o deixava nunca, ia estudando aquele fenómeno estranho, mas tão das suas relações. No seu trato com Villarski, com a princesa, com o médico, com toda a gente com quem privava então, evidenciava-se-lhe um novo traço de carácter que atraía as simpatias gerais: o reconhecer a toda a gente o direito de pensar, de sentir e de encaixar as coisas à sua maneira e a certeza de que não era possível convencer fosse quem fosse com palavras. As particularidades individuais que outrora o irritavam profundamente eram agora, por assim dizer, a razão do interesse apaixonado que votava aos homens. As diferenças, as contradições, por vezes radicais, que verificava entre as diversas opiniões e as suas próprias davam-lhe satisfação e provocavam-lhe um sorriso ligeiramente irónico e condescendente. Nas coisas práticas sentia em si, com surpresa, como que um ponto de apoio que outrora lhe faltava. Antigamente todos os problemas monetários, sobretudo os pedidos de dinheiro que na sua qualidade de homem rico o assediavam com frequência, lançavam-no em grandes incertezas e em embaraços inextricáveis «Dou ou não dou?», interrogava-se a si próprio. «Eu tenho dinheiro e ele não o tem e precisa dele. Mas fulano ainda tem mais necessidade. Qual deles terá mais precisão? E não serão ambos dois intrujões?» E não saía disto, acabando por dar dinheiro aos dois, por dar todo o dinheiro que tinha. E mostrava a mesmaindecisão perante as questões que pusessem em jogo os seus interesses, por um lado entendendo que era assim que devia proceder e pelo outro que devia agir precisamente ao contrário. Actualmente, com grande surpresa sua, não via nestas questões a mais pequena dúvida e a menor dificuldade. Havia nele um juiz, o qual, regendo-se por leis desconhecidas dele próprio, decidia o que devia fazer-se ou não. Em assuntos de dinheiro, continuava, como sempre, desinteressado. Mas agora sabia, sem contestação, o que devia ou não fazer. Teve ocasião, pela primeira vez, de aplicar os seus novos princípios quando, certo dia, um coronel francês prisioneiro o veio visitar, lhe falou largamente dos seus empreendimentos e por fim quase lhe exigiu quatro mil francos para remeter à mulher e aos filhos. Pedro recusou-se a emprestar-lhos sem a mais pequena hesitação e o menor embaraço, ele próprio surpreendido com a simplicidade e a facilidade com que decidira o que outrora lhe teria parecido extraordinariamente difícil. E, ao mesmo tempo que se recusava a emprestar dinheiro ao coronel, conseguia que o italiano, ao deixar Orel, aceitasse uma determinada importância que com certeza lhe fazia muita falta. Procedeu de maneira idêntica quando chegou o momento de resolver a questão das dívidas da mulher e da reedificação das suas casas na cidade e na aldeia. Recebeu em Orel a visita do principal administrador das suas propriedades e procedeu com ele ao balanço dos prejuízos que tivera. O incêndio de Moscovo, de acordo com os seus cálculos, custara-lhe aproximadamente dois milhões de rublos. O administrador, em compensação, fez-lhe ver que, apesar destes prejuízos, os seus rendimentos não só não tinham diminuído, mas aumentariam mesmo caso ele se recusasse a pagar as dívidas da condessa, que ninguém o podia obrigar a satisfazer, e desistisse de reconstruir as suas casas de Moscovo e as da aldeia, que lhe custavam oitenta mil rublos por ano e não lhe davam o mais pequeno rendimento. — Sim, sim, tem razão — disse ele com ar satisfeito. — Sim, sim, tem razão, nenhuma necessidade tenho disso. A minha ruína ainda me enriqueceu mais. Mas em Janeiro chegou Savelitch de Moscovo, que lhe falou tia situação da cidade, do orçamento que o arquitecto fizera para a restauração das casas e apresentou-lhe o caso como coisa arrumada. Entretanto, Pedro recebia cartas do príncipe Vassili e de vários amigos dePetersburgo. Falavam-lhe nas dívidas da mulher. E ele então disse de si para consigo que as sugestões do administrador, que de princípio o haviam encantado, não eram de aproveitar e que devia ir a Petersburgo regularizar os assuntos da mulher e a Moscovo restaurar casas. Não sabia, porque devia agir deste modo, mas tinha a certeza de que assim é que estava certo. Em virtude desta decisão, os seus rendimentos diminuíam de três quartas partes. Mas assim tinha de ser: era o que ele sentia. Como Villarski tinha de ir a Moscovo, decidiram partir juntos. Durante todo o período da sua convalescença em Orel, Pedro experimentara um sentimento de alegria, de liberdade, como que um recomeçar da, vida. E agora, no decurso da viagem, em contacto com o ar livre, as suas impressões ainda mais se exaltaram. Sentia o contentamento de um estudante em férias. As pessoas que encontrava, o postilhão, os donos das estações de muda, os mujiques que via na estrada ou nas povoações, todos assumiam a seus olhos um sentido novo. A presença de Villarski, as suas observações, as suas contínuas queixas contra a pobreza, a grosseria, o atraso da Rússia em relação à Europa, despertavam nele uma alegria compassiva. Onde Villarski via fermentos de morte via ele um poder vital extraordinariamente rico, graças ao qual, no meio daqueles vastos espaços cobertos de neve, se mantinha são esse povo tão particular e único no seu género. Não discutia as opiniões do amigo, parecia mesmo estar de acordo com ele, pois de si para consigo dizia que a melhor maneira de evitar discussões sem qualquer resultado era fingir que concordava com ele. E sorria, divertido, enquanto ele falava. [XV] Assim como é difícil explicar as idas e vindas das formigas quando vêem o seu formigueiro arrasado, umas carregando os ovos e os cadáveres e outras voltando ao ninho, tropeçando, perseguindo-se, lutando, também não seria fácil dizer o que impelia os Russos, depois da partida dos Franceses, a agrupar-se naquele local a que outrora se dera o nome de Moscovo. Se se observarem as formigas dispersas em volta do seu formigueiro, compreender-se-á que, apesar da ruína completa do seu lar, mercê da sua tenacidade, da sua energia, da actividade daquelesinumeráveis insectos, tudo perderam, salvo o princípio inabalável e imaterial que constitui a força da sua colónia. O mesmo acontecia em Moscovo em Outubro. Embora estivesse privada das suas autoridades, das suas igrejas, das suas riquezas, das suas casas, a cidade era a mesma que fora em Agosto. Tudo estava destruído salvo o que nela havia de imaterial, de verdadeiramente pode roso e de indestrutível. Os objectivos que impeliam todos aqueles que, vindos de toda a parte, afluíam a Moscovo depois de evacuada pelo inimigo, eram os mais diversos, e sobretudo pessoais, e principalmente, nos primeiros tempos, de uma natureza bestial e perfeitamente selvagem. Um único sentimento era comum a todos: o desejo de regressar ao local onde fora Moscovo para cada um se entregar à sua própria actividade. Ao fim de uma semana, Moscovo contava já quinze mil habitantes, duas semanas mais tarde tinha vinte e cinco mil e assim por diante. No Outono de 1813, aumentando sempre, a população da cidade atingia um número de almas muito superior ao da população de Moscovo de 1812. Os primeiros russos que deram entrada em Moscovo foram os cossacos do destacamento Wintzengerode, os mujiques das aldeias vizinhas e os habitantes que tinham fugido, escondendo-se nos arredores. Estes, ao entrarem na cidade em ruínas e encontrando-a a saque, saquearam-na também. Continuaram o que os Franceses tinham principiado. Os mujiques, com as suas carroças, vinham buscar o que se encontrava abandonado nas casas e ao longo das ruas. Os cossacos levaram consigo, para o seu acampamento, o que puderam; os proprietários de imóveis apoderavam-se do que encontravam nas casas alheias e diziam que tudo isso era seu. Depois dos primeiros saques, vieram outros, e outros ainda, e a pilhagem, à medida que aumentava o número dos salteadores, tornava-se mais difícil e obedecia a normas mais metódicas. Os Franceses tinham encontrado a cidade abandonada, mas haviam conservado todas as formas de uma administração regular, com o seu comércio, os seus ofícios, as repartições públicas, a religião. A maior parte das vezes tratava-se de corpos sem vida, mas que ainda assim mesmo existiam. Ainda havia galerias comerciais, lojas, armazéns, entrepostos de farinhas, bazares, oficinas, ateliers, geralmente abastecidos de mercadorias; e havia palácios, casas ricas cheias deluxuosos artefactos; havia hospitais, prisões, escritórios, igrejas, catedrais. À medida que os Franceses foram ficando, todas estas formas de vida urbana desapareciam pouco a pouco e por fim a cidade transformara-se num vasto campo de saqueio. Quanto mais se prolongava o saque dos Franceses tanto mais se esgotavam as riquezas de Moscovo e os recursos dos próprios saqueadores. Pelo contrário, o dos Russos, nos primeiros dias do seu regresso à capital, quanto mais se prolongava tanto maior era o número dos que nele tomavam parte, contribuindo para restabelecer rapidamente a riqueza da cidade e a sua vida regular. Assim como o sangue aflui ao coração, afluíam a Moscovo, vindos de diversos pontos, além dos saqueadores, pessoas de toda a sorte, atraídas quer pela curiosidade, quer pelo desejo de se tornarem úteis, quer por interesse, proprietários, eclesiásticos, pequenos e grandes funcionários, comerciantes, artesãos, mujiques. Ao cabo de uma semana, os mujiques que entravam na cidade com os seus carros vazios para levarem os objectos que encontravam eram detidos pelas autoridades e obrigados a transportar os mortos para fora da cidade. Outros, ao saberem do que sucedera aos companheiros, trouxeram trigo, aveia, feno, e em virtude da concorrência que faziam uns aos outros, os preços baixaram a um nível inferior ao antigo. Os artels (Associações de trabalho comunitário. (N dos T.) dos carpinteiros, atraídos pelos bons salários, apareciam todos os dias e por toda a parte reconstruíam ou reparavam as casas que tinham ardido. Comerciantes abriam lojas em abarracamentos. Nas ruínas iam-se organizando estalagens, hotéis. O clero restabelecia o serviço religioso em muitas das igrejas que haviam ficado intactas. Donatários traziam alfaias religiosas que haviam sido roubadas. Funcionários instalavam em pequenas divisórias as suas mesas cobertas de pano preto e as suas estantes. As autoridades e a polícia procediam à distribuição dos bens abandonados pelos Franceses. Os proprietários das casas em que os Franceses tinham acumulado muitos objectos valiosos diziam que estavam a ser lesados, porque tudo fora levado para o Palácio das Facetas. Outros sustentavam que os Franceses tinham concentrado num mesmo local muitos objectos roubados de diversas casas e diziam não ser justo entregarem aos proprietários essas casas com tudo o que lá estava dentro. Insultavam a polícia, tentavam suborná-la. Duplicavam o valor dos bens do Tesouro queimados, exigiam socorros em dinheiro.O conde Rostoptchine redigia, as suas proclamações. [XVI] No fim de Janeiro, Pedro chegava a Moscovo e instalava-se numa das alas da sua residência que ficara intacta. Visitou Rostoptchine, algumas das suas relações que tinham regressado à capital e dispôs-se a partir no dia seguinte para Petersburgo. Toda a gente celebrava a vitória: a vida formigava na capital em ruínas, que principiava a renascer. Todos o acolhiam com satisfação; todos o queriam ver para saber das suas aventuras. Pedro, evidentemente, mostrava-se bem disposto com toda a gente que encontrava. Mas mantinha uma certa reserva, para não se comprometer com coisa alguma. A todas as perguntas que lhe faziam, importantes ou insignificantes, como, por exemplo: «Onde ia instalar-se? Reconstituiria o seu palácio? Quando partia para Petersburgo? Não se importava de tomar conta daquela caixinha?», respondia: «Sim, talvez, acho que...» Soubera que os Rostov estavam em Kostroma, e raramente pensava em Natacha. Se por acaso isso acontecia, era como se se tratasse de uma agradável recordação de um passado que acabara. Sentia-se feliz não só por se ter visto livre das obrigações da vida, mas também por um sentimento que, pensava ele, voluntariamente a si mesmo impusera. Três dias depois de ter chegado, soube por Drubetslkoi que a princesa Maria estava em Moscovo. A morte, os sofrimentos, os últimos dias do príncipe André, vinham-lhe frequentemente ao espírito e agora muito mais vivamente do que nunca. Tendo sabido durante o jantar que a princesa Maria estava instalado na sua casa de Vozdvijenka, poupada pelo fogo, ali se apresentou nessa mesma noite. Pelo caminho ia pensando no seu amigo, nas varias vezes em que estivera com ele e sobretudo no seu último encontro em Borodino. «Será possível que ele tenha morrido no estado de irritação em que eu o vi nessa altura?», perguntava a si mesmo.

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