Lev Tolstói
GUERRA E PAZ
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ÍNDICE
LIVRO PRIMEIRO
PRIMEIRA PARTE
SEGUNDA PARTE
TERCEIRA PARTE
LIVRO SEGUNDO
PRIMEIRA PARTE
SEGUNDA PARTE
TERCEIRA PARTE
QUARTA PARTE
QUINTA PARTE
LIVRO TERCEIRO
PRIMEIRA PARTE
SEGUNDA PARTE
TERCEIRA PARTE
LIVRO QUARTO
PRIMEIRA PARTE
SEGUNDA PARTE
TERCEIRA PARTE
QUARTA PARTE
EPÍLOGO
PRIMEIRA PARTE
SEGUNDA PARTE
APÊNDICE
LIVRO PRIMEIRO
PRIMEIRA PARTE
[I] [II] [III] [IV] [V] [VI] [VII] [VIII] [IX] [X] [XI] [XII] [XIII] [XIV] [XV] [XVI]
[XVII] [XVIII] [XIX] [XX] [XXI] [XXII] [XXIII] [XXIV] [XXV] [XXVI] [XXVII] [XXVIII]
[I]
— Pois bem, meu príncipe. Génova e Luca mais não são do que apanágios,
domínios, da família Bonaparte. Não, previno-o de que, se me diz que não teremos
guerra, se se permitir ainda atenuar todas as infâmias, todas as atrocidades desse
— Anticristo (palavra de honra, para mim, é o que ele é), desconheço-o, deixo de
considerá-lo meu amigo, meu fiel servidor, como costumo dizer. Vamos, vejamos,
como está, como está? Bem veio que lhe meto medo. Sente-se e conte-me
novidades.
Foi com estas palavras que em Julho de 1805 a conhecida dama de honor,
íntima da imperatriz Maria Fiodorovna. Ana Pavlovna Scherer, acolheu o príncipe
Vassili, pessoa importante e de alta estirpe, o primeiro dos convidados a chegar à
sua recepção daquela noite. Havia algum tempo já que Ana Pavlovna tossicava,
estava com gripe, como ela dizia — gripe era então um novo vocábulo, que poucas
pessoas ainda empregavam. Nessa mesma manhã tinha ela mandado entregar,
por um lacaio de libré encarnada, a toda a gente, indistintamente, um bilhetinho
redigido nestes termos:
Se não tem nada melhor a fazer. Senhor Conde — ou então: meu
príncipe —, e se a perspectiva de passar a noite em casa de uma pobre
doente não o assusta muito, sentir-me-ei encantada de o ver em minha
casa entre as 7 e as 10 horas.
Annette Scherer.
— Meu Deus, que violência! — retorquiu o príncipe no seu uniforme de gala, o
peito coberto de condecorações, na face achatada um ar florescente, sem ligar a
mínima importância a semelhante acolhimento.
Exprimia-se nesse francês precioso, que falavam e em que até pensavam os
nossos avós, e a que adicionavam esse sotaque protector, essas entoações suavestão naturais a quem envelheceu na sociedade e com prestígio na corte.
Aproximou-se de Ana Pavlovna, beijou-lhe a mão, exibindo a calva perfumada e
reluzente, e sentou-se, tranquilamente, num divã.
— Antes de mais nada, diga-me, como tem passado, querida amiga?
Tranquilize este seu amigo — prosseguiu ele no mesmo tom e numa voz em que,
sob a cortesia e a afabilidade, transpareciam a indiferença e até mesmo urna certa
mofa.
— Como é que uma pessoa há-de passar bem de saúde.., quando, moralmente,
não pode deixar de sofrer? Quem é que no nosso tempo há-de estar sereno, desde
que seja pessoa de coração? — redarguiu Ana Pavlovna.— Vai ficar toda a noite,
não é verdade?
— E a festa na Embaixada de Inglaterra? É hoje quarta-feira. Não posso deixar
de aparecer — disse o príncipe.— Minha filha ficou de passar por aqui para me
levar.
— Julguei que a festa tinha sido adiada. Confesso-lhe que todas estas festas e
todos estes jogos de artifício começam a tornar-se insípidos.
— Se tivessem sabido que era esse o seu desejo, teriam adiado a festa —
tornou o príncipe, o qual, como um relógio certo, tinha por hábito dizer, em
determinadas circunstâncias, frases que ele próprio não esperava que fossem
acreditadas.
— Não me atormente. Afinal, que decidiram em relação ao telegrama de
Novosiltzov? O senhor costuma saber tudo.
— Que lhe hei-de eu dizer? — volveu o príncipe num tom frio e enfastiado.—
Que decidiram? Decidiram que Bonaparte chegou a ponto de não poder recuar e
eu acho que está aqui, está a acontecer-nos o mesmo.
O príncipe Vassili falava sempre com indolência, como um actor que recita um
papel há muito decorado. Ana Pavlovna, pelo contrário, apesar dos seus quarenta
anos, toda ela era vivacidade e expansão.
Ser entusiasta era a sua função social, e até mesmo quando não era essa a sua
disposição natural procurava sê-lo, para que as pessoas suas conhecidas se não
sentissem desapontadas. O sorriso constrangido que lhe andava sempre no rosto,
conquanto não dissesse muito bem com os seus traços já fatigados, denunciava,
como acontece nas crianças mimadas, a existência de um pecadilho, pecadilho de
que ela não queria, nem podia, nem mesmo julgava útil corrigir-se.No decurso da conversa sobre política. Ana Pavlovna exaltou-se.
— Ah! Não me fale da Áustria! Talvez eu seja uma parva, mas estou
convencida de que a Áustria não quis nem quer a guerra. Está a atraiçoar-nos. É à
Rússia sozinha que compete salvar a Europa. O nosso benfeitor conhece a alta
missão a que está destinado e cumpri-la-á. É a única coisa em que tenho confiança.
O nosso sublime imperador tem um grande papel a desempenhar no mundo, e é
tão virtuoso e tão nobre que Deus não o abandonará e há-de cumprir a sua
missão: esmagar a hidra da Revolução, ainda mais terrível desde que encarnou
nesse assassino e nesse salteador. É a nós, e só a nós, a quem compete resgatar o
sangue do justo... E pergunto-lhe eu agora: com quem poderemos nós contar? A
Inglaterra, com o seu espírito comercial, não compreende nem pode compreender
toda a grandeza da alma do imperador Alexandre. Recusou-se a evacuar Malta. O
que ela quer é ver, procurar na nossa conduta ideias reservadas. Que é que eles
disseram a Novosiltzov?... Nada. Não compreenderam, não podem compreender o
desinteresse do nosso imperador, que nada quer para ele e tudo faz para bem da
humanidade. E que prometeram eles? Nada. E até aquilo que prometeram
acabará por não vir a realizar-se. A Prússia já declarou que Bonaparte era
invencível e que a Europa inteira nada podia contra ele... E eu por mim, não
acredito numa só palavra do que dizem Hardenberg ou Haugwitz. Essa famosa
neutralidade prussiana não passa de uma armadilha. Só em Deus confio e no alto
destino do nosso augusto imperador. Ele salvará a Europa!...
De súbito calou-se, sorrindo ela mesma, antes de mais ninguém, da veemência
das suas próprias palavras.
— Estou persuadido — disse o príncipe com um sorriso— de que se a tivessem
mandado a si, minha querida amiga, em lugar, do nosso muito querido
Wintzengerode, a esta hora tínhamos tomado de assalto a adesão do rei da
Prússia. Quer dar-me uma xícara de chá?
— Com certeza. A propósito — acrescentou ela num tom sereno —, tenho hoje
duas pessoas muito interessantes: o visconde de Mortemart; está aparentado com
os Montmorency pelos Rohans, um dos mais ilustres nomes da França. É um dos
nossos bons emigrados, autêntico! E também o abade Morio. Conhece este
espírito profundo? Foi recebido pelo imperador. Conhece-o?
— Terei um grande prazer! Diga-me uma coisa — acrescentou,
negligentemente, e como se só naquele momento se tivesse lembrado disso,quando, realmente, esse era o objectivo principal da sua visita. — É verdade que a
imperatriz-mãe se interessa pela nomeação do barão de Funke para o lugar de
primeiro-secretário em Viena? Esse barão, ao que parece, é uma triste
personagem.
O príncipe Vassili pretendia ver nomeado para esse posto um filho seu, e o
barão era a pessoa indicada para tal cargo pelas pessoas que procuravam ganhar
a influência da imperatriz Maria Fiodorovna.
— O Senhor Barão de Funke foi recomendado à imperatriz pela irmã — foi
tudo quanto ela disse em resposta, secamente, e com um ar triste.
Quando Ana Pavlovna pronunciou o nome da imperatriz pintou-se-lhe no rosto,
subitamente, a dedicação e o respeito mais profundos e sinceros, ao mesmo tempo
que lhe desceu sobre a máscara aquele ar de tristeza que nunca a abandonava
sempre que, no decurso de uma conversa, se falava na sua augusta protectora. E
acrescentou que Sua Majestade se tinha dignado testemunhar ao barão de Funke
muita estima, enquanto o olhar novamente se lhe velava de tristeza.
O príncipe, como que indiferente, mantinha-se calado.
Ana Pavlovna, com a sua finura especial de dama da corte e o seu tacto
feminino, ao mesmo tempo— que dirigia um remoque ao príncipe por ter ousado
exprimir-se tão livremente a respeito da conduta de uma pessoa recomendada à
imperatriz, procurava de certo modo consolá-lo.
— Mas, a propósito da sua família — disse-lhe ela —, não sei se sabe que a sua
filha, desde que frequenta a sociedade, faz as delícias de toda a gente. Dizem que
é linda como os deuses.
O príncipe curvou-se em sinal de estima e gratidão. — Costumo dizer muitas
vezes de mim para comigo — continuou Ana Pavlovna, depois de um momento de
silêncio, aproximando-se do príncipe com um sorriso gracioso, como se quisesse
significar que estavam terminadas as conversas sobre assuntos políticos e
mundanos e que as confidências íntimas iam principiar —, muitas vezes digo a mim
mesma que a felicidade neste mundo é coisa muito desigualmente repartida.
Porque seria que o destino lhe deu a si, meu amigo, dois filhos tão belos, à parte o
Anatole, o seu benjamim, que não me agrada por aí além — tinha lançado esta
observação num tom que não admitia réplica, franzindo as sobrancelhas... —, tão
encantadores? Sim, quando o senhor, na verdade, é a pessoa que menos
importância liga aos filhos; não os merece.E teve um sorriso vitorioso.
— Que quer? Lavater diria que eu não tenho a bossa da paternidade —
respondeu o príncipe.
— Deixemo-nos de brincadeiras. Quero falar-lhe a sério. Sabe? Estou
descontente com o seu, filho mais novo. Aqui entre nós — e um ar de tristeza lhe
perpassou pelo rosto —, falaram dele perante Sua Majestade, e lamentam-no, a
si...
O príncipe não respondeu, mas ela, lançando-lhe um olhar significativo,
aguardava, sem dizer palavra, que ele dissesse qualquer coisa. O príncipe Vassili
franziu as sobrancelhas.
— Que quer que eu faça? — acabou por dizer.— Bem sabe que fiz tudo o que
um pai pode fazer pela educação dos seus filhos, e o que é certo é que ambos não
passam de dois imbecis. O Hipólito, pelo menos, é um imbecil sossegado, enquanto
o Anatole é um imbecil turbulento. É a única diferença entre os dois —
acrescentou com um sorriso mais constrangido e acentuado que de costume,
enquanto as rugas que se lhe formavam em tomo da boca denunciavam mais
claramente do que nunca a amargura e a irritação que inopinadamente o
invadiam.
— Para que é que as pessoas como o senhor hão-de ter filhos? Se não fosse pai,
nada teria a censurar-lhe — disse Ana Pavlovna, erguendo os olhos cismadores.
— Sou o seu fiel escravo, e só a si o posso confiar. Os meus filhos são os
impecilhos da minha existência. São a minha cruz, compreendo-o perfeitamente.
Que quer?...
Calou-se, mostrando com um gesto que se submetia ao cruel destino. Ana
Pavlovna assumiu uma atitude cismadora.
— Nunca se lembrou, meu caro príncipe, de casar o seu filho pródigo, o
Anatole? Dizem que as solteironas têm a mania do casalhento. Não creio que eu já
esteja em idade de ter fraquezas semelhantes, mas o que é certo é que conheço
uma criaturinha que é muito infeliz com o pai, uma nossa parente, uma princesa
Bolkonskaia.
O príncipe Vassili não respondeu, embora, com o seu golpe de vista e a sua
finura de homem de sociedade, desse a entender, num simples movimento de
cabeça, que não esqueceria o facto.
— Pois a verdade é que o Anatole me custa por ano à volta de quarenta milrublos — disse ele, sem que, evidentemente, lhe fosse possível refrear o curso dos
pensamentos. Esteve alguns instantes calado. — Que será feito dele, dentro de
uns cinco anos, se as coisas continuarem da mesma maneira? Aqui tem a
vantagem de se ser pai. É rica, essa sua princesa?
— O pai é riquíssimo e avaro. Vive no campo. Deve ter ouvido falar nele. É um
tal príncipe Bolkonski, que se reformou ainda em vida do falecido imperador e a
quem chamavam o «rei da Prússia». É um homem bastante inteligente, mas com
as suas manias. Não é nada cómodo. A pobre pequena é infeliz como tudo. Tem um
irmão que casou há pouco com Lisa Meinen, um ajudante-de-campo de Kutuzov.
Deve aparecer hoje por aí.
— Ouça, querida Annette — disse o príncipe, pegando, subitamente, na mão
da sua interlocutora e puxando-a a si. — Arranje-me isso e eu serei o seu muito fiel
escravo para sempre: o seu «escrafo», como o meu estaroste costuma escrever nos
seus relatórios: com um f. Se é de excelente família e rica, não é preciso mais nada.
E com os seus gestos fáceis, familiares e graciosos que tanto o distinguiam, o
príncipe inclinou-se, apertou a mão da dama de honor, beijou-a, e de novo se
enterrou na sua macia poltrona, desviando a vista.
— Espere — disse Ana Pavlovna, pensativa. — Ainda hoje mesmo falarei à
Lisa, a mulher do jovem Bolkonski. E talvez as coisas se arranjem. Na sua família
começarei a aprender para solteirona.
[II]
O salão de Ana Pavlovna foi-se enchendo a pouco e pouco. Toda a aristocracia
de Petersburgo tinha aparecido, gente de idades e caracteres muito diversos, mas
toda do mesmo mundo. Chegou também a filha de Vassili, a bela Helena, que
vinha buscar o pai para a festa da Embaixada de Inglaterra. Exibia o seu
monograma imperial e trazia um vestido de noite. E também apareceu a jovem e
pequenina princesa Bolkonskaia, conhecida por a mulher mais sedutora de
Petersburgo, que casara no último Inverno e ainda não aparecera na sociedade
por causa do seu estado de gravidez, mas que costumava frequentar as reuniões
íntimas. Por fim também surgiu o príncipe Hipólito, o filho do príncipe Vassili, nacompanhia de Mortemart, a quem apresentou, e em seguida o abade Morio e
muitos outros.
— Ainda a não viram, não a conhecem? Não conhecem minha tia? — dizia Ana
Pavlovna para os seus convidados, e com a maior gravidade ia-os conduzindo um
por um, à medida que chegavam, — até junto de uma minúscula senhora de idade,
enfeitada de grandes fitas, que estava na sala contígua. Depois, pronunciando o
nome de cada um deles, passeava, lentamente, os olhos entre os seus convidados
e minha tia, e daí a pouco desaparecia.
Todos eram obrigados a cumprir aquele ritual, saudando esta tia desconhecida
e inútil, que a ninguém interessava. Ana Pavlovna, muito séria e solene, assistia à
cerimónia dos cumprimentos, dando a sua aprovação, sem abrir a boca. Minha tia
falava a toda a gente, invariavelmente, nos mesmos termos, do estado da saúde
de cada um, do estado da sua própria saúde e do estado da saúde de Sua
Majestade, o qual, graças a Deus, passava agora melhor. E todos, sem mostrar,
por decoro, que se davam pressa, se iam despedindo da idosa senhora com a
sensação de alívio que se tem depois de se cumprir uma enfadonha obrigação e,
claro está, para a não tornarem a ver em toda a roda da noite.
A jovem princesa Bolkonskaia tinha trazido consigo o seu bordado num
pequenino saco de veludo lavrado a ouro. O seu bonito làbiozinho superior,
ligeiramente sombreado por uma breve penugem, era um pouco curto, mas nem
por isso parecia menos gracioso entreaberto nem era menos delicioso no momo
que fazia ao apoiar-se no lábio inferior. Como em geral acontece com todas as
pessoas realmente sedutoras, estas suas pequeninas imperfeições, o lábio curto de
mais e a boca entreaberta, tinham nela um atractivo especial, uma beleza própria.
Era uma alegria para todos a presença desta futura mãe tão bonita, cheia de
saúde e de vida, suportando perfeitamente os incómodos do seu estado. Os velhos
e os jovens entediados e cheios de enfado imaginavam-se como ela só por terem
passado alguns momentos na sua intimidade. Todos os que conversavam alguns
instantes com a princesinha podiam ver como o seu luminoso sorriso cintilava após
cada uma das suas palavras e como os seus dentes sempre à mostra eram de uma
brancura esplendorosa, quanto bastava para que todos se sentissem naquele
momento de uma particular afabilidade. E era assim a ilusão que ela criava em
toda a gente.
A princesinha, no seu andar ondulante, caminhando em passinhos rápidos, deua volta à sala, o saco de trabalho na mão, e depois de imprimir um jeito gracioso à
toilette veio sentar-se num divã, junto do samovar de prata, como se tudo que ela
fizesse fosse uma espécie de divertimento não só para ela própria, mas também
para aqueles que a cercavam.
— Trouxe comigo o meu trabalho! — exclamou ela, abrindo o saquinho
bordado a ouro e como se se dirigisse, a toda a gente ao mesmo tempo.
— Cuidado. Annette, não me faça uma partida — prosseguiu ela, desta vez
para a dona da casa. — Mandou-me dizer que era apenas uma pequena reunião;
olhe como eu venho vestida.
Dizendo o que estendeu os braços para melhor deixar ver o seu elegante
vestido cinzento, guarnecido de rendas, com uma larga fita a servir de cinto, um
pouco abaixo do seio.
— Esteja descansada. Lisa, será sempre a mais bela — replicou Ana Pavlovna.
— Sabe, o meu marido vai abandonar-me — prosseguiu ela no mesmo tom,
dirigindo-se a um general.— Vai procurar a morte. Diga-me: para que serve esta
maldita guerra? — disse ao príncipe Vassili, e, sem esperar qualquer resposta,
voltou-se para a filha deste, a bela Helena.
— Que pessoa deliciosa, aquela princesinha! — murmurou o príncipe Vassili,
em voz baixa, para Ana Pav1ovna.
Pouco depois da princesinha, entrou na sala um jovem corpulento e maciço, de
cabelo rapado, lunetas, calças claras, à moda da época, um alto jabot e fraque
pardacento. Este moço era filho natural de uma célebre personagem do tempo de
Catarina, o conde Besukov, naquela altura moribundo em Moscovo. Ainda não
tinha qualquer ocupação, acabava de chegar do estrangeiro, onde fora educado, e
era a primeira vez que aparecia na sociedade. Ana Pav1ovna acolheu-o com a
saudação que costumava usar para com as pessoas de mais baixa classe. No
entanto, apesar deste seu acolhimento de inferior qualidade, ao vé-1o entrar
deixou transparecer no rosto medo e inquietação, como quando nos vemos
perante qualquer coisa de desmedido e fora do seu lugar. Pedro era, realmente,
um pouco maior que as outras pessoas, mas o receio que se pintara no rosto de
Ana Pavlovna podia ser antes motivado por esse olhar ao mesmo tempo tímido e
penetrante, observador e franco, que o distinguia de todos os demais convidados.
— É muito amável da sua parte. Senhor Pedro, ter vindo visitar uma pobre
doente — disse-lhe Ana Pavlovna, trocando um olhar de pânico com a tia, a quemo ia conduzindo.
Pedro resmungou uma frase incompreensível enquanto com os olhos
continuava à procura de qualquer coisa. Teve um sorriso jovial ao cumprimentar a
princesinha, como se ela fosse um conhecimento íntimo, e aproximou-se da tia. O
medo de Ana Pavlovna não era destituído de fundamento, pois a verdade é que
Pedro afastou-se dessa senhora sem esperar que a tia concluísse as suas
considerações acerca da saúde de Sua Majestade. Ana Pavlovna, horrorizada,
deteve-o.
— Não conhece o abade Morio? É uma pessoa muito interessante... — disse-
lhe ela.
— Sim, ouvi falar do seu plano de paz perpétua, que é aliciante. Mas será
possível?...
— Acha que sim?... — observou Ana Pavlovna, para dizer alguma coisa, pronta
a voltar ao cumprimento dos seus deveres de dona de casa.
Pedro, porém, cometeu uma segunda indelicadeza: primeiro afastara-se da sua
interlocutora antes de ela ter acabado de falar; agora retinha esta, dirigindo-lhe a
palavra, quando ela precisava de o deixar. De cabeça baixa e afastando as suas
grandes pernas, pôs-se a demonstrar a Ana Pavlovna a razão por que considerava
quimérico o plano do abade Morio.
— Falaremos disso mais tarde — disse Ana Pavlovna, sorrindo.
E, libertando-se daquele jovem sem hábitos de sociedade, regressou às suas
ocupações de dona de casa, continuando a ouvir e a observar, pronta sempre a
intervir onde a conversa esmorecesse. Tal qual como um contramestre de uma
fábrica de fiação que, depois de instalar cada um dos seus operários diante do seu
tear, se põe a andar de um lado para o outro, observando se os fusos param ou se
estão a produzir qualquer ruído anormal, rangente ou áspero de mais, e
incansavelmente os retém ou lhes imprime o andamento necessário, assim Ana
Pav1ovna ia e vinha pelo salão, se aproximava dos grupos que se calavam ou
falavam de mais, e com uma palavra pronunciada a tempo obrigava a máquina a
comportar-se nos justos limites das conveniências mundanas. Mas todos estes
múltiplos cuidados não a impediam de deixar perceber aos outros o receio especial
que lhe causava o comportamento de Pedro. Ia-o seguindo atentamente com os
olhos quando ele se aproximava para escutar o que se dizia ao pé de Mortemart e
depois dirigia-se para o outro grupo onde pontificava o abade. Para Pedro, quetinha sido educado no estrangeiro, esta soirée em casa de Ana Pavlovna era a
primeira reunião mundana a que assistia na Rússia. Não ignorava que nestas salas
estava reunida a fina flor da gente instruída de Petersburgo e por isso abria muito
os olhos, como uma criança diante de uma loja de brinquedos. Só receava perder
qualquer sábia observação que lhe fosse dado ouvir.
Ao ver reunidas ali todas aquelas personagens de aspecto distinto e cheias de
certezas, estava sempre à espera de qualquer coisa particularmente espiritual.
Por fim, aproximou-se de Morio. A conversa tinha-lhe parecido interessante.
Deteve-se, aguardando o momento de expor o seu ponto de vista, como costuma
fazer a gente nova.
[III]
A soirée de Ana Pavlovna atingia o auge. Os fusos esparsos pela sala roncavam
sem atritos e constantemente. Se se abstraísse de minha tia, junto da qual não
estava senão uma senhora idosa, de rosto esquálido e como que consumido pelas
lágrimas, algo deslocada no meio daquela brilhante sociedade, todos os demais
convidados se haviam repartido em três grupos. Um deles, formado especialmente
de homens, tinha por centro o abade; no outro, uma roda de gente nova,
pontificava a princesa Bolkonskaia, toda rosada e de formas um tudo-nada amplas
de mais, atendendo à sua juventude; o terceiro era dirigido por Mortemart e Ana
Pavlovna.
O visconde era um jovem amável, de traços finos e maneiras suaves, que a si
mesmo, visivelmente, se considerava uma figura sensacional, embora, por mera
boa educação, se oferecesse, modestamente, à curiosidade da sociedade em que se
encontrava. Ana Pav1ovna, visivelmente também, dele tirava partido para regalo
dos seus convidados. A semelhança do chefe de mesa, que gosta de apresentar,
como coisa superlativamente delicada, uma posta de carne em que ninguém
ousaria tocar numa cozinha sórdida, assim, na sua reunião. Ana Pavlovna ia
servindo aos seus convidados, primeiro o visconde, e em seguida o abade, como se
se tratasse de iguarias superlativamente requintadas. No grupo de Mortemart
tinha vindo à baila, imediatamente, o assassínio do duque de Enghien. O viscondeera de opinião de que o duque fora vítima da sua magnanimidade e que havia
razões particulares para o ressentimento de Bonaparte.
— Ah!, vejamos. Conte-nos isso, visconde — exclamou Ana Pavlovna,
apercebendo-se com júbilo de que esta simples frase: Conte-nos isso, visconde,
tinha um sabor a Luís XV.
O visconde inclinou-se em sinal de obediência e sorriu com toda a cortesia. Ana
Pavlovna fez que o grupo o rodeasse e convidou toda a gente a ouvir a sua
história.
— O visconde conheceu monsenhor pessoalmente — segredou ela ao ouvido de
um dos convidados. — O visconde é um narrador perfeito — garantia a outro.—
Vê-se logo nele o homem de sociedade — dizia a um terceiro. E o jovem foi
apresentado à sociedade sob o seu ângulo mais distinto e favorável, como um
rosbife, num prato bem quente, todo guarnecido de salsa.
O visconde preparou-se para dar princípio à sua narrativa e sorriu com finura.
— Venha cá, querida Helena — disse Ana Pavlovna à bela princesa, que estava
a distância, no centro do outro grupo.
A princesa Helena sorriu: levantou-se, conservando nos lábios esse sorriso
imutável de mulher impecavelmente bela com que entrara no salão. No ligeiro
roçagar do seu vestido de baile todo branco, guarnecido de hera e musgo, no
esplendor das suas brancas espáduas, no brilho da sua cabeleira e no cintilar dos
seus brilhantes, avançou por entre uma ala de cavalheiros, e, empertigada, sem
fitar ninguém em especial, embora sorrindo a todos, como se assim fosse dando a
cada um o direito de admirar a beleza da sua cintura, dos seus ombros cheios, do
seu decote muito pronunciado, conforme a moda da época, levando após si, na sua
esteira, todo o esplendor da reunião, aproximou-se de Ana Pavlovna. Helena era
tão bela que não traía a mais pequena sombra de coquetterie; pelo contrário,
parecia ter vergonha da sua incontestável, da sua por de mais poderosa e por de
mais triunfante beleza. Dir-se-ia ser seu desejo, sem o conseguir, amortecer-lhe o
próprio esplendor.
— Que bela mulher! — eis a frase que vinha aos lábios de toda a gente quando
ela passava. Como ao peso de uma estranha impressão, o visconde curvou-se um
pouco e baixou os olhos no Momento em que ela se instalava diante dele e o
iluminava, a ele também, com o seu imutável sorriso.
— Minha senhora, diante de um tal auditório, receio não ser capaz — disseele, inclinando-se e sorrindo.
A princesa apoiou num guéridon um dos seus braços nus, bem modelados, sem
pensar que seria útil responder. Esperava, sorridente. Enquanto durou a história
manteve-se com o busto erecto, contemplando, uma vez por outra, o seu lindo
braço, cuja foi-ma perfeita se esmagava contra a mesa, ou o próprio colo, mais
encantador ainda, sobre o qual ajeitava a gargantilha de diamantes; várias vezes
procurou acertar as pregas do vestido, e, quando a narrativa produzia algum
efeito, trocava um olhar com Ana Pavlovna, copiando, imediatamente, a expressão
da dama de honor, para depois imobilizar, de novo, a máscara no seu
resplandecente sorriso. Como Helena, a princesinha tinha também abandonado a
sua mesa de chá.
— Espere, vou buscar o meu bordado — disse ela. — Então, em que está a
pensar? — acrescentou, dirigindo-se ao príncipe Hipólito. — Traga-me o meu
saquinho.
A princesa, que sorria, e dirigia a palavra a todos, produziu um certo
burburinho ao sentar-se, alegremente, enquanto ajeitava as pregas do vestido.
— Agora, sim! — exclamou, e, pedindo que se principiasse, pôs-se ela própria a
trabalhar.
O príncipe Hipólito, que veio trazer-lhe o saquinho, acompanhou-a na sua
mudança de lugar, e, aproximando dela um fauteil, sentou-se a seu lado.
O encantador Hipólito impressionava pela sua extraordinária parecença com a
irmã, tanto mais que, apesar dessa semelhança, era muitíssimo feio. Os seus traços
pareciam-se, de facto, com os da irmã, mas nesta tudo resplandecia iluminado pelo
seu eterno sorriso, jovem, satisfeito, pleno de vida, e 1)ela rara perfeição da sua
beleza clássica; no irmão, pelo contrário, o rosto era como que entenebrecido pela
falta de inteligência e por uma constante expressão a um tempo suficiente e
azeda. Quanto à figura, era de corpo magro e enfesado. Tinha os olhos, o nariz, a
boca continuamente contraídos numa careta indefinida e desagradável; os braços
e as pernas tomavam-lhe sempre posições pouco naturais.
— Não se trata de uma história de fantasmas? — murmurou ele, ao sentar-se
ao lado da princesa, enquanto assestava o lorgnon, como se não pudesse dispensar
esse acessório para abordar uma conversa.
— Não, meu caro! — exclamou o narrador, surpreendido, encolhendo os
ombros.— É que detesto as histórias de fantasmas — tornou ele, num tom de que se
depreendia que ele falava e só depois de falar compreendia o que queria dizer.
Tamanha era a segurança que punha nas suas palavras que ninguém poderia
dizer se essas palavras eram muito sensatas ou muito estúpidas. Vestia um fraque
verde-carregado, uns calções cor-de-rosa-pálidos, meias de seda e escarpins.
O visconde contava com muito agrado a história, então muito divulgada,
segundo a qual o duque de Enghien tinha ido secretamente a Paris encontrar-se
com Mademoiselle Georges e aí se lhe deparara Bonaparte, que, por essa altura,
também era íntimo da famosa actriz. Na presença do duque. Napoleão tinha tido,
de súbito, um pequeno desmaio, coisa que lhe acontecia frequentes vezes, e ficara
à mercê do duque, circunstância de que este não quisera tirar partido. Bonaparte,
mais tarde, vingara-se desta magnanimidade do duque mandando matar o
adversário.
A história era muito bonita e cheia de interesse, sobretudo naquele ponto em
que os dois rivais se reconheciam de repente, e as senhoras pareceram muito
emocionadas com isso.
— Encantador — exclamou Ana Pavlovna, lançando um olhar interrogativo à
princesinha.
— Encantador — murmurou a princesinha, espetando a agulha no bordado,
como para mostrar que o interesse e o encanto da história a impediam de
trabalhar.
O visconde mostrou apreciar esta homenagem muda, e, sorrindo, grato,
prosseguiu na sua narrativa; mas nesse momento Ana Pavlovna, que ainda não
tinha deixado de observar o jovem que tanto a assustava, ao ver que ele punha
calor demasiado na sua conversa com o abade, falando muito alto, deu-se pressa
em comparecer no local ameaçado. Efectivamente. Pedro tinha-se embrenhado
com o abade numa conversa sobre o equilíbrio político, e este, visivelmente
interessado pelo ingénuo entusiasmo do jovem, pusera-se a desenvolver perante
ele as suas teorias favoritas. Ambos ouviam e respondiam com grande vivacidade
e muito espontaneamente, e isso não agradava a Ana Pavlovna.
— A solução é o equilíbrio europeu e o direito dos povos — dizia o abade. — É
de toda a conveniência para um Estado poderoso como a Rússia, reputado
bárbaro, colocar-se generosamente à frente de uma liga que tenha por objectivo o
equilíbrio da Europa, e é assim que a Rússia salvará o mundo!— E como é que se obterá esse equilíbrio? — principiou Pedro.
Mas neste momento Ana Pavlovna aproximou-se, e, fitando este com
severidade, perguntou ao italiano como é que ele achava o clima do país.
O rosto do abade mudou repentinamente, tomando aquela expressão
mortificada e doce que era a sua expressão habitual quando falava com senhoras.
— Tão encantado ando com a gentileza de espírito e a distinção da gente da
sociedade, sobretudo do elemento feminino, em cujo meio tive a felicidade de ser
recebido, que ainda não tive tempo de pensar no clima — respondeu ele.
Sem abandonar o abade nem Pedro. Ana Pavlovna, para melhor os observar,
arrastou-os consigo para o grupo em que estava.
[IV]
Nessa altura um novo convidado penetrou no salão. Era o jovem príncipe
André Bolkonski, o marido da princesinha, um belo moço, de pequena estatura e
traços acentuados e secos. Tudo nele, desde o olhar lasso e enfadado ao andar
tranquilo e circunspecto, oferecia o mais violento contraste com a sua
mulherzinha, a inquietação em pessoa. Conhecia tão bem por dentro e por fora a
gente da sociedade, que tanto o enfadava, que bastava vê-la e ouvir-lhe o ruído
das vozes para a sentir insuportável. E entre todas as pessoas que mais o
exasperavam contava-se, precisamente, a sua linda mulherzinha. Com um ricto que
lhe alterou os traços regulares, afastou-se dela assim que a viu. Depois, beijando a
mão de Ana Pavlovna e piscando os olhos, perpassou a vista pela assistência.
— Alistou-se para ir para a guerra, meu príncipe? — disse Ana Pavlovna.
— O general Kutuzov — volveu Bolkonski, acentuando a última sílaba zov,
como os Franceses — teve a condescendência de me chamar para ajudante-de-
campo...
— E Lisa, sua mulher?
— Irá para o campo.
— E não tem escrúpulos de nos privar da presença da sua encantadora
mulher?
— André — exclamou esta última, dirigindo-se ao marido com a mesmacoquetterie com que se dirigia aos estranhos —, que história é essa de
Mademoiselle Georges e Bonaparte que o visconde acaba de nos contar?
O príncipe André franziu as sobrancelhas e desviou a cara. Pedro, que desde o
momento em que André entrara no salão não mais tinha deixado de o seguir com
o seu olhar alegre e amistoso, aproximou-se dele e pegou-lhe no braço. O príncipe
André, sem se voltar, teve uma visagem de descontentamento para com aquele
que lhe pegava no braço, mas, ao deparar-se-lhe o rosto sorridente de Pedro, um
sorriso inesperado, amável e bom se lhe pintou também na figura.
— Que vejo?! Também tu na alta-roda?! — exclamou.
— Tinha a certeza de que o havia de encontrar aqui — retorquiu Pedro.—
Queria pedir-lhe que me desse de cear — acrescentou em voz baixa, para não
perturbar o visconde, que continuava a sua história — É possível?
— Não, é impossível — respondeu André, rindo e fazendo compreender a
Pedro, pela maneira como lhe apertou a mão, que isso era coisa que nem se
perguntava.
Quis dizer mais, mas nessa altura o príncipe Vassili e a filha levantaram-se, e
os jovens abriram alas para os deixar passar.
— Desculpe, meu caro visconde — disse em francês o príncipe Vassili,
segurando-o amistosamente pela manga, para que ele se não levantasse. — Esta
estopada da festa em casa do embaixador priva-me do prazer de o ouvir e obriga-
me a interrompê-lo. Lamento muito ter de abandonar a sua maravilhosa recepção
— disse ele, dirigindo-se a Ana Pavlovna.
Sua filha, a princesa Helena, soerguendo ligeiramente a cauda do vestido,
passou entre uma ala de cadeiras e o sorriso ainda lhe iluminou mais o belo rosto.
Pedro contemplou esta beldade, ao vê-la passar diante de si, com olhos onde havia
admiração e quase receio.
— É muito bela — disse o príncipe André.
— É — repetiu Pedro.
Ao passar, o príncipe Vassili pegou no braço de Pedro, e voltando-se para Ana
Pavlovna:
— Domestique-me este urso — disse. — Há um mês que o tenho em minha
casa e é a primeira vez que o vejo na sociedade. Não há nada melhor para os
rapazes que o convívio das mulheres inteligentes.
Ana Pavlovna teve um sorriso e prometeu tomar conta de Pedro, o qual, comoela muito bem sabia, era aparentado com o príncipe Vassili pelo lado paterno. A
senhora idosa que estava a fazer companhia a minha tia levantou-se,
apressadamente, e correu para falar com o príncipe Vassili, que já estava no
vestíbulo. Perdera por completo o falso ar de interesse mundano que aparentara
até então. O seu bondoso rosto macerado pelas lágrimas só reflectia receio e
inquietação.
— Que me diz, príncipe, do meu Bóris?! — exclamou ela, correndo atrás dele.
Pronunciava o nome Bóris acentuando particularmente o o. — Já não posso estar
mais tempo em Petersburgo. Diga-me, que hei-de eu comunicar ao meu
desventurado filho?
Conquanto o príncipe Vassili estivesse a ouvi-la com desprazer e quase que
impolidamente, dando a perceber, mesmo, uma certa impaciência, a senhora que o
perseguia sorria-lhe com uma amabilidade enternecedora e, para o não deixar
afastar-se dela, pegava-lhe, inclusivamente, num braço.
— Não lhe custava nada dizer uma palavrinha ao imperador, estou convencida
de que ele seria logo transferido para a Guarda — prosseguiu ela.
— Esteja certa de que farei tudo o que puder, princesa — respondeu o príncipe
Vassili —, mas não me é fácil dirigir-me assim ao imperador. Achava melhor que
pedisse antes a Rumiantsov por intermédio do príncipe Galitâne. Era bem melhor.
A senhora idosa era a princesa Drubetzkaia, um dos mais ilustres nomes da
aristocracia russa, mas, pobre, há muito que não frequentava a sociedade e tinha
perdido as suas antigas relações. Viera àquela reunião para tentar obter a
transferência do seu filho único para a Guarda. Não se apresentara na recepção de
Ana Pavlovna senão para falar ao príncipe Vassili e não fora por outra razão que
escutara a história do visconde. Mas as palavras do príncipe Vassili tinham-na
desolado; no belo rosto pintou-se-lhe, por instantes, uma espécie de irritação, mas
não por muito tempo. Logo se pôs a sorrir, e apertando muito o braço do príncipe:
— Ouça, príncipe – disse —, nunca lhe pedi coisa alguma, nunca mais lhe
tornarei a pedir seja o que for, nunca lhe falei na amizade de meu pai por si. Mas
agora peço-lhe em nome de Deus que faça isso por meu filho e ficar-lhe-ei
reconhecida até ao fim da vida — acrescentou, precipitadamente.— Não se zangue
e prometa-me interessar-se. Já pedi a Galitzine, e ele não me quis atender. Seja
bom menino como antigamente — e procurava sorrir, embora as lágrimas lhe
boiassem nos olhos.— Pai, vamos chegar tarde! — exclamou a princesa Helena, que esperava à
porta, inclinando a bela cabeça sobre o ombro de estátua antiga.
A influência de que se desfruta na sociedade é um capital que convém
salvaguardar para que se não dissipe. O príncipe Vassili sabia-o muitíssimo bem, e,
por isso, persuadido de que, se se pusesse a interceder por toda a gente, nada
mais poderia pedir para si próprio, raramente lançava mão do crédito de que
dispunha. No caso da princesa Drubetzkaia, no entanto, sobretudo depois do seu
último apelo, viera-lhe ao espírito uma espécie de remorso. Tinha ela evocado
qualquer coisa de muito verdadeiro. Os primeiros passos na carreira devia-os ele,
efectivamente, ao pai da princesa. Além disso, pela forma como ela agia,
verificava estar em presença de uma dessas mulheres, ou, antes, de uma dessas
mães, que, quando se lhes mete qualquer coisa na cabeça, só desistem desde que
conseguem o que desejam, ou então, no caso de uma negativa, são muito capazes
de teimar, dia após dia e a toda a hora, chegando inclusivamente a recorrer a
cenas públicas. Foi esta última consideração que o demoveu.
— Querida Ana Mikailovna — disse ele, no seu tom familiar habitual e ao
mesmo tempo desprendido —, é-me quase impossível fazer o que me pede; mas,
para lhe demonstrar quanto a estimo e como respeito a memória do seu falecido
pai, prometo-lhe que farei tudo quanto estiver na minha mão. Dou-lhe a minha
palavra de que o seu filho será transferido para a Guarda. Está contente?
— Meu querido amigo, meu benfeitor! Não esperava outra coisa de si; eu bem
sabia que era bom.
O príncipe fez menção de partir.
— Espere, mais duas palavras. Uma vez na Guarda... -hesitou.— Como está em
boas relações com Mikail Ilarionovitch Kutuzov, peço-lhe que lhe fale de Bóris para
ajudante-de-campo; ficarei assim mais tranquila e nada mais lhe pedirei...
O príncipe Vassili teve um sorriso.
— Nada lhe prometo. Mal imagina os pedidos que chovem sobre Kutuzov
desde que foi nomeado general-chefe. Ele próprio me disse que todas as senhoras
de Moscovo tinham armado um complot para lhe oferecer os filhos como
ajudantes-de-campo.
— Ah!, prometa-me. Não o deixarei partir, meu querido amigo, meu
benfeitor...
— Pai — voltou a bela Helena, no mesmo tom —, vamos chegar tarde.— Bem, até à vista, adeus. Está a ver?
— Então fala amanhã ao imperador?
— Sem falta, mas no que diz respeito a Krituzov não prometo nada.
— Ah!, prometa, prometa. Basile — exclamou Ana Mikailovna, perseguindo-o
com um sorriso de mulher coquette, outrora natural nela, certamente, mas que
então estava longe de se harmonizar com a sua máscara decrépita.
Evidentemente que tinha esquecido a idade e, pela força do hábito, pusera em
campo todos os seus expedientes femininos. No entanto, mal o príncipe Vassili
saiu, logo ela retomou o aspecto frio e constrangido que aparentava
anteriormente. Voltou ao grupo em que o visconde continuava a contar as suas
histórias e fingiu que escutava, aguardando a oportunidade de se eclipsar, pois o
assunto que a levara ali estava resolvido.
[V]
— Mas que me diz dessa última comédia da sagração de Milão? — observou
Ana Pavlovna.— E a nova comédia dos povos de Génova e Luca, que iam
apresentar as suas homenagens ao senhor Bonaparte sentado no trono e
recebendo as homenagens das nações! Adoráveis! Não, mas é de endoidecer! Dir-
se-ia que o mundo inteiro perdeu a cabeça!
O príncipe André pôs-se a sorrir olhando nos olhos Ana Pavlovna.
— É Deus quem ma dá, ai de quem lhe tocar — disse ele. Foram estas as
palavras que Bonaparte proferiu na coroação. Dizem que estava muito belo
quando pronunciou estas palavras — acrescentou, e repetiu a frase em italiano —
Dio me l’ha data e guai a chi la tocca.
— Espero, enfim — prosseguiu Ana Pavlovna — que esta seja a gota que fará
transbordar o vaso. Os soberanos já não podem mais com este homem, que a
todos ameaça.
— Os soberanos? Não falo da Rússia — observou o visconde com o seu ar
cortês e desencantado, — Os soberanos, minha senhora! Que fizeram eles por Luís
XVI, pela rainha, por Madame Elisabeth? Nada — continuou com animação. — E
pode crer, estão a receber o castigo pela traição à causa dos Bourbons. Ossoberanos? Mandam embaixadores cumprimentar o usurpador.
E, suspirando, retirou-se com uma expressão desdenhosa. O príncipe Hipólito,
depois de ter estado a fitar longamente o visconde com o seu lorgnon, ao ouvir
estas palavras, desviou-se subitamente, voltando-se para a princesinha, e,
pedindo-lhe urna das suas agulhas, pôs-se a indicar-lhe, desenhando-as em cima da
mesa, as armas dos Condés! E explicava-lhas com uma tal seriedade que dir-se-ia
que ela lhe pedira um tal serviço.
— Bastão de goles, denteado de goles de blau, é a casa de Condé — murmurou
ele.
A princesa ouvia-o, sorrindo.
— Se Bonaparte ficar ainda um ano no trono da França — prosseguiu o
visconde com ar de quem não ouve o que os outros dizem e está apenas a seguir o
fio das suas ideias a respeito de um assunto que conhece melhor do que ninguém
—, não sei onde iremos parar. Com tantas intrigas, tantas violências, tantos
exílios, tantos suplícios, não tarda que a sociedade francesa, a alta sociedade, claro
está, se veja completamente aniquilada e para sempre, e então...
Teve um movimento de ombros ao afastar os braços. Pedro quis dar a sua
opinião, pois a conversa interessava-o, mas Ana Pavlovna que o vigiava de perto,
interrompeu-o.
— O imperador Alexandre — disse ela com aquele tom sério com que se referia
sempre à família imperial— declarou que deixaria os próprios franceses
escolherem a sua forma de governo. E estou convencida de que não há dúvida de
que toda a nação, uma vez liberta do jugo do usurpador, se lançará nos braços do
seu soberano legítimo — acrescentou ela, para se mostrar amável para com um
emigrado e um realista.
— Duvido — observou o príncipe André.— O Senhor Visconde tem toda a
razão ao pensar que as coisas já foram longe de mais. Creio que será muito difícil
voltar ao passado.
— Pelo que eu tenho ouvido dizer — interveio Pedro, corando —, quase toda a
nobreza está já do lado de Bonaparte.
— Isso é o que dizem os bonapartistas — observou o visconde sem olhar para
Pedro. — É muito difícil, actualmente, conhecer a opinião pública em França.
— Bonaparte disse-o — objectou o príncipe André, sorrindo. Via-se muito bem
que o visconde lhe não agradava e que, sem olhar para ele, era ele que visavacomo seu adversário.
— «Mostrei-lhes o caminho da glória» — acrescentou ele, depois de uma
ligeira pose, citando as próprias palavras de Napoleão: «eles não o quiseram; abri-
lhes as minhas antecâmaras, entraram por ali dentro aos montes».., não sei até
que ponto teve o direito de o dizer.
— Nenhum — replicou o visconde.— Depois do assassinato do duque, até os
seus mais fiéis partidários deixaram de ver nele um herói. Se essa peste chegou a
ser um herói para certa gente — acrescentou, dirigindo-se a Ana Pavlovna —,
depois do assassinato do duque há mais um mártir no Céu, um herói de menos na
Terra.
Mal tiveram tempo. Ana Pavlovna e os outros, de aprovar estas palavras com
um sorriso, e já Pedro se tinha lançado, uma vez mais, no meio da conversa. Ana
Pavlovna, conquanto pressentisse que ele ia dizer coisas fora de propósito, não foi
capaz de o deter.
— A execução do duque de Enghien — disse o Senhor Pedro— foi uma
necessidade pública; e para mim o facto de Napoleão não ter receio de assumir a
responsabilidade de um tal acto só atesta precisamente a sua grandeza de alma.
— Oh! Meu Deus! — murmurou Ana Pavlovna, aterrorizada.
— Como. Senhor Pedro, acha que o assassinato é grandeza de alma? — disse a
princesinha, sorrindo e debruçando-se sobre o seu bordado,
— Ah! Oh! — exclamaram várias pessoas.
— Capital! — disse em inglês o príncipe Hipólito, dando palmadas na coxa.
O visconde contentou-se em encolher os ombros. Pedro olhou triunfantemente
os seus interlocutores através das suas lunetas.
— Eu falo assim — prosseguiu ele, pondo de lado todos os rodeios de
linguagem— porque os Bourbons fugiram da Revolução abandonando o povo à
anarquia; só Napoleão soube compreender a Revolução e dominá-la. E aí está
porque, em nome do bem-estar de todos, ele não podia deter-se perante a vida de
um homem.
— Não quereria sentar-se aqui a esta mesa? — interrogou Ana Pavlovna. Mas
Pedro, sem lhe responder, continuou:
— Sim — disse ele, cada vez mais animado — Napoleão é grande porque soube
elevar-se acima da Revolução, porque sufocou os abusos a que ela tinha levado,
aproveitando o que nela havia de bom, isto é, a igualdade dos cidadãos e aliberdade do pensamento e da imprensa. E não foi por outro motivo que subiu ao
Poder.
— Realmente — interrompeu o visconde —, se, tornando conta do Poder, ele o
não tem aproveitado para cometer um crime, e confiasse o trono ao seu rei
legítimo, era justo chamar-lhe um grande homem.
— Napoleão nunca podia ter agido dessa maneira. O povo confiara-lhe o Poder
exactamente para que ele o livrasse dos Bourbons, e por isso mesmo é que o povo
viu nele o estofo de um grande homem. A Revolução foi uma grande coisa —
continuou o Senhor Pedro, demonstrando, com esta audaciosa e provocante
afirmação, não só a sua muita juventude, mas também o seu desejo de dizer tudo
de uma vez.
— A Revolução e o regicídio, grandes coisas?... Depois disso... Mas não seria
melhor sentar-se aqui a esta mesa? — repetia Ana Pavlovna.
— O Contrato Social — disse o visconde com um sorriso condescendente.
— Eu não falo do regicídio, falo de ideias.
— Sim, sim, as ideias de pilhagem, de assassínio, de regicídio — interrompeu
ainda uma voz irónica.
— Claro Que se praticaram excessos, mas não era isso que tinha importância; o
que importava eram os direitos do homem, a abolição dos privilégios, a igualdade
dos cidadãos. E estas ideias manteve-as Napoleão integralmente,
— A liberdade e a igualdade — exclamou, desdenhosamente, o visconde, que
parecia querer, finalmente, mostrar a sério àquele mancebo a tolice dos seus
argumentos —, tudo isso são frases sonoras de há muito sem sentido. Quem é que
não gosta da liberdade e da igualdade? Já o Salvador pregava a liberdade e a
igualdade. Foram os homens mais felizes depois da Revolução? Pelo contrário, nós
é que queríamos a liberdade, e Napoleão foi quem acabou com ela.
O Príncipe André, sorrindo, ora fitava Pedro, ora o visconde, ora a dona da
casa. No primeiro momento, quando Pedro pronunciou as primeiras palavras. Ana
Pavlovna ficou como fulminada, não obstante todos os seus hábitos de sociedade.
Mas, ao verificar que, apesar dos sacrílegos argumentos de Pedro, o visconde não
perdia as estribeiras, quando se convenceu de que não era possível sufocar tais
palavras, ganhou ânimo e, unindo as suas forças às do visconde, caiu sobre o
orador.
— Mas, meu caro Senhor Pedro – exclamou —, como é que o senhor explicaque esse grande homem mandasse executar o duque, um simples cidadão afinal,
sem julgamento prévio e sem que ele fosse culpado?
— E eu — acrescentou o visconde— atrever-me-ei a perguntar como é que o
senhor explica o 18 de Brumário. Não acha que foi um logro? É um logro que não
parece próprio da maneira de proceder de um grande homem.
— E os deportados de África chacinados à ordem dele? É horrível! — exclamou
a princesinha, fazendo um gesto de pânico.
— É um plebeu, diga o senhor o que disser — corroborou o príncipe Hipólito.
O Senhor Pedro não sabia a quem prestar atenção; fitava-os a todos, sorrindo.
O seu sorriso não era como o das demais pessoas, à mistura com qualquer coisa de
sério. Ele, pelo contrário, quando se lembrava de sorrir, perdia, de repente, toda a
seriedade, e a máscara, sempre um pouco enfadonha, transfigurava-se-lhe: ficava
com o seu quê de infantil, de pobre diabo, um pouco estúpido até, com o ar de
quem quer pedir perdão.
O visconde, que o via pela primeira vez, compreendeu imediatamente que
aquele jacobino não era tão terrível nos actos como nas palavras. Todos se
calaram.
— Como querem que Pedro responda a toda a gente ao mesmo tempo? —
interrogou o príncipe André. — Além disso, nos actos de um homem de Estado é
preciso saber distinguir os que ele pratica como simples particular dos que ele
pratica como chefe do exército ou como imperador. Parece-me da mais elementar
justiça.
— Claro, claro — interveio Pedro, satisfeito com a ajuda que recebia.
— É impossível não o reconhecer — continuou o príncipe André. — Napoleão, o
homem, é grande na ponte de Arcole, no hospital de Jafa, quando aperta a mão
aos pestíferos, mas.., mas há outros actos seus difíceis de justificar.
O príncipe André, que manifestamente pretendera atenuar o embaraço que
tinham provocado as palavras de Pedro, ergueu-se para se retirar, e fez sinal à
mulher.
De súbito, o príncipe Hipólito, levantando-se, pediu a todos, com um gesto, que
se conservassem sentados e principiou a dizer:
— Contaram-me hoje uma anedota moscovita encantadora; têm de a ouvir.
Queira perdoar-me, visconde, tenho de a contar em russo. De outra maneira,
perde o sal.E o príncipe Hipólito pôs-se a falar russo como o falam os franceses chegados à
Rússia há menos de um ano. Todos prestaram atenção, tão viva e instantemente o
príncipe reclamara que lhe fizessem esse favor.
— Em Moscovo há uma senhora. E é muito avara. E precisava de arranjar dois
lacaios para a sua carruagem. E de grande estatura. Era assim que ela gostava. E
tinha uma criada de quarto também de grande estatura. E então disse...
Neste ponto, o príncipe Hipólito teve um momento de reflexão, mostrando
certa dificuldade em combinar as frases.
— E então disse.., sim, disse: «Menina (para a criada de quarto) enfia a libré e
vem daí comigo fazer visitas.»
Nesta altura o príncipe Hipólito deu uma gargalhada, rindo antes de mais
ninguém, o que criou um pouco de embaraço ao narrador. Entretanto, várias
pessoas, entre as quais a senhora idosa e Ana Pavlovna, sorriram.
— Lá foram. De repente levantou-se um grande vendaval. A rapariga ficou sem
o chapéu e a cabeleira desprendeu-se-lhe... Aqui não pôde aguentar-se mais e um
grande acesso de riso o tomou, ao mesmo tempo que dizia:
— E toda a gente soube...
E assim terminou a anedota, ainda que ninguém pudesse compreender porque
a tinha ele contado e a que propósito lhe parecera indispensável narrá-la em
russo. Ana Pavlovna e os demais convivas apreciaram a cortesia mundana do
príncipe Hipólito, que assim tinha posto ponto final ao penoso e pouco cortês
despropósito do Senhor Pedro. A conversa dispersou-se em seguida por miúdos e
insignificantes dizeres a propósito de bailes em perspectiva ou já passados, em
alusões a espectáculos ou então em referências a circunstâncias ou a locais onde as
pessoas poderiam vir a encontrar-se.
[VI]
Depois de felicitarem Ana Pavlovna pela sua encantadora reunião, os
convidados principiaram a retirar-se.
Pedro era um desajeitado. Gordo, estatura acima de mediana, largo de
ombros, com enormes mãos vermelhuscas, se não sabia estar numa sala, como secostuma dizer, muito menos sabia sair dela, quer dizer, muito menos sabia
pronunciar, antes de partir, as palavras atenciosas da praxe. Além disso, era
distraído. Quando se levantou, em vez de pegar no chapéu que lhe pertencia,
pegou num tricórnio empenachado de general e assim esteve, com ele na mão,
sacudindo o penacho, até que o proprietário veio pedir-lhe que lho restituísse. É
certo que estas suas distracções e o seu desconhecimento de usos e costumes da
sociedade eram largamente compensados por um ar ingénuo, simples e modesto.
Ana Pavlovna virou-se para onde ele estava, e cheia de indulgência cristã
perdoou-lhe a intempestiva saída, dizendo-lhe, enquanto meneava a cabeça:
— Espero tornar a vê-lo, mas também desejo que mude de ideias, meu caro
Senhor Pedro.
Pedro nada teve para responder a estas palavras, contentando-se em inclinar-
se e em mostrar mais uma vez o seu sorriso, um sorriso em que se lia: «As minhas
ideias são as minhas ideias, mas, no entanto, reparem como eu sou bom rapaz,»
Ora era isso exactamente o que Ana Pavlovna e todos os demais estavam a dizer
com os seus botões.
O príncipe André saiu para o vestíbulo, e ao mesmo tempo que voltava as
costas ao lacaio que lhe vestia o sobretudo ouvia, distraidamente, a frívola
tagarelice da mulher com o príncipe Hipólito, que também se preparava para
abalar. O príncipe Hipólito, ao lado da linda princesinha grávida, fixava-a
obstinadamente com o lorgnon.
— Vá-se embora. Annette, está a apanhar frio — disse ela, despedindo-se de
Ana Pavlovna. — Está decidido — acrescentou em voz baixa.
Ana Pavlovna já tivera tempo de dizer duas palavras a Lisa sobre o projecto de
casamento entre Anatole e a cunhada da princesinha.
— Conto consigo, querida amiga — respondeu Ana Pavlovna igualmente em
voz baixa —, escreva-lhe e diga-me depois como encarará o pai o caso. Até à vista
— e saiu do vestíbulo.
O príncipe Hipólito aproximou-se da princesinha e, debruçando-se muito para
ela, murmurou-lhe qualquer coisa ao ouvido. Dois lacaios, o da princesa e o do
príncipe, aguardando que os amos acabassem de falar, ali estavam, um com um
xale, o outro com um sobretudo, e ouviam-nos falar francês, língua que
desconheciam, mas dando-se ares de quem compreende e o não quer dar a
perceber.A princesa, como de costume, sorria enquanto falava e escutava sorrindo,
— Estou radiante por não ter ido à Embaixada — dizia o príncipe Hipólito. —
Que estopada... Encantadora noite, não é verdade? Um encanto.
— Dizem que o baile vai ser uma beleza — retorquiu a princesa, desenhando-
se-lhe um trejeito no lábio sombreado pela ligeira penugem. — Vão lá aparecer
todas as nossas beldades mundanas.
— Nem todas, visto que a princesa lá não estará; nem todas — disse o príncipe
Hipólito com jovialidade, e, pegando no xale, que tirou das mãos do lacaio, a quem
deu mesmo um encontrão, lançou-o sobre os ombros da princesa.
Por falta de jeito ou de propósito, quem o poderia dizer?, quedou-se muito
tempo sem baixar as mãos, embora o xale já estivesse no seu lugar. Dir-se-ia
enlaçar a jovem princesa.
Evitando-o graciosamente, e sem deixar de sorrir, a princesa voltou-se e olhou
para o marido. O príncipe André, de olhos fechados, parecia fatigado e sonolento.
— Está pronta? — perguntou ele à mulher, envolvendo-a num olhar.
O príncipe Hipólito enfiou apressadamente o sobretudo, que lhe descia até aos
tacões, à última moda, e, tropeçando nas pregas do casacão, deu-se pressa em
seguir a princesa, escadaria abaixo, que subia para a carruagem, auxiliada pelo
lacaio.
— Princesa, até à vista! — gritou ele, tropeçando nas palavras como tinha
tropeçado nas dobras do sobretudo.
A princesa, soerguendo o vestido, entrou na obscuridade da carruagem; o
marido afivelava o sabre; o príncipe Hipólito, com o pretexto de ser útil,
incomodava toda a gente.
— Com licença — disse em russo o príncipe André, num tom seco e pouco
amável, dirigindo-se a Hipólito, que lhe vedava a passagem.
— Pedro, espero-te em casa — articulou a mesma voz com um ar afável e
carinhoso.
O postilhão pôs a equipagem em andamento, que arrancou com fragor. O
príncipe Hipólito ficara na escadaria, rindo ainda, aos sacões, enquanto esperava
pelo visconde, a quem prometera reconduzir a casa.
— Pois bem, meu caro, a sua princesinha é um encanto, um encanto — dizia o
visconde, ao sentar-se ao lado de Hipólito.— Mas o que se chama um encanto. — E
atirando um beijo com a ponta dos dedos: — E francesa até à medula.Hipólito riu estrepitosamente.
— Sabe que é terrível com o seu arzinho inocente — prosseguiu o visconde. —
Lamento o pobre marido, esse oficialzito, que se dá ares de príncipe reinante.
Hipólito continuava a rir a bom rir, e, mesmo rindo, foi dizendo:
— E dizia o senhor que as damas russas não chegavam aos calcanhares das
francesas. É preciso é saber tratar com elas.
Pedro, que chegara primeiro, como íntimo da casa que era, entrou no gabinete
do príncipe André, e mal se sentou no divã tirou da estante o primeiro livro que
lhe veio à mão — calhou ser os Comentários, de César —, pondo-se a ler, ao acaso,
apoiado sobre os cotovelos.
— Fizeste-la bonita em casa de Mademoiselle Scherer! É certo e sabido que a
pobre senhora vai cair doente — disse o príncipe André, ao entrar no gabinete,
enquanto esfregava as mãos brancas.
Pedro voltou-se com todo o peso do seu corpo, e de tal maneira que o divã
rangeu debaixo dele. O seu rosto animado fixou-se no do seu companheiro e com
um sorriso aberto fez-lhe um gesto amistoso.
— Realmente, o abade é uma pessoa muito interessante, mas não compreende
as coisas como elas são... Na minha opinião, a paz perpétua é possível, mas, como
direi?..., não por meio do equilíbrio político...
André, visivelmente, não apreciava estas discussões abstractas.
— Ah, não, meu caro, não podemos dizer em toda a parte o que pensamos. Ora
conta-me lá, já te resolveste, finalmente, a fazer qualquer coisa? Que queres tu
ser, cavaleiro da Guarda ou diplomata? — perguntou o príncipe André, depois de
alguns instantes de silêncio.
Pedro voltou a sentar-se no divã, encolhendo as pernas debaixo de si.
— Veja lá, não sei, realmente. Nem uma nem outra dessas situações se me dá
com o feitio.
— No entanto, precisas de tomar uma resolução. Teu pai está à espera que te
decidas.
Pedro fora enviado para o estrangeiro, aos dez anos, na companhia de um
padre, seu preceptor. E por lã ficara até aos vinte. Quando voltou para Moscovo, o
pai despediu o padre e disse ao jovem: «Agora vai até Petersburgo, observa e
escolhe. Estou de acordo desde já com o que tu decidires. Aqui tens uma carta
para o príncipe Vassili e dinheiro. Vai-me dando notícias, e conta comigo.» Haviajá três meses que Pedro procurava decidir-se por uma carreira e não chegava a
conclusão alguma. Era a tal escolha que o príncipe André aludia. Pedro passou a
mão pela testa.
— Estou convencido de que o homem é mação — murmurou, pensando no
abade que encontrara na recepção.
— Basta de frioleiras — voltou André, interrompendo-o.— Falemos de coisas
sérias. Estás decidido pela Guarda montada?... — Não, mas vou dizer-lhe urna
coisa que me veio a cabeça.
Estamos actualmente em guerra com Napoleão. Se se tratasse, de uma guerra
de libertação, então, sim, compreendia, seria mesmo o primeiro a alistar-me. Mas
ajudar a 1nglaterra e a Áustria contra o maior homem que há no mundo.., não
está certo.
O príncipe André contentou-se, em encolher os ombros perante as infantis
considerações de Pedro. O seu ar queria dizer que nada tinha a replicar a uma tal
patetice; e, com efeito, seria difícil responder de outra maneira a uma tal
ingenuidade.
— Se as pessoas fossem para a guerra só por convicção, não haveria guerra —
disse ele.
— E era isso que convinha — respondeu Pedro.
O Príncipe André sorriu.
— É muito possível, mas aí está uma coisa que nunca acontecerá.
— E então por que diabo é que o André vai para a guerra? perguntou Pedro,
— Porquê? Não sei. É assim. Além disso, eu vou... — Calou-se.— Eu vou porque
esta vida que levo aqui, esta vida não me— convém.
[VII]
Na sala contígua ouviu-se o ruge-ruge de um vestido. André teve um
sobressalto, como se recuperasse os sentidos, e a sua máscara tomou a expressão
com que se exibira nos salões de Ana Pavlovna. Pedro tirou os pés de cima do divã.
A princesa entrou. Tinha outro vestido, um vestido íntimo, mas nem por isso
menos fresco e elegante. O príncipe André levantou-se e ofereceu-lhe,cortesmente, uma cadeira,
— Uma coisa eu nunca deixo de perguntar a mim mesma — disse ela, como
sempre, em francês, sentando-se com prontidão — porque é que a Annette se não
teria casado? Que tolos vocês foram, senhores, não casando com ela! Desculpem,
mas vocês não percebem nado de saias. Muito gosta de discutir. Senhor Pedro...
— Precisamente, não faço outra coisa senão discutir com o seu marido. Não
compreendo porque é que ele quer ir para a guerra — disse Pedro, dirigindo-se à
princesa sem o mais pequeno acanhamento, coisa, aliás, perfeitamente natural,
tratando-se de um rapaz e de uma senhora jovem.
A princesa estremeceu. Evidentemente que as palavras de Pedro a tinham
atingido no ponto sensível.
— É o que eu lhe estou sempre a dizer! — redarguiu ela. Não compreendo,
decididamente não compreendo como é que os homens não podem passar sem a
guerra! E que nós, mulheres, não possamos fazer nada, não tenhamos voz nesse
capítulo! Ora, ouça, faça de conta que é um juiz. Passo a vida a dizer-lhe a mesma
coisa. O André é ajudante-de-campo do tio, tem aqui uma brilhante situação. Toda
a gente o conhece, toda a gente o aprecia. No outro dia, em casa dos Apraxine,
ouvi uma senhora perguntar: «Este é que é o famoso príncipe André? Palavra!» —
Ele pôs-se a rir. — É assim que o recebem em toda a parte. Tinha toda a facilidade
em vir a ser ajudante-de-campo do imperador. Sabe que o imperador lhe dirigiu
graciosamente a palavra? A Annette e eu estamos convencidas de que era tão
fácil! Que acha?
Pedro olhou para o príncipe André, e, vendo que a conversa não agradava ao
amigo, nada respondeu.
— Quando parte? — interrogou ele.
— Ah! Não me fale dessa partida, não me fale. Não quero ouvir falar nisso! —
exclamou a princesa nesse mesmo tom de coquetterie satisfeita de si que ela
mostrara quando, no salão de Ana Pavlovna, conversava com Hipólito, mas que
naquele ambiente de intimidade familiar em que Pedro era recebido não caía nada
bem. — Actualmente, quando me lembro de que temos de interromper todas as
nossas queridas relações... E, além disso, não sei, sabes. André? — Teve para o
marido um ligeiro piscar de olhos. — Tenho medo, tenho medo! — acrescentou
muito baixo, estremecendo.
O marido olhou para ela com o ar surpreendido que teria se estivesse maisalguém presente que não fosse Pedro e ele próprio. André. Depois, com uma fria
polidez, disse:
— Que receias. Lisa? Não compreendo...
— Ora aqui está o egoísmo dos homens! Não há um que se salve: são todos,
todos egoístas, para satisfazerem os seus caprichos! Só Deus sabe porque é que
ele me vai deixar enclausurada no campo.
— Com meu pai e minha irmã, não te esqueças — articulou, tranquilamente, o
príncipe André.
— Nem por isso estarei menos só, sem as minhas amigas... E ainda ele quer
que eu não tenha medo.
Tinha adoptado um tom de amuo e fazia um trejeito que lhe dava um ar já não
alegre, mas quase animal, um ar de um pequenino esquilo. Calou-se, pensando não
ser conveniente falar diante de Pedro do seu estado, no fundo a causa de tudo.
— Continuo a não compreender de que é que tens medo — disse, lentamente,
o príncipe André, sem deixar de a fitar.
A princesa corou e fez um gesto impetuoso.
— Não. André, eu acho é que mudou tanto, tanto...
— O teu médico aconselhou-te a que te deitasses cedo — disse o príncipe
André. — Era melhor que te retirasses.
A princesa nada disse, mas, de súbito, o seu lábio, sombreado por uma
penugem ligeira, pôs-se a tremer; André levantou-se, encolhendo os ombros, e
começou a andar de um lado para o outro.
Pedro, com um ar espantado e ingénuo, olhava por detrás das lunetas ora um
ora outro, e agitava-se, como se ele também quisesse levantar-se, mas continuava
indeciso.
— Quero lá saber que esteja aqui o Senhor Pedro — disse, abruptamente, a
princesinha, e pelo seu delicado rosto perpassou, de súbito, um ricto como de
quem vai chorar.— Há muito tempo que eu te queria dizer. André. Porque é que
mudaste tanto para comigo? Que te fiz eu? Vais para a guerra e não tens pena de
mim. Porquê?
— Lisa! — foi tudo quanto disse André.
Mas nesta palavra havia ao mesmo tempo uma súplica e uma ameaça, e
sobretudo qualquer coisa em que se lia que ela havia de arrepender-se de ter
proferido aquelas palavras. Precipitadamente, ela continuou:— Tratas-me como uma doente ou como uma criança. Eu bem vejo. Achas que
eras assim há seis meses?
— Lisa, peço-te que te cales — disse André numa voz cortante.
Pedro, cada vez mais perturbado com aquela troca de palavras, levantou-se e
aproximou-se da princesa. Dir-se-ia não poder suportar a vista das lágrimas e ele
próprio estava quase a chorar.
— Sossegue, princesa. É o que lhe parece; porque eu próprio tive a mesma
impressão.., porque... é que... Ah!, desculpe-me, sinto que estou aqui a mais... Ah!,
sossegue... Adeus...
O príncipe André segurou-o por um braço.
— Um momento. Pedro. A princesa é tão boa que não quererá privar-me do
prazer de passar a noite contigo.
— Vê, vê, não pensas senão nele! — exclamou a princesa, sem poder reter as
lágrimas, onde havia revolta.
— Lisa — disse o príncipe secamente, erguendo o tom da voz a uma altura tal
que significava ter perdido por completo a paciência.
Subitamente, o arzinho de esquilo furioso que se pintara no rosto da princesa
converteu-se num medo impressionante, digno de piedade. Lançou, furtivamente,
com os seus belos olhos um rápido olhar ao marido e teve essa expressão tímida e
submissa de um cão batido que foge com a cauda entre as pernas.
— Meu Deus, meu Deus! — murmurou, pegando na cauda do vestido, e,
aproximando-se do marido, beijou-o na testa.
— Boa noite. Lisa — disse o príncipe André erguendo-se e beijando-lhe a mão
com cortesia, como se fosse uma estranha.
[VIII]
Os dois amigos ficaram silenciosos. Nem um nem outro ousavam falar. Pedro
tinha os olhos pousados no príncipe André, que passava a fina mão pela testa.
— Vamos cear — disse ele, suspirando. Levantou-se e dirigiu-se para a porta.
Entraram na sala de jantar, elegantíssima, recém-arranjada e ricamente posta.
Tudo, desde os guardanapos às pratas, à baixela e aos cristais, tinha esse aspectonovo característico das casas dos recém-casados. No meio do repasto o príncipe
André apertou a cabeça entre as mãos, e, como alguém muito preocupado que
finalmente resolve abrir-se, principiou a dizer, com um nervosismo que Pedro lhe
não conhecia.
— Não, te cases nunca, nunca, meu amigo; é o conselho que te dou. Não te
cases antes de estares convencido de que fizeste tudo de que eras capaz, antes de
teres deixado de amar a mulher que escolheste, antes de a teres visto bem; sem
isso, enganar-te-ás cruelmente e sem remissão. Casa-te quando fores velho e já
não prestares para coisa alguma... Se o não fizeres, perder-se-á tudo quanto
houver em ti de bom e de grande. Tudo irá por água abaixo. Sim, sim, sim! Não me
olhes com essa cara de espanto. Se estás convencido de que serás capaz de fazer
alguma coisa no futuro, verificarás que tudo acabou para ti, que tudo te está
vedado, salvo o salão onde virás a encontrar-te ao nível de qualquer lacaio ou de
qualquer imbecil... E aqui tens!
Teve um gesto enérgico.
Pedro tirou as lunetas, ficando com outra cara, ainda mais bondosa, e fitou o
amigo com espanto.
— A minha mulher — continuou o príncipe André— é uma excelente senhora. É
uma dessas raras pessoas que não fazem perigar a nossa honra. Mas. Deus meu, o
que daria eu para me não ter casado! És tu a primeira e a única pessoa a quem o
digo, porque sou teu amigo.
Enquanto falava, o príncipe André cada vez se parecia menos com esse
Bolkonski enterrado numa cadeira em casa de Ana Pavlovna deixando passar por
entre dentes, de olhos piscos, frases francesas. Todos os músculos da sua seca
máscara estavam agitados por movimentos nervosos; os seus olhos, em que o fogo
da vida, até então, parecia extinto, brilhavam agora com um fulgor luminoso e
claro. Dir-se-ia que quanto menos vida nele havia habitualmente mais enérgico
parecia nestes instantes de uma excitação quase anormal.
— Tu não compreendes porque eu falo assim. No entanto estás diante da
história de toda uma existência. Tu dizes Bonaparte e a sua carreira — continuou
ele, embora Pedro nada tivesse dito acerca de Bonaparte. — Dizes: Bonaparte.
Mas Bonaparte, quando trabalhava, quando caminhava, passo a passo, para o seu
fim era livre, não tinha mais nada em vista senão esse objectivo, e atingiu-o.
Porém, se tu te ligares a uma mulher, como um forçado com uma braga aos pés,perderás toda a liberdade. E tudo quanto em ti possa haver de esperança e de
energia tornar-se-á um peso morto, que te oprimirá de desgosto. Os salões, a má-
língua, os bailes, a vaidade, as futilidades, eis daí por diante o círculo vicioso de
que é impossível uma pessoa evadir-se. Vou partir para a guerra, para a maior das
guerras, e não sei nada, e não presto para nada. Sou muito amável e muito
cáustico e as pessoas ouvem-me quando eu falo em casa de Ana Pavlovna. E aí
tens essa estúpida sociedade mundana sem a qual não podem passar nem a minha
mulher nem essas mulheres... Se tu ao menos pudesses fazer uma ideia do que são
todas as mulheres distintas e todas as mulheres em geral. Meu pai tem razão. O
egoísmo, a vaidade, a tolice, a nulidade em tudo, aí tens a mulher quando se
mostra tal qual é. Quando a gente a vê na sociedade, julga que vale alguma coisa,
e não vale nada, nada, nada! É o que te digo: não te cases, meu caro, não te cases
— concluiu.
— Que vontade de rir que isto me dá — disse Pedro. — Pois é o André, o
André, precisamente, que se considera a si próprio um incapaz, que considera
falhada a sua vida? O André que tem o futuro diante de si, todo um futuro? O
André...
«De que não será capaz?», pensou, mas o tom da sua voz denunciava
claramente a alta estima em que ele tinha o amigo e o que esperava dele para
mais tarde.
«Como pode ele falar assim!», dizia Pedro de si para consigo.
E efectivamente Pedro via no príncipe André como que um modelo de todas as
perfeições, precisamente porque ele era dotado no mais alto grau das qualidades
que ele próprio não tinha, essas qualidades que mais do que quaisquer outras
exigem força de vontade. Sempre lhe causara admiração a serenidade que o
príncipe André sabia manter nas relações com as pessoas mais diversas e a sua
memória extraordinária, as suas vastas leituras — tinha lido tudo, sabia tudo,
compreendia tudo — e sobretudo a sua capacidade de trabalho e de assimilação.
E, se é verdade que frequentes vezes o impressionava, a ele. Pedro, a pouca
tendência que o príncipe André manifestava pela reflexão e pela filosofia, coisas
para que Pedro sentia mais inclinação, estava longe de pensar que isso
constituísse um defeito; pensava até que representava uma força.
Nas melhores relações, nas mais amistosas e mais simples relações, a adulação
ou os louvores são coisas indispensáveis, tal qual como o azeite é indispensávelnas rodas dos carros.
— Sou um homem liquidado — murmurou o príncipe André. Para que havemos
nós de perder tempo a falar de mim? Falemos antes de ti — acrescentou depois de
um curto silêncio e sor— rindo, como se regressasse, finalmente, a um assunto
mais consolador.
Nessa altura um sorriso apareceu nos lábios de Pedro.
— E para que havemos nós de falar de mim? — disse abandonando-se a uma
despreocupada alegria.— Que sou eu, no fim de contas? Sou um bastardo! — E,
subitamente, corou até às orelhas. Via-se bem que fizera um grande esforço para
pronunciar estas palavras.— Sem nome, sem fortuna... E, de resto, para falar
francamente... — Quereria ter dito tanto melhor, mas não concluiu a frase. —
Enquanto espero, sou livre, estou satisfeito com a minha sorte. Mas o certo é que
não sei o que hei-de fazer. Seriamente, queria pedir-lhe que me aconselhasse.
O príncipe André olhou-o com bondade, mas, apesar disso, no seu olhar amável
e amistoso sentia-se-lhe a superioridade.
— Gosto de ti, sobretudo porque és tu, entre toda a gente das nossas relações,
o único ser vivo. Dizes que estás satisfeito. Escolhe o que quiseres, é indiferente.
Em toda a parte serás feliz. Só te peço uma coisa: deixa de conviver com esses
Kuraguine, deixa a vida que levas. Isso não te convém: toda essa devassidão, esse
convívio com hússares, tudo que...
— Que quer, meu caro? — disse Pedro encolhendo os ombros. — As mulheres,
meu caro, as mulheres!
— Não compreendo — retorquiu André. — As verdadeiras senhoras, sim, essas
são outra coisa, mas as mulheres de Kuraguine, as mulheres e o vinho, confesso-te
que não compreendo!
Pedro vivia em casa do príncipe Vassili Kuraguine e acompanhava nas suas
orgias o filho deste. Anatole, esse mesmo Anatole que queriam casar, para o
corrigir, com a irmã do príncipe André.
— Quer saber? — disse Pedro, como se acabasse de ter uma feliz ideia. —
Seriamente, há muito tempo que penso nisto. Com a vida que levo, nem posso
decidir-me por coisa alguma, nem reflectir seja sobre o que for. Só dores de cabeça
e o nosso dinheiro perdido. O Anatole convidou-me para esta noite, mas não vou.
— Dás-me a tua palavra de honra?
— Palavra de honra!
[IX]
Eram quase duas horas da madrugada quando Pedro saiu de casa do amigo.
Era uma noite de Junho, uma noite típica de Petersburgo, sem obscuridade.
Meteu-se numa carruagem de aluguer, decidido a voltar para casa. Mas à medida
que se aproximava, ia sentindo que lhe não era possível dormir numa noite
daquelas, que mais parecia um crepúsculo ou uma aurora. A vista perdia-se ao
longe pelas ruas desertas. No caminho. Pedro lembrou-se de que em casa de
Anatole Kuraguine deviam estar reunidos os convivas habituais, os jogadores, que
depois do jogo se entregavam, normalmente, ao prazer da bebida, um dos seus
divertimentos favoritos.
«Se eu fosse a casa de Kuraguine?», disse ele para consigo mesmo.
De súbito, porém, lembrou-se de que tinha dado a palavra de honra a André.
Mas, de repente também, coisa natural nas pessoas que é de uso considerar-se
sem carácter, sentiu um tão intenso desejo de voltar uma vez ainda a gozar
aquela louca vida, que ele tão bem conhecia, que se decidiu. E então veio-lhe à
mente que o compromisso tomado não valia nada, visto que antes de o ter
assumido para com o príncipe André tinha prometido ao Anatole que iria a casa
dele; e depois, em conclusão, dizia de si para consigo: «Todas estas palavras de
honra são coisas convencionais, sem qualquer fundamento sério, sobretudo quando
uma pessoa pensa que amanhã pode estar morta ou em circunstâncias tais que as
palavras de honra e desonra não tenham o mais pequeno significado.» Pedro
costumava fazer muitas vezes raciocínios deste gosto, que tornavam nulos todos
os seus projectos e todas as suas resoluções. E dirigiu-se para casa de Kuraguine.
Quando chegou à escadaria da vasta mole formada pelas casernas da Guarda
montada, onde Anatole vivia, subiu os degraus iluminados e deparou-se-lhe a
porta aberta. Não havia ninguém no vestíbulo; por um lado e pelo outro só se
viam garrafas vazias, sobretudos, galochas; cheirava a vinho. Ouviam-se ruídos de
vozes e gritos distantes.
O jogo e a ceia tinham acabado, mas os convivas ainda se não haviam
dispersado. Pedro despiu o sobretudo e entrou na primeira dependência, em quese viam ainda os restos do festim e onde um lacaio, julgando-se só, bebia, às
escondidas, os restos de vinho dos copos. Da sala contígua saía um alarido: risos,
gritos de pessoas conhecidas e grunhidos de ursos. Oito rapazes comprimiam-se,
muito excitados, junto da janela aberta. Três outros entretinham-se com um
ursinho novo, que um deles puxava por uma corrente para atemorizar os
companheiros.
— Eu aposto por Stevens cem rublos! — gritou uma voz.
— Que ideia essa de apostar por ele! — exclamou um terceiro.— Kuraguine, sê
tu o árbitro.
— Está bem, então deixem o Michka (Nome familiar do urso na Rússia. (N, dos
T.); vamos lá fazer a aposta.
— De um só trago, ou então perde! — gritou uma quarta voz.
— Iakov, traz uma garrafa. Iakov! — clamou o dono da casa, um rapagão
magnífico, que estava no meio de todos os outros, envergando apenas uma ligeira
blusa toda aberta no peito — Um momento, meus amigos! Eh! Até que enfim.
Petrucha, meu caro! — exclamou dirigindo-se a Pedro.
Uma outra voz, a de um homem de pequena estatura, de olhos azuis-claros,
que contrastava pelos seus modos cordatos no meio de todas aquelas vozes
avinhadas, gritou da janela:
— Vamos, serve de árbitro na aposta! — Era Dolokov, um oficial do regimento
Seminovski, famoso jogador e não menos famoso espadachim, que compartilhava
dos aposentos de Anatole.
Pedro sorria, lançando um olhar alegre a toda a companhia.
— Não há maneira de ninguém se entender. De que se trata?
— Esperem, ele não está bêbado. Venha de lá uma garrafa — disse Anatole, e,
pegando num copo de cima da mesa, deu dois passos para Pedro.
— Antes de mais nada, bebe,
Pedro pôs-se a beber copo sobre copo, olhando de soslaio para toda aquela
gente embriagada que se tinha juntado ao pé da janela e escutava o que se dizia.
Anatole deitava-lhe vinho no copo e contava que Dolokov apostara com o inglês
Stevens, oficial de marinha ali presente, que ele. Dolokov, seria capaz de beber
uma garrafa de rum sentado na janela do segundo andar com as pernas
dependuradas para a parte de fora.
— Então, despeja-me lá essa garrafa! — exclamou Anatole, apresentando aPedro o último copo.— Enquanto o não beberes, não te largo.
— Não, já basta — tornou Pedro recusando, ao mesmo tempo que se
aproximava da janela.
Dolokov segurava o inglês por uma mão e explicava claramente, com precisão,
as condições da aposta, dirigindo-se de preferência a Anatole e a Pedro.
Dolokov era de estatura meã, frisado, com olhos azuis-claros. Tinha
aproximadamente vinte e cinco anos. Não usava bigode, como os outros oficiais de
infantaria daquela época, e tinha a boca, o traço mais característico da sua figura,
completamente descoberta. Era uma boca com um desenho extraordinariamente
fino. O lábio superior descia sobre o forte lábio inferior formando dois ângulos
agudos, em cujos cantos se via sempre esboçado uma espécie de duplo sorriso, um
sorriso de cada lado. No seu conjunto, sobretudo com os seus olhos decididos,
impudentes e inteligentes, dava uma impressão que obrigava as pessoas a fitá-lo.
Dolokov não era rico nem tinha qualquer parente. E, conquanto Anatole gastasse
dezenas de milhares de rublos. Dolokov compartilhava das suas instalações e sabia
arranjar as coisas de tal maneira que o próprio Anatole e todos os seus conhecidos
o estimavam mais que ao próprio dono da casa. Sabia todos os jogos e ganhava
quase sempre. Por mais que bebesse, tinha sempre a cabeça no seu lugar.
Kuraguine e Dolokov eram naquela época, tanto um como o outro, verdadeiras
celebridades no mundo das cabeças loucas e dos boémios de Petersburgo.
Trouxeram a garrafa de rum. Dois lacaios, azafamados e visivelmente
estupefactos, desnorteados no meio dos gritos e das ordens que lhes davam,
procuravam demolir o caixilho que impedia que uma pessoa se sentasse sobre o
parapeito exterior da janela.
Anatole aproximou-se com ares vitoriosos. Tinha necessidade de quebrar fosse
o que fosse. Afastou os lacaios e pôs-se a puxar pelo caixilho, o qual não cedeu.
Quebrou um vidro.
— Experimenta tu, valentão — exclamou dirigindo-se a Pedro. Pedro agarrou-
se à couceira, puxou e arrancou com fragor o enquadramento de castanho.
— Tudo fora, senão depois são capazes de dizer que eu me agarrei a alguma
coisa — intimou Dolokov.
— O inglês perdeu a cabeça... Eh! Não é verdade? — inquiriu Anatole.
— Com certeza — disse Pedro olhando para Dolokov, que, com a garrafa na
mão, se aproximava da janela, através da qual se via o céu claro e a aurora, quese confundia com o crepúsculo.
Dolokov, sempre com a garrafa na mão, saltou para cima da janela.
— Ouçam! — gritou de pé sobre o parapeito, voltado para a assistência. Todos
se calaram.
— Aposto — falava em francês para que o inglês o compreendesse, embora
este não fosse um portento nessa língua —, aposto cinquenta imperiais; quer
apostar cem? — acrescentou, para o inglês.
— Não, cinquenta — retorquiu este.
— Bom, aposto cinquenta imperiais em como sou capaz de beber a garrafa de
rum até à última gota, de um só trago, sentado na janela, neste sítio — debruçou-
se e apontou para o parapeito inclinado no sentido da rua— e sem me segurar a
coisa alguma... Está, apostado?
— Perfeitamente — volveu o inglês.
Anatole voltou-se para este, e, segurando-o por um botão da farda, olhou-o de
cima, pois o outro era de pequena estatura, e pôs-se a repetir-lhe em inglês as
condições da aposta.
— Atenção! — gritou Dolokov, batendo com a garrafa na janela, para que o
ouvissem— Um momento. Kuraguine. Ouçam. Se houver alguém capaz de fazer o
mesmo, dou-lhe cem imperiais. Estão a compreender?
O inglês disse «sim» com a cabeça, sem com isso querer dizer que tinha
intenção de aceitar a nova aposta. Anatole não o largava, e, embora ele tivesse
dado a entender que compreendera, traduzia-lhe para inglês as palavras de
Dolokov. Um rapazola escanzinado, um hússar da Guarda, que toda a noite
estivera a perder ao jogo, trepou à janela, debruçou-se e olhou lá para baixo.
— Ui! Ui! Ui! exclamou, apontando as pedras da calçada.
— Fora daí! — gritou Dolokov, obrigando a descer da janela o oficial, que,
embaraçado nas esporas, tropeçou.
Depois de ter colocado a garrafa no parapeito da janela, para assim a ter à
mão. Dolokov, com prudência e serenidade içou-se para o rebordo do janelão.
Depois de ter passado as pernas por cima, do alizar e de haver avançado, com o
auxílio das mãos, até ao extremo do parapeito, escolheu o lugar, sentou-se, deixou
pender as pernas, deslocou-se para a direita e para a esquerda e pegou na
garrafa. Anatole trouxe duas velas e pousou-as sobre o parapeito, embora já
fizesse dia claro. O dorso de Dolokov, de camisa branca, a cabeça anelada, recebialuz dos dois lados. Toda a gente se tinha juntado em volta da janela. O inglês
estava na primeira fila. Pedro sorria sem dizer nada. Um dos presentes, mais velho
do que os outros, furioso e apavorado, arremeteu, de súbito, para a janela e quis
agarrar Dolokov pela camisa.
— Meus senhores, isto é uma loucura; o rapaz vai matar-se! — exclamou esta
criatura, mais razoável que as restantes. Anatole deteve-o.
— Não lhe toques; se o assustas, ele mata-se. Hem!... E nesse caso?... Hem!
Dolokov voltou-se, compôs-se e colocou-se em posição com o auxílio das mãos.
— Se mais alguém mete o bedelho na minha vida — disse, deixando cair as
palavras dos lábios finos e cerrados —, obrigo-o a descer imediatamente por aqui.
Está combinado?...
Ao dizer «Está combinado?», voltou-se ainda, soltou as mãos, pegou na garrafa
e levou-a à boca, atirando a cabeça para trás e erguendo no ar a mão livre para
estabelecer o equilíbrio. Um lacaio que se tinha posto a apanhar os pedaços de
vidro da janela deteve-se, sempre debruçado para o chão, sem perder de vista a
janela e as costas de Dolokov. Anatole conservava-se direito, de olhos
arregalados. O inglês, mordendo os lábios, desviava os olhos. Aquele que tentara
intervir tinha-se afastado para um canto e estiraçara-se num divã com a cara para
a parede. Pedro tapou a cara e um ligeiro sorriso parecia errar-lhe na máscara,
onde se estampavam agora susto e terror. Todos se calavam. Pedro tirou a mão
dos olhos. Dolokov mantinha-se na mesma posição, mas com a cabeça de tal modo
caída para trás que os cabelos anelados, pela retaguarda, afloravam-lhe o
colarinho, e a mão com que segurava a garrafa cada vez se erguia mais, animada
por um certo tremor, e como se fizesse esforço. A garrafa, que se esvaziava a olhos
vistos, elevava-se ao mesmo tempo no ar, obrigando a cabeça a descair para trás.
«Que tempo que isto leva!», murmurou Pedro consigo mesmo. Afigurava-se-lhe
haver decorrido mais de meia hora. Subitamente Dolokov teve um movimento de
espinha para a retaguarda e a mão foi-lhe sacudida por um tremor nervoso,
quanto bastou para fazer avançar o corpo sentado no parapeito resvaladiço. Todo
ele se deslocou, e as mãos e a cabeça, com o esforço, estremeceram-lhe ainda
mais. Uma das mãos ergueu-se para se agarrar ao alizar da janela, mas logo
descaiu. Pedro voltou a fechar os olhos e prometeu não tornar a abri-los.
Subitamente percebeu que tinha havido um movimento na assistência. Abriu os
olhos: Dolokov estava de pé sobre o parapeito, o rosto pálido e alegre.— Vazia!
Atirou com a garrafa ao inglês, que a agarrou no ar. Deu um pulo da janela.
Todo ele cheirava a rum.
— Muito bem! Que valentão! Bela aposta, cos diabos! — dizia-se por todos os
lados.
O inglês tinha puxado da bolsa e contava o dinheiro. Dolokov franzia as
sobrancelhas sem dizer palavra. Pedro precipitou-se para a janela.
— Meus senhores. Quem é que quer apostar comigo? Estou pronto a fazer o
mesmo! — gritou ele, de chofre.— De resto, dispenso as apostas. Venha de lá uma
garrafa. Exactamente!... Uma garrafa.
— Isso mesmo! Isso mesmo! — exclamou Dolokov, rindo.
— Que mosca é que te mordeu? Estás maluco? Quem é que vai consentir
nisso? Até a subir uma escada tens vertigens — dizia-se por aqui e por ali.
— Vão ver como eu a bebo. Deixem-me ver uma garrafa! gritava Pedro,
batendo no tampo duma mesa, com uma teimosia de bêbado. E trepou para cima
da janela.
Agarraram-no por um braço; mas ele era tão forte que sacudia de si os que
tentavam aproximar-se dele.
— É inútil, não desiste — disse Anatole.— Esperem aí, que eu ensino-o. Ouve
lá, eu aposto contigo, mas fica para amanhã. Agora vamos todos para casa da...
— Está bem — exclamou Pedro. — Vamos embora!... Mas o Michka também
vai connosco. — Apoderou— se do urso, e agarrando nele com ambas as mãos
para o obrigar a levantar-se, pôs-se a rodopiar com o bicho pelo meio da sala.
[X]
O príncipe Vassili cumpriu a promessa que tinha feito à princesa Drubetskaia
na reunião em casa de Ana Pavlovna relativamente a seu único filho. Bóris.
Falaram nele ao imperador, e a título excepcional foi promovido a alferes do
regimento Seminovski. Mas não foi nomeado ajudante-de-campo, nem adido ao
quartel-general de Kutuzov, apesar dos pedidos e das intrigas de Ana Mikailovna.
Pouco tempo depois da reunião em casa da dama de honor. Ana Mikailovna voltoupara Moscovo e foi instalar-se em casa dos Rostov, seus ricos parentes, onde
sempre se hospedava. Era ali que tinha sido educado desde criança e onde ainda
vivia o seu Bóris adorado, só agora admitido no exército e que acabava de ser
promovido a alferes da Guarda. O regimento tinha saído de Petersburgo a 10 de
Agosto, e o rapaz, que ficara em Moscovo por causa do equipamento, devia ir ao
encontro dele em Radzivilov.
Em casa dos Rostov celebrava-se o aniversário das duas Natalias, a mãe e a
filha mais nova. Desde manhã que era um chegar e partir de carruagens sem fim
com visitas para o palácio da condessa Rostov, na Povarskaia, palácio que toda a
gente conhecia em Moscovo.
A condessa, acompanhada pela filha mais velha, uma linda mulher, estava no
salão, rodeada das suas visitas, que não cessavam de chegar.
Era a condessa Rostov urna senhora de rosto magro, tipo oriental, dos seus
quarenta e cinco anos, visivelmente esgotada por doze partos sucessivos. A
lentidão do seu passo e a morosidade da sua fala, consequências do quebranto das
suas forças, davam-lhe um ar de dignidade que inspirava respeito. A princesa Ana
Mikailovna Drubetskaia também se encontrava presente, íntima da casa que era,
ajudando-a a receber as visitas e a manter a conversação. A gente nova estava
nas dependências das traseiras, desinteressada das visitas. O conde lá se
encarregava, de as acolher e de as conduzir, convidando toda a gente para jantar.
— Estou-lhe muito reconhecido, muito, meu caro ou minha cara — dizia a toda
a, gente, sem excepção, minha cara ou meu caro, sem pôr nisso qualquer distinção,
quer as pessoas fossem de uma classe inferior ou superior —, estou-lhe muito
reconhecido em meu nome e em nome das festejadas. Não deixe de vir jantar
connosco: ficaria melindrado, meu caro. Peço-lhe, cordialmente, em nome da
família, minha cara.
Estas mesmas palavras, com uma expressão sempre igual no rosto cheio e
sorridente, bem escanhoado, e um aperto de mão enérgico, sempre o mesmo, e
breves e frequentes flexões, repetia-as ele a todos, sem excepção e sem alterar
uma vírgula. Depois de acompanhar aquele que partia, ei-lo que voltava para
junto daquele ou daquela que ficava no salão. Puxava de uma cadeira, e com os
modos de um homem à vontade em sociedade, estendia as pernas
desprendidamente, e, de mãos assentes nos joelhos, meneava a cabeça com um ar
entendido, fazendo conjecturas sobre o estado do tempo, dando conselhoshigiénicos, ora em russo, ora em francês, num francês bastante mau, mas
pronunciado com segurança, e depois, como uma pessoa que se sente fatigada mas
quer cumprir a sua obrigação até ao fim, acompanhava as pessoas, assentando as
farripas brancas sobre a calva e tornando a repetir o eterno convite. Uma que
outra vez, no regresso do vestíbulo, atravessava o jardim de Inverno e a sala de
espera, dirigindo-se a uma grande dependência pavimentada de mármore, onde se
preparava uma mesa de oitenta talheres: lançava urna olhadela aos criados,
afadigados a acarretar pratas e porcelanas, a arranjar a mesa e a estender as
toalhas adamascadas, e mandava chamar Dimitri Vassilievich, um jovem fidalgo,
uma espécie de seu factótum, a quem dizia: — Atenção. Mitenka, é preciso que
tudo esteja em ordem. óptimo! óptimo! — Depois acrescentava, inspeccionando,
satisfeito, a imensa mesa elástica. — O mais importante é uma mesa bem posta.
Bom, bom... — E voltava, contente, ao salão.
— Maria Lvovna Karaguine e sua filha! — anunciou em voz de baixo o imenso
escudeiro às ordens da condessa penetrando no salão. A condessa, pensativa,
tomou uma pitada de rapé da sua caixa dourada com o retrato do marido,
— Ah! Que maçada estas visitas! — exclamou ela. — É a última que eu recebo.
Que pessoa tão amaneirada! Manda entrar — ordenou para o lacaio numa voz
áspera que queria dizer: «Bom, acabemos com isto!»
Uma senhora, alta, de grande corpulência, ar altivo, acompanhada de sua filha,
uma menina de nédias bochechas, toda sorridente, entrou na sala no meio de um
ruge-ruge de vestidos.
— Querida condessa, há tanto tempo.., tem estado de cama, pobre criança..,
no baile dos Rasumovski.., e a condessa Apraksine.., fiquei tão contente!... —
exclamavam vozes femininas muito animadas, interrompendo-se umas às outras
mutuamente e confundindo-se com o sussurrar dos tecidos e o arrastar das
cadeiras. Entabulou-se uma conversa tão pouco importante que permitia, assim
que havia uma pausa, que as pessoas se levantassem e dissessem, rio meio do
burburinho da partida: «Estou encantada; a saúde da mãe.., e a condessa
Apraksine», e, em seguida, no meio de um novo ruge-ruge, passassem para o
vestíbulo, pusessem os seus agasalhos e partissem. A conversa travou-se sobre a
grande novidade do dia, a doença do velho e riquíssimo conde Bezukov, um dos
mais belos homens do tempo de Catarina, e o comportamento do filho ilegítimo do
mesmo. Pedro, que se tinha portado pessimamente ria recepção em casa de AnaPavlovna.
— Muito lamento o pobre conde — disse a visita que acabava de chegar —;
esta tão mal e, ainda por cima, com o desgosto daquele filho, acaba por morrer!
— Que aconteceu? — inquiriu a condessa, fingindo ignorar o assunto a que
aludia a interlocutora, embora já tivesse ouvido contar a história pelo menos
umas quinze vezes,
— São aquilo as educações modernas! Aquele tempo no estrangeiro fez com
que o rapaz se tornasse insubmisso, e agora, em Petersburgo, segundo dizem, tais
horrores fez que tiveram de recorrer à policia.
— Que me diz! — murmurou a condessa.
— São as más companhias — interveio a princesa Ana Mikailovna. — O filho
do príncipe. Vassili, ele e um tal Dolokov fizeram trinta por urna linha. Dois deles
sofreram-lhe as consequências: Dolokov foi obrigado a descer de posto e o filho do
conde Bezukov, esse, mandaram-no para Moscovo. Quanto a Anatole Kuraguine,
valeu-lhe o pai, que conseguiu abafar o escândalo. Mas também foi afastado de
Petersburgo.
— Que fizeram eles, afinal? — perguntou a condessa.
— São uns autênticos bandidos. Principalmente esse Dolokov — disse a visita.
— É o filho de Maria Ivanovna Dolokov, uma senhora da maior respeitabilidade.
Pois não sabem? Imaginem que arranjaram um urso e levaram-no com eles de
carruagem para casa de urnas actrizes. A polícia foi atrás deles, e eles não
estiveram com meias medidas: apanham um guarda, amarram-no, costas com
costas, com o urso, e atiram com os dois para o Moika (Canal do rio Neva que
divide o centro da cidade do bairro de Kazari. (N, dos T.). O urso pôs-se a nadar
com o polícia às costas.
— Só queria ver a cara do polícia, minha amiga! — exclamou o conde, rindo a
bom rir.
— Parece impossível! Que horror! Como é que o conde pode achar graça a uma
coisa destas?
Mas as próprias senhoras não podiam suster o riso.
— Foi difícil salvá-lo, àquele desgraçado — continuou a visita. — E dizer que, é
o filho do conde Cirilo Vladimirovitch Bezukov quem e dedica a divertimentos tão
intelectuais! E há quem o ache bem educado e espiritual. Ora aqui têm o resultado
dessas educações no estrangeiro! Tenho a certeza de que ninguém aqui o vaireceber, apesar de toda a sua fortuna. Quiseram-mo apresentar. Mas eu disse
redondamente que não: tenho filhas.
— Porque diz que, esse homem é assim tão rico? — perguntou a condessa,
debruçando-se para ela, de maneira a que as raparigas a não ouvissem, e estas
logo fingiram nada entender. — Dizem que só tem filhos naturais. Com certeza.., o
Pedro também é filho natural.
A visita teve um gesto evasivo.
— Dizem que tem um caterva de ilegítimos.
A princesa Ana Mikailovna interveio, desejosa, é claro, de mostrar que tinha
relações e que conhecia em pormenor todas as intrigas mundanas.
— A verdade é esta — disse ela, com um ar entendido e quase em voz baixa.
— A reputação do conde Cirilo Vladimirovitch toda a gente a conhece... Nem
sequer sabe o nome dos filhos que tem, mas este Pedro era o seu preferido.
— Que belo homem esse velho — murmurou a condessa — ainda o ano
passado! Nunca vi um homem mais belo!
— Agora está muito mudado — observou Ana Mikailovna.-
O que eu queria dizer é que o príncipe Vassili, parente dele pelo lado materno,
é que devia ser o seu herdeiro directo, mas ele gosta muito do Pedro; mandou-o
educar e até escreveu a recomendá-lo ao imperador... Por isso ninguém sabe para
quem irá a sua imensa fortuna, se para o Pedro se para o príncipe Vassili.
Quarenta mil almas e milhões, milhões! Sei isto de fonte limpa, pois foi o próprio
príncipe Vassili quem mo contou. De resto. Cirilo Vladimirovitch também é meu
primo afastado pelo lado materno. E é padrinho do Bóris — insinuou ela, como se
não ligasse a mais pequena importância ao facto.
— O príncipe Vassili está desde ontem em Moscovo. Dizem que anda em
inspecção — murmurou a visita.
— Sim, mas, aqui entre nós — disse a condessa —, isso é um pretexto. O que
ele veio fazer foi visitar o conde Cirilo Vladimirovitch logo que o soube muito mal.
— Seja como for, minha amiga, é uma rica história — disse, de chofre, o conde,
e, ao verificar que a interlocutora o não ouvia, voltou-se para as raparigas— Estou
a ver a cara do polícia!
E, mimando os gestos desesperados do pobre diabo, pôs-se de novo a rir, com
grandes gargalhadas sonoras e profundas, que lhe faziam estremecer todo o
rechonchudo corpo, um corpo de quem come bem e bebe melhor.— Então, está combinado, janta connosco — disse ele.
[XI]
Houve um momento de silêncio. A condessa olhava para a sua visita com um
sorriso amável, sem esconder, aliás, que lhe não seria desagradável vê-la erguer-
se para se ir embora. A filha já se preparava para se despedir, depois de lançar um
olhar interrogativo à mãe, quando, de súbito, se ouviram na sala contígua passos
precipitados de homens e senhoras, ao mesmo tempo que urna cadeira era
arrastada e caía, impelida por alguém que passava. Então entrou na sala uma
menina dos seus treze anos, que trazia fosse o que fosse na saia de musselina, e
que parava no meio do salão. Era evidente que fora por engano e sem
premeditação que viera até ali. Simultaneamente, à porta, apareceram um
estudante, de gola cor de framboesa, um oficial da Guarda, uma rapariguinha dos
seus quinze anos e um rapazinho, gordo e rubicundo, com um casaquito curto,
O conde precipitou-se para a pequenita e impediu-lhe a entrada abrindo os
braços.
— Ah!, aí vem ela! — gritou ele, rindo — A heroína da festa. Minha querida
fadazinha!
— Minha querida, há horas para tudo — disse a condessa, fingindo-se severa—
Estragas a pequena Elie — acrescentou dirigindo-se ao marido,
— Bom dia, minha querida, felicito-a — disse a senhora Karaguine. — Que
criança encantadora! — prosseguiu ela para a mãe.
Era uma rapariguinha de olhos negros, a boca muito grande, não bonita, mas
cheia de vida, com os ombros infantis descobertos, palpitando no corpete, graças à
rapidez com que caminhara, os caracóis negros repuxados para trás, os braços
pequeninos nus, as perninhas a sair de uma calças de rendas, e nos pés sapatos
abertos. Estava naquela idade graciosa em que uma rapariga já não é criança e
em que a criança ainda não é rapariga. Depois de ter conseguido escapar-se dos
braços do pai, correu para a mãe e, sem prestar a mais pequena atenção às suas
severas reprimendas, escondeu a cara buliçosa nas rendas da mantilha materna e
pôs-se a rir. Enquanto ria ia falando, com palavras sincopadas, para a boneca quelevava metida na saia.
— Vês?... Mimi... Vês?
E Natacha mais não pôde dizer — tudo a fazia rir. — Deixou-se pender contra a
mãe e rompeu a rir com tanta vontade e tão alto que ninguém, inclusivamente a
visita de maneiras afectadas, pôde resistir ao riso. Todos riram também.
— Vai-te embora, vai-te embora com esse horror! — exclamou a mãe,
repelindo-a com uma cólera fingida.— É a minha filha mais nova — disse ela à
visita.
Natacha deixou ver a cara por momentos, no meio do fichu de rendas da mãe,
olhou aquela de alto a baixo, rindo até às lágrimas, e voltou a esconder-se.
A visita, obrigada a admirar esta cena de família, pensou ser necessário dizer
qualquer coisa.
— Dize-me cá, minha linda — perguntou a Natacha —, que parentesco tens tu
com esta Mimi? É tua filha, naturalmente. Este tom de condescendência para se
pôr ao seu nível de criança não agradou a Natacha, que nada disse e fitou a
senhora com um ar sério.
Entretanto, todo o grupo jovial: Bóris, o oficial, filho da princesa Ana
Mikailovna, o estudante Nicolau, filho mais velho do conde. Sónia, sua sobrinhita
de quinze anos, e o pequeno Petrucha, seu filho mais novo, procurava manter,
adentro dos limites das conveniências, a animação e a alegria que fulguravam nos
seus rostos. Via-se perfeitamente que lá para trás, nos aposentos das traseiras,
donde eles tinham surgido tão repentinamente, se falava de coisas bem mais
agradáveis que intrigas mundanas, ou o estado do tempo, ou a condessa
Apraksine. Entreolhavam-se todos, rompendo a rir.
Os dois rapazolas, o estudante e o oficial, amigos de infância, eram da mesma
idade, ambos bonitos moços, mas sem se parecerem um com o outro. Bóris era um
rapagão louro, de traços finos e regulares, de uma beleza serena; Nicolau, um
rapazinho frisado, com uma expressão aberta. No seu lábio superior apontava já
um ligeiro buço e o todo da sua máscara exprimia impetuosidade e entusiasmo.
Nicolau ficou todo corado assim que entrou no salão. Via-se que procurava dizer
qualquer coisa, mas não conseguia. Bóris, pelo contrário, mostrou-se logo à
vontade e começou a contar, tranquilamente e com um ar satisfeito, que tinha
conhecido a Mimi muito nova, com o nariz ainda intacto, que nos últimos cinco
anos, se bem se lembrava, a pobre tinha envelhecido terrivelmente, e que tinhaagora a cabeça rachada de alto a baixo. Ao mesmo tempo que falava ia olhando
para Natacha. Esta voltara a cara e olhava para o irmãozito, que ria
perdidamente, com os olhos cheios de lágrimas; de súbito, sem poder mais,
despediu correndo. Bóris ficou muito sério.
— Naturalmente também se quer ir embora. Mamã? Precisa do carro? — disse
ele para, a mãe, sorrindo.
— Pois sim, manda atrelar — respondeu a mãe sorrindo igualmente.
Bóris, sem nada dizer, dirigiu-se para a porta e seguiu atrás de Natacha. O
rapazinho gordo correu após eles, pouco contente por ter sido perturbado nos seus
entretenimentos.
[XII]
A excepção da filha primogénita da condessa, a qual, quatro anos mais velha
que a segunda, já podia dar-se ares de pessoa crescida, e das filhas da senhora que
viera de visita, juventude era coisa que não havia no salão, se excluíssemos, além
delas. Nicolau e a sobrinha Sónia. Esta era uma morenita magra, uma
miniaturazinha, com uns olhos doces, sombreados por longas pestanas, e uma farta
trança negra que lhe dava duas voltas à cabeça, a tez olivácea acentuava-se-lhe
mais ainda nos braços e no colo nus, magros, mas graciosos. A ligeireza dos seus
passos, a languidez e a flexibilidade dos seus braços, os seus modos um pouco
ardilosos e reservados davam-lhe ares de um lindo felino ainda não domesticado,
mas prometendo vir a ser um bichano encantador. Evidentemente que ela sabia
ser conveniente tomar parte, com o seu sorriso, na conversa geral, mas, sem dar
por isso, por debaixo das longas pestanas, os olhos fugiam-lhe para o seu primo,
que ia partir para a, tropa. No seu olhar havia uma adoração tão apaixonada que
ninguém se iludiria com aquele sorriso. Toda a gente via que se o bichano ali
estava tão sossegado era apenas para, mal saísse do salão, logo pôr-se a correr e
a saltar com o primo, tal como Bóris e Natacha.
— Sim, minha cara — dizia o velho conde para a visita, apontando Nicolau. —
Como o seu amigo Bóris saiu, oficial, ele, por amizade para com o primo, não lhe
quer ficar atrás. E lá vai deixar a Universidade e a mim, seu velho pai; vai alistar-se, minha cara. E já lhe tínhamos arranjado um lugar no serviço dos arquivos. Ao
que leva a amizade!
— E dizem que a guerra já foi declarada — observou a visita.
— Há muito tempo que isso se diz — volveu o conde— Sim, diz-se e volta a
dizer-se, e tudo fica na mesma. Minha cara, o que é que a amizade não faz? —
repetia ele. — Vai para os hússares. A visita, como não sabia que dizer, meneava
a cabeça.
— Mas não, não se trata de amizade — interrompeu Nicolau, entusiasmando—
se, como quem repele uma calúnia que lhe fosse odiosa.— Não se trata de
amizade, mas apenas de que tenho a vocação de soldado.
Envolveu num olhar a prima e a filha da visita; ambas lhe dirigiram um sorriso
de aprovação.
— Temos hoje a jantar o coronel Schubert, do regimento de hússares de
Pavologradski. Está aqui de licença, e é ele quem o leva consigo. Que havemos nós
de fazer? — disse o conde, encolhendo os ombros e falando, em tom prazenteiro,
de um assunto que visivelmente lhe causava um grande desgosto.
— Já lhe disse, pai — replicou o filho —, que se me não quer deixar ir eu não
partirei. Mas tenho a certeza de que não sirvo para mais nada senão para
soldado; não nasci, para ser nem diplomata nem funcionário; não sei esconder os
meus sentimentos — acrescentou sem deixar de fitar as raparigas com a bonita
desenvoltura própria da sua idade.
A gatinha, que o comia com os olhos, parecia pronta a brincar e a mostrar a
sua natureza felina.
— Bem, bem! — disse o velho conde— Está sempre pronto a exaltar-se.
Bonaparte deu volta à cabeça de toda esta gente. Lá porque ele passou de simples
tenente a imperador... Seja o que Deus quiser — rematou, sem reparar no sorriso
escarninho da visita.
As pessoas crescidas puseram-se a falar de Bonaparte. Júlia, o filha da princesa
Karaguine, voltou-se para o jovem Rostov: — Que pena que não tenha estado na
quinta-feira passada em casa dos Arkarov. Não calcula a falta que me fez! — disse-
lhe ela, sorrindo com afabilidade.
O rapaz, lisonjeado, veio sentar-se junto dela. E sorrindo com a coquetterie
própria da sua idade, entabulou uma conversa íntima, sem reparar que as suas
amabilidades eram como um gládio de ciúme a trespassar o coração de Sónia, aqual, disfarçando a sua confusão, fingia estar alegre. No meio da sua conversa com
Júlia, deteve os olhos em Sónia. Esta lançou-lhe um olhar cheio de amargura,
retendo a custo as lágrimas, embora ainda lhe flutuasse um sorriso nos lábios, e
levantando-se saiu. Toda a animação de Nicolau se desvaneceu. Aproveitou a
primeira oportunidade para interromper o seu diálogo, e, inquieto, lá foi à procura
de Sónia.
— Oh, como toda esta juventude traz o coração na boca! — exclamou Ana
Mikailovna apontando para Nicolau, que sala da sala.— Primos, maus vizinhos! —
acrescentou.
— É verdade! — disse a condessa, assim que desapareceu o raio de sol que a
mocidade trouxera consigo ao salão. E, respondendo a uma pergunta que ninguém
lhe tinha feito, mas que a preocupava:— Que contrariedades, que contrariedades
as nossas para agora podermos gozar de uma certa alegria! E o certo é que ainda
hoje sentimos muito mais terror que prazer. Estamos sempre com medo, sempre
com medo! E é precisamente nesta idade que as raparigas e os rapazes correm
maior perigo.
— Tudo depende da educação que se recebe — disse a visita. — Sim, tem
razão — continuou a condessa. — Até agora tenho sido sempre a amiga íntima dos
meus filhos e eles têm sempre confiado em mim. — E, ao falar assim, caía no erro
de muitos pais, persuadidos de que os filhos não têm segredos para eles. — Sei
que serei sempre a primeira confidente dos meus filhos, e que Nikolenka, com a
seu feitio ardente, se um dia fizer uma asneira — os rapazes estão sempre sujeitos
a isso —, nunca se comportará como esses senhores de Petersburgo.
— Sim, são muito bons pequenos — afirmou o conde, qu6 resolvia sempre os
problemas embaraçosos dizendo que tudo estava bem. — Imagine! Quis assentar
praça nos hússares! Que lhe havemos de fazer, minha cara!
— Que linda rapariga é a sua filha mais nova! — disse a visita. — Que
azougada!
— É, é — replicou o conde. — Parece-se comigo! E que linda voz! Não é por ser
minha filha! A verdade diga-se. Vai ser urna verdadeira cantora, uma Salomoni.
Anda a tomar lições com um italiano.
— Não será cedo de mais? Não é bom para a voz, segundo ouço dizer,
aprender canto nesta idade.
— Cedo de mais? — volveu o conde. — Então as nossas mães não se casaramdos doze para os treze anos?
— E já está enamorada do Bóris! Veja isto! — disse a condessa, sorrindo,
disfarçadamente, e lançando um olhar à mãe do rapaz. Depois, como que
respondendo a um pensamento que não deixava de a preocupar, continuou: —
Imagine que eu a educava com severidade, que a proibia... Só Deus sabe o que ela
seria capaz de fazer às escondidas. (A condessa queria dizer que se beijariam.)
Mas, assim, conheço-lhe todos os pensamentos. É ela própria quem me vem contar
todas as noites. É possível que eu a estrague: mas estou convencida de que é esta
a melhor maneira. Já a mais velha a eduquei com mais severidade.
— Pois é, a mim educaram-me de maneira muito diferente — disse, sorrindo, a
filha mais velha, a linda condessa Vera.
O sorriso não tornava Vera mais bonita, como em geral acontece, pelo
contrário, dava-lhe uma expressão pouco natural e desagradável até. Vera, a filha
mais velha dos Rostov, era bonita, não era tola, tinha sido muito bem instruída,
tinha uma educação excelente e urna bela voz; o que ela acabava de dizer era
muito justo e a propósito, mas, coisa estranha, toda a gente, a principiar pela
visita e pela própria condessa, a fitou como que surpreendida que ela tivesse
falado daquela maneira, e todos sentiram um certo embaraço.
— Em geral somos sempre mais rigorosos com os filhos mais velhos; pensamos
sempre fazer deles pessoas excepcionais — disse a Visita.
— Para que havemos de esconder os nossos erros, minha cara! A minha
querida condessa quis ser exemplar com a educação de Vera — observou o conde.
— Mas que se perdeu com isso?
O resultado não foi nada mau— acrescentou, piscando o olho amistosamente a
Vera.
As visitas ergueram-se, finalmente, para se despedirem, prometendo vir
jantar.
— Isto é que são maneiras! Parecia que nunca mais se iam embora! —
exclamou a condessa, ao ver, finalmente, as visitas pelas costas.
[XIII]
Quando Natacha saiu do salão a correr não foi muito longe; ficou no jardim de
Inverno. E ali permaneceu ouvindo o que se dizia no salão e aguardando que Bóris
chegasse. Principiava a impacientar-se, e já batia com os pés no chão, quase a
chorar por o não ver aparecer, quando se principiaram a ouvir os passos do rapaz,
uns passos nem muito lentos nem muito precipitados, compassadamente. Natacha
correu a esconder-se atrás dos vasos das plantas.
Bóris ficou parado no meio da dependência, olhou em tomo de si, sacudiu a
manga do uniforme e aproximou-se de um espelho para mirar a sua linda figura.
Muito quieta. Natacha espreitava lá do seu esconderijo, curiosa de ver o que ele
faria. Bóris esteve alguns momentos diante do espelho, sorriu e dirigiu-se para a
porta. Natacha quis chamá-lo, mas de si para consigo disse: «Ele que me procure.»
Mal Bóris saíra, entrou Sónia, por outra porta, muito corada, e soltando palavras
coléricas por entre um fio de lágrimas. Natacha conseguiu reprimir o seu primeiro
movimento, que a impelia a correr para ela, e ficou no seu esconderijo como se
estivesse debaixo do chapéu que torna as pessoas invisíveis, observando o que se
passava. Tirava disso um prazer muito especial. Sónia balbuciava fosse o que fosse
de indistinto, sem desviar os olhos da porta do salão. A porta abriu-se e apareceu
Nicolau.
— Sónia, que tens tu? Será possível?! — exclamou ele, correndo para ela.
— Não é nada, não é nada, deixa-me.
As lágrimas correram-lhe em fio.
— Sim, bem sei o que foi.
— Se sabes, é o que importa. Vai ter com ela.
— Sónia! Ouve-me. Só uma palavra. Como é possível que estejamos os dois a
atormentar-nos por causa de uma patetice? volveu Nicolau, pegando-lhe nas
mãos.
Sónia deixou-as ficar e enxugou as lágrimas. Natacha, sem um movimento, e
retendo a respiração, olhava-os do seu canto com os olhos brilhantes. «Que se irá
passar?», pensava ela.
— Quero lá saber das outras. Sónia. Só tu és tudo para mim disse Nicolau. —
Hei-de provar-to.
— Por amor de Deus, não me digas essas coisas,
— Não volto mais, perdoa-me. Sónia!
Puxou-a para si e beijou-a.«Sim, senhor, assim mesmo!», exclamou para si mesma, e, quando Sónia e
Nicolau partiram, seguiu-os — e chamou Bóris.
— Bóris, venha cá — disse-lhe ela, com um arzinho de significativa astúcia, —
Preciso de lhe dizer uma coisa. Venha daí, venha daí — prosseguiu ela, conduzindo-
o para o jardim de Inverno, para o sítio onde estivera escondida atrás dos vasos
das plantas.
Bóris seguiu-a sorridente.
— De que se trata? — perguntou ele.
Natacha perturbou-se, olhou em tomo de si, e vendo a boneca que ficara em
cima de um dos vasos pegou nela.
— Dê um beijo à minha boneca — ordenou.
Bóris fitou-lhe o rosto animado com um enternecedor interesse, mas nada
disse.
— Não quer? Então venha daí — Desapareceu no meio da verdura, atirando
fora a boneca. — Chegue-se mais, chegue-se mais — murmurou.
Passou o braço pelo canhão da manga do oficial e no seu rosto purpurizado
havia um ar ao mesmo tempo sério e medroso.
— E a mim, quer-me beijar a mim? — balbuciou numa voz quase imperceptível,
olhando-o de viés, com um sorriso nos lábios e as lágrimas quase a saltarem-lhe
dos olhos, tão grande era a emoção.
Bóris corou.
— Que estranha que a menina é! — exclamou ele, debruçando-se para ela, mas
sem se decidir, e como que à espera. Subitamente. Natacha saltou para cima de
uma cadeira, ficando mais alta do que ele, envolveu-lhe o pescoço nos seus
pequeninos braços nus e, inclinando a cabeça para trás, beijou-o em plenos lábios.
Em seguida esgueirou-se por entre os vasos do lado oposto e deteve-se, de
cabeça baixa.
— Natacha — disse Bóris. — Bem sabe que gosto de si, mas Gosta de mim? —
perguntou ela, interrompendo -o.
Sim, gosto de si, mas, por amor de Deus, não voltemos a fazer o que fizemos
agora... Daqui a quatro anos... Então virei pedir a sua mão.
Natacha ficou a pensar.
— Treze, catorze, quinze, dezasseis... — disse, contando pelos seus pequeninos
dedos.— Está bem. Fica assim combinado?E no seu rosto cheio de animação resplandeceu uma tranquila alegria.
— Combinado! — repetiu Bóris.
— Para sempre? — voltou a pequena.— Até à morte?
E, dando-lhe o braço, dirigiu-se com ele, toda ela felicidade, para a sala
contígua.
[XIV]
A condessa estava tão cansada de atender as visitas que disse que não
receberia mais ninguém, e o guarda-portão recebeu ordem de convidar para
jantar todas as pessoas que viessem apresentar felicitações. Estava morta por se
ver a sós com a sua amiga de infância, a princesa Ana Mikailovna, que mal tinha
visto desde que ela voltara de Petersburgo. Ana Mikailovna, com o seu bonito
rosto como que intumescido de chorar, veio colocar-se muito junto da cadeira da
condessa.
— Vou ser absolutamente sincera contigo — disse-lhe ela. Acabaram-se-nos as
velhas amigas de outrora. E por isso que eu aprecio tanto a tua amizade.
Ana Mikailovna, ao ver aproximar-se Vera, calou-se. A condessa apertou a
mão da amiga.
— Vera — disse ela para a filha primogénita, que evidentemente não era a
preferida —, vocês não percebem nada? Então ainda não compreendeste que
estás aqui a mais? Vai ter com as tuas irmãs, ou então...
A formosa Vera teve um sorriso um pouco desdenhoso, sem dar a perceber, de
maneira alguma, que se sentia ofendida.
— Se me tivesse dito mais cedo, mãe, já me teria ido embora — disse ela,
afastando-se.
Mas, ao passar pela sala do divã, viu que as duas janelas estavam
simetricamente ocupadas pelos dois pares. Parou a olhar e teve um sorriso de
desdém. Sónia estava sentada muito juntinha de Nicolau, que copiava uns versos
para ela, os primeiros que tinha escrito na sua vida. Bóris e Natacha estavam na
outra janela, e calaram-se quando a viram entrar. Sónia e Natacha olharam-na
com um ar feliz, e ao mesmo tempo como se tivessem sido surpreendidas em
flagrante.
Estas garotas, que então viviam a sua primeira história de amor, eram ao
mesmo tempo divertidas e comovedoras para quem as contemplasse. Mas a
verdade é que não foi grande a satisfação de Vera quando deu com elas.
— Quantas vezes já lhes pedi que se não apoderassem do que é meu? As
meninas também têm um quarto,
Tirou o tinteiro das mãos de Nicolau.
— Espere, espere — exclamou ele, molhando a caneta. — Não há dúvida deque não sabem fazer nada com jeito — prosseguiu ela.— Foi uma vergonha aquela
vossa entrada no salão.
Apesar da justeza da observação, ou até, precisamente, por isso mesmo,
ninguém abriu a boca, e os quatro limitaram-se a olhar uns para os outros. Vera
continuou, com o tinteiro na mão:
— Sempre gostava de saber que segredinhos é que a Natacha e o Bóris têm
para dizer um ao outro.., nessa idade, e vocês também. Que patetice!
— E tu que tens com isso. Vera? — disse Natacha, com a voz mais pachorrenta
deste mundo, para dizer alguma coisa.
Era evidente estar, como nunca, nesse dia disposta a ser boa e afectuosa para
toda a gente.
— Tudo isto é uma patetice — continuou Vera— Sinto vergonha por vocês.
Que segredos são esses?
— Toda a gente tem segredos. Nós também não nos metemos ria tua vida e na
do Berg — disse Natacha, que principiava a exaltar-se.
— Acho muito bem que se não metam na minha vida nem na dele, tanto mais
que nada têm a dizer de nós. Deixa estar que hei-de contar à mãe como tu te
portas com o Bóris.
— Natália Ilinitchna porta-se muito bem comigo — disse Bóris. — Nada tenho a
censurar-lhe.
— Deixe-a lá. Bóris, está a ser diplomata...
A palavra «diplomata» estava então em moda entre as crianças, com o
significado particularíssimo que elas lhe davam.
— Que maçada! — exclamou Natacha, com a voz trémula de irritação. —
Porque é que ela se está sempre a meter comigo?... Tu não percebes nada —
acrescentou, dirigindo-se a Vera— não admira: nunca gostaste de ninguém. Não
tens coração, não passas de uma Madame de Genlis (era uma alcunha, com todo o
ar de muito ofensiva, inventada por Nicolau)... Aquilo de que mais gostas é de
más-criações para com os outros. Deixa-nos em paz e vai lá fazer-te coquette com o
Berg.
— Mas eu nunca andei a correr atrás de um rapaz diante de gente de fora...
— Era isso que tu querias, não é verdade?, dizer-nos coisas desagradáveis —
disse Nicolau. — Conseguiste que todos ficássemos zangados. Vamos embora para
a nursery.E todos eles, como um bando de pássaros assustados, bateram as asas e
despediram.
— A mim é que vocês disseram coisas desagradáveis; eu, por mim, não disse
coisas desagradáveis a ninguém — replicou Vera. — Madame de Genlis! Madame
de Genklis! (Autor muito Iwo e traduzido na Rússia de então. (N, dos T.) —
gritaram já detrás da porta as suas vozes alegres.
A linda Vera, que acabara por irritar toda à gente, pôs-se a sorrir, e,
completamente indiferente ao que lhe tinham dito, aproximou-se de um espelho e
compôs a écharpe e o penteado. Ao ver a sua imagem no espelho, voltou. à
serenidade e à frieza habituais.
No salão falava-se ainda.
— Ah, minha querida — dizia a condessa —, também na minha vida riem tudo
é cor-de-rosa. Não vês que pelo caminho que levamos, a nossa fortuna não dura
muito? E é tudo por causa do clube e da bondade dele. Julgas que descansamos
quando vamos para o campo? Lá temos os espectáculos, as caçadas, e só Deus sabe
que mais. Mas para que hei-de eu estar a falar de mim? E tu, como é que
conseguiste tudo quanto querias? O que eu admiro, as vezes. Annette. é como tu
podes, na tua idade, ir sozinha, por essas estradas, a Moscovo, a Petersburgo,
procurar os ministros, a gente importante, e como tu sabes falar a todos! O que eu
te, admiro! Conta, conta, como é que conseguiste? Não percebo nada.
— Ali, minha filha — replicou a princesa Ana Mikailovna. Deus queira que
nunca venhas a saber o que é ficar viúva, desamparada, com um filho nos braços a
quem se quer doidamente. A idade pouco importa para a gente aprender —
prosseguiu com altivez— Aprendi à minha custa. Quando tenho de me dirigir a
qualquer graúdo, mando-lhe uma, palavrinha: «A princesa fulana deseja avistar-se
com Sicrano ou Beltrano,» E meto-me num carro de praça e apresento-me uma,
duas, três, quatro vezes, as precisas para conseguir o que pretendo. Pouco me
importa o que eles possam pensar de mim.
— Conta-me lá, a quem te dirigiste para pedir pelo Bóris? perguntou a
condessa. — Aí o tens já oficial da Guarda, enquanto o meu Nicolau ainda não
passou de junker. Não tenho ninguém a quem o recomendar. A quem te dirigiste?
— Ao príncipe Vassili. Foi muito amável. Pôs-se logo à minha disposição. Falou
ao imperador — disse a princesa Ana com um ar vitorioso, esquecendo por
completo as humilhações a que tivera de sujeitar-se para alcançar os seus fins.— Que, tal está o príncipe Vassili? Envelheceu? — inquiriu a condessa. —
Nunca mais o vi desde o tempo das nossas teatradas em casa dos Rumiantsov.
Naturalmente já não se lembra de mim. Fazia-me a corte — acrescentou, sorrindo.
— Está a mesma pessoa — replicou Ana Mikailovna — amável, atencioso. As
grandezas não lhe fizeram perder a cabeça. «Lamento poder tão pouco, querida
princesa», disse-me ele, «mas dê-me as suas ordens.» É o que te digo, é uma
excelente pessoa e um bom parente. Tu bem sabes. Natália, o que o meu filho
representa para mim. Nem eu sei o que seria capaz de fazer pela sua felicidade.
Mas estou em circunstâncias tão penosas — continuou ela, num tom acabrunhado,
e baixando a voz —, tão penosas, que me vejo actualmente numa situação
terrível. Aquele infeliz processo em que eu me meti leva-me tudo quanto tenho, e
não há maneira de andar para diante. Imagina que estou, como se diz, sem
vintém, e não sei como hei-de arranjar dinheiro para pagar o equipamento do
Bóris. — Puxou do lenço e pôs-se a chorar. — Preciso de quinhentos rublos, e tudo
quanto tenho de meu, neste momento, é uma nota de vinte rublos. Aqui tens a
minha situação... A minha única esperança, agora, é o conde Cirilo Vladimirovitch
Bezukov. Se ele não vier em auxílio do afilhado — como sabes, é padrinho do Bóris
— e não fizer alguma coisa por ele, tudo quanto eu consegui até agora não serve
para nada: não poderei pagar o equipamento do rapaz.
A condessa, de lágrimas nos olhes, ficou calada e pensativa.
— Muitas vezes digo de mim para comigo, e talvez não seja bonito: ali está o
conde Cirilo Vladimirovitch Bezukov, um homem que vive sozinho — e, tem urna
fortuna imensa... Para que é que aquele homem vive? A vida para ele é um fardo,
enquanto que o Bóris, coitado, agora é que principia a viver.
— Naturalmente não deixa de se lembrar dele no testamento — disse a
condessa.
— Quem sabe lá, querida amiga! Estes ricaços, estes nababos, são tão
egoístas! Em todo o caso estou disposto a ir visitá-lo com o Bóris e dizer-lhe
francamente o que se passa. Pensem de mim o que quiserem, tanto se me dá.
Nada tem importância para urna mãe quando está em risco o destino de filho. —
Levantou-se para sair. — São duas horas, o vosso jantar é às quatro. Tenho tempo.
E como mulher activa, da capital, que era, para quem () tempo é dinheiro. Ana
Mikailovna mandou chamar o filho e saiu com ele.
— Adeus, minha querida — disse para a condessa, que a acompanhou até àporta, — Deseja-me sorte — segredou-lhe, a ocultas do filho.
— Vai visitar o conde Cirilo Vladimirovitch, minha cara?— inquiriu o conde, da
sala de jantar, e aparecendo na antecâmara— Se ele estiver melhor, convide o
Pedro em, meu nome. Ele já cá esteve em casa, já dançou com as pequenas.
Convide-o em meu nome, sem falta, minha cara. Vamos a ver como se porta hoje o
Taraska. Está farto de me dizer que o conde Orlov nunca deu um jantar como o
que ele me está a preparar,
[XV]
— Meu querido Bóris — disse a princesa Ana Mikailovna para o filho quando a
carruagem da condessa Rostov, que os tinha conduzido, chegou à rua atapetada de
palha e penetrou no grande pátio do conde Cirilo Vladimirovitch Bezukov.— Meu
querido Bóris — repetiu, enquanto retirava a mão da velha romeira de peles e a
pousava no braço do filho, num gesto ao mesmo tempo tímido e enternecido— sê
amável, mostra-te atencioso. O conde Cirilo Vladimirovitch sempre é teu padrinho
e é dele que depende o nosso futuro. Lembra-te disso, meu querido, sê amável,
como tu sabes, quando queres...
— Se eu tivesse a certeza de que de tudo isto sairia alguma coisa além da
humilhação que nos espera... — replicou o filho com frieza.— Mas, visto que lhe
prometi, cumprirei a minha palavra; é por si que o faço.
O criado, embora tivesse visto a quem pertencia a carruagem parada diante
da escada, quis ver quem entrava, mas mãe e filho, sem se fazerem anunciar,
penetraram, directamente, no vestíbulo guarnecido de espelhos, entre duas
fileiras de estátuas perfiladas nos seus nichos. O criado, observando com um olhar
significativo a velha romeira de peles, perguntou quem procuravam — as
princesas ou o conde? —, e, ao verificar ser o conde, disse que, como Sua
Excelência estava pior. Sua Excelência não recebia ninguém.
— Vamos-nos embora — disse o filho em francês.
— Meu amigo! — implorou a mãe, tocando-lhe de novo no braço, como se
quisesse tranquilizá-lo e dar-lhe coragem.
Bóris não disse nada, e sem despir o casacão olhou para a mãe com um arinquiridor.
— Ouve — disse Ana Mikailovna para o criado, num tom insinuante —, eu bem
sei que o conde Cirilo Vladimirovitch está muito mal.., e é precisamente por isso
que eu aqui estou... Somos parentes... Não quero incomodar ninguém, meu
amigo... Apenas desejava falar com o príncipe Vassili Serguievitch; sei que ele está
aqui. Vai anunciar-nos, fazes favor.
O criado, com toda a solenidade, voltou costas e puxou o cordão da campainha
que tocava no andar superior.
— A princesa Drubetskaia para o príncipe Vassili Serguievitch — gritou ele a
um escudeiro, de calção, escarpins e sobrecasaca, que acorrera e se debruçava da
balaustrada da escadaria.
A princesa ajeitou as pregas do vestido de seda tingida, mirou-se no grande
espelho de Veneza que pendia (Ia parede e pôs-se a subir a escada, altivamente,
ao longo da passadeira, com os seus sapatos cambados.
— Meu caro, prometeu-me — voltou ela para o filho, pegando-lhe no braço
para encorajá-lo. O filho, de olhos baixos, seguia-a sem dizer palavra.
Penetraram num salão que conduzia aos aposentos reservados para o príncipe
Vassili.
No momento em, que mãe e filho, tendo chegado ao centro da sala, se
dispunham a perguntar a um velho criado que viera ao seu encontro qual o
caminho a seguir, o batente de bronze de uma das portas girou e o príncipe
Vassili, de samarra de veludo, só com uma condecoração, como era próprio da
intimidade, apareceu, acompanhando um sujeito moreno, de muito bom aspecto.
Era o famoso Dr. Lorrain, de Petersburgo.
— É então positivo?
— Meu príncipe, errare humanum est, mas... — volveu o médico, gaguejando e
pronunciando o latim à francesa.
— Está bem, está bem...
Ao ver Ana Mikailovna e o filho, o príncipe Vassili despediu-se do médico e
avançou em direcção a eles, calado, mas com uma expressão interrogadora. O filho
deu-se conta de que, repentinamente, os olhos da mãe exprimiam uma profunda
aflição, e um ligeiro sorriso lhe aflorou aos lábios.
— É verdade, em que penosas circunstâncias nos havíamos de tornar a ver,
príncipe... E como vai o nosso querido doente? inquiriu ela, sem parecer notar oolhar frio e ultrajante que ele lhe lançara.
O príncipe Vassili olhou para ela e depois para Bóris, como quem interroga,
sem saber o que há-de fazer. Bóris inclinou-se polidamente. O príncipe Vassili, sem
corresponder ao seu cumprimento, voltou-se para Ana Mikailovna e respondeu-lhe
com um aceno de cabeça e um momo de lábios nada optimista para o doente.
— Será possível?! — exclamou Ana Mikailovna. — Oh, é terrível! — Não pode
uma pessoa pensar numa coisa dessas... É o meu filho — acrescentou, apontando
Bóris. — Quis vir agradecer-lhe pessoalmente.
Bóris inclinou-se outra vez com toda a correcção. — Acredite, príncipe, um
coração de mãe nunca mais esquecerá o que fez por nós.
— Sinto-me feliz por lhe poder ter sido prestável, minha cara Ana Mikailovna
— volveu-lhe o príncipe Vassili, compondo o jabot e pondo no seu gesto e na sua
voz, em Moscovo, e na presença da sua protegida, não menos importância que em
Petersburgo, na soirée de Ana Scherer,
— Faça por ser um bom oficial e por se mostrar digno — — acrescentou,
dirigindo-se a Bóris. — — Tenho muito prazer — Está de licença? — interrogou,
num tom totalmente indiferente.
— Aguardo ordens. Excelência, para me apresentar no meu novo regimento —
replicou Bóris, sem mostrar quer ressentimento perante os modos abruptos do
príncipe, quer desejos de prosseguir na conversa, irias respondendo com uma tão
respeitosa compostura que o príncipe olhou para ele atentamente.
— Está em casa de sua mãe?
— Vivo em casa da condessa Rostov — tornou Bóris, sem se esquecer de
acrescentar: — Excelência.
— Ilia Rostov, que casou com Natália Chinchina — elucidou Ana Mikailovna.
— Bem sei, bem sei — disse o príncipe Vassili, com a sua voz inexpressiva. —
Nunca pude compreender como a Natália se decidiu a casar com esse burgesso!
Uma pessoa estúpida e ridícula. E ainda por cima jogador, pelo que dizem.
— Mas uma excelente pessoa, meu príncipe — acrescentou Ana Mikailovna,
com um certo sorriso, como se ela fosse também de opinião que o conde Rostov
era digno de um tal juízo, mas entendesse que as pessoas deviam mostrar
indulgência para com um pobre velho. — Que dizem os médicos? — perguntou,
depois de um breve silêncio, e afivelando, de novo, uma expressão de grande
pesar no rosto cavado pelas lágrimas.— Há pouca esperança — volveu o príncipe.
— E eu que tanto queria uma vez ainda agradecer a meu tio todas as atenções
que ele tem tido para comigo e para com meu filho. É o seu afilhado —
acrescentou, como se esta informação devesse causar uma grande alegria ao
príncipe Vassili.
Este franziu as sobrancelhas, sem dizer nada. Ana Mikailovna percebeu que ele
receava ver nela uma rival na disputa da herança do conde Bezukov, e procurou
logo tranquilizá-lo.
— É apenas por muita estima e dedicação por meu tio – disse deixando cair,
negligentemente, e com convicção, esta última palavra,— Conheço-lhe muito bem
o carácter nobre e franco; mas ele não tem junto de si senão as princesas... Tão
novas... Inclinou-se-lhe ao ouvido e acrescentou em voz baixa: — Ele já se preparou
para a jornada, príncipe? Estas últimas horas são tão preciosas! Não há momento
mais grave, é indispensável prepará-lo, visto estar tão mal. Nós, mulheres,
príncipe — sorriu carinhosamente —, nós sabemos melhor do que ninguém falar
destas coisas. É indispensável que eu o veja. Por mais penoso que isso seja para
mim.., mas estou habituada ao sofrimento.
O príncipe compreendia, e mais do que nunca, que, como na soirée de Ana
Scherer, não lhe ia ser fácil desembaraçar-se de Ana Mikailovna.
. Não acha que esta entrevista lhe seria muito penosa, querida Ana
Mikailovna? — volveu ele.— É melhor esperarmos para amanhã. Os médicos
previram uma crise.
— Mas não se deve esperar em tais momentos, príncipe. Lembre-se que se
trata da salvação da sua alma... Ah!, são terríveis, os deveres de um cristão...
Uma porta dos aposentos interiores abriu-se e uma das sobrinhas do conde
entrou, uma rapariga de aspecto triste e frio, com o tronco completamente
desproporcionado em relação às pernas.
O príncipe Vassili voltou-se para ela.
— Então, como está ele?
— Sempre na mesma. Não admira, com este barulho.., disse a princesa,
olhando para Ana Mikailovna, como se ela fosse uma desconhecida.
— Ah!, querida, não a conhecia! — exclamou Ana Mikailovna, com um sorriso
feliz e avançando, ligeira, para a sobrinha do conde. — Acabo de chegar e estou às
suas ordens para a ajudar e tratar de meu tio. Calculo o que deve ter sofrido —acrescentou com um ar compadecido.
A princesa não disse nada, nem sequer sorriu, e voltou, logo a, desaparecer.
Ana Mikailovna descalçou as luvas e instalou-se numa cadeira, em posição
conquistada, fazendo sinal ao príncipe Vassili para sentar-se o lado dela.
— Bóris! — disse para o filho, sorrindo-lhe.— Eu vou ver o conde, meu tio: tu,
entretanto, meu amigo, procura o Pedro, e não te esqueças de lhe transmitir o
convite dos Rostov. Querem-no lá para jantar. Naturalmente não vai, penso eu —
acrescentou, para o príncipe,
— Porque não? — observou este, que não parecia lá muito bem disposto.—
Ficar-lhe-ei muito grato se me desembaraçar deste jovem, — Está aqui instalado.
O conde ainda não pediu uma única vez para o ver.
Encolheu os ombros. Um escudeiro acompanhou Bóris, fazendo-o descer a
escada e conduzindo-o depois por outra aos aposentos de Pedro Kirilovitch,
[XVI]
Pedro, que não conseguira decidir-se por uma carreira em Petersburgo, havia
sido, de facto, recambiado para Moscovo por causa do seu mau comportamento. A
história que se contava em casa dos Rostov era exacta. Pedro tinha tornado parte
na cena da amarração do polícia ao lombo do urso. Regressara havia apenas
breves dias e, como era seu costume, instalara-se em casa do pai. Embora
calculasse que a história já seria conhecida em Moscovo e que as senhoras da roda
do pai, sempre mal dispostas para com ele, já teriam aproveitado a ocasião para
indispor o conde consigo, nem por isso deixara de se apresentar nos aposentos do
pai assim que chegara. Ao entrar no salão, quartel-general das princesas,
cumprimentou as senhoras que estavam a bordar enquanto uma delas lia um livro
em voz alta. Eram três. A mais velha era uma rapariga severa e de aspecto
cuidado, de tronco muito alto, a mesma que aparecera a Ana Mikailovna; essa era
a leitora; as duas mais novas, frescas e bonitas, tão parecidas que apenas se
distinguiam pelo sinalzinho que uma delas tinha sobre o lábio e que a tornava
ainda mais bonita, bordavam ao bastidor. Pedro foi recebido como um morto que
ressuscita ou como um pestífero. A mais velha interrompeu a leitura e, sem dizernada, fitou-o de olhos espavoridos; a segunda, a que não tinha sinal, reproduziu
exactamente a expressão da irmã; a mais nova, de feitio jovial e trocista,
mergulhou a cabeça no trabalho para esconder o riso que lhe iria provocar a
divertida cena com que já contava. Levantou o bastidor e inclinou-se para o
bordado, como se estivesse absorta no seu trabalho, mal podendo suster o riso.
— Bom dia, prima — disse Pedro. — Já não me conhece?
— Conheço-o de mais, conheço-o de mais, sim, de mais. — Como está o conde?
Posso vê-lo? — continuou, embaraçado, como sempre, mas sem se perturbar.
— O conde está mal física e moralmente, e, pelo que sei, o Pedro tem feito o
possível para lhe agravar os seus padecimentos morais.
— Posso vê-lo? — repetiu Pedro.
— Hum... Se o quer matar, sim; se o quer matar, então, faça favor. Olga, vai
ver se o caldo do tio está pronto; estamos quase na hora — acrescentou ela,
mostrando com isso a Pedro que não faziam outra coisa senão aliviar os
sofrimentos do pai, enquanto ele só servia, evidentemente, para o desassossegar.
Olga saiu. Pedro olhou as duas irmãs e disse, pedindo licença para se retirar:
— Então vou-me embora. Quando eu puder vê-lo, espero que me mandem
chamar.
Saiu e o riso meio abafado da mais nova ressoou-lhe nas costas.
No dia seguinte, o príncipe Vassili chegava e instalava-se em casa do conde.
Mandou chamar Pedro e disse-lhe:
— Meu caro, se se vai comportar aqui como em Petersburgo, acabará mal, é
tudo quanto tenho a dizer-lhe. O conde está muitíssimo doente: deve evitar vê-lo
por completo.
A partir desse momento nunca mais ninguém pensou em Pedro, que passava os
dias nos seus aposentos, no andar de cima.
Quando Bóris entrou no quarto. Pedro passeava de um lado para o outro,
detendo-se, de vez em quando, num dos ângulos da sala, gesticulando
ameaçadoramente diante da parede, como se desafiasse qualquer inimigo
invisível, e lançando olhares severos por cima das lunetas. Depois, retomava a sua
caminhada, pronunciava palavras incompreensíveis, encolhia os ombros, agitava
os braços.
— A Inglaterra está liquidada — articulava ele, franzindo as sobrancelhas, e
apontando fosse o que fosse com o dedo.— O Senhor Pitt, como traidor da nação edo direito dos povos, está condenado a...
Não pôde concluir a sentença que condenava Pitt. Julgava-se Napoleão e na
companhia do seu herói atravessava já o perigoso Pas de Calais, a caminho da
conquista de Londres, quando viu entrar um jovem e garboso oficial. Calou-se.
Tinha deixado de ver Bóris ia este nos seus catorze anos, e não se lembrava
realmente dele. Apesar disso, travou-lhe do braço, com os seus modos atenciosos e
espontâneos, sorrindo-lhe amistosamente,
— Lembra-se de mim? — perguntou Bóris, serenamente, e com um sorriso
gracioso. — Vim com minha mãe visitar o conde, mas, segundo parece, ele não
está bem de saúde.
— Sim, digamos, está doente. Estão sempre a incomodá-lo replicou Pedro,
procurando lembrar-se donde conhecia aquele mancebo.
Bóris via perfeitamente que Pedro o não reconhecia, mas não se achava na
obrigação de lhe dizer quem era. E fitou-o sem o menor embaraço.
— O conde Rostov pede-lhe que vá hoje jantar a casa dele — disse, após uma
pausa assaz longa e algo embaraçosa para Pedro.
— Ah, o conde Rostov! — exclamou Pedro muito contente.— Então é o Ilia, o
filho do conde. E eu que o não tinha reconhecido no primeiro momento. Lembra-se
quando íamos passear ao Monte dos Pardais (Passeio célebre em Moscovo. (N, dos
T.) com Madame Jacquot... Já lá vai há muito.
— Está enganado — disse Bóris, sem pressa, e com um sorriso protector e um
pouco trocista. — Sou Bóris, o filho da princesa Ana Mikailovna Drubetskaia. Ilia é
o Rostov pai. O filho chama-se Nicolau. E não conheço qualquer Madame Jacquot.
Pedro abanou a cabeça e gesticulou, como se quisesse enxotar moscas ou
abelhas importunas.
— Ah!, que estou eu a dizer? Confundo tudo. Há tantos parentes em Moscovo!
Já sei, o Bóris.., perfeitamente. Até que enfim que estamos de acordo. Ora, diga-
me, que pensa da expedição de Bolonha? Não acha que os Ingleses ficarão em
maus lençóis se Napoleão conseguir atravessar o canal? Na minha opinião, a
expedição é coisa viável. Desde que Villeneuve não faça alguma asneira.
Bóris não sabia absolutamente nada acerca da expedição de Bolonha; não lia os
jornais, e era a primeira vez que ouvia falar em Villeneuve.
— Nós, aqui, em Moscovo, preocupamo-nos mais com jantares e mexericos do
que com política — disse ele no seu tom sereno e escarninho. — Nada sei a esserespeito, nem tenho opinião sobre o assunto. Moscovo é uma cidade que presta
sobretudo atenção aos escândalos. Neste momento não se fala noutra coisa senão
de si e do conde.
Pedro sorria, e o seu sorriso bom parecia traduzir o receio de que o
interlocutor se descaísse com qualquer palavra de que pudesse vir a arrepender-
se. Mas Bóris falava distintamente, com nitidez e secura, fitando-o nos olhos.
— Moscovo não tem mais que fazer senão coscuvilhar — continuou. — Toda a
gente está morta por saber a quem é que o conde vai deixar a sua imensa fortuna,
embora muito bem possa acontecer que ele cá fique para nos enterrar a todos, e
faço votos para que assim seja,
— Sim, tudo isto faz tristeza — murmurou Pedro.— Muita tristeza.
Ainda não deixara de temer que o oficial, estouvadamente, abordasse
qualquer conversa embaraçosa para ele.
— Como deve calcular — continuou Bóris, corando ligeiramente, mas sem
alterar o seu tom e o seu semblante reservados —, como deve calcular, o que toda
a gente espera de um ricaço é vir a receber dele qualquer coisa.
«Ora aí está», disse Pedro com os seus botões.
— E era precisamente isso que eu lhe queria dizer, para evitar equívocos: que
está muito enganado se nos considera, a minha mãe e a mim, na categoria dessa
gente. Nós somos bastante pobres, mas posso garantir-lhe, pelo menos no que me
diz respeito, que é precisamente porque seu pai é rico que eu me não considero
seu parente, e que tanto eu como minha mãe nunca lhe pediremos seja o que for,
nem nada aceitaremos dele.
Levou seu tempo antes que Pedro compreendesse, mas assim que o conseguiu
deu um pulo do divã, pegou em Bóris por debaixo do braço, com a sua vivacidade
de gestos e a sua habitual maneira desajeitada, e, corando ainda mais que o seu
interlocutor, pôs-se a dizer-lhe, num misto de pudor e embaraço:
— Que está a dizer? Será possível que... Quem é que seria capaz de pensar...
Eu sei perfeitamente...
Mas Bóris mais uma vez lhe cortou a palavra.
— Estou satisfeito por ter-lhe dito tudo isto. Naturalmente não lhe foi muito
agradável de ouvir, desculpe-me — acrescentou, para tranquilizar Pedro, quandoquem devia esperar ser tranquilizado era ele próprio.— Mas espero que o não
tenha ofendido. Tenho por princípio usar de franqueza... Que resposta quer que eu
dê? Sempre vai ao jantar dos Rostov?
Bóris, depois de assim se ter desembaraçado de um penoso dever e de ter
transferido para outrem a falsa situação em que se encontrava, tomou-se muito
amável, como era seu costume.
— Ouça cá — disse Pedro, tranquilizado— Você é uma pessoa extraordinária. O
que acaba de me dizer é bonito, muito bonito. Claro que me não conhece. Há
tantos anos que nos não vemos.., desde crianças... Talvez suponha que eu... Sim,
compreendo-o perfeitamente. Não teria feito uma coisa dessas, não teria tido
coragem, mas acho muito bem. Gostei muito de o conhecer. É curioso —
acrescentou, após uma breve pausa e sorrindo— o que foi capaz de pensar de
mim! — Pôs-se a rir.— Mas que importância tem isso? Havemos de ter ocasião de
nos conhecermos melhor, não é verdade? — Apertou-lhe a mão.— Fique sabendo
que eu ainda não pus os pés no quarto do conde. Não me mandou sequer chamar...
Tenho pena dele... Mas que hei-de eu fazer?
— Acha que Napoleão será capaz de levar a cabo a travessia? — perguntou
Bóris, com um sorriso.
Pedro disse de si para consigo que Bóris queria mudar de conversa, e, fazendo-
lhe a vontade, pôs-se a descrever-lhe, pormenorizadamente, as vantagens e as
dificuldades da tentativa de Bolonha.
Um criado veio procurar Bóris, mandado pela princesa, a qual ia partir. Pedro
prometeu aparecer no jantar, e, para mais estreitar os seus laços com Bóris,
apertou-lhe energicamente a mão. Fitando-o amistosamente através dos cristais
das suas lunetas... Depois de Bóris sair continuou por muito tempo a passear no
quarto, já não a rachar, de alto a baixo, inimigos invisíveis, mas sorrindo à
lembrança daquele rapaz amável, ao mesmo tempo inteligente e resoluto.
Como é vulgar com a gente muito moça, e especialmente se vive isolada.
Pedro sentia por aquele rapaz um enternecimento sem razão de ser, prometendo
de si para consigo fazer dele um verdadeiro amigo.
O príncipe Vassili acompanhava a princesa. Esta levava o lenço nos olhos e
tinha o rosto coberto de lágrimas.
— É horrível, é horrível! — exclamava ela.— Mas hei-de cumprir o meu dever
custe o que custar. Hei-de vir tomar conta dele. Não o podem deixar neste estado.Cada minuto que passa é tempo perdido. Não sei porque estão à espera as
princesas. Que Deus me inspire a maneira de o preparar...
— Adeus, meu príncipe, que Deus o ajude!...
— Adeus, minha amiga — replicou o príncipe Vassili, ao deixá-la.
— Oh, que situação terrível — disse a mãe para o filho, ao subirem para a
carruagem.— Quase já não conhece ninguém. — Não chego a compreender, mãe,
quais são as relações dele com o Pedro — observou o filho.
— O testamento nos há-de dizer, meu amigo. E o nosso destino depende
disso...
— Mas, o que é que a leva a pensar que ele nos deixa alguma coisa?
— Ah, meu filho! Ele é tão rico e nós somos tão pobres!
— Isso não é uma razão, mãe...
— Ai, meu Deus, meu Deus, o estado em que ele está! — suspirava ela.
[XVII]
Depois que Ana Mikailovna e o filho saíram para se dirigir a casa do conde
Cirilo Vladimirovitch Bezukov, a condessa Rostov ficou por muito tempo sozinha,
de lenço nos olhos. Por fim, tocou a campainha.
— Que andas tu a fazer? — disse ela, irritada, para a criada, que tinha tardado
alguns minutos a aparecer. — Não queres fazer as tuas obrigações? Nesse caso,
posso arranjar-te outra casa.
A condessa tão perturbada ficara com as aflições e a humilhante pobreza da
amiga que estava de mau humor, e quando se irritava falava sempre assim à
pobre rapariga.
— Peço desculpa, minha senhora.
— Vai dizer ao senhor conde que venha cá.
O conde, no seu passo claudicante, veio ao encontro da mulher, com o ar
habitual de quem é surpreendido a fazer qualquer coisa mal feita.
— Oh, condessinha! Aquilo é que é um sauté de galinholas au Madère que nós
lá temos, minha querida! Já o provei. Fiz muito bem em dar mil rublos ao Taraska.
Vale-os bem!Sentou-se ao lado da condessa, apoiando os cotovelos nos joelhos, os cabelos
brancos em desordem.
— Que deseja, condessa?
— Olhe lá, querido... Que nódoa é essa? — disse ela, apontando-lhe o colete.—
Naturalmente, foi o sauté — acrescentou, sorrindo.— É que preciso de dinheiro.
Tinha assumido uma expressão tristonha.
— Ah, condessinha!...
O conde deu-se pressa em ir buscar a carteira.
— Preciso de muito dinheiro, conde; de quinhentos rublos.
E, puxando do seu lencinho de cambraia, pôs-se a esfregar o colete do marido.
— É já, é já. Eh lá! Quem é que está aí? — gritou, no tom de um homem que
sabe que basta chamar para logo acorrerem ao seu apelo. — Manda cá o Mitenka.
Mitenka, o jovem de boa família a educar em casa do conde, e, que estava à
testa de todos os seus negócios, entrou na sala calmamente.
— Ouve cá — disse o conde para o jovem, que se aproximou em atitude
respeitosa. — Traz-me... — Ficou um momento a pensar. — Sim, setecentos rublos.
Mas, toma cuidado, não me tragas dessas notas rasgadas e sujas, como da outra
vez. Quero notas novas, são para a condessa.
— Sim. Mitenka, que sejam limpas — apoiou a condessa, com um profundo
suspiro.
— Quando precisa desse dinheiro. Excelência? — perguntou Mitenka.— É bom
que Sua Excelência saiba que... Mas não se aflija — acrescentou, notando que a
respiração do conde se tornava opressa, sinal de que principiava a encolerizar-se.
— Tinha-me esquecido, precisamente... Quer já essa importância?
— Quero, quero, trá-la. É para a dares à condessa.
— Isto é que é um tesouro, este Mitenka — prosseguiu ele, sorrindo, assim
que o rapaz saiu.— Não me venham dizer que é impossível. Isso é que eu não
posso tolerar. Tudo é possível.
— Ah, o dinheiro, conde, o dinheiro, as aflições que o dinheiro causa neste
mundo! — exclamou a condessa. — E eu preciso muito deste dinheiro.
— Pois, sim, condessinha, toda a gente sabe que é uma perdulária — disse o
conde; e, depois de beijar a mão da mulher, retirou-se para o seu gabinete.
Quando Ana Mikailovna voltou de casa de Bezukov, já a condessa tinha em seu
poder o dinheiro, todo em notas novas, em cima de uma mesa, debaixo do lenço deassoar, e Ana Mikailovna viu perfeitamente que a amiga estava preocupada.
— Então, minha amiga? — inquiriu a condessa.
— Ah!, que situação horrível a dele! Está irreconhecível. E tão mal, tão mal!
Estive junto dele apenas uns momentos, e não lhe pude dizer uma única palavra...
— Annette, por amor de Deus, não digas que não! — exclamou, de súbito, a
condessa corando muito, o que era estranho naquele rosto magro e grave, nada
novo já, e tirou o dinheiro que tinha debaixo do lenço.
Ana Mikailovna compreendeu imediatamente de que se tratava e debruçou-se
para beijar a amiga no momento propício.
— Aqui tens, da minha parte, para o uniforme do Bóris.
Ana Mikailovna abraçou-se então a ela a chorar. A condessa também chorou.
Ambas choravam, porque ambas estavam de acordo e também porque eram
pessoas de bom coração e excelentes amigas de infância e se viam obrigadas a
preocupar-se com essa coisa desprezível que é o dinheiro e ainda também porque
já não eram novas... Mas as suas lágrimas não eram amargas...
[XVIII]
A condessa Rostov estava sentada no salão, no meio de suas filhas, já entre um
grande número de convidados. O conde tinha levado consigo os homens para
mostrar-lhes, no gabinete, a sua colecção de cachimbos turcos. De vez em quando
vinha cá fora perguntar se ela ainda não tinha chegado. Estava-se à espera de
Maria Dmitrievna Akrosimova, conhecida na sociedade por o terrível dragão, uma
senhora a quem não distinguiam nem a fortuna nem os títulos, mas a inteireza e a
franca simplicidade de maneiras. Maria Dmitrievna era conhecida da família
imperial, e toda Moscovo e toda Petersburgo a conheciam igualmente, e as duas
cidades, posto a admirassem, nas costas dela zombavam do seu ar rude, contando
anedotas a seu respeito. Toda a gente, sem excepção, a estimava e a temia um
pouco.
No gabinete, cheio de fumo, a conversa tinha por assunto guerra, que um
manifesto acabava de anunciar, e o serviço de recrutamento. Ainda ninguém tinha
lido esse manifesto, mas toda a gente sabia da sua existência. O conde estavasentado numa otomana, entre dois fumadores, que conversavam. Quanto a ele,
não fumava nem falava. Voltando a cabeça ora para um lado ou para o outro,
olhava para os interlocutores com viva satisfação e ouvia o que diziam aquelas
duas criaturas que ele pusera em contacto.
Um deles era civil, de rosto magro, escanhoado, bilioso e cheio de rugas.
Pendia já para a velhice, conquanto vestisse como um rapaz à moda. Sentava-se à
turca na otomana, como se estivesse em sua própria casa, e, com a boquilha de
âmbar ao canto da boca, lançava rolos de fumo, de tempos a tempos, piscando os
olhos. Era um velho celibatário. Chinchine de nome, primo da condessa, um má-
língua, como se dizia nos salões moscovitas. Conversando, parecia conceder uma
alta distinção ao seu interlocutor. Este era um oficial da Guarda, rosado e fresco,
bem apertado, bem penteado e irrepreensível na sua farda. De cachimbo na
bonita boca, soltava ligeiros rolos de fumo, por entre os lábios rosados, que
subiam no ar em pequenos círculos. Era o tenente Berg, do regimento Seminovski,
actual camarada de Bóris, aquele a quem Natacha chamara, para irritar a irmã, o
noivo da Vera. O conde tinha-se sentado entre os dois e ouvia-os atentamente. A
ocupação de que ele mais gostava, à parte o boston, que adorava, era
precisamente o papel de auditor, sobretudo quando conseguira defrontar dois
tagarelas.
— He, como é isso, meu mui venerável Afonso Karlitch — dizia Chinchine,
trocista, misturando as expressões o mais tipicamente russas com as frases
francesas mais rebuscadas. — Conta tirar rendimentos do Estado, quer tirar lucros
do seu esquadrão?
— Não. Piotre Nikolaitch, apenas queria mostrar-lhe que a cavalaria oferece
muito menos vantagens que a infantaria. Considere a minha posição. Piotre
Nikolaitch...
Berg falava sempre com precisão, num tom calmo e cortês. Tudo quanto dizia
lhe tocava a ele próprio de perto. È era capaz de estar calado horas sem se
enfadar com isso nem causar aos outros o mínimo enfado. Mas desde que a
conversa o tocasse pessoalmente, logo ele intervinha com exuberância e visível
prazer.
— Considere a minha posição. Piotre Nikolaitch. Se eu estivesse na cavalaria
não teria mais de duzentos rublos de três em três meses, mesmo no posto de
tenente, e actualmente tenho duzentos e trinta... — Um alegre e afectuoso sorrisoacompanhava as suas palavras, e olhava para Chinchine e para o conde como se
fosse a própria evidência os seus próprios êxitos, dele. Berg, serem como que a
preocupação suprema de toda a humanidade.
— Além disso. Piotre Nikolaitch, passando para a Guarda — continuou ele —,
estou mais em evidência e as vagas são em muito maior número na infantaria. E,
depois, pode calcular como eu me arranjo com os duzentos e trinta rublos. Pois
fique sabendo que faço economias e ainda mando dinheiro a meu pai — disse,
entre duas fumaças.
— Aí é que está a habilidade— O Alemão malha o milho em cima do cabo de
um machado, como diz o provérbio. (Provérbio russo intraduzível que se refere à,
avareza. (N, dos T) — disse Chinchine, piscando o olho ao conde e mudando a
posição do cachimbo.
O conde soltou urna gargalhada. Alguns dos convidados, verificando que
Chinchine era a alma da conversa, aproximaram-se para ouvir. Berg, que não dava
nem pela zombaria nem pela frieza que acolhiam as suas considerações,
continuava a historiar que, graças à sua passagem pela Guarda, já ganhara um
número sobre os seus camaradas de promoção; que, em tempo de guerra, um
comandante de esquadrão pode morrer e que ele, na sua qualidade de mais
antigo, muito facilmente poderia vir a substitui-lo; que no seu regimento toda a
gente o adorava, e que o pai estava muito contente com ele. Berg deliciava-se
claramente com todas estas revelações e parecia não passar-lhe sequer pela
cabeça que os demais pudessem ter também os seus interesses. A verdade, porém,
é que tudo quanto ele dizia tinha um ar tão decente e tão gracioso, era tamanha a
candura do seu egoísmo juvenil que os seus interlocutores se sentiam desarmados.
— Bom, bom, meu filho, garanto-lhe que tanto na infantaria como na cavalaria,
seja onde for, o seu futuro está garantido, isso prometo-lhe eu — disse Chinchine,
batendo-lhe nas costas e erguendo-se da otomana,
Berg sorriu com um ar feliz. O conde, e com ele os seus hóspedes, penetraram
no salão.
Estava-se naquele momento que antecede os jantares de cerimónia em que os
convidados, à espera da hora dos zakusski, não se embrenham em grandes
conversas, sentindo-se obrigados a agitar-se e a não estarem calados, para assim
darem a impressão de não terem pressa de ir para a mesa. Os donos da casa
lançavam, de vez em quando, o seu olhar para a porta, e entreolhavam-se depois.Por sua vez, os convidados procuravam discernir nesses olhares quem se
aguardava e o que ainda se aguardava: seria alguma importante pessoa de família
retardatária ou alguma iguaria que ainda não estivesse pronta?
Pedro chegara um pouco antes de começar o jantar e, desajeitado, foi sentar-
se, no meio do salão, na primeira cadeira que se lhe deparou, embaraçando o
caminho a toda a gente. A condessa quis obrigá-lo a falar, mas ele lançou um olhar
ingénuo em tomo de si por detrás das lentes, como se procurasse alguém, e não
respondeu às suas investidas senão por monossílabos. Era incomodativo e só ele
não compreendia que o estava a ser. A maior parte dos convidados, que tinha
sabido da sua história com o urso, observava, curiosamente, aquele rapagão,
corpulento e pacífico, perguntando cada um a si mesmo como é que um simplório
daqueles, gordo e modesto, podia ter sido o autor da proeza em que um polícia se
vira envolvido.
— Só agora chegou? — inquiriu a condessa.
— Sim, minha senhora — respondeu ele, distraidamente.
— Não viu ainda meu marido?
— Não, minha senhora. — Pôs— se a rir sem saber porquê.
— Ouvi dizer que esteve há pouco tempo em Paris? É interessante, não é?
— Muito interessante.
A condessa trocou um olhar com Ana Mikailovna, que percebeu aquela pedir-
lhe que tomasse conta do rapaz. Sentando-se junto dele, pôs-se a falar-lhe do pai.
Mas ele, como acontecera com a condessa, apenas lhe respondia por monossílabos.
Os convidados estavam muito ocupados. Ouviam-se fragmentos de frases: «Os
Razumovski...», «Foi encantador...», «É muita bondade da sua parte...», «A
condessa Apraksine». A condessa levantou-se e entrou no grande salão.
— Maria Dmitrievna? — ouviu-se perguntar.
— É, é ela mesma — respondeu uma grossa voz de mulher, e nesse mesmo
momento Maria Dmitrievna entrava na sala.
Todas as raparigas, e até as senhoras, à excepção das mais idosas, se
levantaram. Maria Dmitrievna deteve-se no limiar da porta. Grande e maciça, a
cabeça erguida, onde os caracóis brancos mostravam bem rondar ela a casa dos
cinquenta, envolveu num olhar toda a assembleia, e, como se quisesse arregaçá-
las, arranjou, sem pressa, as largas mangas do seu vestido. Maria Dmitrievna
exprimia-se sempre em russo.— As minhas felicitações à festejada e aos seus filhos — disse na sua voz alta e
grave, que dominava todos os demais ruídos. E tu, velho pecador — acrescentou,
dirigindo-se ao conde, que lhe beijava a mão. — Hem! Aborreces-te em Moscovo?
Não se pode arranjar aqui uma boa caçada? Nada a fazer, meu velho, enquanto
estes pintainhos não crescerem... — E apontava para as filhas do conde. — Quer
queiras quer não, tens de lhes arranjar casamento.
— Então, meti cossaco! (Chamava sempre a Natacha meu cossaco.) — Acariciou
com a mão Natacha, que se aproximou, para lha beijar com um ar desembaraçado
e alegre.— Bem sei que és uma peste, mas eu gosto de ti.
Retirou de uma enorme saca uns brincos de âmbar, em forma de pêra, e,
dando-os a Natacha, radiante com o seu aniversário e rubra de satisfação, voltou-
lhe instantaneamente as costas para dirigir-se a Pedro.
— Eh, eh!, meu caro amigo!, vem cá — disse ela numa voz que procurava
tornar suave e delicada.— Vem cá, meu caro...
E arregaçou ainda mais as mangas do vestido num ar terrível. Pedro
aproximou-se, olhando-a com candura através das lentes das suas lunetas.
— Aproxima-te, aproxima-te, meu caro! Mesmo a teu pai só eu era capaz de
lhe dizer— a verdade, quando ele estava disposto a ouvi-la, e Deus queira que tu,
tu também a entendas,
Calou-se. Todos se calaram igualmente; aguardavam o que ia acontecer,
sentindo que aquilo não passava de preâmbulo.
— Um lindo menino, não há dúvida! Um lindo menino!... O pai no seu leito de
agonia, e ele a fazer loucuras, a obrigar um polícia a andar a cavalo num urso. É
uma vergonha, meu filho, uma vergonha! Farias bem melhor se fosses para a
guerra.
Voltou-lhe as costas e deu a mão ao conde, que mal podia suster o riso.
— Bom, suponho que são horas de irmos para a mesa — concluiu Maria
Dmitrievna.
O conde e Maria Dmitrievna abriram a marcha atrás deles seguia a condessa,
acompanhada do coronel de hússares, pessoa de acarinhar, porque era na sua
companhia que Nicolau regressava ao seu regimento. Ana Mikailovna ia pelo
braço de Chinchine. Berg ofereceu o dele a Vera. Júlia Karaguine, toda sorridente,
acompanhava Nicolau. Os outros pares vinham depois, estendendo-se pelo salão
além, e atrás de todos, um pouco à parte, as crianças, os preceptores e asgovernantas. Os lacaios deram-se pressa, houve um rumor de cadeiras e uma
orquestra principiou a tocar no momento em que os convivas se sentavam.
As notas da orquestra particular do conde misturavam-se ao tilintar das facas
e dos garfos, ao ruído das conversas, às idas e vindas discretas dos criados. À
cabeceira da mesa sentava-se a condessa, dando a direita a Maria Dmitrievna, e a
esquerda a Ana Mikailovna e às demais senhoras. Na outra cabeceira estava o
conde, que tinha à sua esquerda o coronel de hússares e à direita Chinchine e
outros convidados masculinos. De um dos lados da grande mesa ficava a mocidade
já crescida: Verá, ao lado de Berg. Pedro, com Bóris; do outro lado, as crianças, os
preceptores, as governantas. O conde via a mulher, com a sua touca alta, de fitas
azuis, através dos cristais das garrafas e das taças cheias de fruta, e ia enchendo
os copos dos vizinhos, sem esquecer o seu próprio. A condessa, igualmente oculta
por detrás dos ananases, sem descuidar dos seus deveres de dona de casa, trocava
a sua piscadela de olhos com o marido, cujas calvície e, face rubicunda lhe
pareciam particularmente vermelhas em contraste com o cabelo branco. No lado
das senhoras havia uma vozearia bem ritmada; nos dos homens, as vozes iam-se
tornando cada vez mais ruidosas, principalmente a do coronel de hússares, que,
cada vez mais corado, tanto comia e tão bem que o conde o exibia como exemplo
aos demais convidados. Berg, com um enternecido sorriso, falava a Vera do amor,
esse sentimento não deste mundo, mas do céu. Bóris ia dizendo ao seu novo amigo
Pedro o nome dos convivas, enquanto trocava olhares com Natacha, sentada
diante dele. Pedro falava pouco, examinando todas estas caras novas, e comia
abundantemente. Desde as duas qualidades de sopa, de que ele preferiu a de
tartaruga, e dos kulebiaks (Espécie de tartaruga cozida. (N, dos T), até às
galinholas, de todos os pratos e de todos os vinhos que o chefe de mesa, com a
garrafa envolta num guardanapo, parecia extrair misteriosamente do ombro do
seu vizinho de mesa, murmurando: «Madeira seco», «Húngaro» ou «Vinho do
Reno», de tudo se serviu. Pedro pegava no primeiro dos copos que lhe vinham à
mão, de entre os quatro ornados com o monograma do conde, em fila diante de
cada talher, e despejava-o, gulosamente, aumentando, de momento a momento,
de afectuosidade para com os seus vizinhos de mesa. Diante dele. Natacha olhava
para Bóris como as garotas de treze anos costumam olhar para os rapazes que
acabam de as beijar e de quem elas se julgam apaixonadas. Por vezes até o
próprio Pedro recebia dela um olhar desse género, e esse olhar de raparigarisonha e animada dava-lhe a ele vontade de rir sem que soubesse porquê.
Nicolau estava longe de Sónia, junto de Júlia Karaguine, e com ela se
entretinha a conversar com o mesmo sorriso constrangido. Sónia sorria para
todos, mas a verdade era estar visivelmente consumida de ciúme: ora
empalidecia, ora corava, fazendo o possível para conseguir perceber o que Nicolau
e Júlia estavam dizendo. A preceptora lançava em tomo de si olhares inquietos,
pronta a cair a fundo sobre o primeiro que se lembrasse de se meter com as
crianças. O preceptor alemão procurava gravar na memória toda a espécie de
pratos, de sobremesas e de vinhos que iam sendo servidos para depois poder falar
em tudo isso pormenorizadamente na carta que enviaria para a Alemanha. Sentia-
se mortificado quando o chefe de mesa, com a, garrafa envolta no guardanapo,
passava por ele sem o servir. Franzia as sobrancelhas, fingindo não querer vinho,
mas a verdade é que se sentia ofendido por ninguém compreender que o vinho lhe
era necessário, não para o desalterar ou para lhe satisfazer a gula, mas apenas
pelo desejo bem mais sério de se instruir.
[XIX]
No sector dos homens a conversa ia-se animando cada vez mais. O coronel
contava que o manifesto da declaração de guerra já era conhecido em Petersburgo
e que um exemplar, que ele próprio vira, fora expedido pelo correio ao
comandante-chefe.
— E por que diabo é que nós havemos de declarar guerra a Bonaparte? —
disse Chinchine.— Ele já abateu as fumaças à Áustria. Receio que tenha chegado
agora a nossa vez.
O coronel era um alemão sólido, de grande estatura, aspecto sanguíneo, sem
dúvida bom militar e bom patriota. As palavras de Chinchine magoaram-no.
— Porquê, meu caro senhor? — tornou ele, com o seu sotaque estrangeiro —
Porquê? Aí está o que o imperador sabe muitíssimo bem. No seu manifesto, lá diz
que não pode continuar indiferente aos perigos que ameaçam a Rússia e que a
segurança do império, a sua dignidade e a santidade das alianças...
Acentuou particularmente esta última palavra, como se nela estivesse a chavedo problema.
E com a sua impecável memória de personalidade oficial repetiu as palavras do
princípio do manifesto: «E o desejo do imperador, o seu único e invariável
objectivo — que é o restabelecimento da paz na Europa assente em bases sólidas
—, decidiram-no a dar ordens a uma parte do exército para atravessar a fronteira
e a realizar esta nova aliança para dar cumprimento aos seus objectivos.»
— E aqui tem porquê, meu caro senhor! — concluiu ele, levando o copo à boca
cheio de compunção, enquanto com os olhos pedia a aprovação do conde.
— Conhece o provérbio: «Erema. Erema, melhor era que ficasses em casa a fiar
a lã»? (Provérbio russo, que quer dizer que o melhor é não nos metermos na vida
alheia, (N, dos T.) — disse Chinchine, franzindo as sobrancelhas e sorrindo. — Isso
calha mesmo bem. Suvorov já foi apanhado e batido em toda a linha. E onde estão
os nossos Suvorovs hoje em dia? Dê-me licença que lhe pergunte.— Chinchine
estava sempre a transitar do russo para o francês.
— Temos de nos bater até à última gota de sangue — disse o coronel,
deixando cair a mão em cima da mesa — e morrer pelo nosso imperador. E assim
deve ser. Mas nada de raciocínios, raciocinar o menos possível. — Engrossou a voz,
especialmente ao pronunciar a palavra menos, e voltando-se de novo para o
conde.— É assim que nós, velhos hússares, encaramos as coisas em última
instância. E o senhor, que pensa o senhor disto, jovem hússar? — prosseguiu,
dirigindo-se a Nicolau, que, ao perceber que se falava da guerra, esquecera a
interlocutora, todo ouvidos.
— Penso exactamente da mesma maneira — replicou Nicolau, que se
entusiasmou e se pôs a mexer no prato e a deslocar os copos de forma tão brusca e
incoerente que dir-se-ia correr naquele momento um grande perigo... Estou
convencido de que os Russos só têm duas soluções: vencer ou morrer — continuou
com o sentimento, em que todos os outros comungavam, de que aquilo mesmo,
que já fora dito, ele o estava a exprimir por palavras demasiado enfáticas e
pomposas, e isso lhe causava uma espécie de embaraço.
— É muito bonito o que acaba de dizer — observou Júlia, que estava sentada a
seu lado.
Sónia pôs-se a tremer e corou até às orelhas. Até mesmo a nuca e os ombros
se lhe ruborizaram ao ouvir Nicolau falar assim. Pedro prestara atenção às
considerações do coronel, e aprovava-as com a cabeça.— Ora aí está uma coisa acertada — observou.
— É verdade, um autêntico hússar, meu rapaz — exclamou ainda o coronel,
batendo de novo na mesa.
— Que barulho é esse que vocês para aí estão a fazer? — perguntou, do outro
lado da mesa, a voz grave de Maria Dmitrievna. — Que estás tu a bater na mesa?
— disse ela ao hússar. Contra quem é que estás tão exaltado? Até parece que tens
diante de ti os Franceses.
— O que eu estou a dizer é o que é — retrucou o coronel, sorrindo.
— É verdade, um autêntico hússar, meu rapaz! — exclamou ainda — Tenho um
filho que vai para a guerra. Maria Dmitrievna; sim, vai para a guerra.
— E eu, que tenho quatro filhos no exército, não estou a chorar por isso. Deus
é grande. Podemos morrer tranquilamente na nossa cama e nada nos acontecer no
campo de batalha — disse Maria Dmitrievna, elevando a sua grossa voz, que
chegava, sem esforço, de extremo a extremo da mesa.
— E é verdade.
E a conversa lá continuou, a das senhoras a um lado, a dos homens a outro.
— Aposto que não és capaz de perguntar — disse a Natacha o irmãozito. —
Aposto!
— Vais ver — respondeu Natacha.
O rosto animou-se-lhe, repentinamente de uma audácia rebelde e resoluta.
Levantou-se, fez um sinal com os olhos a Pedro, que estava diante dela,
convidando-o a escutar, e dirigiu-se à mãe:
— Mãe! — lançou ela, à toa, na sua clara voz infantil.
— Que aconteceu? — perguntou a condessa assustada. Mas, ao ver no rosto
da filha que se tratava de uma brincadeira, ameaçou-a severamente com a mão,
enquanto lhe mostrava uma expressão descontente.
As conversas interromperam-se.
— Mãe! Que doce vamos ter? — interrogou a vozita de Natacha,
irreflectidamente e num tom ainda mais decidido.
A condessa quis franzir as sobrancelhas, mas debalde. Maria Dmitrievna
ameaçou-a com o seu dedo grosso.
— Eh, cossaco! — gritou-lhe.
A maior parte dos convidados observava os pais de Natacha para ver como
eles iam encarar aquela aventura.— Espera — disse a condessa.
— Mãe! Que doce vamos ter? — voltou Natacha, atrevidamente e no tom de
uma criança caprichosa, certa de antemão de que a sua audácia não teria
consequências.
Sónia e o gordo Pedro riam perdidamente.
— Como vês, perguntei — dizia ela, baixo, ao irmãozito e a Pedro, a quem
voltou a lançar uma olhadela.
— Há gelado, mas tu não comes — disse Maria Dmitrievna.
Natacha viu que nada tinha a recear e, de resto, a própria Maria Dmitrievna
não lhe metia medo algum.
— Maria Dmitrievna! Gelado de quê? Não gosto de gelados, de nata.
— É de cenoura.
— Não é verdade. De quê? Maria Dmitrievna, de quê? — quase gritou. —
Quero saber que gelado é!
Maria Dmitrievna e a condessa romperam a rir e, à imitação deles, todos os
demais. Riam-se não da resposta de Maria Dmitrievna, mas da audaciosa
obstinação e da presença de espírito daquela garota que sabia defrontá-la e
ousava fazê-lo.
Natacha apenas se submeteu quando lhe disseram que, o gelado era de
ananás. Antes do gelado foi servido o champanhe. A música ressoou de novo, o
conde trocou um beijo com a sua condessinha e os convidados ergueram-se para
felicitá-la. Os copos tocaram-se, ao longo da mesa, com o do conde, com o das
crianças e entre si. Os criados de novo principiaram a agitar-se, ouviu-se o rumor
das cadeiras e na mesma ordem de entrada, apenas com as faces mais vermelhas,
os convidados voltaram a dar entrada no salão e no gabinete do conde.
[XX]
Prepararam-se as mesas de jogo, organizaram-se os parceiros para o boston e
toda a gente se espalhou pelos dois salões, a sala do divã e a biblioteca.
O conde, com as suas cartas em leque, a custo se mantinha, resistindo à
tentação de dormir, como de costume, depois do jantar, e sorria a toda a gente. Amocidade, arrastada pela condessa, reunia-se em volta do cravo e da harpa. Júlia
foi a primeira, instada por todos, a tocar umas variações na harpa, e ela e as
demais raparigas pediram a Natacha e a Nicolau, de quem todos gabavam o
talento musical, que cantassem qualquer coisa. Natacha, a quem tratavam como
uma pessoa crescida, sentia-se, claro está, muito orgulhosa com isso, mas, ao
mesmo tempo, tomava-a uma grande timidez.
— Que havemos nós de cantar? — perguntou.
— A Fonte — replicou Nicolau.
— Então, depressa, andem. Bóris, vem cá. Onde está a Sónia?
Natacha olhou à sua roda, e, ao ver que a amiga não estava presente, correu a
buscá-la.
Tendo-a procurado no seu próprio quarto e não a encontrando aí. Natacha foi
ver se ela estaria no quarto das crianças e também ali a não encontrou. Pensou
então que devia estar no corredor, sentada na arca. A arca do corredor era o local
onde se derramavam as dores de toda a jovem geração feminina da casa Rostov.
E, efectivamente. Sónia lá estava, com o seu vestidinho cor-de-rosa vaporoso, que
amarrotava entre os dedos, estendida na arca, o rosto escondido no sujo edredão
listado da ama, e a cara nas mãos, chorando, sacudida por grandes soluços que lhe
faziam estremecer os ombrozinhos decotados. Natacha, que durante todo o dia
tinha andado com uma expressão festiva, mudou, repentinamente, de parecer: os
olhos tornaram-se-lhe fixos, um frémito lhe percorreu o colo, os cantos da boca
descaíram-lhe.
— Sónia! Que tens tu?... Ah! Ah!, que te aconteceu?...
E Natacha, fazendo um momo com a sua grande boca, que logo a tomou feia,
pôs-se a soluçar, sem razão, apenas por ver que Sónia chorava. Sónia queria
levantar a cabeça, queria responder-lhe, mas não pôde e ainda escondeu mais
profundamente o rosto. Envolvendo a amiga nos seus braços, sentada sobre o
edredão azul. Natacha chorava, continuava a chorar. Por fim, tendo Sónia
serenado um pouco, ergueu-se, pôs-se a enxugar as lágrimas e abriu-se em
confidências.
— O Nicolau vai partir dentro de oito dias.., foi chamado por um papel.., ele é
que me disse... E mesmo assim eu não choraria... — Mostrou um bilhete que tinha
apertado na mão e em que estavam escritos versos de Nicolau. — Não choraria;
mas tu não podes imaginar, ninguém pode imaginar.., o bom coração que ele tem.E de novo se pôs a chorar pensando no bom coração de Nicolau.
— Tu, tu és feliz — Não tenho ciúmes... Gosto muito de ti, e Bóris também —
continuou ela, ganhando coragem pouco a pouco. — Que gentil que ele é.., e para
vocês não há obstáculos. Mas o Nicolau é meu primo... É preciso que o próprio
metropolita.., e mesmo assim não pode ser. E depois, se disserem alguma coisa à
mãe... — Sónia considerava a condessa sua mãe e como tal a tratava-.., ela vai
dizer que eu prejudico a carreira do Nicolau, que não tenho coração, que sou uma
ingrata, e, no entanto, tão certo como Deus estar nos Céus... — Persignou-se. Eu
gosto tanto dele, dele e de todos vocês também... Só a Vera... E porquê? Que lhe
fiz eu? Estou-vos tão reconhecida que daria de bom grado tudo, e a verdade é que
não tenho nada para dar.
Sónia não pôde dizer mais, e de novo escondeu a cabeça nas mãos e no
edredão. Natacha pôs-se a consolá-la, mas via-se, pela sua atitude, que ela
compreendia a gravidade do sofrimento da sua amiga.
— Sónia! — exclamou ela, de repente, como se adivinhasse a verdadeira razão
do sofrimento da prima — É verdade? A Vera falou contigo depois do jantar? É
verdade?
— Estes versos foi o Nicolau quem os escreveu; eu copiei outros. Ela encontrou-
os em cima da, minha mesa e disse que havia de os mostrar à mãe, e disse
também que eu era uma ingrata, que a mãe nunca o deixaria casar comigo e que
ele havia de casar com a Júlia. Não viste como ele esteve ao lado dela todo e dia...
Natacha? Porque é que há-de ser assim?
E de novo chorou mais amargamente do que nunca. Natacha obrigou-a a
levantar-se, abraçou-se a ela, e sorrindo por entre as lágrimas procurou consolá-la,
— Não acredites. Sónia, minha, querida, não acredites no que ela diz. Lembras-
te do que nós dizíamos, o Nicolau e nós as duas, na sala do divã? Lembras-te,
depois do jantar? Como sabes, combinámos como tudo se havia de passar. Já me
não lembro dos pormenores, mas deves lembrar-te como tudo se arranjava, como
tudo era fácil. O irmão do tio Chinchine, por exemplo, casou com a prima em
primeiro grau, e nós somos apenas segundos primos. E o Bóris dizia que era muito
fácil. Tu bem sabes que eu lhe contei tudo. E ele é tão inteligente e tão gentil!
Deixa-te disso. Sónia, não chores mais, minha queridinha, minha Sóniazinha. — E
pôs-se a abraçá-la muito risonha — A Vera é má, não queiras saber dela. Tudo se
há-de arranjar, e ela não vai dizer nada à mãe. O Nicolau te há-de dizer que nãopensa na Júlia.
E beijou-a na testa. Sónia parecia outra, a gatinha que ela era reanimou-se, os
olhos faiscararn-lhe, dir-se-ia pronta a dar ao rabo, a saltar sobre as suas patinhas
elásticas, a correr atrás do novelo de lã, coisas próprias da sua natureza.
— Achas que sim? Realmente! Juras? — disse ela, recompondo com vivacidade
o vestido e os cabelos.
— Podes estar certa! — respondeu Natacha, ao mesmo tempo que lhe ajeitava
na, trança uma mecha de cabelos rebeldes. Ambas desataram a rir.
— E agora vamos cantar A Fonte.
— Vamos.
— Viste aquele rapaz gordo, o Pedro, que estava sentado diante de mim? Que
patusco que ele é! — disse Natacha, de súbito, detendo-se. — O que eu me
diverti!
E Natacha despediu, numa carreira, corredor além.
A Sónia, depois de sacudir as penas do edredão que lhe tinham ficado
agarradas ao vestido e de esconder no colo magricela os versos do jovem Nicolau,
reanimou-se-lhe a expressão, e lá foi correndo também ligeira e jovial, atrás de
Natacha, na direcção da sala do divã. A pedido dos seus convidados, a gente nova
cantou o quarteto de A Fonte, que foi recebido com muito entusiasmo. Depois
Nicolau entoou uma romança que aprendera havia pouco:
Por uma linda noite, à luz do luar,
Que ventura poder dizer-te a ti somente
Que ainda há alguém cá neste mundo
Que não pensa nem sonha senão contigo!
Que os seus dedos tão bonitos,
Errantes por sobre as cordas da harpa de oiro,
Em apaixonadas ondas de harmonia
Te chame, te chame ainda!
Ainda um dia, mais dois dias, e o Paraíso abrir-se-à...
Mas, ai de nós, a tua amiga, já lá não a encontrarás...
Ainda as últimas palavras da canção não tinham findado, já a juventude se
preparava para o baile e a orquestra lançava as primeiras notas no meio do ruídode pés e de tossezinhas. Pedro estava no salão, onde Chinchine se lançara numa
discussão política com aquele rapaz chegado havia pouco do estrangeiro, discussão
essa que enfadava imenso o próprio Pedro, e em que tomavam parte muitos
outros convidados. Quando a música principiou. Natacha entrou na sala e,
dirigindo-se imediatamente a Pedro, disse-lhe, rindo e corando ao mesmo tempo:
— A mãe disse-me que o convidasse para dançar.
— Tenho medo de fazer confusão com os passos — murmurou Pedro —, mas se
quiser ter a bondade de ser minha professora...
E, inclinando-se profundamente, deu a larga mão à esbelta rapariguinha.
Enquanto os pares se organizavam e os músicos afinavam os seus
instrumentos. Pedro conservou-se sentado ao lado da sua pequena dama. Natacha
sentia-se inteiramente feliz: ia dançar com uma pessoa importante, que voltava de
o estrangeiro. E ela lá estava, exibindo-se diante de toda a gente, pronta a
conversar, como se fosse uma pessoa crescida, e exactamente como ele. Tinha um
leque que lhe havia emprestado urna amiga. E tornando a pose mais conforme ao
código mundano — e só Deus sabe onde e quando ela tinha aprendido tudo aquilo
—, abanava-se e sorria, com um ar rebelde, enquanto conversava com o
companheiro.
— Que rapariga! Olhe para ela — disse a velha condessa, atravessando o
grande salão e apontando para Natacha.
Natacha corou e pôs-se a rir.
— Porquê, mãe? Porque é que se está a rir? Que tem isso de extraordinário?
No meio da terceira escocesa, ouviu-se um rumor de cadeiras no salão onde o
conde e Maria Dmitrievna estavam a jogar, e a maior parte dos convidados
importantes e das pessoas de idade, para estenderem as pernas, meteram na
algibeira carteiras e bolsinhas de dinheiro e vieram postar-se à porta do grande
salão. A frente estavam Maria Dmitrievna e o conde, ambos muito bem dispostos.
O conde, mimando uma cortesia joco-séria, à imitação do que é de uso nos bailes,
ofereceu a mão, recurvando o braço, à, sua dama. Depois, soergueu o busto e o
rosto iluminou-se-lhe com um sorriso agarotado e amável, e, assim que findaram
as últimas marcas da escocesa, bateu as palmas e gritou para a orquestra,
dirigindo-se ao primeiro violino:
— Semione! Sabes tocar o Danilo Cooper?
Era a dança favorita do conde, que ele dançara na juventude. Danilo Cooperera especialmente uma marca da inglesa.
— Olhem para o pai! — gritou Natacha no meio da sala.
Tinha-se esquecido por completo de que estava num baile como uma pessoa
crescida. Dobrou-se em duas, a cabecinha coberta de caracóis junto aos joelhos, e
rompeu a rir tão cristalinamente que toda a casa ficou cheia do seu riso alegre.
E com efeito toda a gente olhava, divertida, aquele velho jovial que ao lado da
sua venerável dama, a quem ele dava pelo ombro, arqueava os braços para
marear o compasso, descaía os ombros, encurvava as pernas, sapateava
ligeiramente, e, com um sorriso cada vez mais franco no seu rosto cheio, mais não
fazia que preparar os espectadores para o que ia passar-se. Assim que ressoaram
os compassos alegres e excitantes do Danilo Cooper, muito parecidos com os do
ultra-jovial trepak russo, todas as portas da sala se encheram de criados risonhos
— os homens a um lado, as mulheres a outro— que acorriam para ver dançar o
amo.
— Ah! O nosso paizinho! Que águia que ele é! — exclamou a ama, em voz alta,
a uma das portas.
O conde dançava muito bem e sabia o que estava a fazer, mas a sua dama,
essa, não percebia nada e recusava-se a dançar correctamente. A sua corpulenta
figura ali estava toda direita, os grandes braços bamboleando, já sem bolsinha,
que confiara à condessa. Apenas o seu belo e severo rosto tomava parte na dança.
Todo o movimento que animava a redonda silhueta do conde se lhe concentrava a
ela na fisionomia, cada vez mais risonha, e no narizinho arrebitado. Se o conde,
cada vez mais excitado, era a surpresa de todos, graças à ligeireza e à agilidade
nas piruetas e nos rodopios a que se atreviam as suas pernas já pouco firmes.
Maria Dmitrievna, por menos que a isso se desse, mercê dos movimentos dos
ombros ou dos braços no curso das suas reviravoltas ou no sapateado, não
produzia menos efeito sobre os assistentes, que muito apreciavam naquela mulher
o contraste entre a sua desenvoltura e a sua habitual severidade. A dança cada
vez estava mais animada. Os pares frente a frente não conseguiam chamar para
eles as atenções ou nem sequer com isso se importavam. Toda a gente seguia com
o olhar o conde e Maria Dmitrievna. Natacha puxava pela manga a toda a gente,
embora ninguém tirasse os olhos dos dois dançarinos, pedindo que olhassem para
o pai. Nos intervalos, o conde, enquanto tomava fôlego, acenava aos músicos e
pedia-lhes que acelerassem o ritmo. Quando mais rápido era o compasso, maisdepressa girava o conde em tomo do par, ora nos bicos dos pés ora nos
calcanhares, e por fim, no momento em que ia reconduzi-lo, esboçou um último
passo: levantou a perna cheia à retaguarda, inclinou, com um ar radiante, a
cabeça perlada de suor, descrevendo, por fim, com a mão direita um largo círculo
no meio de uma tempestade de aplausos e de gargalhadas, especialmente de
Natacha. Os dois dançarinos detiveram-se, anelantes, enxugando o suor com seus
lenços de cambraia.
— Ora aqui tens como se dançava no nosso tempo, minha querida! — exclamou
o conde.
— Bravo! Danilo Cooper! — replicou Maria Dmitrievna, respirando
estrepitosamente e arregaçando as mangas do vestido.
[XXI]
Quando em casa dos Rostov se dançava a sexta inglesa ao som de uma
orquestra, que já desafinava, tal a fadiga dos músicos, e os criados e cozinheiros,
igualmente extenuados, se azafamavam nos preparativos da ceia, era o conde
Bezukov acometido do seu sexto ataque. Os médicos tinham declarado não haver
esperanças de salvação. Confessaram o doente, já em coma, ministraram-lhe a
comunhão, fizeram os preparativos para a extrema-unção e a casa assumiu o
aspecto habitual em tais circunstâncias, com idas e vindas em todos os sentidos. Cá
fora, ao portão, juntavam-se, escondendo-se à chegada das carruagens, os agentes
das casas funerárias, na esperança de bom negócio. O governador militar da praça
de Moscovo, que a cada momento enviava os seus ajudantes-de-campo a saber
novas do estado de saúde do doente, veio pessoalmente, nessa noite, despedir-se
daquela famosa personagem do tempo de Catarina: o conde Bezukov.
A sumptuosa sala de visitas estava cheia. Toda a gente se levantou
respeitosamente quando o governador militar, que se demorara quase meia hora
à cabeceira do doente, saiu do quarto e atravessou a dependência, muito
apressado, retribuindo, negligentemente, os cumprimentos, sempre seguido pelos
olhos dos médicos, dos sacerdotes e da parentela do conde. O príncipe Vassili, que
naqueles últimos dias tinha empalidecido e afilara, acompanhava o governadormilitar, segredando-lhe, por vezes, qualquer coisa.
Quando voltou de o acompanhar, foi sentar-se sozinho no salão, de pernas
cruzadas, cotovelos sobre os joelhos e cabeça nas mãos. Alguns instantes depois
levantou-se, e a passo rápido, contrariamente aos seus hábitos, olhando em tomo
de si como que assustado, seguiu ao longo do grande corredor que conduzia às
dependências da retaguarda, direito aos aposentos da mais velha das princesas.
As pessoas que se encontravam numa sala quase às escuras falavam entre si,
de longe em longe, em voz muito baixa, calavam-se a cada momento, e dirigiam
olhares interrogativos e de quem espera qualquer coisa para a porta que conduzia
ao quarto do moribundo, a qual rangia ligeiramente sempre que alguém entrava
ou saía.
— Todo o homem tem os seus dias contados, e ninguém pode fugir daí — dizia
um eclesiástico velhinho à senhora que parecia não ter a tal respeito qualquer
ideia precisa.
— Não será já tarde de mais para a extrema-unção? — observou,
acrescentando a estas palavras um título eclesiástico, a senhora que parecia não
ter a tal respeito qualquer ideia precisa.
— É um grande sacramento, minha senhora — replicou o sacerdote, passando
a mão pela cabeça calva, onde só havia já algumas, poucas, farripas de cabelos
grisalhos cuidadosamente penteadas.
— Quem é? É o próprio governador militar? — perguntava-se a outro canto da
sala. — Que novo que ele é!...
— Quem há-de dizer que tem perto de setenta anos! Mas parece que o conde
já não conhece as pessoas. Dizem que lhe vão dar a extrema-unção.
— Uma pessoa conheci eu a quem ministraram sete vezes a extrema-unção,
A segunda das jovens princesas, que acabava de sair do quarto do doente, os
olhos cheios de lágrimas, foi sentar-se ao lado do Dr. Lorrain, que se colocara numa
posição que lhe ficava bem, debaixo do retrato de Catarina, encostado a uma
mesa.
— Muito bonito — dizia ele, referindo-se ao tempo —, muito bonito, princesa,
e depois, em Moscovo, é como se estivéssemos no campo.
— Não é verdade? — respondeu a princesa, suspirando. Acha então que se lhe
pode dar de beber?
Pareceu reflectir.— Tomou o remédio?
— Tomou.
O médico consultou o seu livro de notas.
— Tome um copo de água fervida e deite-lhe dentro uma pitada — e com os
dedos finos fingiu o gesto — de cremortartari.
— Não se conhece nenhum caso — dizia um médico alemão a um ajudante-de-
campo — em que se fique vivo depois do terceiro ataque.
— Mas que boa saúde ele tinha! — disse o oficial. — E quem será o herdeiro
de todas estas riquezas? — acrescentou, em voz muito baixa.
— Não hão-de faltar pretendentes — retorquiu o alemão sorrindo.
Todos os olhares voltaram a fixar-se na porta. A porta rangeu, e a jovem
princesa, que tinha preparado o remédio prescrito por Lorrain, foi levá-lo ao
doente. O médico alemão aproximou-se do médico francês.
— Acha que ele se vai aguentar até amanhã de manhã? — perguntou em
francês, com um pronunciado sotaque.
Lorrain, de lábios apertados, fez com o dedo polegar um gesto negativo diante
do nariz.
— Esta noite, o mais tardar — murmurou ele, em voz baixa, sorrindo com
prudência, orgulhoso de tão claramente ter diagnosticado o estado do doente. E
afastou-se.
Enquanto isto se passava, o príncipe Vassili abria a porta do quarto da
princesa.
Era quase noite lá dentro; apenas as duas lamparinas em frente dos ícones o
iluminavam. Cheirava bem a incenso e a flores. O mobiliário do quarto era todo
em miniatura: pequeninos armários, pequeninas estantes e pequeninas mesas. Um
biombo ocultava as cobertas brancas de uma cama alta de penas. Um cãozinho
pôs-se a ladrar.
— Ah, é o senhor, meu primo?
A princesa levantou-se, alisando os cabelos, que usava sempre, e até naquele
momento, excessivamente repuxados, como se formassem uma peça única com o
casco da cabeça e andassem envernizados.
— Que foi? Que aconteceu? — perguntou ela. — Assustou-me. — Não
aconteceu nada. Sempre a mesma coisa. Vim apenas procurar-te para falarmos de
negócios. Katicha — disse o príncipe, sentando-se, com um ar lasso, na cadeira queela acabava de deixar devoluta.— Que quente que aqui está! Anda cá, senta-te.
Temos de conversar.
— Julguei que tinha acontecido alguma coisa — disse a princesa, e, com o seu
ar fechado e severo, sentou-se diante do príncipe, disposta a ouvi-lo. — Quis ver se
dormia um bocado, meu primo, mas não foi possível.
— Então, minha querida? — disse o príncipe, pegando-lhe na mão e puxando-a
para si, como era seu costume.
Era evidente que estas breves palavras significavam coisas que eles dois
compreendiam perfeitamente sem as dizer.
A princesa, do alto do seu busto seco e estreito, alto de mais para as suas
curtas pernas, olhava fixamente o príncipe sem qualquer aparente emoção, os
olhos cinzentos à flor da pele. Sacudiu a cabeça e lançou um olhar, acompanhado
de um suspiro, às imagens sagradas. O seu gesto tanto podia exprimir mágoa e
espírito de sacrifício como fadiga e a necessidade de descanso.
O príncipe Vassili interpretou-o como um sinal de cansaço.
— E supões tu — disse ele — que eu também não estou cansado? Estou
esfalfado como um cavalo de posta. Apesar disso, é absolutamente necessário que
eu tenha uma conversa contigo. Katicha, uma conversa muito importante.
O príncipe Vassili calou-se, e as suas duas faces, sucessivamente, foram
tomadas de um movimento nervoso que lhe dava um aspecto desagradável,
aspecto esse que ele nunca tinha quando conversava em sociedade. Também os
olhos não eram os seus olhos habituais: havia neles ora uma expressão escarninha
e cínica, ora uma expressão aterrorizada.
A princesa segurava com os braços secos e magros o cãozito que tinha nos
joelhos, enquanto fixava o príncipe atentamente. Via-se que ela estava disposta a
não ser a primeira a falar, ainda que tivesse de ficar calada até ao dia seguinte.
— Como vê, cara princesa e minha prima. Katerina Semionovna — prosseguiu
ele, não sem uma evidente luta interior, pensando no que ia dizer. — Em
momentos como este é preciso pensar em tudo. É preciso pensar no futuro, em si.
Quero-vos a todas como se vocês fossem minhas filhas, bem sabes.
A princesa continuava a fitá-lo, impassível e impenetrável.
— Numa palavra, eu também tenho de pensar ria minha família — continuou,
repelindo, de mau humor, a mesinha e sem olhar para ela.— Como sabes. Katicha,
vocês as três, as irmãs Mamontov, e minha mulher são as únicas herdeirasdirectas do conde. Bem sei, bem sei que te é penoso pensar nestas coisas e falar
nelas. A mim também me custa. Mas, minha amiga, estou quase com sessenta
anos e tenho de estar preparado para tudo. Sabes que mandei chamar o Pedro, e
que o próprio conde, apontando para o retrato dele, quis que lho trouxessem?
O príncipe Vassili interrogava-a com os olhos, mas não conseguia perceber se
ela estava a pensar no que ele acabava de dizer-lhe ou se apenas olhava para ele.
— Há só uma coisa que eu estou sempre a pedir a Deus, meu primo — replicou
ela — é que Deus o proteja e que faça com que a sua bela alma deixe em paz
este...
— Pois claro — prosseguiu o príncipe com impaciência, afagando a calvície e
puxando a si, colericamente, a mesinha que começara por repelir. — Mas o que é
certo.., o que é certo, o facto é que, como tu sabes, o conde, no Inverno passado,
redigiu um testamento pelo qual, em prejuízo dos seus herdeiros directos e de
todos nós, lega toda a sua fortuna ao Pedro.
— Sim, ele já fez vários testamentos — disse serenamente a princesa — Mas o
Pedro não pode herdar: é um filho ilegítimo.
— Minha querida — disse bruscamente o príncipe Vassili, puxando para si a
mesinha e falando com animação e volubilidade.— E se houvesse uma petição ao
imperador para a legitimação do Pedro? É evidente que em face dos serviços
prestados, o apelo do conde seria atendido...
A princesa teve um sorriso em que se deixava perceber que sabia muito mais
sobre o assunto que o seu interlocutor.
— Digo-te mais — continuou Vassili, pegando-lhe na mão — O apelo está feito,
embora não tenha sido enviado, e o imperador teve conhecimento do facto. Só
resta saber se esse apelo foi ou não anulado. Se o não foi, assim que tudo tenha
acabado — e soltou um suspiro, para deixar perceber o que queria dizer com
aquelas palavras— logo que os papéis do conde sejam conhecidos, tanto o
testamento como a carta serão transmitidos ao imperador, e o seu apelo será sem
dúvida alguma satisfeito. Pedro, na sua qualidade de filho legítimo, será o único
herdeiro.
— E a nossa parte? — disse a princesa, num tom irónico, como se tudo pudesse
acontecer menos isso.
— Mas, minha pobre Katicha, é claro como a luz do dia. Nessa altura será ele o
único herdeiro legítimo de toda a fortuna e vocês nada receberão. É preciso que tuprocures saber, minha querida, se o testamento e o apelo existem ou se foram
destruídos. E se por qualquer motivo foram esquecidos, é preciso que saibas onde
estão e descobri-los, pois...
— Ah! Isso agora é novidade! — interrompeu a princesa com um sorriso
sardónico e sem que a sua expressão se alterasse.— Eu sou mulher; na sua opinião,
todas as mulheres são estúpidas; mas o que eu muito bem sei é que um filho
ilegítimo não pode herdar... Um bastardo — acrescentou, pensando com esta
palavra demonstrar definitivamente ao príncipe que ele não tinha razão.
— Não há maneira de compreenderes. Katicha! Mas tu és inteligente. Como é
que tu não compreendes que se o conde pediu ao imperador que o autorizasse a
reconhecer o filho como legítimo. Pedro, nesse caso, deixa de ser o Pedro e passa a
ser o conde Bezukov, e pelo testamento é ele quem tem direito a tudo? Se o
testamento e a carta não foram destruídos, nada mais te restará além, da
consolação de teres sido virtuosa e tudo o que daí se entende. É certo e sabido,
— Sei perfeitamente que ele fez um testamento, mas também sei que esse
testamento não tem valor. Pelo que vejo, julga-me pateta, meu primo — disse a
princesa com esse ar que tomam as mulheres quando supõem ter dito qualquer
coisa de espirituoso ou de ofensivo.
— Minha querida princesa Katerina Semionovna — exclamou com impaciência
o príncipe Vassili —, eu não vim procurar-te para um duelo de palavras, mas na
intenção com que se visita uma parente, uma boa, excelente, uma verdadeira
parente, a fim de lhe falar dos seus interesses. Repito-te pela décima vez que se a
carta ao imperador e o testamento a favor de Pedro se encontram entre os papéis
do conde, nem tu nem as tuas irmãs, minha querida filha, herdarão seja o que for.
Se me não acreditas, acredita ao menos nas pessoas competentes. Acabo de falar
com Dmitri Onufreitch — o advogado da família — e ele disse-me a mesma coisa.
Houve, claramente, um mudança rápida na maneira de pensar da princesa. Se
a expressão dos olhos se lhe não alterou, os seus finos lábios empalideceram e
quando começou a falar a voz Passou-lhe por transições que nem ela própria
esperava.
— Pois muito bem — disse. — Nunca pretendi nada, e nada, pretendo,
Enxotou o cão do regaço e ajeitou as pregas do vestido.
— É assim que as pessoas reconhecem, é assim que testemunham a sua
gratidão àqueles que tudo sacrificaram por elas! — exclamou. — Muito bem!Excelente! Não preciso de nada, príncipe!
— Sim, mas tu não és a única. E as tuas irmãs? — volveu ele.
A princesa não o ouvia.
— Sim há muito tempo que eu sei isso, mas tinha-me esquecido que nesta casa,
não podia esperar outra coisa senão baixeza, duplicidade, inveja, intriga,
ingratidão, a mais negra ingratidão.
— Sabes ou não sabes onde está o testamento? — perguntou o príncipe Vassili
com o tremor das faces ainda mais acentuado.
— Sim, tenho sido uma parva, tenho tido confiança nas pessoas, gostei delas e
sacrifiquei-me por elas. Mas só triunfam os cobardes e os maus. Bem sei donde
vêm estas intrigas.
A princesa fez um movimento para se erguer, mas o príncipe reteve-a. Ela
dava a impressão de uma pessoa que perdeu subitamente todas as ilusões sobre
os outros seres. Lançou um olhar mau ao interlocutor.
— Ainda, estamos a tempo, minha amiga. Lembra-te. Katicha, de que tudo isto
foi feito de improviso, num momento de cólera, ou então doente, e que depois
tudo esqueceu. O nosso dever, minha querida, é reparar esta falta, suavizar-lhe os
últimos momentos, não permitindo que ele leve a cabo esta injustiça, de o não
deixar morrer com a ideia de que tomou alguém infeliz...
— Alguém que tudo sacrificou por ele — voltou a princesa, impaciente por se
levantar: mas o príncipe deteve-a. E isso é que ele nunca soube apreciar. Não, meu
primo — acrescentou, suspirando — isto leva-me, a pensar que neste triste mundo
ninguém pode esperar recompensa, que neste triste mundo não há honra nem
equidade. Neste mundo só a maldade e a mentira triunfam.
— Bom, vejamos, sossega. Eu conheço o teu excelente coração.
— Não, eu tenho mau coração.
— Eu conheço o teu coração — repetiu ele —, aprecio a tua amizade e gostaria
que tu tivesses a mesma opinião a meu respeito. Sossega, e sejamos razoáveis
enquanto é tempo: talvez vinte e quatro horas, uma hora talvez. Conta-me tudo
quanto sabes do testamento e principalmente diz-me se sabes onde ele está: tu
deves saber. Pegaremos nele imediatamente e leva-lo-emos ao conde. Ele com
certeza se esqueceu dele, e quererá destruí-lo. Tu sabes que o meu único desejo é
cumprir religiosamente a sua vontade; não é para outra coisa que estou aqui. Eu
não estou aqui senão para vos auxiliar, a vós e a ele.— Agora já sei tudo. Já sei donde partem as intrigas. Veio-o claramente —
disse a princesa.
— Não é disso que se trata, minha querida.
— A alma de tudo isto é a sua protegida, a sua querida princesa Drubetskaia.
Ana Mikailovna, que eu nem para criada de quarto quereria, essa horrível, essa
ignóbil mulher.
— Não percamos tempo.
— Oh, não me diga nada! No Inverno passado introduziu-se aqui em casa e
contou tantas coisas horríveis ao conde, tantas vilanias a nosso respeito, e
principalmente sobre a Sofia — não as posso repetir —, que ele ficou doente e
durante quinze dias não nos quis ver. Foi nessa altura, tenho a certeza, que o tio
redigiu esse sujo, esse infame papel. Mas eu supunha que não tinha importância.
— Ora aí está. Porque é que me não falaste logo nisso? — Está na pasta de
couro que tem debaixo da almofada. Agora compreendo — disse ela, sem
responder à pergunta do príncipe. — E se eu tenho qualquer pecado na
consciência, um grande pecado, é o ódio que essa miserável me inspira — gritou, e
tomou-se quase irreconhecível, — Que apareça outra vez por aí! Ajustarei contas
com ela. É uma questão de tempo.
[XXII]
Enquanto decorriam todas estas conversas na sala de visitas e nos aposentos
da princesa, uma carruagem com Pedro, enviada para o trazer, e Ana Mikailovna,
que entendera por bem acompanhá-lo, penetrava rio pátio da residência do conde
Bezukov. No momento em que o carro deslizava maciamente por cima da palha
estendida debaixo das janelas. Ana Mikailovna, que procurava consolar o
companheiro, verificou que ele adormecer,—, encolhido no seu canto e acordou-o.
Pedro, tendo voltado a si, apeou-se atrás de Ana Mikailovna, e só então se
lembrou da entrevista que ia ter com o pai moribundo. Tinha notado que a,
carruagem parara não junto da escadaria nobre, mas em frente da escada das
traseiras. No momento em que punha os pés no chão, dois homens com aspecto de
comerciantes acolheram-se apressadamente à sombra da parede.Enquanto se deteve. Pedro pôde ver na sombra, de cada lado da entrada,
outros homens do mesmo género. Mas nem Ana Mikailovna, o trintanário, ou o
cocheiro, que não podiam ter deixado de dar por eles, lhes prestaram a mais
pequena atenção, «Naturalmente, tem de ser assim», decidiu de si para consigo, e
lá foi na peugada da sua condutora. Ana Mikailovna, em passinhos rápidos, subia a
estreita escada de pedra, fracamente iluminada, chamando Pedro, que ficava para
trás: embora este não compreendesse porque lhe era absolutamente
indispensável apresentar-se junto do conde, e muito menos ainda porque tinha de
subir pela escada de serviço, a segurança e a pressa de Ana Mikailovna
persuadiram-no da urgência do que ia fazer.
A certa altura ia sendo derrubado por um grupo de homens, carregados com
uns baldes, cujas grossas botas ressoavam no chão. Mas eles encostaram-se à
parede para dar passagem aos visitantes sem mostrar qualquer surpresa.
— É este o caminho para os aposentos das princesas? — perguntou Ana
Mikailovna a um deles.
— É — replicou um dos lacaios, numa grossa voz atrevida, como se naquela
altura tudo fosse permitido — a porta à esquerda, minha senhora.
«Talvez que o conde não me tenha mandado chamar», pensou Pedro na altura
do patamar. «Era bem melhor eu ir para o meu quarto.»
Ana Mikailovna deteve-se, para que Pedro a pudesse alcançar.
— Ah!, meu amigo! — exclamou ela, pegando-lhe num braço, como tinha feito
ao filho nessa mesma manhã, — Pode crer que sofro tanto como o Pedro, mas
precisa de ser homem.
— Realmente, era melhor eu não ir — disse Pedro, olhando para ela através
das lentes das lunetas, com um ar afectuoso.
— Ah!, meu amigo, esqueça-se das injustiças que lhe fizeram, lembre-se que
seu pai.., está talvez na agonia. — Soltou um suspiro.— Gostei logo de si como se
fosse meu filho. Confie em mim. Pedro. Não me esquecerei dos seus interesses.
Pedro não compreendia nada; o mais claro para ele era pensar que as coisas
deviam ser assim, e seguiu docilmente Ana Mikailovna, que já abria a porta.
A porta dava para o vestíbulo dos aposentos das traseiras. O velho criado das
princesas estava sentado a um canto a fazer meia. Pedro nunca entrara naquela
parte da casa, ignorava mesmo a existência de tais dependências. Ana Mikailovna
perguntou pela saúde das princesas a uma rapariga que trazia uma garrafa emcima de uma bandeja, e que se tinha juntado a elos, chamando-lhe «minha cara» e
«minha boa rapariga», e em seguida conduziu Pedro ao longo de um corredor
lajeado. A primeira porta à esquerda que abria para esse corredor levava aos
aposentos das princesas.
De tão apressada que ia — em circunstâncias daquelas tudo se fazia
apressadamente— a criada de quarto que levava a bandeja com a garrafa não
fechou a porta, e tanto Pedro como Ana Mikailovna, ao passarem, olharam
involuntariamente para o quarto onde a princesa mais velha e o príncipe Vassili
conversavam muito animadamente. Ao vê-los, este teve um movimento de
impaciência e recuou; a princesa deu um pulo e fechou a porta com um gesto
violento.
Esta atitude condizia tão pouco com a habitual serenidade da princesa, e o
pânico que se pintou no rosto do príncipe Vassili era tão imprevisto na sua grave
compostura, que Pedro parou, lançando, através das lentes das suas lunetas, um
olhar inquiridor à sua condutora. Ana Mikailovna, sem trair qualquer surpresa,
contentou-se em sorrir vagamente, suspirando, como se tudo aquilo para ela fosse
coisa natural.
— Mostre-se homem, meu amigo, eu zelarei pelos seus interesses — disse ela,
ao mesmo tempo que apressava o passo ao longo do corredor.
Pedro não percebia do que se tratava e muito menos compreendia o que
queria dizer: zelar pelos seus interesses, mas de si para consigo pensava que assim
mesmo devia ser. O corredor conduziu-os a uma dependência mal iluminada que
dava para a sala de visitas do conde. Era um dos compartimentos frios e luxuosos
que Pedro conhecia muitíssimo bem, mas onde nunca entrava senão pela escada
nobre. No centro desta sala via-se uma banheira vazia e havia água entornada no
tapete. Aí cruzaram com um criado e um sacristão com um turíbulo, que
caminhavam em bicos de pés, os quais nem neles sequer repararam. Depois
penetraram na sala de visitas, que Pedro conhecia muito bem, com as suas duas
janelas à italiana e a sua porta para o jardim de Inverno, onde havia um grande
busto de Catarina e, um retrato em corpo inteiro da mesma soberana. Eram as
mesmas pessoas, por assim dizer nas mesmas atitudes, que ainda ali estavam
conversando em voz baixa. Todos se calaram e fitaram Ana Mikailovna, que
entrava, com o seu rosto pálido e como sulcado de lágrimas, e aquele grande e
corpulento rapaz, que, de cabeça baixa, a seguia com toda a docilidade.Podia ler-se nos traços de Ana Mikailovna que ela tinha a certeza de que se
aproximava o momento decisivo. Com a segurança de uma petersburguesa a tudo
habituada, entrou na sala, bem agarrada a Pedro, com um ar ainda mais ousado
que o dessa manhã. Tinha a certeza de que se trouxesse consigo a pessoa a quem o
moribundo queria ver, logo, seria recebida. Lançou um rápido olhar às pessoas ali
presentes, e, ao ver o confessor do conde, aproximou-se dele em passinhos miúdos,
sem propriamente se inclinar, mas tornando-se como que mais pequena, e dois
eclesiásticos presentes lançaram-lhe a bênção.
— Graças a Deus que chegámos a tempo — disse ela aos sacerdotes — todos
nós, que somos da família, estávamos com tanto medo! Este rapaz é filho do conde
— acrescentou em voz baixa. — Que instantes medonhos!
Ao dizer estas palavras, aproximou-se do médico.
— Caro doutor — principiou — este rapaz é o filho do conde.. Ainda há
esperanças?
O médico, sem dizer palavra, ergueu os olhos e encolheu os ombros, num ar de
dúvida. Ana Mikailovna copiou exactamente a sua mímica, teve um suspiro quase
que fechando os olhos e voltou-se para o lado onde estava Pedro. Parecia
testemunhar-lhe, urna atenção particularmente respeitosa e uma ternura
contristada.
— Tende confiança na divina misericórdia! — exclamou ela indicando-lhe um
divã onde pudesse esperar, enquanto ela se dirigia, sem fazer barulho, para a
porta cm que estavam fitos todos os olhares. Depois de a abrir silenciosamente,
desapareceu.
Pedro, disposto a obedecer em tudo ao seu guia, encaminhou-se para o divã
indicado. Assim que Ana Mikailovna desapareceu, afigurou-se-lhe que todos os
olhares se dirigiam para ele com algo mais que curiosidade e simpatia. Viu que
toda aquela gente cochichava entre si, apontando-o com os olhos, numa espécie de
medo servil. Tiveram para com ele atenções que anteriormente nunca haviam
tido. A senhora, para ele desconhecida, que conversava com o sacerdote levantou-
se e ofereceu-lhe o seu lugar. O ajudante-de-campo baixou-se para lhe apanhar a
luva que tinha caído. Quando ele passou, os médicos calaram-se respeitosamente e
abriram alas para o deixar passar. Pedro tinha pensado, primeiro, em sentar-se em
qualquer parte, para não incomodar a senhora, pensara em apanhar a luva e
evitar os médicos, que aliás lhe não impediam a passagem; mas, de súbito,compreendeu que naquela noite se tornara uma personagem com a obrigação de
cumprir uma espécie de rito terrível, aguardado por toda a gente, e por
conseguinte devia aceitar as solicitudes de todos. Recebeu em silêncio a luva que
lhe estendia o oficial, sentou-se no lugar da senhora desconhecida, apoiando as
grandes mãos nos joelhos, simetricamente colocadas numa posição ingénua de
estátua egípcia, e de si para consigo decidiu que tudo aquilo se devia justamente
passar assim e que naquela noite, para não perder a cabeça e não fazer
disparates, não deveria agir como era sua vontade, mas confiando-se em absoluto
a vontade daqueles que o guiavam.
Ainda se não tinham passado dois minutos, já o príncipe Vassili, com o seu
cafetã decorado com três estrelas, o ar majestoso, a cabeça erguida, entrava na
sala. Dir-se-ia ter emagrecido desde essa manhã; os seus olhos pareceram crescer
quando viu Pedro e percorreu a sala com o olhar. Aproximou-se dele, apertou-lhe a
mão, coisa que até aí nunca fizera, e sacudiu-lha energicamente, como se quisesse
experimentar-lhe a resistência.
— Coragem, coragem, meu amigo. Ele disse que o queria ver. Está certo.
E quis afastar-se.
Mas Pedro julgou necessário perguntar-lhe:
— Como está...?
Hesitou, sem saber como seria conveniente referir-se ao conde, o moribundo;
teve vergonha de dizer: «meu pai».
— Ainda há meia hora teve um ataque. Coragem, meu amigo.
Pedro estava num tal estado de semiconsciência que a palavra ataque lhe deu
a ideia imediata de que alguém o tinha atacado. Olhou perplexo para o príncipe
Vassili, e só depois lhe ocorreu que aquela palavra podia significar uma doença. O
príncipe Vassili, ao passar, disse umas palavras a Lorrain e encaminhou-se para a
porta em bicos de pés. Não se pode dizer que fosse muito destro em caminhar
dessa maneira; todo o seu corpo oscilava desajeitadamente. Atrás dele passou a
mais velha das princesas, depois os padres e os sacristães; seguiram-se alguns
criados do conde. Atrás da porta ouviu-se um burburinho e Ana Mikailovna,
sempre muito pálida, mas decidida no cumprimento do seu dever, apareceu,
correndo, e tocando tio braço de Pedro murmurou:
— A bondade divina e inesgotável. Vai começar a cerimónia da extrema-unção.
Venha.Pedro penetrou no quarto, enterrando os pés no tapete fofo, e verificou que o
ajudante-de-campo, a senhora desconhecida e alguns criados também o seguiam,
como se já não fosse preciso pedir licença para se entrar naquele aposento.
[XXIII]
Pedro conhecia muito bem aquela grande dependência cortada por uni, arco e
algumas colunas e forrada de tapetes persas. A, parte que ficava por detrás das
colunas, de um lado tinha uma grande cama de mogno com cortinados de seda, e
do outro um oratório com as suas imagens, o qual, todo iluminado, era como uma
igreja preparada, para os ofícios da noite. Debaixo do enquadramento dos ícones
iluminados estava uma grande cadeira de doente, com o espaldar coberto de
almofadas brancas como neve, ainda não amarrotadas, e que acabavam de ser
mudadas. Nessa cadeira perfilava-se a majestosa figura, do pai, o conde Bezukov,
muito sua conhecida, coberto até à cintura por uma manta verde-clara e os
cabelos brancos, em que havia qualquer coisa de leonino, a coroar-lhe a testa
ampla e as características linhas daquele rosto amarelento sulcado de pequenas
rugas. Estava estendido mesmo por debaixo das imagens, com as grossas mãos
espessas emergindo da coberta, e sobre ela pousadas. Na mão direita, espalmada,
entre o polegar e o indicador, erguia-se urna vela que um velho criado amparava
debruçado sobre a cabeceira. Em tomo, os padres, de pé, revestidos com os seus
magníficos paramentos, muito brilhantes, os longos cabelos soltos, e de velas
acesas, oficiavam com uma, lentidão solene. Um pouco mais atrás viam-se as duas
princesas mais novas, de lenço nos olhos, e, diante delas. Katicha, a mais velha,
com uma expressão má e resoluta, os olhos fixos nos ícones, o que queria dizer que
não poderia responder por si caso viesse a olhar para outro lado. Junto à porta.
Ana Mikailovna, com o seu ar de resignada tristeza e imploração, bem como a
senhora desconhecida.
O príncipe Vassili, do outro lado desta mesma porta, mais perto da cadeira,
por detrás de um cadeirão de talha guarnecido de veludo, cujo espaldar voltara
para si, apoiando nele a sua mão esquerda, em que segurava uma vela, enquanto
com a direita se benzia e erguia os olhos ao céu, de cada vez que tocava na testa.Na sua máscara havia uma devoção tranquila e submissão à vontade divina, «Se
Tu não compreendes estes sentimentos, tanto pior para Ti», parecia dizer a sua
expressão.
Atrás dele encontravam-se o ajudante-de-campo, os médicos e o pessoal
masculino: como na igreja, havia separação de sexos. Toda a gente estava calada,
persignando-se. Apenas se ouviam as orações litúrgicas, um canto baixo, profundo
e contínuo, e nos momentos de silêncio movimento de pés e suspiros. Ana
Mikailovna, com aquele ar significativo com que mostrava saber o que estava
fazendo, atravessou o quarto para entregar uma vela a Pedro. Este acendeu-a, e,
entretido com as observações que fazia sobre os assistentes, pôs-se a persignar-se
com a mesma mão com que segurava o círio.
A jovem, princesa Sofia, a da pele rosada, ar trocista e um sinalzinho, olhava
para ele. Depois sorriu, escondeu o rosto no lenço, e assim esteve muito tempo;
daí a pouco, voltando a olhar para ele, pôs-se a rir. Evidentemente que ela se não
sentia capaz de o olhar sem rir, mas como, ao mesmo tempo, não podia deixar de o
olhar, para não ter essa tentação foi postar-se, sem ruído, atrás de uma coluna. A
meio da cerimónia, as vozes dos sacerdotes calaram-se, repentinamente, e os
padres puseram-se a dizer qualquer coisa ao ouvido uns dos outros; o velho criado
que segurava a vela do conde ergueu-se e voltou-se para o lado das senhoras. Ana
Mikailovna avançou e, debruçando-se para o doente, tomou entre as suas mãos
brancas e finas a mão livre pousada sobre a coberta verde, e, virada de lado, pôs-
se a tomar-lhe o pulso com um ar recolhido. Deram de beber ao doente; foi uma
agitação em volta dele; depois cada um retomou o seu lugar e a cerimónia
prosseguiu. Durante esta pausa. Pedro notou que o príncipe Vassili tinha saído de
trás do cadeirão e com o ar de quem sabe muito bem o que anda a fazer, e lhe é
completamente indiferente a presença dos outros, em vez de se aproximar do
moribundo, passara ao lado dele, encaminhando-se para onde estava a mais velha
das princesas, juntamente com quem se dirigira para o fundo do quarto, em que
estava o leito alto com cortinados de seda.
Tanto um como outro, depois, tinham desaparecido por uma porta no extremo
do aposento, e só no fim da cerimónia haviam reaparecido, um por cada vez,
retomando os seus lugares. Pedro não prestou mais atenção a este pormenor que
a qualquer outro, persuadido como estava de que tudo quanto se passasse
naquela noite diante dos seus olhos assim tinha de ser e nunca de outra maneira.Os cantos litúrgicos cessaram e ouviu-se então a voz de um dos sacerdotes
felicitando o doente por haver recebido o sacramento. O moribundo continuava
estendido sem dar sinais de vida e sem fazer o mais pequeno movimento. Toda a
gente se aproximou dele. Ressoaram passos, e ouviu-se o ciciar das vozes, entre as
quais se distinguia a de Ana Mikailovna.
Pedro ouviu-a dizer:
— É indispensável levá-lo outra vez para a cama. Aqui é impossível.
O moribundo estava de tal modo rodeado pelos médicos, pelas princesas, pelos
criados, que Pedro já lhe não via a cabeça vermelho-amarelada com a coroa de
cabelos brancos que não perdera de vista durante toda a cerimónia, apesar da
presença de toda aquela gente. Pelo movimento prudente das pessoas que o
cercavam percebeu que o estavam a soerguer para o transportar.
— Firma-te no meu braço, vais deixá-lo cair — dizia a voz abafada de um dos
criados.— Mais baixo... Outro aqui... — murmuravam as vozes.
O resfolgar das respirações opressas e o andar arrastado pareciam mostrar
que o peso que transportavam era superior às forças dos que o conduziam.
Toda aquela gente, de que fazia parte Ana Mikailovna, passou diante do
jovem, que durante alguns segundos, através das nucas e das costas, pôde ver os
grossos e fortes peitorais nus e os ombros vigorosos do moribundo soerguidos
pelas pessoas que lhe pegavam pelas axilas, e a cabeça branca, crespa, leonina. A
cabeça, com a sua fronte extraordinariamente espaçosa e a face musculada, a bela
boca sensual, o olhar frio, ainda majestoso, não estavam desfigurados pela morte.
Era a mesma pessoa que ele tinha conhecido três meses antes, quando o conde o
mandara para Petersburgo. Mas esta cabeça balouçava, inerte, a cada passada
dos que transportavam o moribundo e o seu olhar frio, insensível, não sabia onde
fixar-se.
Durante alguns minutos houve agitação em volta da cama, depois as pessoas
que tinham transportado o conde afastaram-se. Ana Mikailovna tocou no braço de
Pedro e disse-lhe: — Venha daí. — Pedro, sempre junto dela, aproximou-se da
cama em que tinham estendido o doente, numa postura solene, de acordo com o
sacramento que acabava de receber. Uma pilha de almofadas soerguia-lhe o busto.
As mãos estavam dispostas simetricarnente sobre a coberta de seda verde, com as
palmas para baixo. Quando Pedro se aproximou, o conde olhou-o fixamente, mas
com um olhar de que ninguém seria capaz de discernir o significado e a intenção.Ou esse olhar não queria dizer absolutamente nada além de significar que
enquanto os nossos olhos estão abertos para algures têm de olhar, ou então muito
queriam dizer. Pedro ficou imóvel sem saber o que fazer, interrogando com o olhar
a sua cicerone. Esta teve um rápido movimento de olhos, indicando-lhe a mão do
moribundo, e com a boca mimou um beijo.
Pedro, inclinando a cabeça com precaução, para não se embaraçar na coberta,
seguiu o conselho dela e aplicou os lábios sobre a mão carnuda e de grandes ossos.
Nem a mão nem nenhum dos músculos do rosto do conde deram sinal de vida.
Pedro continuou a olhar Ana Mikailovna interrogativamente, para lhe perguntar
o que tinha a fazer. Esta indicou-lhe com a vista a cadeira ao lado da cama. Pedro
aí se instalou, com toda a docilidade, continuando a perguntar-lhe, por acenos, se
estava a proceder bem. Ana Mikailovna disse-lhe «sim» com um aceno de cabeça.
Pedro retomou a sua pose ingénua da estátua egípcia, visivelmente incomodado
por ver a sua desastrada pessoa ocupar tão largo espaço, e recorrendo a todos os
estratagemas de espírito para parecer o mais pequeno possível. Olhou para o
conde. Este tinha os olhos pousados no lugar onde se encontrava a figura de Pedro
antes de se sentar. Ana Mikailovna, pela sua atitude, traduzia a importância
tocante que atribuía a estes derradeiros momentos de despedida entre pai e filho.
Isto prolongou-se por dois ou três minutos, que a Pedro se lhe afiguraram horas.
Subitamente, um estremecimento perpassou pelas rugas da máscara do conde. O
estremecimento acentuou-se, a boca, de contomos regulares, deformou-se. Só
então Pedro compreendeu quão perto da morte estava seu pai. A boca toda
contorcida soltou um estertor rouco e indistinto. Ana Mikailovna fixara o
moribundo atentamente, na esperança de adivinhar o que ele queria, e mostrava-
lhe ora Pedro, ora a poção, ora lhe mencionava em voz baixa o nome do príncipe
Vassili, ora lhe indicava a coberta.
O olhar e a fisionomia do moribundo traduziam impaciência. Fazia esforços
para fixar o criado constantemente à cabeceira da cama,
— Quer que o virem para o outro lado — murmurou este, que se levantou
para voltar para o lado da parede o pesado corpo doente.
Pedro ergueu-se para ajudar o criado.
Enquanto o mudavam de posição, um dos braços do conde ficou inerte para
trás, fazendo ele baldados esforços para o trazer ao seu lugar. O conde ou viu o
olhar aflito que Pedro teve para o braço sem vida, ou outro qualquer pensamentoperpassou nesse instante pela cabeça do moribundo: olhou para o seu próprio
braço, que, já lhe não obedecia, depois para a expressão aflitiva de Pedro, em
seguida de novo para o braço e pelo seu rosto passou um débil e doloroso sorriso,
que, destoava na sua máscara, parecendo, por isso mesmo, escarnecer da sua
própria impotência. Ao deparar-se-lhe este sorriso. Pedro sentiu uma súbita
crispação no peito, um formigueiro nas narinas e as lágrimas vieram turvar-lhe a
vista. Tinham colocado o moribundo voltado para a parede. Ouviu-se que
suspirava.
— Adormeceu — disse Ana Mikailovna, ao ver uma das princesas que vinha
substituí-la.— Vamo-nos.
Pedro saiu.
[XXIV]
Na sala de visitas não estava já mais ninguém senão o príncipe Vassili e a mais
velha das princesas, conversando animadamente debaixo do retrato de Catarina.
Assim que viram chegar Pedro e a sua companheira, calaram-se. A princesa
dissimulou qualquer coisa, pelo menos foi isso que Pedro pareceu distinguir, e
murmurou:
— Não posso ver esta mulher.
— Katicha mandou servir o chá na salinha — disse o príncipe a Ana
Mikailovna. — Vá, minha pobre Ana Mikailovna, tome qualquer coisa, caso
contrário não aguentará.
Nada disse a Pedro, limitando-se a apertar-lhe o braço com emoção. Pedro e
Ana Mikailovna dirigiram-se para a salinha.
— Não há nada melhor para levantar as forças que uma xícara deste excelente
chá russo depois de uma noite em claro! — exclamou Lorrain com uma vivacidade
refreada, enquanto bebia, em pequenos goles, por uma chávena da China, sem
asa, de pé, na salinha redonda, diante de uma mesa onde estavam alguns pratos
frios e um serviço de chá. Em volta da mesa tinham-se juntado, para recuperar
forças, todos quantos haviam passado a noite em casa do conde Bezukov. Pedro
lembrava-se muitíssimo bem daquela salinha circular com os seus espelhos e osseus guéridons. Aquando dos bailes que havia lá em casa, ele, que não sabia
dançar, gostava de vir sentar-se naquela pequenina saleta, donde ficava a ver as
senhoras de vestido de noite e os ombros nus cobertos de pérolas e diamantes, as
quais, ao atravessar aquela dependência, se miravam vivamente nos espelhos
iluminados em que as imagens se multiplicavam indefinidamente. Naquele
momento a saleta estava apenas iluminada por duas velas, e na obscuridade, em
cima de um guéridon, havia, pousados desordenadamente, pratos e chávenas de
chá, enquanto pessoas da mais variada natureza, em trajes comuns, falando entre
si em voz baixa, se sentavam, exprimindo, em todos os seus movimentos e em
todas as suas palavras, a ideia de que não esqueciam um só momento o que
estava a passar-se naquela noite e o que devia passar-se ainda no quarto de
dormir. Pedro nada comeu, embora muito lhe apetecesse fazê-lo. Ia interrogar com
os olhos a sua condutora, mas viu que ela tornava a entrar, na ponta dos pés, na
sala de visitas, em que ficara o príncipe Vassili e a mais velha das princesas.
Pedro pensou mais uma vez que assim tinha de ser, e, depois de hesitar alguns
instantes, seguiu atrás dela. Ana Mikailovna estava de pé junto da princesa e
ambas falavam ao mesmo tempo, em voz baixa, com animação.
— Perdão, minha senhora, eu julgo saber o que se deve fazer e o que se não
deve fazer — dizia a princesa, certamente na mesma agitação em que se
encontrava no momento em que tinha fechado violentamente a porta do quarto,
— Mas, minha querida princesa — volveu Ana Mikailovna, num tom modesto
e insinuante, vedando à princesa o caminho para o quarto de dormir —, não seria
penoso para o seu pobre tio, num momento destes, em que tanto necessita de
repouso? Falar-lhe numa hora destas das coisas deste miserável mundo, quando a
sua alma está já preparada...
O príncipe Vassili estava sentado numa cadeira, as pernas cruzadas uma em
cima da outra, numa das suas posições habituais. No seu rosto havia movimentos
convulsivos, e as faces moles pareciam, na parte inferior, mais largas do que de
costume; e fingia estar pouco atento à conversa das duas senhoras.
— Então, minha boa Ana Mikailovna, deixe proceder Katicha. Bem sabe quanto
o conde a estima.
— Não sei o que há aqui dentro — disse a princesa, dirigindo-se ao príncipe
Vassili, e apontando para a pasta de couro que tinha na mão. — O que eu sei é
que o verdadeiro testamento está no escritório dele e que só se encontra aquipapelada esquecida...
Quis passar, contornando Ana Mikailovna, mas esta fez um movimento rápido
e de novo se lhe atravessou no caminho.
— Bem sei, minha boa, minha querida princesa — disse, apoderando-se da
pasta, e segurando-a com tanta forca que se via não estar disposta a largá-la de
mão tão depressa— Minha querida princesa, peço-lhe, suplico-lhe, poupe o doente.
Imploro-lhe...
A princesa não deu resposta. Apenas se ouvia o ruído da luta que se travava
para a conquista da pasta. Era evidente que se ela falasse não seria para dizer
coisas amáveis a Ana Mikailovna. Mas esta resistia energicamente, embora a sua
voz conservasse um tom suave e carinhoso.
— Pedro, venha cá, meu amigo. Suponho que não será a mais rio conselho de
família. Não é isto verdade, príncipe?
— Porque é que não diz alguma coisa, primo? — gritou, subitamente, a
princesa, e tão alto que em toda a sala se lhe ouviu a voz. — Fica calado quando
uma pessoa estranha se atreve a intervir nos nossos assuntos e fazer uma cena no
limiar do quarto de um moribundo? Intriguista! — exclamou ela com ódio, puxando
pela pasta, com todas as suas forças.
Para não ser obrigada a abandonar a presa, e sob a violência do puxão. Ana
Mikailovna viu-se forçada a dar alguns passos avante, e pegou-lhe no braço.
— Oh! — exclamou Vassili com espanto e num tom de censura — É ridículo —
prosseguiu ele, erguendo-se— Vejamos, largue, faça favor.
A jovem princesa abriu as mãos.
— Largue — repetiu-lhe. — Eu encarrego-me de tudo. Vou já falar com ele.
Sim, eu... Deixe isso comigo.
— Mas, meu príncipe — disse Ana Mikailovna —, depois de um sacramento
tão solene, deixe-o descansar um momento. Pedro, vá, dê a sua opinião —
prosseguiu ela, dirigindo-se ao jovem, o qual, tendo-se aproximado, observava,
espantado, a figura da princesa conturbada pela cólera e os movimentos nervosos
do rosto do príncipe.
— Lembre-se de que será responsável por tudo o que vier a acontecer — disse
o príncipe Vassili com severidade. — O senhor não sabe o que faz.
— Mulher infame! — gritou a princesa, lançando-se sobre ela,
repentinamente, e arrancando-lhe a pasta das mãos.O príncipe Vassili, baixando a cabeça, deixou cair os braços para mostrar que
nada podia fazer.
Neste momento, a porta, aquela porta horrível em que os olhos de Pedro se
haviam fixado durante tanto tempo e que antes se tinha aberto tão suavemente,
escancarou-se, de súbito, com fragor e veio bater de encontro à parede, enquanto
a segunda das princesas se lançava na sala torcendo as mãos.
— Que estão aqui a fazer? — disse ela, num desespero — Ele vai-se embora e
todos me deixam só.
A princesa mais idosa deixou cair a pasta. Ana Mikailovna baixou-se, lépida, e,
pegando no corpo de delito, desapareceu no quarto de dormir. A princesa e o
príncipe Vassili, recuperando a serenidade, foram-lhe no encalço. Daí a pouco, a
mais velha das princesas voltou a aparecer na sala de visitas, o rosto pálido e
seco, mordendo o lábio inferior. Ao ver Pedro, veio-lhe um ataque de cólera, que
deixou expandir livremente,
— Agora pode estar satisfeito! -exclamou,— Ai tem o que esperava.
E rompendo a soluçar, escondeu o rosto no lenço, desaparecendo da sala. O
príncipe Vassili foi quem veio depois. Aproximou-se cambaleando do divã em que
Pedro estava sentado e deixou-se cair com a cara entre as mãos. Pedro viu que ele
estava pálido e que o queixo lhe tremia convulsivamente, como se tivesse febre.
— Ah, meu amigo! — exclamou, pegando no braço de Pedro, e a sua voz
exprimia uma sinceridade e uma doçura que este nunca lhe tinha notado — Os
pecados que nós cometemos, tanto equívoco, e tudo isso para quê? Estou quase
com sessenta anos, meu amigo... E eu... A morte é o fim de tudo. Ah, que coisa
terrível é a morte!... — E principiou a soluçar.
Ana Mikailovna foi a última a sair do quarto. Aproximou-se de ^Pedro em
passos lentos e sem fazer ruído.
— Pedro! — exclamou ela.
Pedro interrogou-a com os olhos. A princesa beijou o rapaz na testa, cobrindo-o
de lágrimas. Esteve calada alguns momentos. — — Acabou...
Pedro olhou para ela através das suas lunetas.
— Vamos, eu acompanho-o. Procure chorar. Não há nada como as lágrimas
para aliviar.
Levou-o para uma sala escura e Pedro sentiu-se contente por ninguém poder
ver-lhe a expressão. Ana Mikailovna afastou-se, e quando voltou a entrar na salaencontrou-o, de cabeça encostada ao braço, dormindo profundamente.
No dia seguinte disse-lhe:
— Sim, meu caro, é uma grande perda para todos nós. Não falo de si. Mas
Deus o ajudará, é novo e ei-lo à frente de uma imensa fortuna, assim o espero. O
testamento ainda não foi aberto. Conheço-o muito bem para saber que isso não
lhe dará volta à cabeça, mas impõe-lhe deveres, e é preciso ser homem.
Pedro ficou calado.
— Talvez mais tarde lhe conte, meu caro, que se eu ali não estivesse, só Deus
sabe o que poderia ter acontecido. Ainda antes de ontem meu tio me prometia
não se esquecer de Bóris. Mas não teve tempo. Espero, meu caro, que saiba
cumprir os desejos de seu pai.
Pedro não percebia nada, contentando-se em olhar para Ana Mikailovna sem
dizer palavra e corando com um ar embaraçado. Esta, depois da sua conversa com
Pedro, voltou para casa dos Rostov e deitou-se. No dia seguinte pela manhã
contou aos Rostov e aos seus demais conhecimentos os pormenores da morte do
conde Bezukov. Segundo dizia, o conde tinha morrido como ela própria desejaria
morrer, e que o seu passamento fora não só emocionante, mas até mesmo
edificante; a última entrevista entre pai e filho, então, tinha sido de tal modo
comovente que ela não podia lembrar-se dessa cena sem ch5rar, e lhe era
impossível dizer qual dos dois se portara melhor naqueles terríveis momentos: se
o pai, que nos últimos instantes se tinha referido a todos os acontecimentos
importantes, recordando-se de toda a gente e dizendo coisas tão comovedoras ao
filho; se Pedro, que metia dó, de tal modo estava comovido, não obstante ter feito
tudo para esconder a sua dor, para que o moribundo se não impressionasse. «É
penoso, mas faz bem; eleva a alma ver homens como o velho conde e o seu digno
filho.» Ana Mikailovna aludiu também à atitude da princesa e do príncipe Vassili
num tom de censura, mas pedindo muito segredo e falando ao ouvido das pessoas.
[XXV]
Em Lissia Gori, domínio do príncipe Nicolau Andreivitch Bolkonski, aguardava-
se, de dia para dia, a chegada do jovem príncipe André e de sua mulher. Mas estaexpectativa não alterava a ordem admirável que pautava a existência, no solar do
velho príncipe. O general-chefe príncipe Nicolau Andreivitch, aquele a quem a
gente da sociedade tinha apelidado do «rei da Prússia», desde que, no reinado de
Paulo I, se recolhera às suas terras, nunca mais deixara a sua Lissia Gorí, onde
vivia com sua filha Maria e a dama de companhia desta. Mademoiselle Bourienne.
E quando viera o novo reinado, embora lhe tivesse sido permitido regressar à
capital, ali continuara a viver, sem nunca mais de lá sair, dizendo que se alguém
precisasse dele era natural que se dispusesse a percorrer as cento e cinquenta
verstas que separavam Moscovo do seu domínio, pois, quanto a ele, a verdade é
que não precisava de nada nem de ninguém. Era sua opinião não haver senão duas
fontes do vício humano: a ociosidade e a superstição, e senão duas virtudes: a
actividade e a inteligência. Ele próprio se encarregava pessoalmente da educação
da filha, e para desenvolver nela estas virtudes cardinais, a partir dos vinte anos
dava-lhe lições de álgebra e de geometria, não permitindo que ela estivesse
desocupada o mais breve instante da sua vida. Quanto a ele, passava todo o seu
tempo, quer a escrever as suas memórias, quer a resolver problemas de alta
matemática, quer a tornear caixas de rapé num tomo mecânico, quer a trabalhar
de jardineiro e a vigiar as construções que andava sempre a fazer no seu domínio.
Partindo do princípio de que a ordem é a primeira condição de toda a actividade,
na sua vida a ordem era levada ao extremo. As pessoas sentavam-se à mesa
segundo ritmos inalteráveis e sempre iguais, e não somente sempre à mesma
hora, mas, até mesmo, no mesmo minuto. Para com as pessoas que o cercavam,
quer fosse a filha, quer os criados, era rígida e invariavelmente exigente.
Esta a razão por que, não sendo propriamente violento, inspirava um terror e
um respeito em que lhe não levavam a palma os homens mais brutais. Embora ele
se encontrasse na inactividade e nenhuma influência tivesse já nos negócios
públicos, não havia governador de província onde dispusesse de propriedades que
se não sentisse na obrigação de se apresentar em sua casa, sujeitando-se, à
semelhança do arquitecto, do jardineiro ou da própria princesa Maria a aguardar
o momento em que o príncipe comparecia na sua vasta sala de visitas. E o certo é
que todos naquela sala sentiam o mesmo receio e o mesmo respeito quando se
abriam as altas portas maciças do gabinete e surgia a pequena figura do príncipe,
com a sua cabeleira empoada, as suas mãozinhas secas e as suas sobrancelhas
brancas, proeminentes, as quais, por vezes, quando ele as franzia, lhe velavam ofulgor do olhar brilhante, inteligente e sempre jovem.
No dia da chegada do casal, pela manhã, segundo o costume, a princesa Maria.
à hora habitual, entrou na sala de visitas para apresentar os seus cumprimentos
matinais, benzendo-se, medrosa, enquanto orava, em voz baixa. Todos os dias
entrava naquela sala e nem uma só vez deixava de rezar, pedindo a Deus que
fizesse correr bem a entrevista que ia ter com o pai.
O velho criado de cabeleira branca que estava na sala levantou-se sen) fazer
ruído e disse em voz baixa:
— Faça o favor de entrar.
Atrás da porta ouvia-se o monótono rolar do tomo. A princesa empurrou
timidamente o batente e a porta abriu-se sem esforço, deixando-a parada no
limiar. O príncipe, que trabalhava ao tomo, depois de ter voltado a cabeça para
trás prosseguiu na sua tarefa.
O enorme gabinete transbordava de objectos que, evidentemente, estavam a
todo o momento a ser precisos. A grande mesa coberta de livros e plantas, as
altas estantes da biblioteca, com as chaves nas respectivas fechaduras, a
secretária alta para se escrever de pé, sobre a qual estava aberto um caderno, o
tomo, com as ferramentas espalhadas e as aparas de madeira pelo chão, tudo
denunciava uma actividade constante, variada e metódica. Os movimentos das
curtas pernas do príncipe, que calçava botas tártaxas pregueadas de prata, e a
pressão enérgica das suas mãos magras e nervosas proclamavam a força tenaz e
bem mantida de uma velhice vigorosa.
Depois de ter feito girar ainda algumas vezes a roda do tomo, levantou o pé
do pedal, limpou a goiva, guardando-a depois numa bolsa de couro pendente
daquele e aproximando-se da mesa, chamou a princesa. Nunca abençoava os filhos,
e estendendo à filha a cara eriçada de pêlos e ainda por barbear disse-lhe
severamente, embora com um olhar meigo e cuidadoso:
— Como vai isso?... Bom, então senta-te!
Pegou num caderno de exercícios de geometria, escrito com a sua própria
caligrafia, e puxou a cadeira com o pé.
— Para amanhã! — exclamou, procurando rapidamente a página e marcando
corri a unha robusta os períodos que era preciso estudar.
A princesa debruçou-se para o caderno.
— Espera.., uma carta para ti — disse de repente o velho, tirando de um sacosuspenso da mesa um sobrescrito com letra feminina e pousando-o em cima do
tampo da mesa.
Assim que a princesa viu a carta, toda ela se ruborizou. Pegou-lhe, pressurosa,
fazendo urna grande vénia.
— É da tua «Heloísa»? (Alusão a Júlia da Nova Heloísa. (N, dos T.) —
perguntou o príncipe, mostrando, num frio sorriso, os dentes amarelados, mas
ainda sólidos. — É, é da Júlia — replicou a princesa, com um olhar tímido e um
sorriso receoso.
— Ainda vou deixar passar mais duas cartas, mas a terceira hei-de lê-la —
disse o pai severamente.— Tenho cá os meus receios de que vocês escrevam muita
tolice. A terceira leio-a.
— Pode ler esta, meu pai — respondeu a rapariga, corando ainda mais e
apresentando-lhe a carta.
— A terceira, eu disse a terceira — interrompeu o príncipe, repelindo a carta;
e apoiando o cotovelo à mesa, puxou para si o caderno de geometria.
— Como vê, menina — principiou o velho, debruçando-se muito para a filha por
cima do caderno e apoiando-se corri uma das mãos nas costas da cadeira onde se
sentava a princesa, que se sentiu envolta numa onda de cheiro a tabaco e desse
aroma especial das pessoas idosas, muito do seu conhecimento. — Como vê,
menina, estes triângulo são iguais: olhe, o ângulo A-B-C...
A jovem princesa fitava, assustada, os olhos brilhantes do pai muito perto da
sua cara. As maçãs do rosto cobriram-se-lhe de manchas vermelhas. Via-se
perfeitamente que não compreendia e que estava cheia de medo: isso era o
bastante para não poder apreender as longas explicações do pai, por mais claras
que fossem. Ou por culpa do professor ou da aluna, o certo é que todos os dias
acontecia o mesmo. Os olhos da jovem turvavam-se, não via, não ouvia mais nada,
para ela nada mais existia além daquele rosto seco e severo muito perto do seu,
daquele hálito e daquele aroma, e o seu único desejo seria fugir o mais depressa
possível do gabinete para, sozinha, resolver com tranquilidade o problema que o
pai lhe propunha. O velho exaltava-se, afastava e aproximava com estrépido a
cadeira em que estava sentado, procurando não se deixar encolerizar, mas não
raramente acabava a ferro e fogo, no meio de injúrias e até, por vezes, atirando
fora o caderno.
A princesa enganou-se na resposta que deu.— Que estúpida que tu me saíste! — gritou-lhe o pai, empurrando o caderno e
voltando-se bruscamente. De chofre, ergueu-se, deu alguns passos de um lado para
o outro, pousou a mão na cabeça da filha e tomou a sentar-se. Aproximando a
cadeira, continuou a explicar.
— Assim não fazemos nada, princesa, assim no fazemos nada — disse quando a
filha fechava o caderno, depois da lição, disposta a partir— Mas a verdade é que
as matemáticas são uma coisa importante, menina. E o que eu não quero é que tu
fiques como todas as nossas estúpidas senhoras. Com tempo e paciência hás-de
acabar por gostar da matemática. — Bateu-lhe na cara— Hei-de tirar-te da cabeça
toda a estupidez que lá tens dentro.
Ela quis abalar mas ele deteve-a com um gesto, e tirou de cima da secretária
um livro novo com as folhas ainda por abrir.
— Aqui tens um livro que te manda a tua «Heloísa», um tal A Chave do
Mistério. É um livro religioso. Eu não gosto de interferir nas crenças religiosas de
ninguém... Passei a vista pelo livro. Toma lá. E agora vai-te, vai-te embora.
Bateu-lhe no ombro e foi ele próprio quem fechou a porta depois de ela sair.
A princesa Maria voltou para o seu quarto, com aquele seu ar triste e receoso
que raramente a abandonava e que ainda mais feios tornava os seus traços
doentios e pouco regulares; sentou-se à sua mesa de trabalho, coberta de
retratos, miniaturas, cadernos e livros. O sentimento da ordem que a ela lhe
faltava tinha-o o pai em excesso. Pousou o caderno de geometria e abriu a carta
com impaciência. Era da sua mais íntima amiga de infância: precisamente essa tal
Júlia Karaguine, que estivera na festa em casa dos Rostov.
Júlia escrevia, em francês:
Querida e excelente amiga:
Que coisa terrível e pavorosa é a ausência! Por mais
que eu me diga a mim própria que a metade da minha
existência e da minha felicidade está contigo, que, apesar
da distância que nos separa, os nossos corações estão
unidos por laços indissolúveis, o meu coração revolta-se
contra o destino e é-me impossível, não obstante os
prazeres e as distracções que me cercam, vencer uma certa
tristeza oculta que sinto no fundo do coração, desde quenos separámos. Porque não estamos nós juntas como no
Verão passado no teu gabinete, sentadas no teu canapé, o
canapé das confidências? Porque é que eu não posso, como
há três meses, colher novas forças morais no teu olhar, tão
meigo, tão calmo e tão penetrante, olhar de que eu tanto
gostava e que julgo ainda ver diante de mim enquanto te
vou escrevendo!
Ao chegar a este ponto da carta, a princesa Maria soltou um suspiro e lançou
um olhar para o espelho que estava à sua direita. O cristal devolveu-lhe uma
desajeitada e enfezada figura. Os seus olhos, sempre tristes, fixavam o espelho
com uma expressão particularmente desencantada. «Tudo para me lisonjear»,
pensou, e afastou os olhos do espelho, prosseguindo na leitura da carta.
Realmente. Júlia não lisonjeava a amiga: esta tinha, com efeito, uns olhos grandes,
tão profundos e tão luminosos que dir-se-ia irradiarem, de vez em quando, quentes
raios de luz, olhos tão belos que a cada momento, apesar da fealdade dos traços
do seu rosto, lhe emprestavam mais atractivos que se ela fosse, de facto, bonita. A
princesa nunca seria, porém, capaz de descobrir esta bela expressão do seu olhar,
essa expressão que lhe vinha aos olhos quando ela menos sonhava. Acontecia
consigo o que tantas vezes se dá com outras pessoas: sempre que olhava para o
espelho, vinha-lhe à cara um ar afectado e pouco natural que a tornava feia.
Continuou a ler:
Em Moscovo não se fala noutra coisa senão em guerra.
Um dos meus dois irmãos já seguiu para o estrangeiro, o
outro está na Guarda, que vai partir para a fronteira. O
nosso querido imperador saiu de Petersburgo e segundo
consta está disposto a expor a sua preciosa existência aos
perigos da guerra. Deus queira que o monstro corso que
acabou com a tranquilidade na Europa venha a ser
esmagado pelo anjo que o Todo— Poderoso, na Sua infinita
misericórdia, nos deu por soberano. Sem falar nos meus
irmãos, esta guerra privou-me de um dos conhecidos mais
queridos do meu coração. Refiro-me ao jovem NicolauRostov, que no seu entusiasmo não pôde resignar-se a
manter-se inactivo e abandonou a Universidade para se
alistar no exército. Pois bem, querida Maria, devo
confessar-te que, apesar de muito novo, a sua partida para
a guerra foi para mim motivo de grande desgosto. Este
rapaz, de quem te falei no Verão passado, tem tanta
nobreza e tanta juventude que é difícil encontrar-se
alguém como ele, no tempo em que vivemos, entre os
nossos velhos de vinte anos. É sobretudo tão franco e tão
bom de coração! E tão puro e tão poético que as minhas
relações com ele, embora fossem passageiras, as considero
das mais doces alegrias do meu coração, que tanto já tem
sofrido. Hei-de contar-te um dia as nossas despedidas e o
que dissemos no momento em que nos separámos. Por
agora tudo isto ainda está muito fresco. Que feliz és,
querida amiga, visto não conheceres alegrias tão grandes e
dores tão pungentes! És feliz, porque estas são geralmente
mais fortes do que aquelas. Bem sei que o conde Nicolau é
muito novo para poder vir a ser para mim mais que um
amigo, mas esta afectuosa amizade, estas nossas reacções,
tão poéticas e tão puras, o meu coração estava a pedi-las.
Não falemos, porém, mais nisso. A grande nova do
momento, assunto de toda Moscovo, é a morte do conde
Bezitkov e a história da sua herança. Imagina que as três
princesas não vieram, a receber quase nada, o príncipe
Vassili nada recebeu, e quem tudo herdou foi Monsieur
Pierre, que, ainda, por cima, foi reconhecido filho legítimo,
herdando, portanto, também o título de conde Rezukov, e
é hoje possuidor da maior fortuna de toda a Rússia. Dizem
que o príncipe Vassili desempenhou um, feio papel em,
toda, esta história da herança do conde e que regressou a
Petersburgo de orelha murcha.
Devo confessar-te que muito pouco percebo destas
histórias de legados e de testamentos; o que te sei dizer éque desde que o rapa;, por todos nós conhecido por
Monsieur Pierre se tomou conde de Bezukov e passou a
dispor de uma das maiores fortunas da Rússia muito me
divirto a observar a mudança no tom, e nas maneiras das
mães com várias filhas para casar e até no tom e nas
maneiras das próprias meninas em relação a este
indivíduo, o qual, aqui para nós, sempre me pareceu um zé-
ninguém. Como, de há dois anos a esta parte, toda esta
gente se entretém a arranjar-me noivos que na maior
parte dos casos eu nem sequer conheço, a crónica nupcial
de Moscovo neste momento faz de mim condessa Bezukov.
Mas deves compreender que nada faço Para vir a gozar
dessa honra. A propósito de casamentos.— queres saber?
Há dias, a tia de toda a gente. Ana Mikailotna, contou-me,
pedindo-me o maior segredo, que se preparava aqui um
casamento para ti. Trata-se, nem mais nem menos, do filho
do príncipe Vassili, o Anatole, rapaz que o pai gostaria de
arrumar, casando-o com uma menina rica e distinta. Foi em
ti que recaiu a escolha dos pais. Não sei como encararás tu
a história, mas sinto-me na obrigação de te avisar. Dizem
que é bonito rapaz e muito má pessoa; é tudo quanto pude
apurar a seu respeitou.
Mas basta de tagarelices. Estou no fim da minha
segunda folha de papel, e minha — mãe mandou-me
chamar para irmos jantar a casa dos Apraksine. Lê o livro
místico que junto te envio, e que neste momento esta aqui
a fazer furor. Embora neste livro haja coisas difíceis de
compreender para o fraco entendimento humano, é um
livro admirável, cuja leitura serena eleva a alma. Adeus.
Os meus respeitos ao senhor teu pai e cumprimentos a
Mademoiselle Bourienite. Um abraço amigo,
Júlia.
P. S. — Manda-me notícias de teu irmão e da suaencantadora mulher.
A princesa reflectiu, sorriu pensativamente, e, iluminada pelos seus brilhantes
olhos, toda a sua expressão se lhe transformou naquele instante. Levantou-se de
chofre, aproximou-se da mesa no seu passo moroso. Pegou numa folha de papel e a
mão deslizou-lhe, rápida. Eis a resposta à carta de Júlia:
Querida e excelente amiga:
A tua carta de 13 deu-me muita alegria. Ainda gostas
então de mim, minha poética Júlia? Quer dizer que a
ausência de que tanto mal dizes não teve sobre ti a sua
habitual influência. Queixas-te da ausência! Que diria eu, se
tivesse coragem para me lamentar, eu, que me vejo
privada de todos aqueles que me são queridos! Se não
fosse a religião, nosso consolo, que triste seria a nossa
vida. Porque julgas ver em mim olhar severo quando me
falas do teu afecto pelo rapaz? Neste capítulo só para mim
sou dura. Compreendo muito bem esses sentimentos nas
outras pessoas e, se me não é permitido aprová-los, por
nunca ter passado por eles, a verdade é que os não
condeno. Parece-me apenas que o amor cristão, o amor do
próximo, o amor pelos nossos inimigos é mais meritório,
mais suave e mais belo que os sentimentos inspirados pelos
lindos olhos de um jovem a uma rapariga poética e
amorável como tu.
A notícia da morte do conde Bezukov já aqui tinha
chegado antes da tua carta, e meu pai sentiu-a muito.
Segundo ele, era o último representante do grande século,
e agora só falto chegar a sua vez, embora esteja disposto
— diz — a fazer quanto puder para que esse momento
chegue o mais tarde possível. Que Deus nos proteja contra
tamanha desgraça! Não sou da tua opinião a respeito do
Pedro, pessoa que eu conheci em criança. Pareceu-me
sempre ter um bom coração, e esta é a qualidade que eumais prezo nas pessoas. Quanto à herança e ao papel que
nela desempenhou o príncipe Vassili acho isso muito triste
para os dois. Ah, querida amiga, as palavras do nosso
Divino Salvador — é mais fácil um camelo passar pelo
fundo de uma agulha do que um rico entrar no reino dos
Céus — estas palavras são tremendamente verdadeiras;
lastimo o primo Vassili e ainda lamento mais o Pedro. Tão
novo e ia esmagado ao peso de tamanha fortuna, que
grandes não irão ser para ele as tentações deste Se me
perguntassem o que eu desejo mais nesta vida, diria que
quereria ser mais pobre que o mais pobre dos indigentes.
Muito e muito obrigada, querida amiga, pelo livro que me
mandaste e que tanto êxito tem tido aí. No entanto, visto
dizeres-me que no meio de muitas coisas boas outras há
que o fraco entendimento humano não pode atingir,
parece-me inútil perdermos tempo com uma leitura
ininteligível, que por isso mesmo se tornará infrutífera.
Nunca pude compreender a paixão que têm certas pessoas
em perturbar o espírito consagrando-se a leitura de livros
místicos que apenas servem para levantar dúvidas nas suas
almas, exaltando a imaginação e dando-lhes um
temperamento exagerado, em tudo contrario à
simplicidade cristã. É bom lermos os Apóstolos e o
Evangelho. Não procuremos compreender o que neles há
de misterioso, pois, como ousaríamos nós, miseráveis
pecadores que somos, iniciar-nos nos terríveis segredos da
Providência enquanto estivermos ligados a este despojo
carnal que levanta entre nós e o Eterno um impenetrável
véu? Limitemo-nos, pois, a estudar os princípios sublimes
que o nosso Divino Salvador nos confiou para nosso
governo na Terra; procuremos conformar-nos com eles e
segui-los; persuadamo-nos de que quanto mais asas dermos
ao nosso fraco espírito humano mais isso agrada a Deus,
que rejeita toda a sabedoria que d’Ele não vem; e quequanto menos procurarmos aprofundar aquilo que Ele
houve por bem esconder do nosso entendimento, tanto
mais depressa Ele no-lo revelará graças ao Seu divino
espírito.
Meu pai não me falou em qualquer pretendente; disse-
me apenas que tinha recebido uma carta e que aguardava
a visita do príncipe Vassili. Quanto ao projecto de
casamento em que falas, dir-te-ei, querida e excelente
amiga, que o casamento, na minha opinião, é uma
instituição divina a que nós nos devemos suspeitar. Por
mais penso que isso seja para mim, se Deus Todo-Poderoso
algum dia vier a impor-me os deveres de esposa e de mãe,
fica certa de que procurarei cumpri-los tão fielmente
quanto puder, sem me preocupar com o exame dos meus
sentimentos em relação àquele que Ele me destinar para
marido.
Recebi uma carta de meu irmão anunciando-me a sua
chegada a Lissia Gori na companhia da mulher. Será breve
a minha alegria, pois que ele seque daqui a tomar parte
nesta guerra infeliz, para que nós somos arrastados só
Deus sabe como e porquê. Não é só aí, turbilhão dos
negócios e centro do mundo, que se não fala senão em
guerra, mas até aqui, no meio dos trabalhos agrícolas e da
paz da natureza, que é assim que o homem das cidades era
geral vê o campo, se fazem sentir os boatos de guerra.
Meu pai só fala em, marchas e contramarchas, coisas de
que nada compreendo: e aqueles de ontem, no decurso do
meu passeio habitual pelas ruas da aldeia, assisti a uma
cena dilacerante... Passava um comboio de— recrutas,
alistados nestas terras, que seguiam para os quartéis... Era
de ver o estado das mães, das mulheres e dos filhos
daqueles que partiam, e de ouvir os soluços de uns e
outros! Dir-se-à que a humanidade esqueceu as leis do seu
Divino Salvador, que não fez outra coisa senão pregar oamor e o perdão das ofensas, para não pensar senão na
arte de nos matarmos uns aos outros.
Adeus, querida e boa amiga, que o nosso Divino
Salvador e a Sua Santa Mãe vos tenham na Sua santa e
poderosa guarda.
Maria.
— Ali, estava a expedir o seu correio, princesa; eu já expedi o meu. Escrevi à
minha pobre mãe — disse, sorrindo. Mademoiselle Bourienne, com a sua voz cheia
e agradável, em que qualquer coisa arranhava. Na atmosfera triste e sombria em
que a princesa vivia a presença de Mademoiselle Bourienne era uma nota de
alegre frivolidade e de auto-satisfação.
— Princesa, preciso de a prevenir — acrescentou ela, baixando a voz.— O
príncipe teve uma altercação.— E o seu defeito de pronúncia acentuou-se
especialmente ao pronunciar a palavra «altercação». Dir-se-ia que se estava a
ouvir a si mesma.— Uma altercação com Michel Ivanoff. Está muito mal disposto,
muito zangado. Seja prudente, sim?
— Ah!, querida amiga — replicou a princesa —, já lhe pedi que nunca me
falasse no estado de espírito de meu pai. Não me atrevo a julgá-lo e não gosto que
os outros o façam.
A princesa olhou para o relógio, e, ao ver que já passavam cinco minutos da
hora fixada para o seu cravo, precipitou-se no salão, diligentíssima. Entre o meio-
dia e as duas horas, de acordo com o horário estabelecido, o príncipe dormia a
sesta e ela devia estudar cravo.
[XXVI]
O velho criado cabeceava, sentado na sala de espera, ouvindo o ressonar do
príncipe no seu imenso gabinete de trabalho. Do outro extremo da casa, através
das portas fechadas, chegavam até ali, pela vigésima vez, os compassos difíceis da
sonata de Dusseck.
Nesse momento parava diante da escadaria principal uma carruagem e umpequeno carro. Da carruagem apeou-se o príncipe André, que ajudou a sua
mulherzinha a descer, deixando-a subir a escada diante de si. O velho Tikon, com a
sua cabeleira postiça, espreitou pela porta da sala de espera e disse, em voz baixa,
que o príncipe estava a descansar, dando-se pressa em fechar a porta. Tíkon sabia
muitíssimo bem que nada, absolutamente nada, nem mesmo a chegada do filho ou
qualquer outro acontecimento imprevisto, deveria perturbar a rotina do seu amo.
O príncipe André, claro está, sabia isso tão bem como o próprio Tikon. Consultou o
relógio, para verificar se os hábitos do pai não tinham sido alterados desde que o
não via, e, persuadido de que tudo estava na mesma, disse para a mulher:
— Dentro de vinte minutos estará de pé. Vamos ver a princesa Maria.
A princesinha engordara um pouco, mas os seus olhos e o seu lábio sorridente,
que um ligeiro buço sombreava, continuavam a ter o ar alegre e gentil sempre
que falava.
— Mas é um palácio — disse para o marido, olhando em roda, no mesmo tom
em que se felicita o organizador de um baile.— Vamos, depressa, depressa!
Falando, ia sorrindo para toda a gente, para Tikon, para o marido, para o
criado que a conduzia.
— É a Maria que está a estudar? Não façamos barulho, quero surpreendê-la.
O príncipe André seguiu-a com o seu ar cortês e triste.
— Estás mais velho. Tikon — disse ele, de passagem, ao velho, que lhe beijava
a mão.
Antes de terem chegado à dependência onde se ouvia o cravo, viram sair de
uma porta lateral uma bonita francesinha loura. Mademoiselle Bourienne parecia
louca de contentamento.
— Ah!, que alegria para a princesa! — disse ela. — Enfim, preciso de a
prevenir.
— Não, não, por favor... é Mademoiselle Bourienne, já a conheço pela amizade
que a minha cunhada lhe tem — disse a mulher de André, beijando-a — Ela não
nos espera!
Aproximaram-se da porta da saleta, donde continuavam a sair sempre os
mesmos compassos indefinidamente repetidos. André parou, franzindo as
sobrancelhas, como se sentisse uma penosa impressão.
A princesa sua mulher entrou, o motivo da sonata foi interrompido no meio;
ouviu-se um grito, os passos pesados de Maria e beijos ressoaram. Quando Andréentrou, por sua vez, viu as duas cunhadas, que pouco se tinham conhecido na
altura do casamento, abraçadas uma à outra, beijando-se mutuamente, sem
escolher onde. Mademoiselle Bourienne ali estava, com a mão no coração,
sorrindo cheia de beatitude, e tão pronta a rir como a chorar. André encolheu os
ombros e franziu as sobrancelhas, como costumam fazer os amadores de música
quando um instrumento desafina. Por fim, as duas mulheres separaram-se, e, em
seguida, para recuperarem o tempo perdido, recomeçaram a estreitar-se nos
braços uma da outra, a beijarem-se mutuamente, rompendo em soluços, com
grande surpresa do príncipe, e abraçando-se de novo. Mademoiselle Bourienne
pôs-se também a soluçar. O príncipe André deu sinal de uma certa impaciência;
mas elas achavam tão natural chorar assim que lhes não era possível imaginarem
o seu mútuo encontro de outra maneira.
— Ah!, minha querida!... Ah!. Maria!... — disseram, de repente, transitando
das lágrimas para o riso. — Sonhei esta noite... — Não nos esperava... Ah! Maria,
emagreceu... E a minha amiga recuperou...
— Conheci logo a senhora princesa — interveio Mademoiselle Bourienne.
— E eu que não desconfiava de nada!... — exclamou a princesa Maria. — Ah!.
André, não o via.
André apertou a irmã contra si e disse-lhe que ela ainda não deixara de ser a
mesma choramingas. Maria olhou para o irmão, e no meio das suas lágrimas
deteve nele o quente e suave olhar cheio de enternecimento dos seus grandes
olhos luminosos, lindíssimos naquele momento.
A princesa Lisa falava sem descanso. O seu làbiozinho superior não fazia outra
coisa senão agitar-se continuamente, de cima para baixo, sobre o lábio inferior, e
um perpétuo sorriso lhe iluminava os dentes e os olhos. Historiava um incidente
que lhe tinha acontecido na muda de Spass, o qual poderia ter sido perigoso para
ela no estado em que estava, e imediatamente se pôs a dizer que deixara todos os
seus vestidos em Petersburgo e que não iria ter nada que vestir, que André tinha
mudado muito, que Kitti Odintsova casara com um velho, e que ela arranjara para
Maria um noivo a sério, mas que disso haviam de conversar mais tarde. A princesa
Marm, calada, não deixara de fitar o irmão, e os seus lindos olhos estavam plenos
de afectuosidade e tristeza. Via-se bera que os seus pensamentos tomavam um
caminho muito diverso dos da sua cunhada. Enquanto esta falava da última festa a
que assistira em Petersburgo, a princesa Maria voltou-se para o irmão.— Está então resolvido a ir para a guerra. André? — interrogou ela, no meio
de um suspiro. Lisa estremeceu também.
— Sim, e amanhã mesmo — replicou ele.
— Abandonou-me aqui, e só Deus sabe porquê, quando ele podia ser
promovido...
A princesa Maria não a deixou acabar e, seguindo o curso dos seus
pensamentos, disse para a cunhada, indicando afectuosamente com os olhos o
volume do seu ventre.
— É realmente verdade? — perguntou.
Lisa mudou de expressão. Teve um suspiro.
— Sim, é verdade — volveu ela.— Ah, é assustador...
Os lábios contraíram-se-lhe. Aproximou a cara do rosto da cunhada e
subitamente principiou a chorar.
— Precisa de descansar — disse o príncipe André franzindo as sobrancelhas. —
Não é verdade. Lisa? Leva-a contigo, que eu vou ver o pai. Como vai ele? Sempre
na mesma?
— Sim, está sempre na mesma; não sei como tu o vais achar — respondeu
Maria com jovialidade.
— Sempre as mesmas horas e os passeios pelas avenidas? E o tomo? —
perguntou André, com um sorriso imperceptível que queria dizer que, apesar de
todo o seu amor e o seu respeito filiais, conhecia as fraquezas do pai.
— Sim, sempre as mesmas horas, e o tomo e, ainda por cima, as matemáticas e
as minhas lições de geometria — replicou jovialmente a princesa Maria, como se
estas lições de geometria fossem uma das maiores alegrias da sua vida.
Passados que foram os vinte minutos necessários para o descanso do velho.
Tikon veio buscar o príncipe para o conduzir junto do pai. O velho dispensara-se de
cumprir o seu programa em honra do filho: mandara-o entrar para os seus
aposentos enquanto se vestia para o jantar. Conservava os velhos costumes: o
cafetã e o pó. E quando André apareceu, já não com o aspecto e as maneiras
entediadas que costumava aparentar nos salões, mas com o ar animado que
mostrava em suas conversas com o Pedro, o velho estava no seu gabinete de
toilette, enterrado numa poltrona de marroquim, de penteador, confiando a
cabeça aos cuidados de Tikon.
— Eh, o guerreiro! Então queres-te bater com o Bonaparte? — exclamou,abanando a cabeça empoada tanto quanto lho consentia Tikon, que estava a
entrançar-lhe o rabicho.
— Trata de te portares à altura, ou então não tarda muito que também nós
estejamos a fazer parte do número dos seus súbditos. Como vai isso? —
acrescentou, oferecendo-lhe a face,
O velho estava de óptima disposição, depois do sono que costumava fazer
antes de jantar. Tinha por hábito dizer que a sesta depois de jantar era prata e
antes de jantar ouro. Por debaixo das suas espessas sobrancelhas ia lançando ao
filho olhadelas matreiras. O príncipe André aproximou-se e beijou o pai no sítio
designado. Não respondeu ao tema favorito da conversa paterna, aos seus
gracejos sobre os militares do tempo e especialmente sobre Bonaparte.
— Sim, viemos vê-lo, meu pai; minha mulher, que está no seu estado
interessante, e eu — disse, observando, com o seu vivo olhar, nem por isso menos
respeitoso, todos os movimentos da fisionomia paterna.— Como tem passado de
saúde?
— Só estão doentes, meu rapaz, os imbecis e os estroinas, e tu conheces-me.
Estou sempre ocupado, da manhã à noite, e sou pessoa sóbria; por conseguinte,
tenho saúde.
— Louvado seja Deus! — exclamou o filho, sorrindo. — Deus não é para aqui
chamado. Então conta-me cá — prosseguiu, voltando à sua cisma familiar — como
é que os Alemães vos ensinaram a combater o Bonaparte segundo a vossa nova
ciência, a chamada estratégia?
O príncipe André sorriu.
— Deixe-me tomar fôlego, meu pai — dizendo o que, não deixava de mostrar,
pela sua expressão, que as manias do pai o não impediam de o adorar e de o
venerar. — Nem sei ainda onde é que nos vai instalar.
— Tolice, tolice — exclamou o ancião, sacudindo o rabicho, para ver se estava
a seu gosto, e dando o braço ao filho. — Os aposentos da tua mulher estão
preparados. A Maria se encarregará de a conduzir até lá, e ela lhos mostrará, e
hão-de ter .muito que dizer. Isso é lá com elas. Estou muito contente que ela tenha
vindo. Senta-te, senta-te e conta-me. O exército de Mikelson, sim, bem sei, e o de
Tolstoi também... Operações simultâneas.., e o exército do Sul, o que vai fazer? A
Prússia, a neutralidade, sim, bem sei. E a Áustria?
Enquanto falava, tinha-se levantado da poltrona e andava de um lado para ooutro, seguido por Tikon, que lhe ia apresentando as diversas peças de vestuário.
— E a Suécia? Como é que vamos atravessar a Pomerânia?
O príncipe André, perante a insistência do pai, primeiro contrariado, depois
numa animação crescente, e deixando de falar russo, para falar francês, como era
seu costume, principiou a expor o plano da futura campanha. Aludiu à forma como
um exército de oitenta mil homens deveria ameaçar a Prússia, para obrigá-la a
abandonar a neutralidade e arrastá-la para a guerra, a maneira como uma parte
deste exército viria juntar-se ao sueco, em Stralsund, como duzentos e vinte mil
austríacos, reunidos a cem mil russos, deviam agir em Itália e sobre o Reno, como
cinquenta mil russos e o mesmo número de ingleses viriam a desembarcar em
Nápoles e como no seu total um exército de quinhentos mil homens deveria atacar
os Franceses em diversas frentes. O príncipe não mostrava o mais pequeno
interesse por esta exposição e nem parecia mesmo ouvi-la, continuando a vestir-se
enquanto andava de um lado para o outro. Por três vezes interrompeu o filho de
maneira assaz inesperada. A primeira foi para gritar: — O branco!, o branco!
Com isto queria dizer que Tikon não estava a dar-lhe o colete que ele queria. A
segunda, deteve-se, para perguntar:
— E é para breve o parto? — Depois abanou a cabeça reprovadoramente.— É
mau! Continua, continua.
A terceira vez foi quando o príncipe André chegava ao cabo da sua exposição.
Pôs-se então a cantarolar, numa voz de velho em falsete: Malbroug vai para a
guerra. Sabe Deus quando voltará.
O filho contentou-se em sorrir.
— Não posso dizer que estou de acordo com este plano — disse ele — Limito-
me a expor-lho tal como ele é. Napoleão também já tem o seu, que é tão bom
como este.
— Bom, não me disseste nada de novo. — E, pensativamente, o velho príncipe
repetiu, resmungando entre dentes: — Sabe Deus quando voltará. E agora para a
mesa.
[XXVII]
A hora precisa, o príncipe, empoado e barbeado, deu entrada na sala de
jantar, onde o aguardavam a nora, a princesa Maria. Mademoiselle Bourienne e o
arquitecto, que, por estranha fantasia, se sentava com o príncipe à mesa, embora
esse homem, insignificante pessoa, que era, no ponto de vista social, não contasse
com tanta deferência. O príncipe, que era muito respeitador da etiqueta e das
diferenças de classe e só muito raramente sentava à sua mesa os mais
importantes funcionários da província, quando menos se esperava, quisera
mostrar, na pessoa do arquitecto. Mikail Ivanovitch, o qual tinha por hábito
assoar-se, disfarçadamente, a um grande tabaqueiro, que os homens para ele
eram todos iguais. Várias vezes explicara à filha que Mikail Ivanovitch em nada
era inferior a qualquer deles. À mesa era muito vulgar o príncipe dirigir a palavra
ao pouco falador Mikail Ivanovitch.
Na sala de jantar, imensa como todas as dependências da casa, as pessoas de
família e os criados aguardavam a chegada do príncipe, de pé, atrás de cada
cadeira; o chefe, de guardanapo no braço, vigiava a mesa, piscando o olho aos
lacaios, enquanto ia e vinha, no seu passo tranquilo, entre o grande relógio e a
porta por onde o príncipe devia entrar.
André contemplava um grande quadro de moldura dourada, novo para ele,
com a árvore genealógica dos príncipes Bolkonski, simétrico com outro quadro, do
mesmo tamanho, que representava muito mal — obra, claro está, de qualquer
pintor criado no solar— um príncipe soberano, com a coroa, provavelmente um
descendente de Rurik e antepassado da família dos Bolkonski.
O príncipe André observava esta árvore genealógica, abanando a cabeça. A
certa altura principiou a rir, como quando se olha para uma caricatura.
— Ora aqui está ele! — exclamou para a princesa Maria, que se aproximara.
Maria encarou com o irmão sem esconder estar surpreendida. Não percebia
porque ele estava a rir. Tudo quanto o pai fazia era para ela motivo de veneração,
e não admitia críticas.
— Cada um lá tem o seu calcanhar-de-aquiles — prosseguiu André — Um
homem tão inteligente e prestar-se a uma coisa tão ridícula!
A princesa não podia admitir a audácia destas observações, e preparava-se
para responder quando se ouviram os passos, que todos esperavam, vindos do
gabinete de trabalho do príncipe. O velho militar entrou na sala de jantar com o
seu passo rápido e vivo, como se quisesse opor-se, com aqueles seus modosanimados, à ordem severa que reinava na casa. Na mesma altura o grande relógio
deu duas horas, e outro, retinindo fracamente, respondeu-lhe, lá de dentro, do
salão. O príncipe deteve-se. Por sobre as suas espessas sobrancelhas proeminentes
as suas pupilas severas, vivas e brilhantes, observaram todas as pessoas
presentes, fixando-se na mulher do príncipe André. Esta sentiu nesse momento a
impressão que costumam sentir os cortesãos no acto da chegada do soberano, um
sentimento misto de temor e de respeito, que o príncipe inspirava a todos quantos
dele se aproximavam. Depois passou a mão pelos cabelos da jovem princesa e deu-
lhe umas pancadinhas na nuca um pouco atabalhoadamente.
— Estou muito contente, estou muito contente de a ver — disse, olhando-a
fixamente uma vez mais, e, de chofre, voltou-se para sentar-se à mesa. — Tomem
os seus lugares, tomem os seus lugares! Mikail Ivanovitch, sente-se.
O velho príncipe indicou à nora um lugar a seu lado. Um criado ajudou-a a
sentar.
— Sim, senhor, sim, senhor! — exclamou, ao ver as amplas formas da princesa.
— Chama-se a isto não perder tempo! Hem, que marota!
E rompeu num riso seco, frio e desagradável, o riso que tinha sempre, um riso
só da boca, não dos olhos.
— É preciso andar, andar o mais possível, o mais possível acrescentou.
A princesinha não ouvia ou não queria ouvir o que ele dizia. Estava calada e
parecia preocupada. Só quando o príncipe lhe perguntou pelo pai, principiou a
falar e a sorrir. 1nterrogou-a acerca das pessoas que ambos conheciam. Então ela
sentiu-se à vontade e pôs-se a tagarelar, transmitindo-lhe os cumprimentos de
alguns conhecidos, contando-lhe casos de má-língua da cidade.
— A condessa Apraksine, coitada, perdeu o marido e está farta de chorar —
dizia ela, cada vez mais animada.
A medida que se entusiasmava, o príncipe ia-a olhando cada vez mais
severamente, e, de súbito, como se a tivesse estudado o suficiente e acabasse por
fazer dela um ideia exacta, desviou para outro lado a sua atenção, dizendo a
Mikail Ivanovitch:
— Pois é verdade. Mikail Ivanovitch, as coisas não vão correr bem para o
nosso Bonaparte. Como me contou o príncipe André — falava sempre de André na
terceira pessoa —, estão a juntar-se forças contra ele. E nós que sempre o
considerámos uma, nulidade.Mikail Ivanovitch, que desconhecia por completo o momento em que ambos
tinham falado de Bonaparte, mas que percebia que se estavam a servir dele para
abordar a conversa do costume, lançou um olhar surpreso ao moço príncipe, sem
saber o que ia passar-se.
— Sim, é um grande estratego — disse o príncipe ao filho, apontando-lhe o
arquitecto.
E a conversa de novo incidiu sobre a guerra, sobre Bonaparte, os generais e os
estadistas do tempo. O facto é que o velho príncipe estava realmente convencido
não só de que todos os grandes homens do momento eram criançolas, ignorando,
inclusivamente, o bê-á-bá da guerra e da política, mas também, que Bonaparte
não passava de um insignificante francês, que triunfara apenas por não haver para
se lhe opor um. Potemkine ou um Suvorov. Estava mesmo convencido de que não
haveria na Europa dificuldades políticas nem realmente haveria guerra. Estava-se
apenas a representar uma comédia de fantoches, em que os homens da época
fingiam desempenhar um papel muito sério.
O príncipe André acolhia com grandes gargalhadas estas trocas, e, é claro,
divertia-se a excitar o pai e a ouvi-lo.
— Tudo o que é de outros tempos lhe parece excelente — disse ele —, mas não
é verdade que o próprio Suvorov caiu na armadilha que lhe preparou Moreau e
não foi capaz de se ver livre dela?
— Quem te disse isso? Quem te disse isso? — interrogou o príncipe. —
Suvorov! — E afastou de diante de si o prato, que Tikon pressurosamente
levantou. — Suvorov!... Pensa um pouco, príncipe André. Eram dois homens:
Frederico e Suvorov... Moreau!... Mas este Moreau teria ficado prisioneiro se
Suvorov tivesse as mãos livres, e as suas mãos estavam ligadas pelo
Hofskriegswurstsehnappsrath. Nem o Diabo teria sido capaz de se ver livre dele.
Ora, ainda os hás-de ver, esses Hofskriegsivurstschnappsrath! Se Suvorov não
pôde levar a melhor, como é que Mikail Kutuzov o conseguirá? Sim, meu amigo –
prosseguiu —, com os generais que temos nada podemos contra Bonaparte. O que
nós precisávamos era de franceses — ladrão para roubar outro ladrão. Lá
mandaram o alemão Pahiem a Nova Iorque, à América, para apanhar o francês
Moreau para o exército russo. Lindo serviço!... Eram, porventura, alemães os
Potemkines, os Suvorovs ou os Orlovs? Não, meu rapaz, ou vocês, lá para osvossos lados, perderam a cabeça, ou então sou eu quem está a ficar maluco. Deus
vos acuda, mas cá estamos para ver. E dizem eles que Bonaparte é um grande
general! Hum! Hum!...
— Não tenho a pretensão de pensar que todas as medidas tomadas sejam de
primeira ordem — replicou o príncipe André —, mas não posso compreender que o
pai tenha uma tal, opinião acerca, de Bonaparte. Pode rir-se à, vontade. O que não
lia duvida é que Bonaparte é um grande general!
— Mikail Ivanovitch! — exclamou o velho príncipe, dirigindo-se ao arquitecto,
o qual, todo absorvido a comer o assado, teria preferido que o esquecessem — Eu
disse-lhe que Bonaparte era um grande estratego? Aqui está um da, mesma
opinião.
— Mas com certeza. Excelência — replicou o arquitecto. E o príncipe riu de
novo com o seu frio riso.
— Bonaparte nasceu num sino. Tem soldados. E principiou por se atirar aos
Alemães. Desde que o mundo é mundo que toda a gente venceu os Alemães. E
eles nunca venceram ninguém, a não ser quando se batem uns contra os outros.
Foi combatendo contra eles que Napoleão se tomou glorioso.
E o príncipe pôs-se a expor todos os erros que, segundo ele, tinham sido
cometidos por Bonaparte em todas as suas campanhas, e até, inclusivamente, nos
negócios públicos O filho não o contrariava, mas era claro que, apesar de toda,
aquela argumentação, ele, tal como o velho pai, nunca mudaria de opinião. André
ouvia, procurando dominar-se, para não fazer qualquer objecção, surpreendido, no
entanto, que aquele velho, há tantos anos para ali isolado no meio das suas
terras, fosse capaz de julgar e de conhecer, em todos os seus pormenores e com
tanta finura, a situação militar e política da Europa dos últimos anos.
— Julgas que um velho como eu nada percebe dos problemas actuais? —
concluiu ele, — Que queres tu então que eu faça? De noite não durmo. Vamos lá a
saber onde é que esse teu grande general já demonstrou que o era de facto?
— Isso levaria tempo — replicou o filho.
— Que tenhas muita saúde mais o teu Bonaparte. Mademoiselle Sourienne,
aqui tem mais um admirador do grosseiro do seu imperador! — exclamou ele num
francês excelente.
— Sabe que eu não sou bonapartista, meu príncipe.
— Sabe Deus quando voltará... — cantarolou o príncipe, na sua voz de falsete,e, foi a rir, num riso igualmente em falsete, que se levantou da mesa.
A princesinha estivera calada durante toda a discussão e até ao fim do jantar,
olhando, alarmada, primeiro a princesa Maria e depois o sogro. Quando se
levantaram da mesa, travou do braço da cunhada e levou-a consigo para a sala
contígua.
— Como o seu pai é um homem inteligente! — observou ela. — É por isso,
talvez, que me mete medo.
— Oh, é tão bom! — replicou a cunhada.
[XXVIII]
O príncipe André devia partir no dia seguinte à tarde. O velho príncipe, sem
alterar os seus hábitos, retirou-se depois do jantar. A princesinha estava nos
aposentos da cunhada. André vestiu uma farda de viagem, sem dragonas, e pôs-se
a fazer as malas, com o auxilio do criado de quarto, no aposento que lhe fora
reservado. Após haver examinado ele próprio a carruagem em que ia partir e a
instalação das bagagens, deu ordem para atrelarem. No quarto apenas
conservava os objectos que levaria consigo: um pequeno cofre, um estojo de
toilette de viagem, de prata, duas pistolas turcas e um sabre, presente do pai, que
este lhe trouxera de Otchakov. Todos estes objectos estavam em perfeito estado:
tudo como novo e limpo, cada coisa no seu estojo de pano cautelosamente
afivelado.
No momento em que um homem parte para uma viagem, ou se prepara para
mudar de vida são muitos os pensamentos que o assaltam, desde que seja pessoa
capaz de reflexão. Todo o passado lhe ocorre e faz projectos sobre o futuro. André
parecia preocupado e comovido. Com as mãos atrás das costas, ia e vinha, em
passo rápido, de um extremo ao outro do quarto, o olhar fixo e abanando a cabeça.
Quer sentisse medo de partir para a guerra, quer sofresse por ter de deixar a
mulher, e talvez as duas coisas o preocupassem, era natural que não quisesse que
o vissem naquele estado, pois, ao ouvir passos no vestíbulo, mudou rapidamente
de atitude, deteve-se diante da mesa, como para afivelar a cobertura da mala, e
de novo no seu rosto transpareceu a expressão séria e impenetrável de sempre.Eram os pesados passos da princesa Maria.
— Disseram-me que tinhas mandado atrelar — articulou ela, arquejante (via-
se que viera a correr). — E eu que tanto queria conversar contigo a sós. Só Deus
sabe quanto tempo vamos estar separados! Não estás zangado por eu ter vindo?
É, que mudaste tanto. Andriucha — acrescentou, como para justificar a sua
pergunta.
A princesa Maria sorriu ao tratá-lo por Andríucha. Via-se que achava estranho
aquele belo homem de aspecto severo ser o mesmo Andriucha, esse garoto
magricela e travesso seu companheiro de infância.
— E a Lisa onde está? — perguntou ele, que apenas lhe respondera com um
sorriso.
— Estava tão cansada que adormeceu no meu quarto num divã. Ah! André!
Que tesouro que é a sua mulher! — exclamou sentando-se num canapé, diante do
irmão. — É uma verdadeira criança, tão gentil, tão alegre! Gosto tanto dela.
O príncipe André irada disse, mas a irmã viu a expressão irónica e um pouco
desdenhosa que lhe invadiu o rosto.
— Temos de ser indulgentes para com as suas pequenas loucuras. Quem as não
têm? André, não te esqueças de que foi criada e educada na sociedade. E a
verdade é que a sua situação está longe de ser cor-de-rosa. Ternos de nos colocar
na posição dos outros. Tudo compreender é tudo perdoar. Pensa na sorte que a
espera, coitadinha. Depois da vida que tem feito, ficar para aqui, no campo,
separada do marido, e sozinha, sobretudo no estado em que está. É penoso!
André sorria, olhando para a irmã, como costumamos sorrir ao ouvir alguém
em que julgamos ler como num livro aberto.
— Mas tu também vives no campo e não achas que a vida aqui seja assim uma
coisa tão terrível! — observou ele.
— Comigo é outra coisa. Para que havemos de falar de mim? Não quero outra
vida, e não posso desejar vida diferente, porque não conheço senão esta. Mas
pensa. André, o que representa para uma senhora de sociedade enterrar-se numa
aldeia, nos melhores anos da sua vida, e só, pois o pai está sempre ocupado, e eu..,
tu bem sabes como eu sou pobre de recursos aos olhos de uma mulher habituada à
melhor sociedade. Só Mademoiselle Bourienne...
— Não posso com a vossa Bourienne — replicou André.
— Não digas isso! É uma rapariga gentil e boa, e ainda por cima tão infeliz! Jánão tem ninguém no mundo, absolutamente ninguém. Para dizer a verdade, não
só já me não é precisa, como até me incomoda. Tu bem sabes que fui sempre um
pouco selvagem, e agora ainda mais. Aprecio estar só... O meu pai gosta muito
dela. Tanto ela como o Mikail Ivanovitch são as duas pessoas para quem ele tem
sido sempre amável e bom. É para eles um verdadeiro benfeitor. Como diz Sterne,
«nós gostamos das pessoas menos pelo bem que elas nos fizeram que pelo bem
que lhe fizemos a elas». O meu pai tomou conta desta, rapariga, órfã sem casa.
Tem muito bom coração. E o meu pai adora a maneira como ela lê. É ela quem lhe
faz a leitura em voz alta, todas as tardes. Lê muito bem.
— Confessa. Maria, tu deves passar o teu mau bocado, penso eu, por causa do
feitio do pai — disse, de súbito. André.
Maria principiou por mostrar-se surpreendida e depois sentiu-se assustada com
a pergunta.
— Eu? Eu? Passar um mau bocado — tartamudeou.
— Ele foi sempre irascível, mas agora ainda se tomou mais difícil, creio eu — e
exprimia-se tão à vontade sobre o carácter do pai que só podia ter um fim: irritá-la
ou experimentá-la.
— Tu és muito bom. André, mas tens um certo orgulho — observou a princesa,
seguindo antes o curso dos seus pensamentos que propriamente o fio da conversa
— e isso é um grande pecado. Achas que se pode permitir a um filho julgar o seu
pai? E, mesmo que se admita uma coisa dessas, achas que um homem como o meu
pai possa inspirar outros sentimentos que não sejam de veneração? Sinto-me tão
satisfeita e feliz ao pé dele! Só queria uma coisa: que todos vocês fossem tão
felizes como eu.
O príncipe André abanou a cabeça come, quem não está muito convencido.
— A única coisa que me é penosa, vou dizer-te a verdade. André, é a opinião
de meu pai em assuntos religiosos. Não compreendo que um homem tão
inteligente, não veja o que é claro como a luz do dia e se desoriente até ao ponto
a que chegou. Só isto me faz infeliz. Mas nos últimos tempos verifiquei que está
um pouco melhor. Ultimamente as suas troças são menos acerbas e até consentiu
em receber um, frade e esteve muito tempo a conversar com ele.
— Pois bem, minha querida, receio que tu e o teu frade estejam a perder o
vosso latim — observou André em tom trocista, mas amável.
— Ah!, meu amigo. Não faço outra coisa senão pedir a Deus, e espero que Eleme ouça. André — acrescentou ela, timidamente, depois de uma breve pausa —,
tenho de te fazer um grande pedido.
— De que é que se trata, minha amiga?
— Promete-me, antes de mais nada, que me não recusarás o que te vou pedir.
Não é nada que te custe a fazer e nem é coisa indigna de ti. Promete-me.
Andriucha — suplicou ela, metendo a mão na bolsinha de trabalho e apalpando
fosse o que fosse sem tirar a mão, como se tivesse entre os dedos precisamente o
objecto em questão, objecto que ela não podia mostrar senão depois de ter obtido
a promessa que pedira.
Olhava para o irmão timidamente e com olhos suplicantes.
— Ainda mesmo que isso me custasse muito?... — replicou o príncipe André,
que parecia desconfiar do que se tratava.
— Podes pensar o que quiseres. Sim, eu bem sei, tu és como o meu pai. Podes
pensar o que quiseres, mas faz isso por mim. Peço-te. O pai do meu pai, o nosso
avô, trouxe-a consigo em todas as campanhas... — E continuava sem tirar da
bolsinha o objecto que tinha entre os dedos.— Então, prometes?
— Claro! De que se trata?
— André, que esta imagem te proteja. Promete-me que não a deixarás mais.
Prometes?
— Se ela não pesar muito e me não derrancar o pescoço... Já que isso te dá
prazer... — disse ele, e, verificando, ao mesmo tempo, que a sua atitude causava
uma penosa impressão na irmã, mudou de tom. — Com muito prazer, podes crer,
com muito prazer, minha amiga — acrescentou.
— Mesmo contra tua vontade. Ele salvar-te-á, conceder-te-á a Sua graça e
chamar-te-á para Si, pois é verdade e consolação — murmurou, numa voz trémula,
erguendo nas duas mãos, diante do irmão, num gesto solene, uma antiga imagem
oval do Salvador, com o rosto negro, numa moldura de prata suspensa de uma
cadeia de filigrana do mesmo metal.
A princesa Maria benzeu-se, beijou a imagem e entregou-a ao irmão.
— Aceita-a. André, aceita-a por mim...
Os seus grandes olhos esplendiam de bondade e de doçura. Iluminavam-lhe o
rosto magro e doentio, embelezando-o. O irmão quis pegar na imagem, mas ela
deteve-o. André compreendeu, benzeu-se também e beijou-a. Havia nele uma
expressão ao mesmo tempo enternecida — estava comovido — e trocista.— Obrigada, meu amigo.
Beijou-o na testa e voltou a sentar-se no divã. Ficaram calados.
— Sim. André, já te disse, sé bom e generoso como sempre foste. Não julgues
Lisa com tanta severidade. Ela é gentil e boa e está neste momento numa bem
triste situação.
— Creio nada te ter dito. Macha, que possa ser interpretado como uma
censura a minha mulher ou mostrar-te que esteja descontente com ela. Porque é
que me estás sempre a dizer a mesma coisa?
A princesa Maria corou, calando-se, como se se sentisse culpada.
— Por mim, não te disse nada, mas outras pessoas, sem dúvida, já te falaram
no caso. E isso é-me penoso.
Manchas vermelhas cobriram a testa e as faces de Maria. Quis dizer qualquer
coisa, mas não pôde articular palavra. O irmão adivinhara. A princesinha, depois
do jantar, chorara e dissera que receava um parto difícil, que estava cheia de
medo e lamentara-se da sua sorte, do sogro, do marido. Depois de chorar,
adormecera. O príncipe André teve pena da irmã.
— Podes ter a certeza. Macha, não a censurei, nunca a censurei por qualquer
coisa e nunca censurei a minha mulher em coisa alguma. E eu próprio nada tenho a
censurar-me no meu comportamento para com ela. E sempre assim será, seja qual
for a situação em que venha a encontrar-me. Mas queres saber a verdade..,
queres saber se eu sou feliz, se ela é feliz? Pois bem, não, não sou, não somos.
Porquê? Não sei...
Ao dizer estas palavras, levantou-se, aproximou-se da irmã e, inclinando-se
para ela, beijou-a na testa. Os seus belos olhos incendiaram-se, e neles brilhou um
invulgar lampejo de lucidez e bondade. Não era na irmã que o seu olhar se fixava,
mas nas trevas, para além da porta aberta por detrás dela.
— Vamos ter com ela. É preciso dizer-lhe adeus. Ou, antes, vai tu sozinha,
acorda-a, eu já lá vou ter. Petruchka! — gritou ele, chamando o criado de quarto.
— Anda cá, leva estás coisas. Põe isto ao pé do assento, aquilo à direita.
A princesa Maria levantou-se e encaminhou-se para a porta. Aí deteve-se.
— André, se fosses crente, ter-te-ias dirigido a Deus a pedir-lhe que te desse o
amor que tu não sentes, e a tua oração seria ouvida.
— Sim, é possível — volveu André. — Vai. Macha, vou já ter convosco.
Quando se dirigia aos aposentos da irmã, na galeria, que estabelecia acomunicação entre os dois corpos da casa, o príncipe encontrou Mademoiselle
Bourienne, que lhe sorriu graciosamente. Era a terceira vez naquele dia que ele
encontrava no seu caminho, e nos lugares mais solitários, o seu sorriso simples e
entusiasta.
— Ah! Julgava-o nos seus aposentos! — exclamou ela, corando um pouco e
baixando os olhos.
O príncipe lançou-lhe um olhar severo; tomara repentinamente uma expressão
irritada. Não lhe respondeu, e, sem a fixar nos olhos, dirigiu-lhe um olhar tão
desdenhoso que a francesa ficou toda corada, retirando-se sem dizer mais nada.
Quando o príncipe entrou nos aposentos da irmã, sua mulher já estava acordada e
através da porta aberta ouvia-se a sua vozita alegre, que desfiava com
volubilidade o rosário das palavras. Dir-se-ia que procurava recuperar o tempo
perdido depois de uma longa abstenção.
— Não, mas imagine a velha condessa Zuboff, com postiços no cabelo e a boca
cheia de dentes postiços, como se quisesse desafiar os anos... Ah!, ah!, ah!. Maria!
Era a quinta vez que André ouvia a mulher diante de estranhos pronunciar
esta mesma frase sobre a condessa Zuboff, acompanhada do mesmo riso. Entrou
sem fazer ruído. A mulher, redondinha e rosada, o trabalhinho na mão, estava
sentada numa poltrona e falava ininterruptamente, contando coisas de
Petersburgo e repetindo, inclusivamente, verdadeiras frases feitas. André
aproximou-se dela, acariciou-lhe os cabelos e perguntou-lhe se se sentia refeita da
viagem. Ela respondeu-lhe e continuou a tagarelar.
Uma carruagem tirada por seis cavalos estava diante da escada. Lá fora era
noite, uma noite sombria de Outono. O cocheiro nem sequer podia ver os varais do
carro. Na escada agitavam-se pessoas com lanternas na mão. A imensa casa tinha
todas as suas grandes janelas iluminadas. No vestíbulo juntavam-se, acotovelando-
se, os criados servos, que todos queriam dizer adeus ao jovem príncipe. Na grande
sala estava reunida toda a gente da casa: Mikail Ivanovitch. Mademoiselle
Bourienne, a princesa Maria e a jovem esposa de André. Este último tinha sido
chamado ao gabinete do pai, que queria despedir-se dele a sós. Todos os estavam
aguardando.
Quando André — penetrou no gabinete do pai, o velho príncipe, de óculos e
roupão branco, traio com que não recebia ninguém, a não ser o filho, estava
sentado a sua mesa e escrevia. Voltou-se.— Vais-te embora? — interrogou ele, continuando a escrever. — Vim dizer-lhe
adeus.
— Dá cá um beijo, aqui. — Indicava-lhe o local. — Obrigado, obrigado.
— Porque é que me está a agradecer?
— Porque tu não és homem para fazer amanhã o que podes fazer hoje... Não te
agarras às saias das mulheres. A tropa antes de tudo. Obrigado! Obrigado! —
Continuava a escrever e a pena ia-lhe salpicando o papel. — Se tens seja o que for
para me dizeres, fala. Posso fazer as duas coisas ao mesmo tempo.
— Queria falar-lhe de minha mulher... Estou bastante apoquentado por ter de
a deixar entregue a si,
— Que estás tu para aí a dizer? Vamos, de que precisas?
— Quando chegar a hora do parto, peço-lhe que mande vir de Moscovo um
médico-parteiro... Para que ele esteja presente nesse momento.
O velho príncipe pousou a pena, e, como se não compreendesse, fitou no filho
um olhar severo.
— Bem sei que nada se pode fazer quando a natureza não obra por si mesma
— disse André, visivelmente perturbado. — Reconheço que num milhão de casos
deste género só um, talvez, não corre bem, mas ela tem lá essa mania, e eu
também. Temos de acreditar que a embruxaram. Teve sonhos e tem medo.
— Hum! Hum!... — tartamudeou o velho, continuando a escrever. — Está bem,
farei o que me pedes.
Firmou, com uma larga assinatura, a carta que escrevera e depois voltou-se
bruscamente para o filho. Pôs-se a rir.
— Espetaste-te, hem?!
— Que diz, meu pai?
— A tua mulher — respondeu ele, conciso e sem subterfúgios.
— Não compreendo — replicou o filho.
— E nada a fazer, meu velho. São todas a mesma coisa: não nos podemos
descasar. Não tenhas receio; não direi nada a ninguém; mas tu sabes com o que
podes contar.
Agarrou o filho com a mão ossuda e delgada, abanou-o, olhando-o, fixamente,
com as suas pupilas vivas, como se o quisesse atravessar de lado a lado. Depois, de
novo soltou uma gargalhada fria.
O filho teve um suspiro, e com isso confessava que o pai tinha adivinhado, ovelho continuou a dobrar e a lacrar a carta, manejando o lacre, o sinete e o papel
com a sua agilidade habitual.
— Nada a fazer! É uma bela mulher! Farei tudo o que for preciso, está
descansado — disse ele, continuando a sua tarefa.
André calou-se. Estava ao mesmo tempo contente e descontente de que o pai
o tivesse compreendido. O velho ergueu-se e entregou a carta ao filho.
— Ouve — disse-lhe ele. — Não te preocupes com a tua mulher. O que se
puder fazer, far-se-á. E agora ouve. Aqui tens uma carta para Mikail Ilarionovitch.
Peço-lhe aqui que te mande para onde for necessário e não te conserve muito
tempo no estado-maior: é um lugar detestável. Diz-lhe que me lembro sempre
dele e da nossa velha amizade. Depois manda-me dizer como é que ele te recebeu.
Agora anda cá.
Falava com tanta volubilidade que não acabava, sequer, a maior parte das
palavras, mas o filho estava muito habituado a, ouvi-lo. Conduziu-o até junto de
uma papeleira, abriu-a, puxou uma gaveta e tirou de lá um caderno verde coberto
pelos caracteres da sua caligrafia alongada, cerrada e ágil.
— Naturalmente, eu morrerei antes de ti. Quero que saibas que estão aqui os
meus apontamentos. É necessário transmiti-los ao imperador depois da minha
morte. Aqui está um papel de crédito e uma carta: é um prémio para aquele que
escrever a história das campanhas de Suvorov. Manda isto para a Academia. Aqui
está o meu diário. Lê-o depois de eu me ir embora, tens que aprender.
André não disse ao pai que ainda teria certamente muitos anos para viver.
Compreendia que o momento não era para dizer coisas dessas.
— Tudo farei, meu pai — disse ele.
— E agora adeus! — Deu-lhe a mão a beijar, e apertou-o nos braços.— Lembra-
te de uma coisa, príncipe André: se fores morto, eu, velho, como sou, sentirei uma
grande dor... — Calou-se bruscamente e continuou em seguida numa voz firme e
sonora: — Mas se eu vier a saber que tu não te portas como filho, que és, de
Nicolau Bolkonski, isso para mim será.., uma vergonha! — rematou.
— Aí está uma coisa que meu pai podia ter evitado dizer-me — observou o
filho sorrindo.
O velho ficou calado.
— Há ainda outra coisa que lhe queria pedir — prosseguiu André. — Se eu for
morto e se me nascer um filho, não o afaste de sua casa, e, como ontem lhe disse,deixe-o crescer a seu lado. Peço-lhe, pai.
— Não será necessário entregá-lo a tua mulher? — disse o velho, soltando
uma gargalhada.
Estavam calados em frente um do outro. O pai olhava o filho bem nos olhos e o
queixo tremia-lhe, num movimento nervoso.
— A despedida acabou.., vai! — disse repentinamente – Vai — repetiu, numa
voz forte e colérica, abrindo a porta.
— Que foi? O que aconteceu? — perguntaram as duas princesas, ao verem
André e a furtiva silhueta do velho, de roupão branco, sem cabeleira, de óculos,
com fulgurações de voz irritada. André limitou-se a suspirar, sem responder.
— Bom — disse ele, dirigindo-se à mulher.
Pôs nesta simples palavra um acento trocista, que parecia dizer: «Chegou
agora o momento de tu fazeres as tuas choraminguices.»
— Já. André?! — exclamou a princesinha empalidecendo e olhando-o com
terror.
André tomou-a nos braços. A princesa soltou um grito e caiu-lhe desmaiada no
ombro.
O príncipe André, com todo o cuidado, afastou-a, examinou o estado da mulher
e fê-la assentar, docemente, numa poltrona.
— Adeus. Maria — disse para a irmã em voz baixa; beijou-a, pegando-lhe nas
mãos, e afastou-se em passos rápidos.
A jovem princesa continuava estendida na poltrona; Mademoiselle Bourienne
aspergia-lhe a cara. A princesa Maria, enquanto amparava a cunhada, com os seus
lindos olhos rasos de lágrimas não deixava de olhar a porta por onde o príncipe
André desapareceu, traçando sobre ele o sinal da cruz. Do gabinete vinham, como
se fossem tiros de pistola, as explosões furiosas, e muito repetidas, do velho, que
se assoava estrepitosamente. Mal André saiu, abriu-se a porta do gabinete e
apareceu uma figura severa de roupão branco.
— Foi-se embora? Bom, está bem! — disse o velho, lançando um olhar irritado
à princesinha, ainda estendida, desmaiada. Depois abanou a cabeça, furioso, e
bateu com a porta.
SEGUNDA PARTE
[I] [II] [III] [IV] [V] [VI] [VII] [VIII] [IX] [X] [XI] [XII] [XIII] [XIV] [XV] [XVI]
[XVII] [XVIII] [XIX] [XX] [XXI]
[I]
Em Outubro de 1805 os exércitos russos ocupavam um certo número de cidades
e de aldeias do arquiducado da Áustria, onde estavam chegando constantemente
regimentos frescos, vindos da Rússia, grande encargo para a população, indo
concentrar-se ao pé da fortaleza de Braunau. Braunau era o quartel-general do
comandante-chefe. Kutuzov. A 11 de Outubro de 1805, um dos regimentos de
infantaria acabado de chegar estacionava a cerca de meia milha da cidade,
aguardando a visita do comandante-chefe. Embora as localidades e a paisagem
nada tivessem de russo — eram pomares, muros de pedra, telhados, montanhas
ao longe —, e não obstante o carácter estrangeiro da população, que olhava os
soldados cheia de curiosidade, o regimento tinha exactamente o aspecto de
qualquer outro regimento russo que se estivesse preparando para uma revista
fosse onde fosse em plena Rússia.
Na véspera à noite, na última etapa, o regimento recebera a comunicação de
que o general-chefe viria inspeccioná-lo. Embora as próprias palavras da ordem do
dia tivessem parecido pouco claras ao comandante do regimento e delas se não
pudesse inferir que as tropas deveriam envergar fardamento de campanha, foi
resolvido, em conselho dos comandantes de batalhão, apresentar o regimento de
grande uniforme, partindo do princípio de que mais vale tudo do que nada. E foi
assim que os soldados, depois de uma marcha de trinta verstas, passaram a noite
em claro, arranjando-se e polindo-se, enquanto os oficiais comandantes de
companhia contavam os do estado-maior e homens e os repartiam. Pela manhã o
regimento deixara de ser uma massa desordenada e em tropel, como na véspera,
durante a última etapa, para se transformar numa massa compacta de dois mil
homens em que todos sabiam o lugar que lhes competia e o que tinham a fazer e
em que cada botão, cada correia, estava onde devia estar, luzindo de asseio. Nem
só no exterior reinava a ordem; se o general comandante se lembrasse de
espreitar por debaixo das fardas, poderia verificar que cada soldado vestia camisalavada, e em cada uma das mochilas havia os objectos da ordem — «savão e
sovela», como diziam os soldados. Apenas um pormenor causava uma certa
preocupação. Era o calçado. Mais de metade do regimento tinha as botas rotas. A
culpa, no entanto, não era do comandante, pois, apesar das constantes
reclamações, a intendência austríaca nada fornecera do que se pedira e o
regimento já caminhara mil verstas.
O general comandante era um militar já idoso, de pele sanguínea,
sobrancelhas e suíças grisalhas, de sólida estatura, largo de peito e de ombros.
Envergava um uniforme novo, todo flamante, bem vincado, com grandes dragonas
douradas, que em vez de lhe esmagarem os ombros maciços lhos soerguiam. Dava
a impressão de alguém contentíssimo de desempenhar um dos actos mais solenes
da sua vida. Passeava de cá para lá diante dos cordões de tropa, um pouco
trôpego no andar e as costas algo vergadas. Via-se bem que admirava o seu
regimento, que estava orgulhoso dele e que lhe dera a própria alma. Apesar disso,
o seu andar hesitante parecia querer dizer que além dos interesses militares o
preocupavam ideias puramente mundanas, e, que não era estranho o belo sexo.
— Bom. Mikafia Mitritch — disse ele para um dos comandantes de batalhão.
Este oficial deu um passo em frente sorrindo; via-se bem que ambos estavam de
muito boa disposição. — Não tivemos mãos a medir esta noite. Sim, senhor, de
qualquer maneira o regimento não é dos piores.., hem!
O comandante de batalhão percebeu o gracejo e pôs-se a rir.
— Até no campo de manobras do czar faria figura.
— Hem?! — exclamou o comandante.
Nesta altura, na estrada que vinha da cidade, onde haviam colocado
sentinelas, apareceram dois cavaleiros: um ajudante-de-campo seguido de um
cossaco.
Era o estado-maior que o enviava para esclarecer o general sobre o ponto
pouco claro da ordem do dia, a saber, que o general-chefe desejava encontrar o
regimento exactamente no mesmo estado em que ele se apresentava durante as
marchas, de capote, as armas nas gualdrapas, sem preparativos de qualquer
espécie. Kutuzov recebera na véspera um membro do Conselho Superior de
Guerra, chegado de Viena, que vinha propor-lhe e pedir-lhe que operasse o mais
depressa possível a sua junção com os exércitos do arquiduque Fernando e de
Mack, e Kutuzov, que considerava esta junção desvantajosa, entre outrosargumentos favoráveis ao seu ponto de vista tinha a intenção de mostrar ao
general austríaco o estado lamentável do exército que chegava da Rússia. Era por
isso que ele desejava passar revista ao regimento, e, deste modo, quanto mais
deplorável o estado dos homens maior a sua satisfação. Conquanto o ajudante-de-
campo não fosse conhecedor de todos estes pormenores, transmitiu ao
comandante do regimento o desejo expresso do general-chefe no sentido de
encontrar os homens de capote e gualdrapas e acrescentou que, no caso contrário,
seria grande o seu descontentamento. Ao ouvir estas palavras, o comandante
baixou a cabeça, encolheu os ombros, e deixou cair os braços, num gesto de
lassidão.
— Fizemo-la bonita! — exclamou. — Era o que eu lhe dizia. Mikalia Mitritch.
Estamos em campanha, quer dizer de capotes às costas. Ah, meu Deus!. —
acrescentou, avançando com um ar decidido. — Senhores comandantes de
companhia! — gritou, na sua voz de comando. — Sargentos!... Sua Excelência
demora-se? — prosseguiu, dirigindo-se ao ajudante-de-campo com um acento de
respeitosa deferência para com a, pessoa a quem aludia.
— Dentro de uma hora, segundo creio.
— Teremos tempo de mudar de fardas?
— Não sei, meu general...
O comandante do regimento, avançando ele próprio pelo meio das fileiras,
tratou de mandar envergar os capotes. Os comandantes de companhia começaram
a correr, os sargentos mexiam-se. Os capotes não estavam em muito bom estado.
Instantaneamente, as fileiras, até então silenciosas e em ordem, principiaram a
ondular, a debandar; ouviu-se um burburinho de vozes. Por toda a parte havia
soldados que iam e vinham, atarefados, movimentos de ombros que sacudiam as
mochilas, sacos que se punham à cabeça, capotes que se extraíam dos sacos ou
braços que se levantavam para enfiar as mangas.
Meia hora depois tudo voltara ao estado primitivo, e de tal maneira que as
fileiras negras estavam cinzentas. O comandante, no seu trôpego andar,
apresentou-se diante do regimento e, a distância, percorreu-o com os olhos.
— Que vem a ser isto ainda? Que significa isto? — gritou ele, detendo-se. —
Comandante da 3ª companhia!...
— Ao general o comandante da 3ª companhia! Ao general o comandante da 3ª
companhia! — ouviu-se repetir nas fileiras, e um ajudante-de-campo deslocou-separa procurar o oficial, que tardava em aparecer.
Quando as vozes prestáveis gritando que o general «perguntava pela 3ª
chegaram, a pouco e pouco, ao seu destino, o oficial procurado saiu das fileiras, e,
embora fosse já de certa idade e pouco habituado a correr, tomou a marcha
acelerada, desajeitadamente, na ponta dos pés, em direcção ao general.
Os traços do capitão exprimiam o desassossego do estudante a quem o
professor pergunta uma lição que ele não estudou. O nariz vermelhusco, natural
consequência de certa intemperança, cobrira-se-lhe de manchas e a boca tremia-
lhe. O comandante do regimento olhava-o dos pés à cabeça enquanto ele, meio
sufocado, se aproximava, encurtando o passo, pouco a pouco.
— Não tarda que mande os seus homens vestir sarafanas! Que quer isto dizer?
— gritou o comandante, com o queixo saliente, apontando para as fileiras da 3ª
companhia, onde se via um soldado com um capote que não era da cor da ordem, o
qual se salientava no meio de todos os outros. — E você, onde é que você estava?
Estamos à espera do general-chefe e você abandona o seu posto? Hem?... Eu vou-
lhe ensinar a vestir os seus soldados para se apresentarem à revista!... Hem!...
O comandante da companhia, sem tirar os olhos do general, apertava cada vez
mais os dois dedos contra a pala do quêpi, como se só aquele gesto o pudesse
salvar.
— Então, o que tem a dizer? Quem é que na sua companhia anda mascarado
de húngaro? — prosseguiu o comandante do regimento, em tom ao mesmo tempo
severo e gracioso.
— Excelência...
— O quê. Excelência? Excelência! Excelência! Que quer isso dizer? Excelência.
Ninguém sabe o que isso vem a ser.
— Excelência, é o Dolokov, que foi degradado... — volveu o oficial, em voz
muito baixa.
— E então, foi degradado em marechal ou em soldado? Se é soldado deve
vestir-se como toda a gente, de acordo com o regulamento.
— Excelência! Foi Vossa Excelência quem o autorizou para a marcha...
— Autorizei-o? Autorizei-o? Ora aí está, são todos assim, vocês, os rapazes! —
exclamou o comandante do regimento, serenando um pouco. — Eu autorizei-o?
Dizem-vos uma coisa, e vocês, imediatamente... — Calou-se. — Dizem-vos uma
coisa e vocês... — E então? — concluiu, de novo furioso. — Queira mandar vestiros seus homens convenientemente.
E o comandante do regimento, depois de lançar um olhar ao ajudante-de-
campo, prosseguiu na sua inspecção, caminhando sempre vacilante. Via-se bem
que até o próprio furor lhe era agradável e que, percorrendo as fileiras, procurava
ainda qualquer outro pretexto para se encolerizar. Tendo passado uma
descompostura a um oficial por causa de uma gorjeira mal polida e a outro por
virtude de um mau alinhamento, avançou para a 3ª companhia.
— Isto é que é posição? Onde tens o teu pé? Onde tens o teu pé? — gritou, em
voz furibunda, ainda o separavam cinco homens de Dolokov, vestido com um
capote azulado.
Dolokov rectificou imediatamente a posição da sua perna, na fileira, e fixou o
general com os seus olhos brilhantes e escarninhos.
— Porque é que tu estás com um capote azul? Tira isso... Sargento! Dispam-
no!... Cana... — Não teve tempo de acabar.
— General! Eu devo executar as ordens que me dão, mas não suportar... —
disse precipitadamente Dolokov.
— Não se fala na forma!... Não se fala, não se fala!...
— Não sou obrigado a tolerar injúrias — concluiu Dolokov, em voz alta e
inteligível.
Os olhos do general e os do soldado encontraram-se. O general não respondeu,
contentando-se em repuxar, colérico, a bandoleira muito esticada.
— Mude de capote, se faz favor — disse ele, afastando-se.
[II]
— Aí vem! — gritou nesta altura a sentinela.
O comandante do regimento, corando, correu para o seu cavalo; trémulo,
pousou o pé no estribo, montou, desembainhou a espada, e, com ar radioso e
decidido, abrindo a boca de lado, preparou-se para dar as vozes de comando. O
regimento sacudiu-se, como um pássaro que espaneja as asas, e ficou imóvel.
— Sentido!...— gritou, numa voz vibrante, onde havia para ele, general,
satisfação, para o regimento severidade e para o comandante que chegavadeferência.
Uma caleche vienense, alta e azul, tirada por seis cavalos, vinha avançando,
com um ligeiro ruído de ferragens, num trote rápido, ao longo da larga estrada
desempedrada, que dois renques de árvores ladeavam. Atrás da caleche
galopavam os oficiais às ordens e uma escolta croata. Sentado ao lado de Kutuzov
vinha um general austríaco, de uniforme branco, que contrastava no meio dos
uniformes negros dos oficiais russos. A caleche parou em frente das fileiras do
regimento. Kutuzov e o companheiro conversavam em voz baixa, e aquele teve um
vago sorriso no momento em que, no seu andar pesado, punha os pés no estribo
do carro, dando a impressão de não perceber estarem ali dois mil homens que, de
respiração suspensa, fitavam nele os olhos, nele e no comandante do regimento,
Uma voz de comando ressoou, o regimento ondulou de novo e apresentou
armas. No meio de um silêncio de morte, ouvia-se a voz débil do general-chefe. O
regimento soltou um urro: «Saúde para Sua Ex.., celência.., lência.., lência.,.» E de
novo tudo ficou silencioso. Kutuzov, de princípio, deixou-se estar parado enquanto
o regimento desfilava; depois, ao lado do general de farda branca, a pé e seguido
da comitiva, percorreu de um lado para o outro as fileiras dos soldados.
Pela maneira como o general comandante do regimento saudava com a sua
espada o general-chefe, comendo-o com os olhos, sempre hirto e correcto, e pela
forma como ele, inclinando-se para diante, seguia o general na sua marcha através
das fileiras de soldados, só com dificuldade dominando o andar claudicante, e ainda
pelo modo como se aproximava, a galope, à mínima palavra ou ao mínimo gesto
do seu superior, era evidente estar cumprindo as suas obrigações de subordinado
com mais satisfação ainda do que cumpria as suas obrigações de comandante. O
regimento, graças à severidade e ao zelo do seu general comandante,
apresentava-se em muito melhor estado do que os demais regimentos chegados
na mesma altura a Braunau. Ao todo havia apenas, entre doentes e retardatários,
duzentos e dezassete homens. E tudo estava em perfeito estado, salvo as botas
dos soldados.
Kutuzov percorreu as fileiras, detendo-se, de tempos a tempos, para dirigir
algumas palavras amáveis aos oficiais seus conhecidos da guerra da Turquia, e, por
vezes, dirigia-se também aos soldados. Ao inspeccionar as botas, encolheu os
ombros por mais de uma vez, apontando-as ao general austríaco, como a dizer
que, se a ninguém podia censurar, nem por isso devia deixar de verificar o mauestado em que se encontrava o calçado do regimento. O comandante a todo o
momento se precipitava para a frente, com receio de perder qualquer palavra do
que se dizia a respeito do seu regimento. Na retaguarda de Kutuzov, a uma
distância que permitia ouvir todas as palavras pronunciadas em voz baixa, seguia
a comitiva, composta de vinte pessoas, que, falavam umas com as outras e por
vezes até se riam. O militar que seguia na primeira fila atrás do general-chefe era
um garboso ajudante-de-campo: nem mais nem menos que o príncipe Bolkonski. A
seu lado marchava Nesvitski, oficial superior de alta estatura e muito gordo, de
belo rosto sorridente e bom, com os olhos sempre húmidos. Nesvitski não podia
deixar de se rir dos modos de um oficial de hússares morenaço que marchava ao
seu lado. Este, impassível, de ar imperturbável, fitava, muito sério, as costas do
comandante do regimento, copiando cada um dos seus movimentos. De cada vez
que este vacilava em cima das pernas ou dobrava a espinha, ele imitava-lhe tal
qual o gesto e a curvatura. Nesvitski ria e acotovelava os outros, chamando-lhes a
atenção para a pantomima.
Kutuzov passava lenta e pesadamente por diante daqueles milhares de olhos
como que desorbitados no esforço de o não perderem de vista. Ao chegar por
alturas da 3.a companhia, o general-chefe parou bruscamente. A comitiva, que não
contava com aquela paragem, não pôde evitar de colidir com ele.
— Eh. Timokine! — exclamou ele, reconhecendo o comandante do nariz
vermelhusco que fora repreendido por causa do capote azul.
Teria parecido impossível que alguém pudesse tomar uma posição mais hirta
que aquela que Timokine assumira quando das observações que lhe fizera o
comandante do regimento, mas a verdade é, que no momento em que o general-
chefe o interpelou tal era a sua rigidez na posição de sentido que, se a cena se
prolongasse, lhe teria sido impossível conservar essa atitude. Por isso mesmo.
Kutuzov, compreendendo a sua posição, e porque lhe não queria senão bem,
seguiu adiante com um sorriso imperceptível na sua face inchada e desfigurada
pela cicatriz de uma velha ferida.
— Mais um camarada de Ismail (Episódio militar russo, muito célebre, de 1790.
(N, dos T.) — disse ele — Um valente militar! Estás contente com ele? —
perguntou ao comandante do regimento.
O comandante do regimento, sem saber que a sua imagem se estava a reflectir
no espelho do oficial de hússares que seguia atrás dele, deu um passo em frente,estremeceu e disse:
— Contentíssimo. Alta Excelência!
— Todos nós temos as nossas fraquezas — observou Kutuzov, sorrindo, e
afastando-se. — Aquele tinha a sua predilecção por Baco.
O comandante do regimento teve receio de ser censurado por isso e não
respondeu. O oficial de hússares neste momento reparou na cara do capitão do
nariz vermelhusco e na rigidez com que ele apresentava o ventre na posição de
sentido e imitou-o com tal flagrância que Nesvitski não pôde conter o riso. Kutuzov
voltou-se. Era evidente que o oficial de hússares tinha uma mobilidade de
expressão extraordinária. No mesmo instante em que Kutuzov voltava a cabeça,
mimava ele uma máscara apropriada à circunstância e assumia imediatamente o
ar mais sério, mais respeitoso e mais inocente deste mundo.
A 3ª companhia era a última e Kutuzov ficara pensativo, como que a procurar
lembrar-se fosse do que fosse. O príncipe André, saindo da comitiva do general,
aproximou-se dele e disse-lhe em francês, em voz baixa:
— Permito-me dizer-lhe que me pediu lhe lembrasse o degradado Dolokov,
deste regimento.
— Onde que está o Dolokov? — perguntou Kutuzov. Dolokov, que tinha
enverga4do um capote cinzento de soldado, não esperou que o chamassem. A
silhueta bem desenhada de um soldado louro e de olhos azuis saiu das fileiras.
Aproximou-se do general-chefe e apresentou armas.
— Alguma queixa? — perguntou Kutuzov, franzindo um pouco as sobrancelhas.
— É o Dolokov — esclareceu o príncipe André.
— Ah! — exclamou Kutuzov. — Espero que a lição te sirva de emenda. Cumpre
o teu dever de soldado. O imperador é clemente. E eu não te esquecerei, se o
mereceres.
Os brilhantes olhos azuis fixaram-se no general-chefe com a mesma arrogância
com que se tinham pousado no comandante do regimento, como se Dolokov
quisesse desse modo rasgar o véu de convenções que tanto distanciava um
general-chefe de um simples soldado.
— O único favor que peço. Mui Alta Excelência — disse ele, na sua voz lenta,
sonora e firme — é que me seja permitido apagar a minha falta e mostrar a minha
dedicação ao imperador e à Rússia.
Kutuzov fez meia volta. Houve nos seus olhos um sorriso no género daqueleque por eles perpassara depois da sua entrevista com o capitão Timokine. Franziu
as sobrancelhas, como se com isso quisesse significar que tudo quanto Dolokov lhe
tinha dito, que tudo quanto ele próprio lhe poderia ter respondido era coisa desde
há muito, muito tempo, conhecida, que tudo isso o enfadava grandemente e que
não era nada disso que seria preciso dizer. Voltou costas e encaminhou-se para a
caleche.
O regimento formou por companhias e dirigiu-se para os acantonamentos, não
distantes de Braunau, onde devia reabastecer-se de botas e de fardamentos e
descansar depois de tão duras jornadas.
— Não tem razão de queixa de mim. Prokor Ignatich? — interrogou o
comandante do regimento no momento em que se avizinhou da 3ª companhia, que
partia para o seu destino, e ao aproximar-se do capitão Timokine, que ia na
vanguarda. Depois de uma revista tão bem sucedida, a cara do general
transbordava de mal reprimida alegria. — É serviço do czar... Não pode ser de
outra maneira... Às vezes, durante as inspecções, uma pessoa está um bocadinho
excitada... Eu sou o primeiro a pedir desculpa, conhece-me bem... Os meus
agradecimentos! — E estendeu a mão ao capitão.
— Desculpe-me, meu general, se eu ouso replicou o capitão, com o seu nariz
muito vermelho, sorrindo, e mostrando deste modo que lhe faltavam dois dentes
da frente, partidos, com uma coronhada, em Ismail.
— E a propósito, comunique ao Dolokov que eu me não esquecerei dele se
tiver juízo. E diga-me, se faz favor, que é que ele faz, como é que ele se comporta?
E...
— É muito pontual no serviço. Excelência.., mas quanto ao carácter... —
redarguiu Timokine.
— Quê? Que há quanto ao carácter? — inquiriu o general.
— Há dias. Excelência... Às vezes é bem educado, bom rapaz, sensível. Outras
vezes é uma verdadeira fera. Dizem que matou um judeu na Polónia, como sabe...
— Sim, sim, é verdade; mas ainda assim é preciso que a gente seja tolerante
para um rapaz que caiu em desgraça. Tem muito boas relações... E também é
preciso...
— Eu compreendo. Excelência — disse Timokine, com um sorriso em que se lia
que compreendera o desejo do superior.
— Sim, sim.O comandante do regimento foi em busca de Dolokov, pelo meio das fileiras, e
estacou o cavalo.
— No primeiro recontro podes ganhar os teus galões — disse-lhe. Dolokov
fitou-o sem dizer palavra e sem alterar o seu ar sorridente e trocista.
— Bom, agora está tudo em ordem. Um copo de aguardente a cada homem —
acrescentou, de maneira a que todos o ouvissem. — A todos obrigado! Louvado
seja Deus! — E, ultrapassando a companhia, aproximou-se de outra.
— Sim, apesar de tudo, é boa pessoa; é um tipo com quem a gente se entende
— disse Timokine a um oficial subalterno que marchava a seu lado.
— Numa palavra, um rei de copas! — comentou este rindo. Era a alcunha do
comandante do regimento entre os seus homens.
A boa disposição dos oficiais depois da revista propagou-se aos soldados. As
companhias marchavam alegremente. Havia ditos nas fileiras.
— Diziam que Kutuzov era cego de um olho...
— E é... Não tem um olho.
— Não é verdade.., rapazes, vê melhor do que tu. Viu tudo, até as botas e
meias...
— Ah, rapazes, quando ele me olhou para as pernas — eu disse cá comigo...
— E o outro, o austríaco, que vinha com ele? Parecia que lhe tinham despejado
em cima uma lata de cal. Estava todo enfarinhado. Aposto que eles dão lustro na
farda, como nós damos às espingardas.
— Eh. Fedechu!... Ouviste-o dizer quando principiava a batalha? Estavas tão
perto dele. Dizem que o Bonaparte em pessoa esta em Brunov.
— Bonaparte? Que tolice! É só isso que tu sabes? Desconheces que os
Prussíanos já se revoltaram? Os Austríacos estão a tratar-lhes da saúde. Quando
eles acabarem, então é que principia a guerra com o Bonaparte. E aquele a dizer
que o Bonaparte está em Brunov! É um imbecil, claro está! Abre-me melhor essas
orelhas!
— Ah, esses malditos furriéis! A 5ª, como tu estás a ver, já lá está na aldeia. A
esta hora já eles estão a fazer o kacha, e nós ainda tão longe.
— Não tens um biscoito?
— E ontem deste-me tabaco? Está bem, rapaz. Bom, bom. Deus seja contigo!
— Se ao menos fizessem alto... Assim, ainda vamos andar mais umas cinco
verstas de barriga vazia.— Hem! Era bem melhor que os Alemães nos oferecessem carruagens. Vai ou
não vai? Colossal!
— Isto por aqui, rapazes, é tudo gente de pé descalço. Ao menos lá para cima
eram polacos, súbditos da coroa russa, enquanto agora, rapazes, são tudo
alemães.
— Os cantores à frente! — gritou o capitão.
E na vanguarda do batalhão reuniram-se, vindos de diversos lados, uns vinte
homens. O tambor-mor voltou a cabeça para os cantores, e, com um aceno, entoou
a lenta canção dos soldados, que começa assim: «Não é a aurora, o Sol que está a
nascer...», e termina: «É, é, rapazes, é a glória que nos espera com o tio
Kamenski...» Esta canção tinha sido composta na Turquia e actualmente cantavam-
na na Áustria, apenas com esta pequena variante: onde estava «tio Kamenski»
estava agora «tio Kutuzov».
Depois de ter entoado o último verso, com um ar marcial e fazendo um amplo
gesto com a mão, o gesto de quem atira qualquer coisa para longe, o tambor, um
belo soldado dos seus quarenta anos, grande e seco, envolveu num olhar severo os
seus cantores, franzindo as sobrancelhas. Depois, bem certo de que todos os olhos
estavam fitos nele, deu a impressão de erguer, com as duas mãos, à altura da
cabeça qualquer objecto precioso e invisível, conservou-o aí alguns segundos e, de
repente, foi como se o tivesse atirado para longe:
«Ai, minha casa, minha casa,
Minha casa nova em folha.»
Vinte vozes entoaram o refrão e o tocador de ferrinhos, apesar do peso do
equipamento, saltou para a frente do batalhão e, de costas, sempre a, andar,
agitando os ombros, parecia ameaçar quem quer que fosse com o seu instrumento.
Os soldados marcavam o compasso com os braços, cantando, e a sua marcha
acompanhava o ritmo da canção. Lá para trás ouviu-se um rolar de rodas, um chiar
de molas, um trote de cavalos. Era Kutuzov e a sua comitiva que regressavam à
cidade. O general-chefe fizera um sinal indicando que os soldados podiam continuar
a marchar livremente, e na sua cara, assim como na dos membros da sua comitiva,
lia-se contentamento, o contentamento que lhes causava ouvir aquelas canções,
ver o soldado que dançava e o aspecto jovial dos seus camaradas. Na segundafileira, no flanco direito, por onde a caleche ultrapassou o regimento em marcha,
chamava a atenção, sem dar por isso, o soldado de olhos azuis. Dolokov, que,
marcial e gracioso como poucos, marchava ao ritmo da canção, olhando para toda
a gente que passava com o ar de quem tem pena de que não fossem todos com
ele, de que não fizessem todos parte da sua companhia. Um oficial de hússares da
comitiva de Kutuzov, aquele mesmo que parodiara o comandante do regimento,
deixou passar a caleche e aproximou-se de Dolokov.
Durante algum tempo, em Petersburgo, este oficial. Jerkov, fizera parte do
grupo de boémios de que o Dolokov fora o chefe. Já o tinha encontrado no
estrangeiro naquela situação de soldado, mas achara melhor não o conhecer.
Agora, depois da conversa de Kutuzov com o ex-oficial, veio para ele com a
satisfação de quem encontra um velho amigo.
— Meu querido amigo, como vais tu? — lançou, no meio do alarido das vozes,
procurando acertar o passo da sua montada com o dos soldados.
— Eu? — redarguiu Dolokov friamente. — É como estás vendo. A galharda
canção parecia sublinhar a alegre despreocupação das palavras de Jerkov e a
deliberada frieza de Dolokov.
— Bom, e então, que tal te dás com os teus chefes? — perguntou Jerkov.
— Muito bem. É boa gente. E tu, conseguiste meter-te no estado-maior?
— Estou em missão. Sou adido.
Calaram-se.
«Lá vai o falcão, lá vai.
Da minha manga direita partiu.»
dizia a canção, acordando uma involuntária sensação de coragem e bravura. A
conversa dos dois teria sido muito diferente, com certeza, se não decorresse ao
som daquela canção.
— Sempre é verdade que os Austríacos foram derrotados? — perguntou
Dolokov.
— Quem diabo o sabe? É o que dizem.
— Tanto melhor — replicou Dolokov, seco e breve, ao ritmo da cadência.
— Aparece uma destas noites. Jogamos uma partida de faraó — disse Jerkov.
— Estás então cheio de dinheiro?— Aparece.
— Não posso. Fiz uma promessa. Não bebo nem jogo enquanto me não
reintegrarem no meu posto.
— Bom, então no primeiro recontro...
— É o que vais ver,
Calaram-se ambos outra vez.
— Se precisares de alguma coisa aparece no estado-maior; estou às tuas
ordens... — volveu Jerkov.
Dolokov pôs-se a rir.
— É melhor não te preocupares comigo. Aquilo de que precisar não o pedirei a
ninguém; eu próprio me encarregarei de o obter.
— Bom, sim, eu apenas...
— Bom, e eu também...
— Até à vista.
— Adeus.
«E bem longe e bem livre
Na nossa terra natal.»
Jerkov cravou as esporas no seu cavalo; este, excitado, deu duas ou três voltas
no mesmo lugar, sem saber como havia de partir. Depois, sacudiu a cabeça e
largou a trote, contornando o batalhão, para se aproximar da caleche, seguindo ao
ritmo do canto.
[III]
De regresso da inspecção. Kutuzov, acompanhado do general austríaco,
penetrou no seu gabinete, e, chamando um ajudante-de-campo, ordenou-lhe que
lhe trouxessem certos papéis relativos ao estado das tropas em campanha e a
correspondência emanada do arquiduque Fernando, que comandava a vanguarda.
O príncipe André Bolkonski entrou dai a pouco, com os papéis pedidos, no
gabinete do general-chefe. Diante de um mapa estendido sobre a mesa sentavam-se Kutuzov e o general austríaco membro do Conselho Superior de Guerra.
— Ah!... — exclamou Kutuzov, olhando para Bolkonski, como se lhe quisesse
dizer que esperasse, continuando, porém, em francês a conversa principiada,
— Só tenho uma coisa a dizer, general — Kutuzov punha na sua linguagem
expressões e entoações distintas, destacando nítida e lentamente cada palavra, e
via-se bem que tinha prazer em ouvir-se a si próprio. — Só tenho uma coisa a
dizer. Se isso não dependesse senão da minha vontade, de há muito que teriam
sido satisfeitos os desejos de Sua Majestade o Imperador Francisco. De há muito
que eu teria operado já a minha fusão completa com o arquiduque. E, acredite na
minha palavra de honra, entregar o alto comando do exército a um general mais
competente e mais hábil do que eu, coisa que não falta na Áustria, e ver-me livre
de uma responsabilidade tão pesada, eis o que seria um grande alívio para mim.
Mas as circunstâncias são mais fortes do que nós, general.
Kutuzov sorriu com o ar de quem quer dizer: «Você está no seu pleno direito
de não acreditar em mim, e o certo é que isso me não dá o mal, pequeno cuidado,
mas o que você não tem é motivo para pretender tal coisa. E aí é que está a
questão.»
O general austríaco não tinha cara de muito satisfeito, mas via-se obrigado a
responder a Kutuzov no mesmo tom.
— Pelo contrário — volveu ele, numa voz irritada e desabrida, em perfeita
contradição com as palavras lisonjeiras que pronunciava — Pelo contrário, a
participação de Vossa Excelência na obra comum é altamente apreciada por Sua
Majestade, mas nós somos de opinião de que os adiamentos actuais privam os
gloriosos exércitos russos e o seu general-chefe dos louros que eles estão
habituados a conquistar nos campos de batalha — Era evidente que esta última
frase já a trazia ele preparada.
Kutuzov inclinou-se, sem deixar de sorrir.
Nesse caso, fundamentando-me, especialmente, na última carta com que me
honrou Sua Alteza o Arquiduque Fernando, tenho razão para crer que as tropas
austríacas sob o comando de um colaborador tão hábil como o general Mack,
obtiveram urna vitória decisiva e já não têm necessidade da nossa ajuda.
O general franziu as sobrancelhas. Embora ainda não houvesse notícias seguras
de uma derrota austríaca, já havia muitas indicações que confirmavam os boatos
desfavoráveis postos a correr; por isso a suposição de Kutuzov de que osAustríacos estavam vitoriosos tinha mais um ar de mofa que outra coisa. Kutuzov
continuava a sorrir disfarçadamente, sempre com o mesmo ar de quem diz que
havia razões para crer que assim fosse. Efectivamente, a última carta que
recebera do exército de Mack falava em vitória e numa situação estratégica a
todos os títulos excelente.
— Deixe ver essa carta — disse Kutuzov para o príncipe André. — Queira fazer
o favor de ouvir.
E Kutuzov, com o seu sorriso trocista aos cantos dos lábios, leu em alemão ao
general austríaco o passo seguinte da carta do arquiduque Fernando:
Todas as nossas forças, cerca de setenta mil homens, estão já
concentradas, de sorte que nós podemos atacar e esmagar o inimigo
no caso de ele vir a atravessar o Lech. Visto que UIm está em nosso
poder, temos a vantagem de conservar as duas margens do Danúbio, e
deste modo, em qualquer altura, desde que o inimigo não atravesse o
Lech, somos nós quem pode atravessar o Danúbio, lançando-nos sobre
as linhas de comunicação, e voltar a atravessar o Danúbio mais abaixo;
se o inimigo se lembrasse de lançar todas as suas forças contra os
nossos fiéis aliados, nós não o deixaríamos realizar essa operação.
Deste modo, aguardaremos, corajosamente, o momento em que o
exército imperial russo esteja inteiramente preparado para encontrar,
em seguida, muito facilmente, as possibilidades de dar ao inimigo o
destino que ele merece.
Kutuzov, concluída que foi a leitura de toda esta fraseologia, soltou um suspiro
de alívio e fitou com amabilidade e atenção o membro do Conselho Superior de
Guerra.
— Mas Vossa Excelência sabe muito bem que uma das regras da prudência é
prever sempre o pior — observou o general austríaco, que estava morto por
acabar com aquela brincadeira e chegar aos factos.
Não pôde impedir-se de lançar um olhar ao ajudante-de-campo.
— Perdoe-me, general — interrompeu Kutuzov, voltando-se igualmente para o
príncipe André.— Ouça, meu amigo, vá pedir ao Kozlovski todos os relatórios dos
nossos espiões. Aqui tem duas cartas do conde de Nostitz, aqui tem a carta doarquiduque Fernando e mais isto — acrescentou, entregando-lhe diversos papéis.
— Com tudo isto faça-me um memorando, uma nota, bem clara, em francês,
mencionando tudo o que sabemos acerca das operações do exército austríaco.
Depois, entregue tudo a Sua Excelência.
O príncipe André inclinou-se de modo a fazer compreender que tudo
compreendera desde as primeiras palavras: não só o que fora dito, como também
o que Kutuzov teria desejado dizer-lhe. Pegou nos papéis e, depois de uma
continência circular, dirigiu-se para a sala de visitas, pisando silenciosamente o
tapete.
Embora ainda se não tivesse passado muito tempo depois que André deixara a
Rússia, já tinha mudado bastante. Os seus traços fisionómicos, os seus gestos, o seu
andar, não conservavam já quase nada daquele ar afectado de outrora, do seu
falso ar de fadiga e de indolência. Dava a impressão de um homem que não tem
tempo de pensar na opinião que os outros possam ter a seu respeito, ocupado que
está a fazer seja o que for que ele considera muito interessante. Parecia mais
satisfeito consigo próprio e com os outros que dele se aproximavam. No seu sorriso
e no seu olhar havia mais alegria e sedução.
Kutuzov, que ele fora encontrar já na Polónia, acolhera-o muito amavelmente,
prometera-lhe não o esquecer, distinguira-o entre todos os demais ajudantes-de-
campo, trouxera-o consigo a Viena e confiara-lhe missões muito sérias. De Viena
escrevera ao seu velho camarada, o pai do príncipe André.
«O teu filho promete Vir a ser um oficial fora do vulgar, pelos serviços
prestados e pela firmeza da sua pontualidade no serviço. Considero-me feliz por
ter ao meu dispor um tal subordinado.»
No estado-maior de Kutuzov, entre os seus camaradas e em geral no exército,
o príncipe André, tal como acontecia na sociedade de Petersburgo, gozava de duas
reputações absolutamente opostas. Uns — a minoria — consideravam-no um ser
diferente de todos os demais, esperavam dele grandes coisas, ouviam-no,
admiravam-no e imitavam-no: e com estes ele era simples e amável. Os outros —
a maioria — não gostavam dele, consideravam-no um indivíduo inchado de
orgulho, com um carácter frio e desagradável. Mas de tal modo André se
comportava para com eles que estes o estimavam e até mesmo o temiam.
Ao penetrar na sala de visitas, depois de ter deixado o gabinete de Kutuzov, o
príncipe André, com os papéis na mão, aproximou-se do seu camarada, o ajudante-de-campo de serviço. Kozlovski, que estava a ler um livro ao pé da janela.
— Então, príncipe? — perguntou Kozlovski.
— Ordem para redigir uma nota explicando a razão pela qual não avançamos.
— E porquê?
André fez-lhe sinal de que também não sabia.
— Não há notícias de Mack?— perguntou Kozlovski.
— Não.
— Se fosse verdade ele ter sido derrotado já haveria notícias.
— Provavelmente — redarguiu André, dirigindo-se para a porta de serviço.
Nessa altura entrava, num repente, batendo com a porta, um general
austríaco de grande estatura, de capote, um lenço preto amarrado à cabeça, e
pendente do pescoço o colar de Maria Teresa: acabava, evidentemente, de
chegar. O príncipe André deteve-se.
— O general-chefe. Kutuzov? — disse rapidamente o recém-chegado com um
duro sotaque alemão, olhando em roda, e dirigindo-se, sem se deter, para a porta
do gabinete.
— O general-chefe está ocupado — replicou Kozlovski, interceptando os passos
do general desconhecido e vedando-lhe o caminho. — Quem devo anunciar?
O general desconhecido mediu com um olhar de desdém Kozlovski, que era de
pequena estatura, como que surpreendido de o não terem reconhecido.
— O general-chefe está ocupado — repetiu tranquilamente Kozlovski.
O general franziu as sobrancelhas e os lábios tremeram-lhe de cólera. Puxou de
uma agenda, traçou apressadamente algumas palavras a lápis, rasgou a folha,
entregou-a, aproximou-se da janela a passos rápidos, deixou-se cair numa cadeira e
ficou-se a olhar os circunstantes, como que a dizer: «Com que direito é que me
olham assim?» Em seguida ergueu a cabeça, estendeu o pescoço, como se fosse
falar, e depois, como se fosse cantarolar qualquer coisa, negligente, emitiu um som
estranho, que logo saiu estrangulado. A porta do gabinete abriu-se e no limiar
apareceu Kutuzov. O general da cabeça amarrada, com o ar de quem procura
evitar um perigo, aproximou-se de Kutuzov em largos passos rápidos das suas
magras pernas, fazendo uma vénia ao general russo.
— Eis na sua frente o infeliz Mack — articulou, numa voz alterada.
Kutuzov, de pé à porta do seu gabinete, conservou durante instantes uma
expressão absolutamente impassível. Depois, um vinco, como uma vaga, lheperpassou pela máscara e as rugas da testa desapareceram -lhe; inclinou-se com
deferência, fechou os olhos, deixou passar Mack adiante, sem dizer palavra, e em
seguida puxou a porta.
O boato já então espalhado da derrota dos Austríacos e da rendição do
exército inteiro em UIm era exacto. Meia hora depois eram enviados ajudantes-de-
campo em todas as direcções anunciando que dentro em pouco também o exército
russo, até aí inactivo, se iria defrontar com o inimigo.
O príncipe André era um dos raros oficiais do estado-maior a quem
interessava, antes de mais nada, a marcha geral das operações militares. Ao ver
Mack e tendo conhecido por miúdo os pormenores da sua derrota compreendeu
que metade da campanha estava perdida, que os exércitos russos se encontravam
numa situação bastante crítica e anteviu com nitidez o destino reservado às
tropas e o papel que a ele próprio competiria. Sem querer, experimentou uma
alegria violenta ao pensar que a presunçosa Áustria estava humilhada e que
dentro de uma semana talvez lhe fosse dado tomar parte num recontro entre
Russos e Franceses, o primeiro desde Suvorov para cá. Mas receava o génio de
Bonaparte, capaz de vencer a bravura dos exércitos russos, e ao mesmo tempo não
podia admitir que o seu herói fosse posto em xeque.
Emocionado e transtornado pelos seus pensamentos. André retirou-se para os
seus aposentos na intenção de escrever ao pai a sua carta quotidiana. No corredor
encontrou-se com o seu camarada Nesvitski e o jocoso Jerkov; como sempre,
estavam ambos muito alegres:
— Porque é que estás tão macambúzio? — perguntou Nesvitski, ao ver o rosto
pálido e os olhos brilhantes do príncipe André.
— Não há grande motivo para estarmos contentes — redarguiu Bolkonski.
Na mesma altura em que os três camaradas se encontravam, cruzavam-se com
eles, vindos do outro lado do corredor, o general austríaco Strauch, adido ao
estado-maior de Kutuzov para efeitos de abastecimento das tropas russas, e um
membro do Conselho Superior de Guerra, que chegara na véspera. O largo
corredor tinha espaço suficiente para que os generais passassem livremente,
apesar da presença dos três oficiais, mas Jerkov, acotovelando Nesvitski,
segredou-lhe, num frouxo de riso:
— Eles aí estão!... Eles aí estão!... Em linha, deixem-nos passar! Façam favor
de os deixar passar!Era evidente que os generais queriam passar sem chamar a atenção para
honras supérfluas. O burlesco Jerkov assumiu de súbito um ar de estúpida alegria
que afectava não poder dominar.
— Excelência — disse ele em alemão, dando um passo em frente e dirigindo-se
ao general austríaco .— Tenho a honra de o felicitar.
Numa vénia e desastradamente, como as crianças quando aprendem a dançar,
fez deslizar um pé, depois o outro.
O general membro do Conselho Superior de Guerra mediu-o de alto a baixo
com um olhar severo; mas ao reparar na gravidade daquele sorriso parvo não
pôde recusar-lhe um momento de atenção. Semicerrou w olhos, atento.
— Tenho a honra de o felicitar. Chegou o general Mack, em muito bom estado,
apenas com uma feridazinha aqui — acrescentou, abrindo-se em sorrisos e
apontando para a sua própria testa.
O general franziu as sobrancelhas, voltou costas e continuou o seu caminho.
— Meu Deus, que ingenuidade! (Em alemão no texto russo. (N, dos T.) —
exclamou, furioso, depois de ter dado alguns passos.
Nesvitski, rindo, passou o braço por detrás do príncipe André, mas este,
empalidecendo ainda mais, sacudiu-o, tomando um ar descontente, e voltou-se
para o lado de Jerkov. O nervosismo em que o puseram a presença de Mack e as
notícias sobre a situação, além da lembrança do que aguardava o exército russo,
fizeram-no explodir perante o gracejo despropositado de Jerkov:
— Meu caro senhor — exclamou numa voz incisiva, com um ligeiro tremor no
queixo —, se lhe dá prazer fingir de palhaço, não serei eu quem o impeça disso,
mas devo adverti-lo de que se torna a ter a audácia de fazer de histrião na minha
presença eu lhe ensinarei como deve comportar-se.
Nesvitski e Jerkov ficaram tão surpreendidos com estas palavras que fitaram
Bolkonski sem dizer palavra, os olhos muito abertos.
— Porquê? Limitei-me a apresentar-lhe as minhas felicitações — balbuciou
Jerkov.
— Eu não estou a brincar consigo, peço-lhe que se cale! — gritou-lhe Bolkonski,
e, tomando o braço de Nesvitski, seguiu em frente, deixando Jerkov no meio do
corredor, sem saber que responder.
— Então, que é isso? — disse Nesvitski para o sossegar.
— Quê?! — exclamou o príncipe André, detendo-se, tomado ainda deexaltação. — É preciso que compreendas que nós ou somos oficiais ao serviço do
nosso czar e da pátria, que nos regozijamos com os êxitos gerais e deploramos os
fracassos, ou então não passamos de simples lacaios, indiferentes à vida dos nossos
amos. Quarenta mil homens massacrados e o exército dos nossos aliados dizimado,
e acha que é caso para rir — acrescentou, como se esta frase em francês viesse
fortalecer o seu raciocínio. Está certo num rapaz insignificante como esse indivíduo
que elegeu para seu amigo, mas não em si, não em si. Só os garotos é que se
divertem desta maneira— continuou em russo, pronunciando a palavra «garotos»
com um sotaque francês, pois receou que Jerkov o pudesse ouvir.
Ficou um momento silencioso, como que à espera de ouvir o que o oficial
replicaria. Mas este fez meia volta e saiu do corredor.
[IV]
O regimento dos hússares de Pavlogrado estava acantonado a umas duas
milhas de Braunau. O esquadrão de que era junker Nicolau Rostov ocupava a
aldeia alemã de Saltzeneck. Na mais confortável casa da povoação fora alojado o
comandante do esquadrão, o capitão Denissov, a quem toda a gente conhecia, na
divisão de cavalaria, por Vaska Denissov. O junker Rostov, desde que se juntara
ao regimento, na Polónia, estava aboletado com o comandante do esquadrão.
A 11 de Outubro, no mesmo dia em que a notícia do desastre de Mack pusera
o quartel-general em sobressalto, a vida de campanha do esquadrão prosseguia
tão tranquilamente como até essa data. Denissov, que perdera a noite, ainda não
regressara a casa, quando Rostov, de manhãzinha, voltou a cavalo da distribuição
da forragem. No seu uniforme de junker. Rostov aproximou-se dos degraus da
porta, impelindo o cavalo, depois passou a perna por cima da garupa, num gesto
rápido e juvenil, ficou um momento com o pé no estribo, como se o deixasse com
saudades, e por fim saltou para o chão, chamando a ordenança.
— Eh! Bondarenko, amigo do meu coração! — exclamou ele para um hússar
que se tinha precipitado para o cavalo. — Passeia-o, meu velho! — continuou, com
essa ternura fraterna e jovial que os rapazes, quando se sentem felizes,
testemunham a toda a gente.— As suas ordens. Excelência — respondeu o pequeno russo, sacudindo
alegremente a cabeleira.
— Toma atenção, dá-lhe um bom passeio.
Outro hússar se tinha igualmente precipitado, mas Bondarenko já tomara
conta do bridão. Era evidente que o junker costumava dar boas gorjetas e que
valia a pena servi-lo. Rostov passou a mão pela cernelha do cavalo, acariciando-o
depois pela garupa e ficou alguns instantes parado nos degraus da entrada.
«Esplêndido! Isto é que vai dar um cavalo!», disse de si para consigo, sorrindo,
com o sabre suspenso da mão. Depois galgou rapidamente os degraus, fazendo
tilintar as esporas. O alemão em casa de quem estava aboletado, de colete de
flanela e boné de algodão, empunhando uma forquilha para apanhar estrume,
olhava para a cena plantado na soleira da porta do estábulo. Assim que viu
Rostov, o rosto iluminou-se-lhe. Sorriu alegremente e piscou-lhe o olho: — Bom
dia! Bom dia! (Em alemão no texto russo. (N, dos T.) — repetiu, com visível
satisfação por ter oportunidade de saudar o rapaz.
— Já a trabalhar! (Em alemão no texto russo. (N, dos T.) — exclamou Rostov
com o mesmo ar amistoso e jovial que lhe andava sempre na cara. — Vivam os
Austríacos! Vivam os Austríacos! Viva o imperador Alexandre! — acrescentou,
dirigindo ao proprietário as próprias palavras que este muita vez tinha repetido.
— E viva toda a gente! (Em alemão no texto russo. (N, dos T.).
Rostov, imitando o alemão, agitou no ar a barretina e gritou, rindo:
— E viva toda a gente! (Em alemão no texto russo. (N, dos T.) — Embora o
alemão, que andava a limpar a estrebaria, não tivesse qualquer motivo para estar
alegre, o que, aliás, se dava também com Rostov, que fora com o seu pelotão
buscar forragens, os dois homens olharam um para o outro cheios de entusiasmo e
de fraternal afecto, trocaram sinais amistosos com a cabeça e separaram-se,
aquele para regressar à cavalariça, este para entrar na casa onde habitava na
companhia de Denissov.
- Que é do teu amo? — perguntou
Rostov a Lavruchka, o velhaco impedido de Denissov,
muito popular no regimento.
— Desde ontem à noite que ninguém lhe põe a vista em cima. Está claro que
jogou e perdeu — replicou Lavruchka. — Quando ganha, já sei, volta para casa
cedo, para se gabar, mas quando não aparece logo pela manhã, isso só quer dizerque está sem cheta. Aparece aí furioso. Devo servir o café?
— Está bem, traz, traz.
Dez minutos mais tarde. Lavruchka trazia o café.
— Lá vem ele — disse o impedido.— Isto vai ser bonito!
Rostov olhou para a janela e viu Denissov, que regressava a casa. Denissov era
um homenzinho vermelhusco de cara, com uns olhos muito negros e brilhantes, de
bigodes e cabelos desgrenhados. Trazia o dólman desabotoado e as pregas das
largas calças flutuavam-lhe nas pernas; a barretina, toda amarrotada,’ caía-lhe
para a nuca. Macambúzio, de cabeça baixa, aproximou-se da escada.
— Lavruchka! — gritou, colérico, escamoteando o r. — Anda cá, tira-me isto,
idiota!
— Bom, lá vou, sim senhor — disse a voz de Lavruchka.
— Ena, já estás levantado! — exclamou Denissov, ao entrar em casa.
— Há quanto tempo! — tomou-lhe Rostov. — Já fui à forragem e já vi a
Fräulein Matilde.
— Caramba! Pois eu, meu rapaz, ontem fiquei limpo! — exclamou Denissov,
que não pronunciava os rr. — Que azar! Que azar! Começou logo que te foste
embora. Eh! chá!
Denissov, de sobrancelhas franzidas, com uma espécie de sorriso que lhe
descobria os dentes curtos e sólidos, pôs-se a desgrenhar os cabelos com as duas
mãos, metendo os dedos curtos pela espessa floresta das guedelhas pretas.
— Foi o Diabo que me levou a casa daquele Rato! (era a alcunha de um dos
camaradas de regimento) — disse ele, passando as duas mãos pela testa e pelas
faces. — Imagina tu que não tive uma única carta, uma única.
Denissov pegou no cachimbo aceso, que o criado lhe entregara, apertou-o na
mão, e fê-lo crepitar; depois bateu com ele no sobrado, continuando a gritar.
— Vasa simples ganha, paroli perdido: vasa simples ganha, paroli perdido!
(Expressão usada no jogo do faraó. (N, dos T.)
O tabaco a arder do cachimbo tinha ido todo para o chão; quebrou o cachimbo
e atirou-o fora. Depois ficou calado, fitando Rostov alegremente, com os olhos
pretos cintilantes.
— Ainda se ao menos tivesse havido mulheres... Mas não, além do copo, não
havia mais nada que fazer. Ah! Se a gente em breve se pudesse bater! E a valer!
Eh! Quem está aí? — Voltara-se para a porta, ao ouvir uns passos pesados, que sedetiveram, um ressoar de botas e de esporas e uma tosse respeitosa.
— É o sargento! — disse Lavruchka.
Denissov ainda mostrou um ar mais descontente.
— Que estopada! — exclamou, atirando com uma bolsa em que havia algumas
moedas de ouro. — Conta, meu velho, conta. Rostov, conta o dinheiro que lá está
e esconde-me aí a bolsa debaixo da almofada.— Em seguida saiu da sala ao
encontro do sargento.
Rostov pegou no dinheiro e maquinalmente começou a separar as moedas
novas das moedas velhas, em montinhos, pondo-se a contá-las.
— Ah! Telianine! Bom dia! Ontem à noite fiquei limpo! — dizia Denissov na
sala contígua.
— Onde, onde? Em casa do Bikov ou do Rato?... Calculava isso — respondeu
outra voz, esta aflautada, e em seguida entrou o tenente Telianine, um oficial de
pequena estatura, do mesmo esquadrão.
Rostov atirou para debaixo da almofada a bolsa de Denissov e apertou a mão
húmida que lhe estendiam. Telianine fora expulso da Guarda, antes da campanha,
por um motivo qualquer. Era um oficial bem comportado, mas ninguém gostava
dele; Rostov em especial, que não podia vencer nem dissimular a insensata
aversão que aquele homem lhe inspirava.
— Então, moço cavaleiro, está contente com o meu Gratchik? — perguntou
ele. (Gratchik era um cavalo de sela, para passeio, que Telianine vendera a
Rostov.)
O tenente nunca olhava a direito para o interlocutor; os olhos giravam
continuamente de um lado para o outro,
— Vi-o passar há bocado...
— Oh, é óptimo, é um bom cavalo — retorquiu Rostov, embora o animal que
ele comprara por setecentos rublos nem metade valesse. — Mas está a coxear da
mão direita... – acrescentou.
— Tem o casco fendido. Não tem importância. Hei-de-lhe ensinar como se põe
um cravo.
— Obrigado — tornou Rostov.
— Fica combinado. Não é segredo. Mas ainda há-de vir a agradecer-me o
cavalo que lhe vendi.
— Então o melhor é mandar buscar o cavalo — disse Rostov, morto por se verlivre do oficial, e saiu da sala para dar ordens nesse sentido.
No vestíbulo. Denissov, de cachimbo na boca, acocorado à turca no limiar da
porta, ouvia o relatório do sargento. Ao ver Rostov, franziu as sobrancelhas,
mostrando-lhe, por cima do ombro, com o dedo polegar. Telianine, que ficara
sentado no quarto atrás dele, e abanou a cabeça em sinal de aversão.
— Ali está um tipo que eu não tolero! — exclamou sem se importar com a
presença do sargento.
Rostov teve um gesto de ombros que queria dizer: «Também eu não, mas que
havemos de fazer?» e, depois de dar as suas ordens, voltou para o pé de Telianine.
Telianine continuava sentado na atitude indolente que mostrara momentos
antes, esfregando as pequenas mãos brancas. «Sempre há cada cara neste
mundo!», dizia de si para consigo Rostov, ao voltar ao quarto.
— Então mandou buscar o cavalo? — inquiriu Telianine, levantando-se e
lançando um olhar distraído à sua roda.
— Mandei.
— Ora vamos lã ver isso. Vim apenas para pedir ao Denissov as ordens de
ontem. Tem-nas consigo. Denissov?
— Não, ainda não. Eh! Onde é que vai?
— Vou ensinar a este rapaz como se ferra um cavalo — disse Telianine.
Desceram a escada e dirigiram-se à cavalariça. O tenente ensinou a Rostov
como convém pregar os cravos numa ferradura e voltou para casa.
Quando Rostov regressou, em cima da mesa havia urna garrafa de aguardente
e uma salsicha. Denissov estava sentado e a pena rangia sobre o papel. Olhou
para Rostov com uma expressão sombria.
— Estou a escrever-lhe — disse.
Pôs o cotovelo na mesa, apoiou-se, com a caneta na mão, e, evidentemente
contentíssimo por ter oportunidade de dizer de uma só vez tudo o que tinha
intenção de escrever, pormenorizou a Rostov o conteúdo da carta entre mãos.
— Como vês, meu velho — comentou —, enquanto não gostamos de alguém é
como se estivéssemos a dormir. Não somos mais que pó... Mas assim que um
homem começa a amar, é como se fosse Deus, sente-se puro, é como nos primeiros
dias da Criação... Que temos ainda? Manda-o para o diabo que o carregue! Não
tenho tempo — gritou para Lavruchka, que se aproximava, sem se perturbar.
— Que quer que eu faça? Foi o senhor quem o mandou. O sargento vem peloseu dinheiro.
Denissov franziu as sobrancelhas, quis levantar a voz, mas calou-se.
— Ora esta! Que estopada! — disse como para consigo mesmo. — Que
dinheiro há ainda na bolsa? — perguntou a Rostov.
— Sete moedas novas e três velhas.
— Isto é que é uma espiga! Que estás tu aí a fazer, idiota? Vai chamar o
sargento — gritou Denissov para Lavruchka.
— Se tu quiseres. Denissov, eu empresto-te dinheiro. Eu tenho dinheiro —
disse Rostov corando.
— Não gosto de pedir dinheiro emprestado aos amigos, não, não gosto —
balbuciou Denissov.
— Se não aceitares o meu dinheiro, como camarada que és, fico contrariado.
Realmente tenho dinheiro – repetiu Rostov. Denissov aproximou-se da cama, para
tirar a bolsa de baixo da almofada.
— Onde é que puseste a bolsa. Rostov?
— Aí sob a almofada.
— Não está cá nada.
Denissov atirou para o chão as duas almofadas. A bolsa não estava.
— É extraordinário!
— Espera. Naturalmente não procuraste bem! — interveio Rostov, pegando
nas almofadas, uma por uma e sacudindo-as.
Levantou igualmente a colcha e sacudiu-a. A bolsa, nada.
— Ter-me-ia eu esquecido? Qual quê? Até disse de mim para comigo que tu a
punhas debaixo da cabeça, como se fosse um tesouro. Foi aí que eu pus a bolsa.
Onde está ela? — acrescentou, dirigindo-se a Lavruchka.
— Eu não pus os pés no quarto. Onde a pôs é que ela deve estar.
— Mas não esta!
— É sempre assim, deixa as coisas em qualquer parte e depois esquece-se
delas. Veja nas algibeiras.
— Não, se eu não tivesse pensado que era como fosse um tesouro — repetiu
Rostov — Lembro-me perfeitamente de que a arrumei.
Lavruchka desfez a cama, espreitou por debaixo barras, sob a mesa, revolveu a
casa inteira e acabou por parado no meio do quarto. Denissov seguia, sem dizer
palavra, todos os movimentos de Lavruchka, e quando o viu, parado no meio doquarto, os braços abertos, declarando que, a bolsa não estava em parte alguma,
olhou para Rostov.
— Rostov, deixa-te de brincadeiras
Rostov sentiu pousado nele o olhar de Denissov, ergueu os olhos e voltou logo
a baixá-los. Todo o sangue das veias, que lhe estava parado na garganta, lhe subiu
à cara. Não podia respirar.
— Aqui não estiveram senão o tenente e os senhores. Tem de estar em
qualquer parte — disse Lavruchka.
— Pois então, filho de uma velha, mexe-te, procura — subitamente Denissov,
corando muito e lançando-se sobre o pedido com um gesto ameaçador. — A bolsa
já ou, então, o chicote! Vai tudo corrido a chicote!
Rostov, olhando Denissov bem de frente, abotoou o dólman, afivelou o sabre e
pós a barretina.
— É o que eu te digo, é preciso que a bolsa apareça — gritava Denissov,
sacudindo a ordenança pelos ombros e encostando-a à parede.
— Basta. Denissov: eu sei quem a levou — disse Rostov, que avançou para a
porta, sem erguer os olhos.
Denissov soltou Lavruchka, reflectiu um momento e compreendendo,
certamente, a quem Rostov aludia, agarrou-o por um braço.
— Que imbecilidade! — gritou com tamanha violência que as veias do pescoço
e da testa se lhe intumesceram. — É o que eu te digo: estás doido, não te
consentirei uma coisa dessas! A bolsa tem de estar aqui! Ainda que eu tenha de
arrancar a pele a este miserável, a bolsa há-de aparecer.
— Eu sei quem a levou — repetia Rostov, em voz trémula, encaminhando-se
para a porta.
— E eu repito-te que não te atrevas a fazer uma coisa dessas! — gritou
Denissov, lançando-se sobre o junker, para o não deixar partir.
Mas Rostov soube evitá-lo, olhando-o fixamente e bem de frente com tamanho
rancor que dir-se-ia ser Denissov o seu maior inimigo.
— Estás a perceber o que dizes? — articulou, com a voz trémula. — Além de
mim mais ninguém havia neste quarto. Por isso, se não foi o outro...
Não pode concluir, e desapareceu.
— Diabos te levem a ti e a todos os outros! ouviu Rostov, quando se afastava.
Rostov dirigiu-se a casa de Telianine.— O meu amo não está, foi ao estado-maior — disse-lhe a ordenança. —
Aconteceu alguma coisa? — acrescentou, ao ver os traços descompostos do junker.
— Nada.
— Por pouco que o apanhava aqui — continuou o impedido.
O estado-maior ficava a três verstas de Saltzeneck. Rostov, sem voltar a casa,
montou a cavalo e para lá se dirigiu. Na aldeia onde estava instalado o estado-
maior havia um albergue frequentado pelos oficiais.
Foi para aí que Rostov se encaminhou. A porta estava o cavalo de Telianine.
Na segunda sala do albergue encontrou o tenente abancado diante de um
prato de salsichas e de uma garrafa de vinho.
— Ah!, então por aqui, meu rapaz? — disse ele, sorrindo e erguendo as
sobrancelhas.
— É verdade — volveu Rostov, como se dizer coisa tão simples lhe custasse
muito, e sentou-se a uma mesa vizinha. Ambos ficaram calados. Estavam presentes
dois alemães e um oficial russo. Ninguém falava, e apenas se ouvia o tinir das facas
de encontro aos pratos e o ruído das maxilas do tenente, que mastigava. Quando
Telianine acabou de almoçar, puxou de uma bolsa. Com os dedos delicadamente
soerguidos fez deslizar a argola, pegou numa moeda de ouro e, franzindo as
sobrancelhas, pagou ao criado.
— Depressa, se fazes favor — recomendou.
A moeda era nova. Rostov levantou-se e aproximou-se de Telianine.
— Deixe-me ver essa bolsa — disse em voz muito baixa, quase ininteligível.
Com o olhar esquivo e o ar sempre preocupado. Telianine deu-lhe a bolsa.
— É bonita, não é?... É... é... — disse, empalidecendo repentinamente. — Pode
vê-la, meu rapaz.
Rostov pegou na bolsa, examinou-a, fez o mesmo ao dinheiro que ela continha,
e depois fitou Telianine. O tenente, como de costume, deixou errar os olhos, sem o
fixar, e de repente pareceu divertir-se.
— Se chegarmos a Viena, tenho a impressão de que deixamos lá tudo, mas por
agora não há onde gastar o nosso dinheiro senão nestes antros. Dê cá a bolsa,
meu rapaz, vou andando.
Rostov não disse palavra.
— Que é que vai fazer? Vem almoçar? Não se come nada mal aqui —
prosseguiu Telianine. — Deixe ver.Estendeu a mão para a bolsa. Rostov deixou que ele a tomasse. Telianine
pegou-lhe e enfiou-a na algibeira dos calções de montar, enquanto erguia as
sobrancelhas, despreocupadamente, e abria a boca como para dizer. «Pois claro,
meto a minha bolsa na algibeira, não há nada mais simples, e ninguém tem nada
com isso.»
— Então, meu rapaz? — disse, com um suspiro, e por debaixo das sobrancelhas
erguidas lançou um olhar a Rostov.
Faíscas eléctricas correram e saltaram entre os olhos de ambos, duas, três
vezes, num relâmpago.
— Venha daí — disse Rostov, pegando-lhe num braço. E conduziu-o quase a
força para o pé da janela,
— Esse dinheiro é do Denissov. O senhor fez-lhe mão baixa — murmurou-lhe ao
ouvido.
— O quê?... O quê... Atreve-se?... O quê?... — disse Telianine.
Saíra nestas palavras qualquer coisa de desesperado, como a pedir perdão. Ao
ouvir esta voz. Rostov sentiu que lhe tiravam como que um grande peso de cima
dos ombros. Uma grande alegria o tomou, ao mesmo tempo que sentia piedade
pelo infeliz que estava diante dele. Mas era preciso ir até ao fim.
— Só Deus sabe o que esta gente vai pensar — balbuciou Telianine, pegando
na barretina e dirigindo-se para uma salinha que estava vazia. — Temos de nos
explicar.
— Eu sei o que digo e posso prová-lo — afirmou Rostov.
— Eu...
Todos os músculos do rosto assustado e pálido de Telianine estremeceram. O
seu olhar continuava fugidio, mas fito no chão, e não ousava levantar os olhos
para Rostov; abafou uma espécie de soluço.
— Conde!... Não perca um homem... Aqui tem este miserável dinheiro, tome
conta dele... — Atirou-o para cima da mesa. — Tenho um pai, que é velho, tenho
um mãe!...
Rostov pegou no dinheiro, evitando o olhar de Telianine, e, sem dizer palavra,
abalou. Mas ao chegar ao limiar da porta, deteve-se e voltou atrás.
— Meu Deus! — exclamou com as lágrimas nos olhos. — Como é que pôde?
— Conde — disse Telianine, aproximando-se do junker.— Não me toque — tornou Rostov, recuando. — Se está precisado de dinheiro,
tome o que aí está.
Atirou-lhe com a bolsa e saiu a correr da estalagem.
[V]
Na noite do mesmo dia, em casa de Denissov, travava-se urna animada
conversa entre os oficiais do esquadrão.
— E eu, na minha opinião, acho que o Rostov deve apresentar as suas
desculpas ao comandante do regimento — dizia para o próprio Rostov, vermelho
como uma papoula, e emocionadíssimo, um capitão, muito alto, de cabelos
grisalhos, grandes bigodes e um rosto duro, sulcado de rugas.
O capitão Kirsten já por duas vezes fora degradado em soldado raso, por
questões de honra, e das duas vezes recuperara o seu antigo posto.
— Não consinto a ninguém que me chame mentiroso! — exclamou Rostov. —
Ele disse-me que eu estava a mentir, e eu retorqui-lhe que quem mentia era ele. E
é assim que as coisas ficarão. Está no seu direito, se, quiser, pôr-me de serviço
todos os dias e mandar-me deter até. Eu é que lhe não apresentarei desculpas,
visto que se ele, como comandante do regimento, entende que lhe não fica bem
dar-me satisfações...
— Calma, calma, meu rapaz; ouça lá — interrompeu o capitão, na sua voz de
baixo, cofiando tranquilamente os longos bigodes. — Disse ao comandante do
regimento, na presença de outros oficiais, que um oficial tinha roubado...
— Não tenho culpa que a conversa se tivesse passado diante de outros oficiais.
Talvez que eu, realmente, não devesse ter falado diante deles; falta-me o jeito
diplomático. Se escolhesse os hússares, é porque estava convencido de que aqui
ninguém se preocupava com essas finezas; e vai ele e diz que eu estava a mentir...
Então é ele quem me deve apresentar desculpas...
— Tudo isso está certo, ninguém diz que o senhor é um poltrão. Não é disso
que se trata. Pergunte ao Denissov se isso é conveniente, se um junker deve pedir
satisfações ao comandante do seu regimento.
Denissov, mordiscando o bigode, ouvia a conversa de sobrecenho carregado,sem querer, ao que parecia, intervir na discussão. Quando o capitão formulou a
sua pergunta, ele meneou a cabeça negativamente.
— O senhor falou nessa vilania ao comandante diante dos oficiais — prosseguiu
o capitão. — Bogdanitch (era o nome do comandante do regimento) mandou-o
calar.
— Não me mandou calar, mas disse-me que eu não falava verdade.
— Sim, mas o senhor respondeu-lhe umas tolices, e é preciso pedir-lhe
desculpa.
— De maneira alguma! — exclamou Rostov.
— Não esperava isto de si — disse o capitão num tom ao mesmo tempo sério e
severo. — O senhor não quer apresentar desculpas; mas, meu amigo, não há
dúvida de que é culpado, não só perante ele, mas perante o regimento inteiro,
perante todos nós. Ouça: se ao menos o senhor tivesse pensado dois minutos e se
se tivesse aconselhado, mas não, foi logo às do cabo, e diante dos oficiais. Que é
que o comandante tinha a fazer? Entregar um oficial à justiça e enlamear todo o
regimento? Desonrar o regimento inteiro por causa de um miserável? Era isto que
se devia ter feito, na sua opinião? Mas nós não pensamos assim: Bogdanitch teve
razão: disse-lhe que o senhor não falava verdade. É desagradável, mas que quer,
meu velho, foi o senhor quem assim o quis. E agora, que se pretendem abafar as
coisas, o senhor, por amor-próprio, não quer apresentar desculpas e deseja pôr
tudo em pratos limpos. Está furioso por o terem posto de serviço permanente, mas
que é que lhe custava apresentar desculpas a um oficial velho e honesto? Seja
qual for, de resto, a atitude de Bogdanitch neste caso, o certo é que é um velho
coronel digno e valente; e o senhor sente-se ofendido, e, quanto a manchar o
regimento, isso não o incomoda? — A voz do capitão tremia, comovida. — O
senhor não vai ficar aqui muito tempo. Se hoje está neste regimento, amanhã já
estará em qualquer outra parte, como ajudante-de-campo. Pouco lhe importa que
venha a dizer-se: «Entre os oficiais do Pavlogrado há ladrões!» Mas a nós, a nós,
isso não nos é indiferente. Não é verdade. Denissov? Isso a nós não nos é
indiferente.
Denissov calava-se e não se mexia, fitando Rostov, de tempos a tempos, com os
seus olhos pretos muito vivos.
— O senhor preza acima de tudo o seu amor-próprio e não quer apresentar
desculpas — continuou o capitão —, mas aos velhos, àqueles que têm envelhecidono regimento, e se Deus quiser nele hão-de morrer, a esses, a honra do regimento
importa muito, e Bogdanitch sabe-o bem. Queremos-lhe muito! Não está certo!
Que o senhor esteja ou não ofendido, eu, por mim, gosto de dizer a verdade. Não
está certo!
O capitão levantou-se e voltou costas a Rostov.
— Ele tem razão, diabos me levem! — exclamou Denissov, erguendo-se de um
salto.— Vamos. Rostov, vamos!
Rostov, corando e empalidecendo ao mesmo tempo, fitava ora um oficial ora
outro.
— Não, meus senhores, não... Não devem pensar... Eu compreendo muito bem,
fazem mal em pensar que eu seria capaz... Eu.., por mim.., sou pela honra, do
regimento... Mas falar nisso para quê?... Hei-de-o mostrar com acções, e para mim
a honra da bandeira... Bem, pouco importa, é verdade, sou culpado!... Tinha as
lágrimas nos olhos. — Sou culpado, inteiramente culpado!... Que é que querem
mais?
— Bom, está bem, conde — disse, voltando-se, o capitão, e bateu-lhe no ombro
com a sua grande manápula.
— Eu tinha-te dito — acrescentou Denissov— que ele era um bom camarada.
— Assim está bem, conde — repetiu o capitão, que o tratava pelo título como
se isso fosse uma recompensa do seu gesto. — Vá apresentar as suas desculpas.
Excelência. Está bem!
— Meus senhores, estou pronto a tudo, nunca mais ninguém ouvirá falar deste
caso — protestou Rostov, numa voz comovida. — Mas desculpas não, cos diabos,
desculpas não. Que querem que eu faça? Que peça desculpa, como um garoto, que
implore perdão?
Denissov pôs-se a rir.
— Tanto pior para si. O Bogdanitch é rancoroso. Há-de-lhe fazer pagar cara a
sua obstinação — disse Kirsten.
— Com mil diabos, não, não é obstinação! Não lhes posso dizer o que sinto..,
não posso.
— Bom, faça o que entender! — exclamou o capitão-adjunto. — E esse
miserável, onde é que ele se meteu? — perguntou a Denissov.
— Deu parte de doente; amanhã a ordem de serviço há-de dá-lo como doente
— respondeu este.— A doença; não há outra desculpa — disse o capitão-adjunto.
— Doente ou não, que me não caia nas mãos, dou cabo dele! — gritou
Denissov, feroz.
Jerkov entrou na sala.
— O que há? — perguntaram os oficiais imediatamente.
— Ordem de marcha, meus senhores. Mack rendeu-se com todo o seu exército.
— Não pode ser!
— Vi-o com os meus próprios olhos.
— Quê? Tu viste o Mack vivo? Em carne e osso?
— Para a guerra!, para a guerra! Vamos beber pela boa nova. E tu, que estás
aqui a fazer?
— Mandaram-me regressar ao meu regimento precisamente por causa desse
diabo do Mack. O general austríaco queixou-se de mim; felicitei-o pelo seu
regresso... Que é isso. Rostov? Que tens tu? Parece que acabas de sair de um
banho quente.
— Temos estado metidos num tal sarilho estes últimos dois dias!
Um ajudante-de-campo do regimento entrou nesse momento e confirmou a
notícia trazida por Jerkov. Havia ordem para se porem em marcha no dia seguinte
de manhã.
— Para a guerra, meus senhores!
— Graças a Deus; estávamos a criar bolor.
[VI]
Kutuzov tinha retirado para Viena, fazendo saltar as pontes do Inn em Braunau
e a do Traun em Lintz. No dia 23 de Outubro, o exército russo atravessava o Enns.
As bagagens, a artilharia e as colunas de tropas atravessaram-no em pleno dia,
formando colunas dos dois lados da ponte.
O tempo estava suave, uma atmosfera de Outono, mas chuvosa. A longa
perspectiva que se descobria das eminências ocupadas pelas batarias que
defendiam a ponte ora se estendia por detrás das cortinas de musselina formada
pela chuva oblíqua, ora se alargava, e na luz brilhante do Sol podiam distinguir-seos objectos a distância como cobertos por uma camada de verniz. Lá em baixo via-
se a cidadezinha, com as suas casas brancas de tectos vermelhos, a sua catedral e
a sua ponte, em cujos flancos corria, em fileiras apressadas, a onda dos exércitos
russos. Na curva que o Danúbio ali formava viam-se barcos, uma ilha e um castelo
com um parque cercado pelas águas da confluência do Enns e do Danúbio. Depois
via-se a margem esquerda do rio, escarpada e coberta de pinheirais, misteriosos
horizontes de cumeadas verdejantes e de desfiladeiros azulados; um pouco mais
adiante, as torres de um convento emergindo de um pinheiral selvagem, tão
cerrado que parecia uma floresta virgem; na distância, e defronte, na outra
margem do Enns, numa eminência, entreviam-se as patrulhas inimigas.
A frente da bataria, lá no alto, estava o comando da retaguarda: um general,
com um oficial às ordens, que examinava o terreno pelo óculo. Um pouco mais para
trás, sentado sobre a carreta de uma peça de artilharia, via-se Nesvitski, enviado
à retaguarda pelo general-chefe. O cossaco que o acompanhava apresentava-lhe
um saco de provisões e um frasco, e Nesvitski regalava os oficiais com pastéis e
kummel autêntico. Estes formavam roda em tomo dele, muito alegres, uns de
joelhos, outros escarranchados, à turca, na erva molhada.
— Não era qualquer imbecil o príncipe austríaco que mandou ali construir um
castelo. Que sítio magnífico! Eh! Então? Os senhores não comem? — dizia
Nesvitski.
— Obrigado, príncipe — respondeu um dos oficiais, que parecia encantado de
se ver assim a conversar com um membro tão importante do estado-maior. —
Soberbo local, realmente! Passámos diante do parque e vimos lá dentro dois
veados; que magnífica residência!
— Olhe, príncipe — disse outro oficial, desejoso de comer mais um pastel, mas
sem coragem de o pedir e, por isso mesmo, fingindo examinar a paisagem. — Olhe,
a nossa infantaria acabou agora mesmo de lá chegar. Lá diante, ao pé daquele
prado, por detrás da aldeia, três soldados estão a puxar qualquer coisa. Vão fazer
uma rica limpeza no palácio — acrescentou com evidente aprovação.
— Sem dúvida — disse Nesvitski — Não, cá por mim, o que eu gostava —
acrescentou, metendo um pastel pela boca abaixo — era de ir até ali.
Apontava para o convento torreado que se descobria no alto da colina. Sorriu;
os olhos fizeram-se-lhe pequenos e brilhantes.
— Não há dúvida, devia ser uma beleza, meus senhores!Os oficiais puseram-se a rir.
— Meter um susto às freirinhas. Parece que são italianas, e novas, segundo
dizem. Palavra de honra, dava cinco anos de vida para ir até lá.
— Tanto mais que elas devem estar aborrecidíssimas — disse, rindo, um oficial
mais atrevido do que os outros.
Entretanto, o oficial às ordens, de serviço, apontava fosse o que fosse ao
general. Este pôs-se a observar pelo óculo.
— Sim, senhor, lá estão eles, lá estão eles! — exclamou, encolerizado,
afastando o óculo e encolhendo os ombros. — Lá estão eles e vão-nos cair em cima
na altura da travessia do rio. Que estarão eles para ali a fazer?
Do outro lado do rio via-se o inimigo a olho nu e uma das suas batarias, por
cima da qual se elevava um fumozinho leitoso. O fumo foi acompanhado,
momentos depois, de uma detonação longínqua e viram-se as tropas russas
estugar o passo na passagem do rio.
Nesvitski, para se fazer valer, levantou-se e, sorrindo, aproximou-se do
general.
— Não quer Vossa Excelência comer também um bocadinho? — disse-lhe ele.
— A coisa vai mal — declarou o general, sem lhe responder. — Os nossos estão
atrasados.
— Quer que vá lá. Excelência? — inquiriu Nesvitski.
— Vá, sim, faça favor — tornou o general, repetindo-lhe as ordens dadas já em
pormenor —, e diga aos hússares que sejam os últimos a atravessar e que
queimem a ponte, como eu ordenei, e que voltem a inspeccionar as matérias
inflamáveis que lá estão.
— Muito bem — respondeu Nesvitski.
Chamou o cossaco que lhe segurava o cavalo, disse-lhe que guardasse as
provisões e o cantil, e, ligeiro, instalou a sua pesada corpulência em cima do
cavalo.
— Palavra de honra, que vou fazer uma visita às freiras — disse para os
oficiais, que olhavam para ele sorrindo, e pôs-se a descer a colina ao longo de um
caminho que serpenteava.
— Ouça, capitão, veja até onde isso vai — gritou o general, dirigindo-se ao
comandante dos artilheiros. — Vamos, para entreter o tempo,
— Serventes, a postos! — comandou o oficial.Momentos depois os artilheiros acorriam alegremente, saindo dos seus
bivaques, e punham-se a carregar as peças.
— Primeira peça! — exclamou o comandante.
A primeira peça deu um salto à retaguarda. Ouviu-se o estampido de um
trovão metálico e o projéctil passou, assobiando, por cima da cabeça dos russos, no
sopé da colina; muito longe do lugar onde estava o inimigo uma nuvem de fumo
veio assinalar o sítio onde o projéctil tinha caído.
Soldados e oficiais rejubilaram ao ouvir a detonação. Todos se levantaram e
puseram-se a observar, lá no fundo, os movimentos das tropas russas, tão visíveis
como se estivessem na palma de uma mão, e mais adiante o movimento do
inimigo, que se aproximava. Nessa altura, o sol rompeu as nuvens e aquele belo
tiro de canhão isolado fundiu-se com o seu fulgor radioso, criando uma sensação de
bravura jovial.
[VII]
Por cima da ponte já tinham passado dois projécteis inimigos e o tumulto ali
era grande. No meio da ponte estava Nesvitski. Tinha-se apeado e ei-lo ali, com a
sua corpulenta pessoa, cerrado contra o parapeito. Voltava-se para o cossaco, que,
com os dois cavalos pela arreata, ficara alguns metros mais atrás. De cada vez que
tentava avançar, os soldados e as viaturas obrigavam-no a retroceder, e
comprimiam-no de novo de encontro às guardas da ponte. Nada mais podia fazer
do que rir.
— Eh, tu, lá de diante — dizia o cossaco para um soldado que conduzia uma
grande viatura, forçando a marcha por cima dos próprios pés dos soldados, contra
os quais avançavam rodas e cavalos. — Eh, tu, não podes esperar? O general quer
passar,
O soldado do comboio, sem prestar atenção à palavra general que lhe
atiravam, gritava para os soldados que lhe impediam a marcha: «Eh, camaradas,
pela esquerda, esperem um bocado!» Mas os camaradas, ombro com ombro,
embaraçando-se nas baionetas, avançavam pela ponte fora em massa compacta.
Debruçando-se sobre o parapeito, o príncipe Nesvitski via as pequenas vagasrápidas e rumorosas do Enns, que, misturando-se e quebrando-se de encontro aos
pegões da ponte, se perseguiam umas às outras. Em cima da ponte também se
espraiavam ondas vivas e monótonas de soldados; barretinas, com grandes
cordões, envoltas em suas capas, mochilas, baionetas, lanças e, debaixo das
barretinas, figuras poderosamente musculadas, de faces cavadas, um ar de fadiga
e despreocupação, pernas Que se moviam na lama viscosa colada às pranchas da
ponte. De onde em onde, por entre as vagas iguais dos soldados, emergia, tal a
espuma branca nas águas do Erms, um oficial com o seu casacão e uma máscara
que ressaltava no meio das dos soldados; de quando em quando, como se fosse um
feixe de palha levado pelas águas, flutuava, por cima das vagas da infantaria, um
hússar a pé, uma ordenança ou um civil; e outras vezes, como uma prancha
flutuante, via-se sobrenadar, cercado por todos os lados, um furgão de regimento
ou uma viatura de oficial cobertos de couro, carregadíssimos.
— Parece que se rompeu um dique — disse o cossaco, detendo-se desesperado.
— Ainda faltam muitos?
— Metade e outros tantos! — exclamou, piscando o olho, um soldado folgazão
que naquele momento passava, de capote esfarrapado; atrás dele surgiu um
soldado já velho.
— Se ele (ele era o inimigo) se lembrasse agora de nos dar um calor em cima
da ponte — murmurou para um camarada, taciturno — não tínhamos tempo de
nos coçar.
E seguiu adiante. Atrás dele vinha outro a guiar uma carroça.
— Onde é que diabo meteram a chave? — gritava uma ordenança, que
acompanhava a viatura, espiolhando-lhe as traseiras. Tanto o homem como a
carroça afastaram-se. Depois apareceu um grupo de soldados muito alegres e que
se via bem estarem embriagados.
— É o que te digo, meu velho, quando ele lhe atirou com a coronha da
espingarda... — dizia, rindo, um dos militares, que tinha o cabeção do capote
levantado e fazia grandes gestos.
— Ah, sim, que rico presunto — respondeu outro soldado, escancarando a
boca.
E foram andando, de modo que Nesvitski não conseguiu perceber quem é que
tinha sido agredido nem o que é que queria dizer aquele presunto.
— Porque é que se puseram agora a correr? Lá porque ele lhes mandou umbalázio, já pensam que estão todos perdidos — disse um sargento, furioso.
— Quando ela passou por mim, a granada — exclamou um soldado muito novo
que, a rir, abria uma boca enorme —, julguei ir desta para melhor. Caramba,
sempre tive um destes medinhos! — acrescentou, como que orgulhoso de ter tido
medo.
E também este foi andando para diante. Depois chegou uma viatura que se
não parecia com qualquer das que tinham passado. Era uma carroça alemã tirada
por dois cavalos, carregada, ao que parecia, com o recheio de uma casa inteira.
Atrás da carroça, guiada por um alemão, vinha amarrada uma bela vaca malhada,
de grandes tetas. Sobre um colchão de penas ia deitada uma mulher que dava de
mamar a uma criança, uma velha c uma rapariga sadia e rubicunda. Via-se
perfeitamente que aqueles emigrantes tinham sido autorizados a circular mercê
de uma licença especial. Os olhos de todos os soldados seguiam as duas mulheres
e, enquanto o comboio ia passando, a passo, todas as observações as tinham por
objecto. Em todas as máscaras se notava a expressão agarotada que a presença
daquelas mulheres sugeria.
— Então, minha salsicha, mudamos de casa?
Está à venda a tiazinha? — interrogou outro soldado, acentuando a última
sílaba (Matucka (tiazinha). (N, dos T.) e dirigindo-se ao alemão, que caminhava, de
cabeça baixa, com grandes passadas e um ar ao mesmo tempo furioso e assustado.
— Olha para o vestido dela! Ah! Com mil diabos!
— Hem! Agradava-te estares aboletado lá em casa. Fedotov?
— Tenho visto muita mulher, meu filho!
— Onde é que vais? — perguntou um oficial de infantaria, que comia uma
maçã, e que também estava de olhos arregalados, todo sorridente, para a
mocetona.
O alemão, cerrando os olhos, fazia menção de não perceber.
— Queres? — disse o oficial, oferecendo uma maçã à rapariga.
A moça sorriu e pegou na maçã. Tanto Nesvitski, como os demais em cima da
ponte, não perderam de vista as mulheres enquanto elas não passaram. Atrás
delas continuaram a passar os mesmos soldados, dizendo sempre as mesmas
coisas, e finalmente houve uma paragem geral. Como costuma acontecer
frequentemente à saída das pontes, os cavalos embaraçaram-se nas viaturas do
regimento e toda aquela massa de tropa ficou detida.— Que diabo de paragem é esta? Não há ordem? — gritavam os soldados. —
Vê lá onde pões os pés! Cos demónios, não sei porque é que esperam! O bom e o
bonito seria se ele deitasse fogo à ponte. Olha, lá fica esmagado aquele oficial... —
E de todos os lados choviam comentários deste género: cada um olhava para o
vizinho e ia fazendo pressão no sentido da saída da ponte.
Estando a olhar para as águas do Erms, que corriam por debaixo da ponte.
Nesvitski sentiu, de repente, um ruído novo para ele, fosse o que fosse que se
aproximava muito depressa.., qualquer coisa muito grande veio cair com estrondo
nas águas.
— Hem! Boa pontaria! — exclamou, carrancudo, um soldado, ali a dois passos,
que se voltara ao ouvir o estampido.
— Dá-nos coragem para andarmos mais depressa — disse outro soldado com
inquietação.
A multidão voltou a mover-se. Nesvitski compreendeu que aquilo fora bala de
canhão.
— Eh! Cossaco! O cavalo — gritou. — Vamos, rapazes, afastem-se! Mexam-se!
Deixem passar!
Foi com dificuldade que conseguiu chegar até ao pé da montada. Sem nunca
deixar de gritar à multidão, conseguiu avançar. Os soldados cerravam fileiras para
lhe dar lugar, mas acabavam por se comprimir contra ele de tal modo que lhe
imobilizavam as pernas, sem querer, eles próprios vítimas da compressão dos
outros.
— Nesvitski! Nesvitski! Eh, malandro! — exclamou, nessa altura, atrás dele
uma voz rouca.
Nesvitski voltou-se e viu, a uns quinze passos de distância, separado dele pela
massa viva da infantaria em marcha, uma criatura muito vermelha, muito negra, a
barretina atirada para a nuca, com um dólman garbosamente aos ombros: era
Vaska Denissov.
— Diz-lhes que nos deixem passar, a esses demónios, a esses filhos do Diabo! —
gritava Denissov, visivelmente num dos seus acessos de fúria. Os olhos negros e
brilhantes como carvão rolavam-lhe nas órbitas inflamadas. Brandia o sabre, que
não tirara da bainha, na pequena mão nua, tão vermelha como a cara.
— Ah! Vaska! — volveu-lhe, alegremente. Nesvistski. — Que fazes aqui?
— É impossível fazer avançar o esquadrão — gritava Vaska Denissov,mostrando os dentes brancos e esporeando o belo murzelo, um beduíno de puro
sangue, que, ao picar-se nas baionetas, eriçava as orelhas, resfolgado, espargindo
de espuma tudo à sua volta, escarvava com as patas as tábuas da ponte, pronto a
saltar por cima do parapeito se o cavaleiro que o montava consentisse.
— O quê? Como carneiros, sim, como autênticos carneiros! Ao largo!... Deixem
passar!... Façam alto, viaturas! Com mil diabos! Esperem, que eu lhes digo, vai à
espadeirada... — E, com efeito, arrancando o sabre da bainha, pôs-se a agitá-lo no
ar.
Os soldados, aterrorizados, encolheram-se uns contra os outros, e Denissov
pôde aproximar-se de Nesvitski.
— Quê, que dizes tu? Ainda hoje não bebeste nada? — exclamou Nesvitski
para Denissov, assim que o viu perto dele.
— Que queres, eles nem para isso nos dão tempo! — replicou Vaska Denissov
— Todo o dia temos andado com o regimento em bolandas, de um lado para o
outro. Se é preciso que a gente se bata, vamos a isso. Mas, assim, que é que isto
quer dizer?
— Que elegante estás hoje! — observou Nesvitski, olhando para o seu dólman
novo e para a gualdrapa do seu cavalo. Denissov sorriu-se, tirou o lenço da
algibeira, todo perfumado, e levou-o ao nariz de Nesvitski.
— Claro que não pode ser de outra maneira, vamos para o campo de batalha!
Barbeei-me, lavei os dentes e perfumei-me.
A imponente estatura de Nesvitski, acompanhada do seu cossaco, assim como
o ar decidido de Denissov, que espadeirava para a direita e para a esquerda, em
altos gritos, deram tal resultado que os dois conseguiram esgueirar-se para o
outro lado da ponte, detendo os peões. Nesvitski, à saída, foi encontrar o coronel
a quem devia entregar a mensagem, e, depois de cumprida a sua missão, voltou
para trás.
Denissov, que tinha conseguido abrir caminho, deteve-se à entrada da ponte.
Segurando, negligentemente, o seu cavalo, que escoicinhava e resfolgava, via
passar diante dele o seu esquadrão. Sobre as pranchas da ponte ressoavam
ferraduras; eram alguns cavalos que vinham a trote. O esquadrão, com os oficiais à
frente, alinhado a quatro, surgiu na ponte e começou a sair do outro lado.
Os homens da infantaria, obrigados a parar em cima da lama espezinhada da
ponte, olhavam para os hússares, asseados e elegantes, que diante deles iamdesfilando galhardamente, com essa hostilidade especial, misto de inveja e de
troça, que em geral se observa entre os vários corpos de um exército.
— Isto é que é uma tropa catita! Parece mesmo que vai a caminho da parada
de Podnovinskoie!
— Para que serve esta gente? Só para vista! — exclamou outro soldado.
— Eh!, infantaria! Isso não é poeira? — zombou um hússar, cujo cavalo,
caracolando, salpicara de lama um dos peões.
— Gostava de te ver depois de duas boas marchas de mochila às costas.
Deviam ficar bonitos os teus alamares! — ripostou o soldado de infantaria,
limpando a lama da cara com a manga. — Aí empoleirado pareces mais um
pássaro do que gente!
— E tu. Zikine, devias ficar bem a cavalo. Tens boa figura — dizia, trocista, um
cabo a um pobre soldado de infantaria, muito magro, ajoujado ao peso da mochila.
— Monta num pau e já terás cavalo — zombou um hússar.
[VIII]
O resto da infantaria dava-se pressa em atravessar a ponte, comprimida à
entrada, como num funil. Por fim, tendo passado todas as viaturas, houve menos
precipitação, e o último batalhão penetrou na ponte. Apenas os hússares de
Denissov permaneciam na outra, extremidade, frente ao inimigo. Este, que se via
perfeitamente ao longe da colina oposta, ainda não era visível do nível da ponte,
pois, na ravina por onde corriam as águas do rio o horizonte era limitado pelas
cumeadas vizinhas a uma meia versta de distância. Ali defronte ficava um baldio,
onde evolucionavam, por aqui e por ali, patrulhas de cossacos. De súbito, nos
cabeços em frente da estrada surgiram soldados de túnica azul e artilharia. Eram
os Franceses. A patrulha de cossacos, a trote, retirou-se do sopé das colinas.
Oficiais e soldados do esquadrão de Denissov, procurando falar sobre outra coisa e
olhar para outro lado, não deixavam de pensar no que ali estava, naqueles
cabeços, e a todo o momento olhavam as manchas que se iam formando no
horizonte, e que sabiam perfeitamente serem soldados inimigos. O tempo, para a
tarde, clareara, o Sol dardejava os seus raios sobre as águas do rio e asmontanhas sombrias que o cercavam. Tudo estava sereno; dos montes vizinhos
chegavam, de quando em quando, toques de clarins e vozes do inimigo. Entre o
esquadrão e os Franceses nada mais havia além de algumas pequenas patrulhas.
Um espaço vazio de cerca de trezentas sagenas (Medida russa, equivalente a
2,1336 metros. (N, dos T.) os separava. O inimigo tinha cessado fogo, e isso mesmo
ainda tornava mais agudo o sentimento da grave ameaça que representava
aquela inacessível e insondável faixa de terreno entre os dois adversários.
«Um passo para além daquela linha que lembra a que separa os vivos dos
mortos e eis-nos no mundo desconhecido do sofrimento e da morte. E lá adiante
que é que está? Lá adiante, para além deste campo e desta árvore e daquele
telhado iluminado pelos raios do Sol? Ninguém sabe e ninguém o deseja saber.
Toda a gente tem medo de transpor aquela linha e ao mesmo tempo há como que
uma tentação de o fazer; e o certo é que todos sabem que mais tarde ou mais cedo
haverá que transpô-la e que conhecer o que lá existe, do outro lado da linha,
exactamente como é inevitável virmos a saber o que fica do outro lado da morte.
E no entanto todos nós nos sentimos fortes, saudáveis, cheios de vida.» Eis o que
sente, sem dar por isso, todo o soldado diante do inimigo, e esta sensação,
naquele instante, dá um brilho particular, um sentimento de rude alegria ao mais
pequeno incidente.
Sobre o outeiro ocupado pelo inimigo surgiu o fumo de um tiro de peça e a
bala passou, assobiando, por cima da cabeça dos soldados do esquadrão de
hússares. Os oficiais, que estavam em grupo, retomaram os seus lugares. Os
homens procuraram fazer alinhar as suas montadas. O silêncio reinou. Todos
olhavam o inimigo, ao longe, aguardando uma ordem. Passaram uma segunda e
uma terceira balas. Era evidente que faziam pontaria sobre os hússares: mas os
projécteis, com um assobio monótono, passavam-lhes sobre as cabeças e iam cair,
algures, lá para trás deles. Os hússares não se voltavam, mas de cada vez que se
ouvia o sibilar da, bala, todo o esquadrão, como a uma voz de comando, todas
aquelas feições, tão variadas ria sua uniformidade, retinham a respiração
enquanto o projéctil passava, e viam-se os homens fincar-se nos estribos e depois
encurvar-se. Os soldados, sem mexer a cabeça, entreolhavam-se de viés,
examinando, curiosos, a impressão que sentiam os camaradas. Todos os rostos,
desde o de Denissov até ao do clarim, denunciavam, por qualquer coisa, de
nervoso nos lábios e no queixo, um desejo de luta, certo enervamento, certaemoção. O sargento franzia as sobrancelhas fitando os soldados, como se os
ameaçasse de os castigar. O junker Mironov curvava-se sempre que o projéctil
passava. Rostov, no flanco esquerdo, no seu Gratchik, um belo cavalo, apesar do
seu casco fendido, tinha o aspecto feliz de um colegial chamado, a prestar provas
de exame diante de uma grande assembleia e confiante no seu triunfo. Olhava
para todos com os seus olhos claros e luminosos, como se quisesse mostrar a toda
a gente a sua perfeita serenidade sob a metralha. Mas o certo é que, sem que
desse por isso, também ele, como os demais, mostrava, na expressão, que
qualquer coisa de novo e de grave se estava a passar.
— Quem é que está a fazer sinais lá em baixo? Junker Mironov! Não está
certo! Olhem para mim! — gritou Denissov, que, não podendo sossegar,
evolucionava, no seu cavalo, à frente do esquadrão.
O rosto de nariz esborrachado e os cabelos negros de Vaska Denissov, a sua
minúscula pessoa já bastante trabalhada pela vida, as suas mãos nodosas, de
dedos curtos e peludos, empunhando o sabre nu, eram os mesmos de sempre,
sobretudo quando à noite já tinha despejado duas ou três garrafas. Apenas
parecia um pouco mais corado que de costume. Erguendo a cabeça hirsuta, como
as aves quando bebem, e esporeando impiedosamente, com as pernas curtas, o
seu bom beduíno, ei-lo que se põe a galopar, o corpo atirado para trás, ao longo
do outro flanco do esquadrão, e, numa voz rouca, grita que preparem as pistolas.
Aproximou-se de Kirsten. O capitão, sobre a sua égua vasta e majestosa, veio, a
passo, ao encontro de Denissov. De grande bigodeira, estava sério, como sempre;
só os olhos lhe brilhavam mais que habitualmente.
— Então! — exclamou — Parece-me que isto não dá nada. Vais ver, acabamos
por bater em retirada.
— Não sei que diabo é que eles estão a fazer! – resmungou Denissov. — Ah!
Rostov! — gritou para o junker, ao ver o ar jovial. — Ah! Até que enfim, não
tiveste que esperar muito!
E sorria, como para o encorajar, vendo-se que estava contente por vê-lo.
Rostov sentia-se feliz. Nessa altura na ponte o coronel. Denissov dirigiu-se para ele
a galope.
— Excelência, deixe-me atacar! Dou cabo deles.
— É de atacar que se trata, realmente — volveu o coronel numa voz enfadada,
franzindo as sobrancelhas, como quem sacode uma mosca importuna. — Que diaboestão vocês aqui a fazer? Bem vê que os flancos já retiraram. Leve o esquadrão.
O esquadrão voltou a atravessar a ponte e saiu da zona de fogo sem perder
um único homem. Atrás dele seguiu, igualmente o segundo esquadrão, exposto
também ao fogo do inimigo, e os últimos cossacos evacuaram a margem.
Depois de terem passado a ponte, os dois esquadres de Pavlogrado bateram
em retirada, um atrás do outro, para as cumeadas. O comandante do regimento.
Karl Bogdanitch Schubert, aproximou-se do esquadrão de Denissov e seguiu a
passo não longe de Rostov, sem lhe prestar a mais pequena atenção, embora fosse
a primeira vez que o via desde o caso de Telianine. Rostov, consciente do seu
papel, na dependência do homem perante o qual agora se sentia culpado, não
perdia de vista a estatura atlética, a nuca loura e o pescoço vermelho do
comandante do regimento. Ora se convencia de que Bogdanitch se fingia
indiferente e que não pensava senão em experimentar a sua bravura de junker, e
então empertigava-se e lançava em tomo de si um olhar jovial; ora supunha que
Bogdanitch fazia de propósito, conservando-se junto dele, para assim lhe mostrar o
quanto era corajoso; ora ainda pensava que o seu inimigo enviava
deliberadamente o esquadrão a um ataque duro para o castigar a ele. Rostov, e
de si para consigo ia dizendo que depois da refrega iria ter com ele e
generosamente lhe estenderia a mão, a ele, ferido, em sinal de reconciliação.
Jerkov, cuja alta estatura e largos ombros eram bem conhecidos dos hússares
de Pavlogrado, regimento que ele abandonara havia pouco, aproximou-se do
coronel. Depois de ter sido expulso do estado-maior, tinha deixado o regimento
dizendo que não era tão parvo que fosse condenar-se a trabalhos forçados nas
fileiras quando podia ganhar muito mais sem fazer coisa alguma nas ordenanças, e
tivera artes de conseguir ser nomeado oficial de ordenança do príncipe Bagration.
Era portador de urna ordem para o seu velho coronel da parte do comandante da
retaguarda.
— Coronel! — exclamou, com um ar sério e sombrio, dirigindo-se ao inimigo de
Rostov e trocando um olhar com os camaradas. — Há ordem para voltar para trás
e lançar fogo à ponte.
— Ordem? E quem a deu? — perguntou o coronel, num tom grosseiro.
— Não sei, meu coronel, não sei quem deu a ordem — replicou Jerkov, muito
sério. — O príncipe só me disse: «Monta e vai dizer ao coronel que os hússares
devem retirar o mais depressa possível e queimar a ponte.»Depois de Jerkov chegou um oficial de ordenança com a mesma ordem. Atrás
deste oficial aproximou-se igualmente o corpulento Nesvitski, montado num cavalo
de cossaco, que só muito a custo fazia galopar.
— Que é isto, coronel?! — exclamou assim que chegou. Eu disse-lhe que
queimasse a ponte, e agora diz que não sabe quem deu esta ordem? Está tudo
doido, ninguém percebe nada.
O coronel, sem pressa, deu ordem ao regimento para fazer alto, e dirigindo-se
a Nesvitski:
— Falou-me em matérias inflamáveis – disse — Mas, quanto a deitar fogo à
ponte, nada me comunicou.
— Que me diz, camarada? — exclamou Nesvitski, que tinha refreado o seu
cavalo, tirando a barretina e passando a gordurosa mão pelos cabelos ensopados
de suor. — Que me diz? Não lhe comuniquei que queimasse a ponte depois de
derramar as matérias inflamáveis?
— Eu não sou seu «camarada», senhor oficial do estado-maior, e o senhor não
me disse que deitasse fogo à ponte! Sei muito bem o que estou a fazer e tenho por
hábito cumprir rigorosamente as ordens que me dão. O senhor disse que se
queimaria a ponte, mas não quem o faria. Ora eu não poderia sabê-lo por obra do
Espírito Santo,
— Ah! É sempre a mesma coisa — volveu Nesvitski com um gesto de
indiferença. — Que fazes tu aqui? — interrogou, dirigindo-se a Jerkov.
— O mesmo que tu. Estás encharcado! Deixa, que eu torço-te a roupa.
— O senhor disse, senhor oficial do estado-maior... — continuou o coronel, num
tom ofendido.
— Coronel — interrompeu o oficial de ordenança —, é preciso agir, de outra
maneira o inimigo acaba por colocar a sua artilharia ao alcance da ponte.
O coronel olhou sem dizer palavra o oficial de ordenança, o corpulento oficial
do estado-maior Jerkov, e franziu as sobrancelhas.
— Deitarei fogo à ponte — volveu ele, num tom solene, como se com isso
quisesse dizer que, apesar de todas as maçadas que lhe davam, cumpriria o seu
dever.
Esporeando os flancos do seu cavalo com as suas grandes pernas musculosas,
como se o pobre animal fosse o culpado de tudo, o coronel avançou e deu ordens
ao segundo esquadrão, aquele, precisamente, a que pertencia Rostov, e estavasob as ordens de Denissov, para voltar à ponte.
«Sim, é isto mesmo», pensou Rostov, «quer-me experimentar!» Sentiu um
aperto no coração e o sangue subiu-lhe à cara. «Vai ver se eu sou poltrão»,
pensou.
De novo, a máscara jovial dos homens do esquadrão retomou a expressão
preocupada que tinha quando sob o fogo das peças de artilharia. Rostov, sem
baixar os olhos, olhava para o seu inimigo, o comandante do regimento, tentando
descobrir-lhe nos traços a confirmação das suas suspeitas. Mas o coronel nem, uma
só vez olhou para ele. Como sempre, no campo de batalha era severo e solene.
Uma ordem de comando se ouviu.
— Depressa! Depressa! — exclamaram algumas vozes em volta dele.
Embainhando os sabres, com grande barulho de esporas, e a toda a pressa, os
hússares apeavam-se, sem que eles próprios soubessem o que tinham a fazer.
Persignaram-se. Rostov já não se preocupava com o coronel. Não tinha tempo.
Nele havia medo, um medo cheio de ansiedade, receoso de ficar para trás dos seus
hússares. Tremia-lhe a mão quando entregou o cavalo ao soldado encarregado de
tomar conta dele e sentia bater violentamente o coração dentro do peito.
Denissov, o corpo atirado para trás, passou, gritando, junto dele. Rostov não via
nada além dos hússares a correrem apressados à sua volta, embaraçando-se nas
esporas no meio do retinir de sabres.
— Uma maca! — gritou uma voz à sua retaguarda.
Rostov não percebeu o que é que aquilo queria dizer pedir uma maca; corria, e
não pensava senão em chegar primeiro do que outro qualquer. Mas, já perto da
ponte, como não via onde punha os pés, enterrou-se num lamaçal mole e
espezinhado e, desequilibrando-se, caiu com as mãos para a frente. Os outros
continuaram, ultrapassando -o.
— Dos dois lados, capitão — dizia a voz do comandante do regimento, que,
depois de ter tomado uma certa dianteira, se conservava, a cavalo, a pequena
distância da ponte, com um ar alegre e triunfante.
Rostov, limpando as mãos cheias de lama ao calção de montar, lançou os olhos
ao seu inimigo e quis avançar ainda mais; entendia que quanto mais adiante fosse
melhor seria. Mas Bogdanitch, sem olhar para ele, sem o reconhecer sequer,
gritou-lhe furioso:
— Quem é aquele que vai a correr pelo meio da ponte? A direita! Junker, paratrás!... — Depois, dirigindo-se a Denissov, que para exibição da sua coragem
avançava, a cavalo, pelo tabuleiro da ponte:
— Para que é que se há-de expor, capitão? Desmonte.
— Tem sempre qualquer coisa a dizer — replicou Vaska Denissov, voltando-se
no selim.
Entretanto. Nesvitski. Jerkov e o oficial da comitiva tinham-se reunido, ao
abrigo do tiro do inimigo, e observavam ora este pequeno grupo de homens de
barretina amarela, de jaquetas verde-escuras, com alamares e calções azuis de
montar, que se agitava perto da ponte, ora, do outro lado, ao longe, as túnicas
azuis, que se aproximavam, e grupos à mistura com cavalos, que se via logo serem
batarias.
«Conseguiremos ou não deitar fogo à ponte? Quem o conseguirá primeiro?
Serão eles capazes de chegar a tempo, ou serão os Franceses que conseguirão
aproximar-se tanto que os possam alvejar, dizimando-os a todos?» Eis as
perguntas que a si próprios formulavam involuntariamente, na maior angústia,
todos aqueles homens do exército imobilizado perto do rio, contemplando, à clara
luz do Sol, que ia descendo no horizonte, tanto os hússares em cima da ponte
como, na outra margem, as baionetas e as peças de artilharia dos túnicas azuis em
marcha.
— Caramba! Os hússares vão apanhar uma coça! — dizia Nesvitski. — Já não
estão longe do alcance da metralha.
— Foi um erro mandar tanta gente — observou o oficial do estado-maior.
— Efectivamente — comentou Nesvitski —, ali apenas teriam sido precisos
dois valentes.
— Ah! Excelência! — interveio Jerkov, sem perder de vista os hússares, e
sempre com aquele seu ar ingénuo, que levava os outros a perguntar-se a si
próprios se ele estava a falar ou não a sério. — Ah! Excelência! Que é que está a
dizer? Mandar lá dois homens, e depois, quem é que nos havia de condecorar com
a Ordem de Vladimiro? Enquanto que assim, se eles forem dizimados, poderemos
citar todo o esquadrão na ordem do dia, propondo-o para a condecoração, e
apanhá-la nós também. O nosso Bogdanitch sabe muito bem o que faz.
— Olhem! — exclamou o oficial do estado-maior. — Lá começa a metralha.
Apontou para as peças de artilharia francesas, que acabavam de serdesatreladas e que apressadamente principiavam a ser distribuídas.
Do lado francês, nos grupos onde estavam as peças, apareceu um fumozinho, a
seguir outro e quase simultaneamente um terceiro, e quando o estampido do
primeiro tiro chegou onde estavam os oficiais russos viu-se um quarto fumo. Houve
duas detonações, uma atrás da outra, e por fim uma terceira.
— Oh! Oh! — gemeu Nesvitski, como se sentisse urna dor pungente,
agarrando no braço do oficial de ordenança. — Olhe, olhe, lá caiu um!
— Dois, creio eu!
— Se eu fosse o czar, nunca faria guerra — disse Nesvitski, voltando os olhos.
Os canhões franceses foram apressadamente carregados de novo. A infantaria
de túnica azul avançou para a ponte em passo acelerado. Ainda se viam núcleos de
fumo; em diversos pontos crepitava a metralha e rebentava sobre a ponte. Mas
desta vez Nesvitski não pôde distinguir o que se passava. Subiu da ponte uma
fumarada espessa. Os hússares tinham conseguido lançar-lhe fogo, e as batarias
francesas já não disparavam para impedir a operação, mas simplesmente por
estarem em linha de fogo e aquele ser um alvo sobre o qual podiam lançar
metralha.
Antes que os hússares pudessem voltar para junto dos cavalos, ainda os
Franceses fizeram três descargas. Duas delas tinham sido mal dirigidas, e haviam-
se perdido; a terceira caíra no meio de um grupo de hússares e abatera três.
Rostov, sempre absorvido pela ideia de Bogdatnitch, parara no meio da ponte,
sem saber que fazer. Sempre se tinha representado a guerra como um acutilar
alguém, mas a verdade é que não via ninguém a quem espadeirar; de resto,
quanto a cooperar no incêndio da ponte, também o não podia fazer, pois não se
havia munido, como os outros, de tições de palha. Continuava de pé na ponte,
indeciso, quando, de repente, sentiu crepitar sobre o pavimento como que uma
saraivada de nozes, e viu um hússar perto dele cair gemendo sobre o parapeito.
Rostov correu para ele, com os outros. Alguém gritou de novo:
, dizia de si para
consigo. «Toda a gente gosta de mim. Estou disposta a fazer por eles tudo o que
quiserem, a gostar do velho, que é seu pai, e dela, que é sua irmã. Não posso
compreender porque não hão-de gostar de mim!»
Tinham chegado à velha e sombria casa de Voztlvijenka e entraram para o
vestíbulo.
— Bom, que Deus nos abençoe! — exclamou o conde, meio sério meio a rir.
Natacha notou a agitação do pai ao entrar e que fora em voz baixa e tom’ humilde
que perguntara se o príncipe e a princesa estavam em casa.
Quando se soube quem eram os visitantes, houve grande rebuliço entre a
criadagem. O lacaio que fora anunciá-los viu-se detido no salão por um dos seus
camaradas e ambos se puseram a segredar qualquer coisa. Também apareceu uma
criada de quarto que lhes disse, muito à pressa, algumas palavras sobre a ama.
Finalmente surgiu um velho lacaio, de ar severo, que declarou aos Rostov que o
príncipe não podia recebê-los, mas que a princesa Maria pedia o favor de
entrarem para os seus aposentos.
Mademoiselle Bourienne foi a primeira a receber as visitas. Acompanhou-as
com extrema cortesia, conduzindo-as junto da princesa. Esta, com o rosto
transtornado e em pânico, as faces cobertas de placas vermelhas, veio ao encontro
deles no seu andar pesado, tentando debalde aparentar expressão despreocupada
e alegre. Natacha não lhe agradou logo ao primeiro golpe de vista. Pareceu-lhe
demasiado elegante e de uma alegria frívola e vaidosa de mais. Não se dava conta
de que antes de ter posto os olhos na sua futura cunhada já estava mal disposta
para com ela graças à inveja involuntária que lhe despertavam a sua beleza, a sua
mocidade, a sua felicidade e o amor que lhe tinha o irmão. Além disso, ainda
estava perturbadíssima com o incidente que acabava de se dar. O pai, quando lhe
anunciaram as visitas, pusera-se a gritar não estar disposto a recebê-las, que
Maria o fizesse, se assim queria, mas que era escusado pensarem em conduzi-las à
sua presença. A princesa decidira recebê-las, mas receava que, de um momento
para o outro, o pai fizesse algum escândalo, tão excitado parecia.
— Pois bem, minha querida princesa, aqui lhe trago a minha cantora — disse o
conde, numa mesura, enquanto olhava para a direita e para a esquerda, sempre à
espera, cheio de medo, de ver surgir o velho príncipe. — Gosto tanto que seconheçam... Que pena, que pena o príncipe continuar adoentado. — Em seguida,
após mais alguns lugares-comuns, levantou-se. — Se me dá licença, princesa,
enquanto vou aqui ao lado, à Praça dos Cães, a casa de Ana Semionovna, deixo
consigo a minha Natacha. É questão de um quarto de hora. Venho já buscá-la.
Ilia Andreitch inventara aquele estratagema diplomático, assim o confessou à
filha depois, para que as futuras cunhadas falassem com toda a franqueza e
também para evitar encontrar-se com o príncipe, a quem tanto receava. Isto não o
disse ele a Natacha, mas esta percebeu o terror e a inquietação do pai e não pôde
deixar de se sentir melindrada. Corou de vergonha por ele, e o ter corado ainda
mais a irritou. O seu olhar ousado e provocante, que dizia não ter medo de pessoa
alguma, fixou-se na princesa. Esta entretanto respondera ao conde ter o maior
prazer e que só uma coisa lhe pedia, o demorar-se quanto mais melhor. E Ilia
Andreitch desapareceu.
Mademoiselle Bourienne, apesar dos olhares impacientes com que Maria a
dardejava, ansiosa por ficar só com Natacha, não saía da sala e continuava a falar
das diversões e dos teatros de Moscovo. Natacha sentia-se magoada ao mesmo
tempo pela confusão que presenciara no vestíbulo, pela apreensão do pai e pelo
tom forçado da princesa, que dir-se-ia fazer um grande favor em recebê-la. Tudo
isto lhe era muito desagradável. Não gostou da princesa Maria. Pareceu-lhe muito
feia, afectada e seca. Sentiu de súbito crispar-se-lhe a alma e assumiu sem querer
um ar de indiferença que ainda mais contribuiu para afastar de si a interlocutora.
Cinco minutos depois de terem encetado uma conversa forçada e penosa ouviram-
se os passos rápidos de um homem arrastando chinelos de quarto. A princesa
Maria ficou lívida. A porta abriu-se e entrou o príncipe, de roupão e gorro branco.
— Oh!, menina – exclamou —, a senhora condessa.., a condessa Rostov, se não
estou em erro... Queira desculpar. Mil perdões... Não sabia, menina. Juro por Deus
que ignorava que nos tivesse dado a honra de visitar-nos. Era no quarto de minha
filha que eu julgava entrar.., vestido desta maneira. Queira desculpar... Juro por
Deus que não sabia — repetiu, num tom tão pouco natural, acentuando a palavra
«Deus», e tão desagradável, que a princesa Maria permaneceu calada, de olhos
baixos, sem ter coragem de olhar o pai nem Natacha.
Natacha, que se levantara, e depois voltara a sentar-se, também não sabia
que fazer. Só Mademoiselle Bourienne continuava a sorrir.
— Queira desculpar, queira desculpar. Juro por Deus, não sabia — roncou ovelho, que, depois de mirar Natacha dos pés à cabeça, abalou dali.
Mademoiselle Bourienne foi a primeira a recompor-se após esta aparição,
pondo-se a falar da pouca saúde do príncipe. Natacha e Maria olhavam uma para a
outra sem dizer palavra e à medida que este exame mútuo se prolongava, sem
que qualquer delas quisesse exprimir o que sentia, dir-se-ia ir crescendo a
antipatia que experimentavam uma pela outra.
Quando o conde voltou. Natacha nada fez para esconder a alegria que sentiu e
logo se deu pressa de partir. Naquele momento quase odiava aquela princesa seca
e envelhecida que a obrigava àquela situação desagradável, tornando possível
passarem juntas meia hora sem dizer uma palavra acerca do príncipe André.
«Não podia ser eu a primeira a falar dele, e ainda por cima na presença desta
francesa», dizia para si própria. A Maria atormentava-a o mesmo pensamento.
Sabia o que devia ter dito a Natacha, mas não o pudera fazer, primeiro por sentir-
se embaraçada com a presença de Mademoiselle Bourienne, e depois, sem que
soubesse porquê, por lhe ser penoso falar daquele casamento. No momento em
que o conde saía. Maria aproximou-se de Natacha e, pegando-lhe resolutamente
na mão, disse-lhe num profundo suspiro:
— Espere, eu quereria...
Sem saber porquê Natacha olhou para ela com ar trocista.
— Querida Natália — disse Maria —, não quero deixar de lhe manifestar a
alegria que sinto por meu irmão ter encontrado a felicidade...
Calou-se, sentindo não dizer a verdade. Natacha notou esta hesitação e
adivinhou— ‘lhe a causa.
— Parece-me, princesa, que passou já o momento de falar no assunto — volveu
Natacha com uma dignidade e uma frieza aparentes, sentindo a voz embargada
pelos soluços.
«Que disse eu? Que disse eu?», pensou ao transpor a porta da sala.
Naquele dia esperaram muito tempo Natacha para jantar. Fechada no seu
quarto, soluçava como urna criança, dolorosa— mente sentida. Sónia, de pé, junto
dela, beijava-lhe os cabelos.
— Natacha, porque choras? — dizia-lhe ela. — Para que hás-de preocupar-te
com eles? Tudo passará. Natacha.
— Ah, se tu soubesses o que custa... É como se eu...— Não falemos mais nisso. Natacha. Não tens culpa. Então porque te
preocupas? Dá cá um beijo, anda — murmurou Sónia.
Natacha ergueu a cabeça e beijou a amiga nos lábios, apertando contra o dela
o seu rosto, banhado de lágrimas.
— Não sei, não sei. Ninguém é culpado — balbuciou Natacha. — Sou eu a
culpada. Como tudo isto é horrível! Ai, porque não vem ele?...
Quando desceu para jantar tinha os olhos vermelhos. Maria Dmitrievna, que
sabia como o príncipe recebera Rostov, fingiu não reparar na mágoa de Natacha,
levando o repasto a dizer graças ao conde e aos seus hóspedes na sua voz grossa e
potente.
[VIII]
Nessa noite, os Rostov foram à ópera, para onde Maria Dmitrievna lhes
arranjara um camarote.
Natacha não queria ir, mas não pôde recusar esta amabilidade de Maria
Dmitrievna, que os convidara precisamente por sua causa. Quando, já vestida,
penetrou no salão, para aí aguardar o pai, depois de relancear a vista ao grande
espelho e verificou estar bonita, e mesmo muito bonita, ainda mais triste se
sentiu; à sua tristeza misturava-se uma espécie de amoroso desfalecimento.
«Meu Deus, se ele aqui estivesse, não seria como antigamente, não sentiria
esta timidez estúpida, abraçar-me-ia a ele, apertar-me-ia contra ele, obrigá-lo-ia a
olhar para mim com aquele lampejo de curiosidade interrogadora que tantas
vezes lhe vi nos olhos. Depois fá-lo-ia rir como antigamente. Ah!, aqueles olhos,
parece que os estou a ver!», murmurava Natacha para si mesma. F depois
pensava: «E a mim que me importam o pai e a irmã? É dele de quem gosto, só
dele, da sua cara, dos seus olhos, do seu sorriso ao mesmo tempo de homem e de
criança... Ah!, o melhor é não pensar nisso, em nada pensar, esquecer, esquecer
tudo, pelo menos por algum tempo. Esta ausência mata-me, não posso reter as
lágrimas.» Afastou-se do espelho, num grande esforço para conter o pranto.
«Como pode Sónia gostar de Nikolenka assim tão serena, tão tranquilamente, e
esperar tanto tempo e com tanta paciência?», pensava ainda ao ver entrar aamiga, já vestida também, com o leque na mão. «Sónia é muito diferente de mim.
Eu não posso! »
Naquele momento tamanha era a ternura refreada que Natacha sentia que lhe
não bastava amar e saber-se amada: tomava-a um desejo imperioso de apertar
nos seus braços, imediatamente, o homem amado e de lhe dizer e de colher de
seus lábios as frases de amor que lhe transbordavam do peito. Durante o percurso,
de carruagem, ao lado do pai, olhando, cismadora, perpassar pelos vidros
embaciados das portinholas os relâmpagos furtivos dos revérberos, a sua alma
ainda estava mais triste e amorosa, e esquecia tudo à sua volta. Tomando lugar
na fileira das carruagens, o carro dos Rostov, que arranhava suavemente o, neve,
chegou à entrada do teatro. Natacha e Sónia saltaram ligeiras para o chão,
erguendo os vestidos. Depois apeou-se o conde, ajudado pelos lacaios, e de roldão
com as senhoras e os cavalheiros que entravam e à mistura com os vendedores de
programas dirigiram-se, todos três, para o corredor dos camarotes. Através das
portas fechadas já se ouviam os acordes da orquestra.
— Natália, os teus cabelos... — murmurou Sónia.
O empregado, com uma pressurosa cortesia, deslizou por diante das senhoras e
abriu a porta do camarote. Ouviu-se mais distintamente a orquestra e do outro
lado surgiu a fila dos camarotes iluminados, cheios de senhoras decotadas, e a
plateia resplandecente de uniformes de gala. Uma dama que penetrava num
camarote vizinho observou Natacha com um olhar cheio de inveja. O pano ainda
não subira e tocavam a abertura. Depois de compor o vestido. Natacha entrou
com Sónia, sentou-se e pôs-se a olhar a fila dos camarotes do outro lado. De
repente apoderou-se dela uma sensação não experimentada há muito: aquelas
centenas de olhos fitos nos seus braços e no seu colo nus eram uma coisa ao
mesmo tempo agradável e penosa, acordando nela enxames de recordações, de
desejos, de inquietações. As duas raparigas, muito belas, acompanhadas do conde
Ilia Andreitch, que há muito não era visto em Moscovo, chamaram imediatamente
a atenção de toda a assistência. Além disso toda a gente ouvira falar do noivado
de Natacha com o príncipe André, e também se sabia que desde então os Rostov
viviam no campo. Aquela que ia casar com um dos melhores partidos de toda a
Rússia a examinada com a maior curiosidade.
Natacha fizera-se mais bonita durante a temporada na aldeia. Essa a opinião
de toda a gente, e nessa noite, precisamente, graças à emoção queexperimentava, ainda estava mais linda. Impressionava a sua exuberância de vida,
a plenitude das suas formas e também a indiferença por tudo quanto a rodeava.
Seus olhos pretos erravam pela multidão sem procurar ninguém e tinha o braço
delicado, nu até um pouco acima do cotovelo, pousado no parapeito de veludo do
camarote. Maquinalmente abria e fechava a pequenina mão, como a marear o
compasso da abertura, enquanto ia vincando o programa.
— Olha, as Alenina — dizia Sónia. — A filha e a mãe, parece-me.
— Santos Padres! Mikail Kirilitch! Está ainda mais gordo! — exclamava o
velho conde.
— Olhe para a touca da nossa Ana Mikailovna!
— As Karaguine e o Bóris. Estão noivos ele e a Júlia. Vê-se logo. Já a teria
pedido?
— Pediu, sim, acabam de mo dizer — disse Chinchine, que entrava no camarote
dos Rostov.
Natacha olhou na direcção que tomavam os olhos do conde e viu Júlia, sentada
ao pé da mãe, com um ar feliz; do seu grosso e vermelhusco pescoço, que ela sabia
todo empoado, pendia um grosso colar de pérolas. Atrás delas, todo sorridente e
debruçando-se para ouvir o que Júlia dizia. Bóris mostrava a linda cabeça muito
penteada. Tendo olhado de relance para os Rostov, murmurou qualquer coisa ao
ouvido da noiva.
«Estão a falar de nós, de mim!», dizia Natacha consigo mesma. «Naturalmente
está a dizer-lhe que escusa de ter ciúmes de mim. Não vale a pena! Se soubessem
como me são todos indiferentes!»
Ana Mikailovna, com a sua touca verde, sempre entregue a Deus e uma
expressão de dias de festa, triunfante, sentara-se atrás deles. O camarote parecia
banhado nessa atmosfera especial dos noivos que Natacha conhecera e lhe
causava inveja. Virou-se e de repente veio-lhe à memória toda a humilhação por
que passara durante a visita dessa manhã.
«Que direito tem ele de me não querer aceitar na família? Oh, é melhor não
pensar nisso, pelo menos enquanto o príncipe André não vier!», disse de si para
consigo, e pôs-se a percorrer, uma por uma, as caras conhecidas e desconhecidas
da plateia. Na primeira fila, bem ao meio, de costas apoiadas à ribalta, estava
Dolokov, com os seus espessos cabelos frisados penteados para diante. Vestia à
persa. Pusera-se bem em evidência, sabendo que todo o teatro olhava para ele, etão à vontade como se estivesse em sua própria casa. Toda a juventude elegante
de Moscovo fazia roda em tomo dele e via-se perfeitamente ser ele o chefe.
O conde Ilia Andreitch acotovelou, rindo. Sónia, muito corada, para lhe
mostrar o seu antigo admirador.
— Conheceste-o? — disse-lhe ele. — Donde veio ele? — perguntou o conde a
Chinchine. — Desaparecera por completo.
— É verdade — replicou Chinchine. — Esteve no Cáucaso e desertou. Dizem
que foi ministro de um príncipe persa é que matou o irmão do xá. Ora aí tem!
Todas as mulheres de Moscovo estão doidas por ele. Dolochoff, o persa, e está
tudo dito! Não se fala noutra coisa. Juram invocando o nome dele. E fazem-se
convites para o ver, como se se tratasse de comer um esturjão. — E acrescentou:
— Dolokov e Anatole Kuraguine deram volta ao miolo de todas as mulheres.
Nesse momento penetrou no camarote vizinho uma alta e bela mulher,
exibindo uns ombros e um colo cheios e muito brancos, com um colar de duas
voltas de grossas pérolas. Levou tempo a instalar-se, exibindo ruidosamente o
amplo vestido de seda.
Natacha, involuntariamente, contemplou aquele colo, aqueles ombros, aquelas
pérolas, aquele penteado, admirando tanto a beleza da mulher como o fulgor das
jóias. Quando a observava pela segunda vez, ela voltou-se e, ao encontrar os olhos
do conde Ilia Andreitch, fez-lhe um breve aceno de cabeça, sorrindo-lhe. Era a
condessa Bezukov, a mulher de Pedro. O conde, que conhecia toda a gente,
debruçou-se para ela e principiou a conversar.
— Já está aqui há muito tempo, condessa? — disse ele. — Irei sem falta fazer-
lhe uma visita. Eu vim tratar de negócios e trouxe comigo as pequenas. Dizem que
a Semionovna trabalha maravilhosamente. O conde Piotre Kirilovitch Bezukov não
nos esqueceu, com certeza. Está aí?
— Sim, tinha intenção de vir — disse Helena, olhando atentamente Natacha.
O conde retomou o seu lugar.
— É bonita, não é? — perguntou em voz baixa à filha.
— Maravilhosa! — replicou Natacha. — Compreendo que os homens gostem
dela!
Naquele momento ressoaram os últimos acordes da abertura e ouviram-se as
três pancadas da batuta do maestro. Os cavalheiros retardatários deram-se pressa
em ocupar os seus lugares e o pano subiu.Fez-se então na sala um profundo silêncio. Tanto os velhos como os jovens, de
fraque ou de uniforme, as senhoras decotadas e cobertas de jóias, todos, curiosos,
voltaram os olhos para a cena. Natacha seguiu-lhes o exemplo.
[IX]
O centro do cenário era de tábuas uniformes; de cada um dos lados, cartões
pintados fingindo árvores e no fundo um pano corrido. Raparigas de blusas
vermelhas e saias brancas formavam um grupo ao meio do palco. Uma delas,
corpulenta, de vestido de seda branca, estava sentada num banco muito baixo
atrás do qual havia um cartão verde colado. Cantavam em coro. Quando
acabaram, a vestida de branco deu alguns passos na direcção da caixa do ponto.
Então aproximou-se dela um homem de calções de seda, que lhe cingiam as grossas
pernas, chapéu emplumado e punhal à cinta, que se pôs a cantar com muitos
gestos.
O homem dos calções justos cantou sozinho, depois cantou a rapariga de
branco. Em seguida calaram-se ambos, ouviu-se a orquestra e o homem pegou na
mão da companheira, como para lhe contar os dedos, aguardando o compasso para
o dueto. Quando acabaram de cantar, o teatro em peso aplaudiu e os dois artistas
que desempenhavam o papel de namorados sorriram, fazendo mesuras e agitando
as mãos para um lado e para o outro da plateia.
Acabada de chegar da aldeia e na sua disposição de espírito não podia Natacha
deixar de encarar o espectáculo como uma coisa grotesca e insólita. Era-lhe
impossível acompanhar o desenvolvimento da acção, e nem sequer seguia a
música; apenas via panos pintados, homens e mulheres vestidos de estranha
maneira, mexendo-se, falando e cantando rodeados de luz intensa. Evidentemente
que compreendia a significação do que a cena representava, mas tudo lhe parecia,
no seu conjunto, tão convencional e falso, tão pouco natural, que ora tinha
vergonha pelos actores ora lhe dava vontade de rir. Olhava em volta de si,
procurando descobrir na fisionomia dos espectadores o mesmo estado de espírito,
mas verificava que toda a gente seguia com atenção o que estava a passar-se no
palco e nos seus rostos havia um entusiasmo que a ela se lhe afigurava falso.«Naturalmente, tem de ser assim», dizia de si para consigo. Tão depressa
observava as filas das cabeças da plateia espelhantes de brilhantina como as
senhoras decotadas dos camarotes, especialmente Helena, sua vizinha, que,
seminua, olhava para o palco, com um sorriso doce e plácido, sem nunca desviar os
olhos, toda ela exposta à luz violenta que se derramava na sala e à quente
palpitação que emanava da plateia. Pouco a pouco Natacha sentiu-se tomada de
uma espécie de embriaguez, disposição que há muito não sentia. Já não sabia o
que fazia, onde estava, o que se passava diante dos seus olhos. Olhava sem ver,
enquanto os pensamentos mais estranhos e incoerentes lhe atravessavam o
cérebro. Ora lhe davam ganas de escalar o proscénio e de cantar a ária que a
actriz garganteava, ora lhe vinham desejos de, com a ponta do leque, espevitar o
velhinho sentado na plateia, não muito longe dela, ou ainda de se debruçar para
Helena e de lhe fazer cócegas nas costas.
Numa dessas pausas da orquestra que antecedem os acordes de um novo
andamento, a porta da plateia rangeu, lá para os lados do camarote dos Rostov, e
ouviram-se passos de alguém que chegava atrasado. «Aí está o Kuraguine!»,
segredou Chinchine. A condessa Bezukov voltou-se, sorrindo, para quem entrava.
Natacha seguiu-lhe o olhar e viu um ajudante-de-campo, de uma beleza
extraordinária, dirigindo-se para o seu camarote com um ar ao mesmo tempo
seguro de si e cheio de cortesia. Era Anatole Kuraguine, a quem não esquecera
desde que o vira no baile de Petersburgo. Vestia o uniforme de gala de ajudante-
de-campo, com dragonas e agulhetas. Mantendo em atitude arrogante a
perfumada cabeça, avançava, num passo contido, que teria sido ridículo se no seu
todo não exprimisse um contentamento tão cordial e tão boa disposição, e se ele
próprio não fosse tão belo homem. Embora o espectáculo já tivesse principiado,
não se dava pressa, caminhando ao longo da passadeira do corredor com as
esporas e o sabre a tilintar ligeiramente. Depois de um olhar a Natacha,
aproximou-se da irmã, apoiou a mão, moldada na luva, no parapeito do camarote,
acenou-lhe com a cabeça e, debruçando-se para ela, perguntou-lhe qualquer coisa
enquanto designava a vizinha.
— Mas é encantadora! — exclamou, falando evidentemente de Natacha, que o
percebeu mais pelo movimento dos lábios que propriamente por ter ouvido o que
diziam. Depois Kuraguine dirigiu-se para a primeira fila de poltronas e sentou-se
ao lado de Dolokov, a quem acotovelou distraída e amistosamente, o Dolokov aquem todos os outros tratavam com tanta deferência. Sorriu-lhe, piscando-lhe,
jovialmente, o olho, enquanto punha o pé sobre o varão metálico que os separava
da ribalta.
— Muito se parecem os dois irmãos! — exclamou o conde. — E são ambos bem
bonitos!
Chinchine, a meia voz, contou-lhe a história de uma aventura de Kuraguine em
Moscovo, e Natacha ficou-se a ouvi-lo simplesmente porque ele dissera, referindo-
se a ela, que a achava encantadora. O primeiro acto terminou. Toda a gente se
levantou, uns saíram, outros começaram a passear de um lado para o outro no
vestíbulo da plateia.
Bóris veio cumprimentar os Rostov ao seu camarote. Com a maior naturalidade
aceitou as felicitações que lhe dirigiam e, depois de assumir um ar preocupado,
com um sorriso distraído, convidou Natacha e Sónia, em nome da noiva, para o seu
casamento. F saiu. Natacha felicitara aquele mesmo Bóris de quem outrora
estivera enamorada, com um sorriso em que havia jovialidade e uma certa
coquetterie. No estado de embriaguez em que estava tudo lhe parecia simples e
natural.
Helena, seminua, sentada muito perto dela, dirigia a todos, indistintamente, o
seu perpétuo sorriso, e assim Natacha, do mesmo modo, sorrira para Bóris.
Não tardou que o camarote de Helena estivesse cheio e ela rodeada de
titulares e homens distintos, que pareciam querer mostrar a toda a gente serem
das suas relações.
Kuraguine, durante o intervalo, ficou na plateia, ao lado de Dolokov, de olhos
fitos no camarote dos Rostov.
Natacha, sabendo que ele falava dela, sentia-se lisonjeada. Colocou-se mesmo
de maneira que ele a pudesse ver de perfil, posição que a favorecia, segundo
pensava. Antes de principiar o segundo acto apareceu Pedro na plateia. Os Rostov
ainda o não tinham visto desde que estavam em Moscovo. Parecia triste e ainda
engordara mais desde a última vez que Natacha o vira. Caminhou para as
primeiras filas da plateia sem olhar para ninguém. Anatole aproximou-se dele e
disse-lhe qualquer coisa, enquanto lhe chamava a atenção para o camarote dos
Rostov. Ao ver Natacha. Pedro animou-se e, passando apressadamente por entre
as filas de cadeiras, aproximou-se do camarote do conde, que era rente à plateia.
Apoiou os cotovelos no parapeito e ficou-se a conversar com ela. Enquanto oescutava. Natacha julgou ouvir uma voz de homem no camarote da condessa
Bezukov e pensou que seria Kuraguine. Voltou-se e os seus olhos encontraram-se.
Com um ligeiro sorriso, ele fitava-a, com um olhar ao mesmo tempo tão caloroso e
acariciador que lhe pareceu estranho ver-se tão perto dele e olhá-lo assim tão
segura de lhe ter agradado, embora o não conhecesse senão de vista.
O cenário do segundo acto representava uns monumentos funerários e tinha
um buraco no pano de fundo a fingir a Lua. Haviam retirado o quebra-luz das
gambiarras, as trombetas e os contrabaixos tocavam em surdina e da direita e da
esquerda surgia muita gente de manto negro. Brandiam qualquer coisa, talvez
punhais. Em seguida apareceram outras pessoas que impeliam na sua frente a
rapariga que no primeiro acto estava vestida de branco e agora se vestia de azul.
Não a levaram logo, mas cantaram muito tempo com ela antes de o fazerem, e
então, por três vezes, ouviu-se nos bastidores um ruído metálico, e todos
ajoelharam entoando uma oração. Tudo isto foi interrompido várias vezes pelos
gritos entusiastas dos espectadores.
Durante o espectáculo, sempre que Natacha olhava para a plateia, via Anatole
Kuraguine, com o braço passado por trás da poltrona, todo voltado, a olhar para
ela. Sentia-se encantada ao vê-lo enamorado dela e não lhe passava pela cabeça
que nisso houvesse qualquer mal.
Quando terminou o segundo acto, a condessa Bezukov levantou-se, voltando-se
para o lado do camarote dos Rostov, que só então puderam ver que ela tinha os
seios descobertos. Depois, chamando, com um sinalzinho da sua mão enluvada, o
velho conde, sem prestar a mais pequena atenção às pessoas que entravam no seu
camarote, pôs-se a conversar com ele, sorrindo graciosamente.
— Apresente-me às suas encantadoras filhas — disse-lhe ela. — Toda a gente
fala delas em Moscovo e só eu as não conheço. Natacha levantou-se e fez uma
reverência à esplêndida condessa. Lisonjeada pelo galanteio daquela beleza
célebre, sentiu-se corar.
— Agora também quero tornar-me moscovita — prosseguiu Helena. — Não se
envergonha de ter pérolas dessas escondidas na aldeia?
Merecia, realmente, a fama de feiticeira de que gozava. Tinha o dom de dizer
o que não pensava e especialmente de manejar a arma da lisonja com a maior
naturalidade.
— Querido conde, tem de consentir que eu me ocupe de suas filhas. Emboranão vá demorar-me aqui muito tempo, como, de resto, todos nós, quero que elas
se divirtam. Ouvi falar muito de si em Petersburgo e há muito que desejava
conhecê-la — acrescentou, dirigindo-se a Natacha e dedicando-lhe o seu amável
sorriso. — Falaram-me muito de si, em primeiro lugar o meu pajem. Drubetskoi —
sabe que vai casar? — e depois o grande amigo de meu marido, o príncipe André
Bolkonski. — Frisou particularmente este nome, para dar a entender não ignorar
as relações que havia entre eles. Para melhor se relacionarem, pediu ao conde
consentisse que uma das suas filhas viesse para o seu camarote. E Natacha passou
para junto da condessa.
No terceiro acto, a cena representava um salão todo iluminado, com as
paredes cobertas de retratos de cavaleiros barbados. No centro do palco estavam
duas personagens, naturalmente o rei e a rainha. Aquele fez um gesto com a mão
direita e, visivelmente intimidado, cantou uma ária bastante mal, indo depois
sentar-se num tronco cor de amaranto. A rapariga que aparecera primeiro vestida
de branco, depois de azul, agora nada mais tinha em cima de si além de uma
camisa, e, de cabelos caídos, estava ao lado do trono. Pôs-se a cantar o seu
desespero, dirigindo-se à rainha, mas o rei fez com a mão um gesto severo e,
vindos dos lados, apareceram homens e mulheres, todos de fato de malha, que
cantaram em coro. Em seguida os violinos tocaram uma ária ligeira e jovial. Uma
das mulheres, com as suas planturosas coxas moldadas pela malha e uns braços
magricelas, depois de se separar das companheiras, entrou nos bastidores, para
arranjar o corpete, voltando para o meio do palco, onde desatou aos pulos
enquanto batia com os pés um no outro, muito enérgica. Toda a plateia rompeu
em aplausos, gritando: «Bravo!» Em seguida um homem foi colocar-se a um canto.
Na orquestra os címbalos e as trompetas ressoaram mais alto e, sozinho, um
homem de fato de malha pôs-se a dar saltos muito altos, batendo com os pés um
no outro. Esse homem era Duport, o qual, só por fazer aqueles exercícios, ganhava
sessenta mil rublos anuais. Todos os espectadores, tanto na plateia, como nos
camarotes e no galinheiro, romperam em aplausos e a chamá-lo com toda a força
dos pulmões, e o bailarino deteve-se e a sorrir veio agradecer, voltando-se para
todos os lados do teatro. Outras pessoas vieram dançar também, homens e
mulheres, e o rei, acompanhado pela orquestra, gritou umas palavras e todos,
como uma só voz, entoaram um coro. De súbito desencadeou-se uma tempestade,
a orquestra executou escalas cromáticas e acordes da sétima menor; todosacorreram, arrastando consigo, de novo, para os bastidores um dos artistas,
depois do que caiu o pano. Os espectadores principiaram então a vociferar e todos
gritavam com o maior entusiasmo: «Duport! Duport! Duport!»
Natacha já nada achava estranho. Olhava para o que ia à sua volta com
satisfação e sorrindo.
— Não acha o Duport admirável? — perguntou-lhe Helena.
— Acho, sim — replicou Natacha.
[X]
Durante o intervalo abriu-se a porta e uma corrente de ar frio filtrou-se no
camarote de Helena. Anatole entrou, inclinando-se, para não tropeçar em
ninguém.
— Dá licença que lhe apresente meu irmão? — disse Helena, mirando ora um
ora outro, um pouco preocupada.
Natacha voltou a sua linda cabeça para aquele belo moço e sorriu-lhe por cima
do ombro nu. Anatole, que era bonito rapaz tanto de perto como de longe, sentou-
se a seu lado, dizendo-lhe que havia muito desejava ser-lhe apresentado, desde
que tivera o prazer, inesquecível para ele, de a ver no baile dos Narichkine.
Kuraguine era muito mais simples e inteligente ao pé das mulheres do que com os
homens. Falava resolutamente e com simplicidade e foi com prazer que Natacha
verificou nada encontrar de assustador naquele homem de quem se dizia tanta
coisa, e em quem, antes pelo contrário, via um sorriso simples, alegre e cordial.
Perguntou-lhe Anatole se gostara do espectáculo e contou-lhe que na
representação antecedente Semionovna caíra em cena.
— Sabe, condessa — acrescentou, tratando-a, de chofre, como se ela fosse uma
velha conhecida sua —, estamos a organizar um baile de máscaras. Não pode
faltar. Vai ser muito divertido. Reunimo-nos em casa das Karaguine. Peço-lhe, não
deixe de aparecer.
Enquanto falava não deixava de fitar, com os seus risonhos olhos, o rosto, o
colo e os braços nus de Natacha. Agora ela tinha a certeza de que ele a admirava.
E isto era-lhe agradável, embora, sem que soubesse porquê, a presença dele, aomesmo tempo que a perturbava, lhe fosse penosa. Quando apartava dele a vista
sentia nos ombros o peso dos seus olhares e inconscientemente desejaria poder
interceptar esses olhares, para que ele a fitasse antes no rosto. Porém, quando o
olhava de frente percebia não existirem já entre os dois essas barreiras que o
pudor, naturalmente, costumava levantar entre ela e os outros homens. Sem se
dar conta, em menos de cinco minutos, sentiu-se extremamente próxima daquele
homem. Quando voltava a cara, receava vê-lo pegar-lhe na mão nua ou
surpreendê-lo a beijar-lhe os ombros. Falavam das coisas mais insignificantes, mas
Natacha, de si para consigo, dizia serem íntimos e haver entre eles uma
familiaridade como nunca existira entre ela e qualquer outro homem. Interrogava
Helena e o pai com os olhos, como se quisesse perguntar-lhes a significação de
tudo aquilo, mas a condessa estava entretida a conversar com um general e não
lhe respondeu e o pai dizia-lhe o mesmo de sempre: «Divertes-te? Ainda bem,
gosto muito disso.»
Para romper um silêncio embaraçoso, em que Anatole a olhava, tranquila e
obstinadamente, com os seus olhos à flor da pele. Natacha perguntou-lhe se
gostava de Moscovo. Mal lhe fizera esta pergunta logo se sentiu corar: afigurava-
se-lhe, a todo o momento, estar fazendo qualquer coisa de inconveniente quando
falava com ele. Anatole sorriu como a encorajá-la.
— De princípio Moscovo não me entusiasmou por aí além,
O que faz uma cidade agradável são as mulheres bonitas, não é verdade? Mas
agora agrada-me muito — acrescentou, fitando-a de maneira significativa. — Vai
ao baile, condessa? Vá — E avançando a mão para as flores que Natacha trazia
consigo, e baixando a voz: — Será a mais bonita. Prometa que vai, querida
condessa, e para selar a promessa dê-me esta flor.
Natacha não pôde compreender por completo o sentido oculto que ele punha
naquelas palavras, mas nem por isso deixou de sentir que eram inconvenientes.
Sem saber que responder, desviou a cara, fingindo não ter ouvido. Mas nesse
mesmo, instante a ideia de que ele estava ali, atrás dela, e tão perto, de novo a
tomou.
«Que estará ele a fazer?», perguntava a si própria. «Terá ficado atrapalhado?
Estará zangado comigo? É preciso arranjar as coisas!» E não resistiu: voltou a
cabeça para trás. Os olhos dela foram pousar directamente nos dele e a sua
presença tão próxima, a sua confiança, a sua simpática cordialidade conquistaram-na. Sorriu com ele, olhando-o bem de frente. E de novo pensou, assustada, que
entre eles não havia barreiras.
O pano voltou a subir. Anatole saiu do camarote, feliz e sereno.
Natacha voltou para junto do pai, completamente subjugada pelo novo mundo
que acabava de entrever. Tudo o que passava à sua roda se lhe afigurava agora o
que havia de mais natural e nem por um instante sequer lhe vieram à mente as
suas antigas preocupações com o noivo, com a princesa Maria, com a vida na
aldeia: era como se tudo isso fizesse parte de um passado longínquo.
No quarto acto apareceu no palco, gesticulando, uma espécie de demónio, que
se pôs a cantar até que um alçapão se entreabriu e ele desapareceu pelo chão
abaixo. Eis tudo quanto Natacha viu. Sentia-se inquieta e perturbada, e Kuraguine,
a quem ela não deixava de seguir com os olhos, mesmo sem querer, era o
responsável daquela agitação. Ã saída aproximou-se, mandou avançar a sua
própria carruagem e instalou-os a todos lá dentro.
Ao ajudar Natacha a subir para o carro apertou-lhe o braço um ponto acima do
cotovelo. Muito corada e confusa, ela ergueu para ele as pupilas. Anatole fitou-a
com seus olhos brilhantes e sorriu-se.
Só ao chegar a casa Natacha pôde medir com clareza o que se passara, e de
súbito, ao lembrar-se do príncipe André, um grande medo a tomou, soltou um
grito e saiu da sala onde todos tomavam chá, corada até às orelhas.
«Meu Deus! Estou perdida!», exclamou de si para consigo. «Como pude eu
permitir-lhe?» Longo tempo assim ficou, o rosto, muito afogueado, escondido nas
mãos, tentando dar-se conta exacta do que se passara no teatro, embora sem
conseguir perceber nem o que sentira nem o que estava experimentando. Tudo lhe
parecia obscuro, indistinto e terrível.
Lá, naquela sala toda iluminada, onde, sobre o palco, acompanhado pela
orquestra. Duport dava pulos, de fato de malha e coberto de lantejoulas, e em que
raparigas, velhos. Helena, toda decotada, sorrindo sempre serena e orgulhosa,
gritavam entusiásticos bravos, ali, à sombra daquela Helena, tudo era claro e
simples, mas agora, ao ver-se sozinha, entregue a si mesma, nada compreendia.
«Que quer isto dizer? Que significam o terror que senti diante dele e estes
remorsos que me esmagam?», murmurava.
Só na cama, à noite, à velha condessa teria podido confiar aqueles
pensamentos. Sónia, por de mais o sabia, com os seus severos e rígidos princípios,ou nada teria percebido ou ter-se-ia sentido aterrada com tal confissão. Entregue
a si própria, sozinha. Natacha procurava descobrir a causa das suas angústias.
«Estarei ou não perdida para o amor de André?», perguntava-se a si própria, e
a si mesma respondia, trocista: «Que parva sou com estas perguntas! Que
aconteceu? Nada. Nada fiz, não tenho culpa alguma do que sucedeu. Ninguém
saberá nada e eu não o voltarei a ver.» E pensava ainda: «Está claro que nada se
passou, que não tenho que me arrepender seja do que for. O príncipe André pode
continuar a gostar de mim como sou. Mas que serei eu, realmente? Ah! Meu
Deus, meu Deus! Porque não o tenho aqui a meu lado?»
Natacha por instantes ficara sossegada, mas daí a pouco um instinto secreto
lhe dizia de novo que, embora tudo aquilo fosse verdade e nada tivesse
acontecido, a antiga pureza do seu amor por André fora-se de uma vez para
sempre. E em imaginação ia recordando a conversa com Kuraguine e tornava a ver
o rosto, os gestos, o terno sorriso daquele homem audacioso e belo no momento
em que lhe apertara o braço.
[XI]
Anatole Kuraguine vivia em Moscovo porque o pai o mandara sair de
Petersburgo, onde gastava mais de vinte mil rublos por ano e contraía dívidas de
igual importância, que o príncipe se via obrigado a satisfazer.
O pai fizera compreender ao filho ser a última vez que lhe pagava metade das
dívidas, mas com a condição de ele ir para Moscovo como ajudante-de-campo do
general-chefe, cargo que ele próprio lhe conseguira, e de casar, finalmente, com
uma rica herdeira. A princesa Maria e Júlia Karaguine eram as visadas.
Anatole acedeu e foi para Moscovo, hospedando-se em casa de Pedro. Este
principiou por recebê-lo de má vontade, mas acabou por se habituar à sua
presença. Às vezes participavam das mesmas orgias e a título de empréstimo
adiantava-lhe dinheiro.
Anatole, como dizia acertadamente Chinchine, fizera perder a cabeça a todas
as mulheres desde que chegara a Moscovo, precisamente porque não lhes ligava
importância, desdenhando-as pelas belas ciganas e as francesas, especialmente por
uma tal Mademoiselle Georges, com quem, segundo constava, mantinha relações
íntimas. Não faltava a qualquer orgia em casa de Danilov e de outros boémios de
Moscovo, bebia como uma esponja noites inteiras e assistia a todas as soirées e a
todos os bailes da alta sociedade. Contavam-se dele vários escândalos com
senhoras de Moscovo e nos bailes cortejava algumas delas. Mas com as raparigas
nada queria, especialmente com as casadouras, as quais, pela maior parte, não
tinham graça alguma, e pela excelente razão, que todos desconheciam, salvo os
amigos íntimos, de estar casado havia já dois anos,
Dois anos antes, efectivamente, durante o tempo em que estivera com o
regimento na Polónia, um fidalgo polaco, não muito rico, obrigara-o a casar com
uma filha. Anatole abandonou a mulher, e a troco de dinheiro, que prometera
enviar ao sogro, comprara o direito de passar por celibatário.
Anatole estava sempre contente com a vida, consigo e com os outros.
Instintivamente, parecia convencido de que não podia viver de outra maneira e de
que nunca procedera mal. Não era capaz de compreender que os seus actos
podiam prejudicar as outras pessoas. Estava persuadido de que pela mesma razão
que o pato fora feito para viver na água ele fora criado por Deus para viver com
trinta mil rublos de rendimento e para ocupar um lugar preponderante nasociedade. E tão persuadido estava disso que os outros, ao vê-lo, igualmente se
convenciam de que ele tinha razão, não lhe recusando nem a posição
preponderante na sociedade nem o dinheiro que ele pedia emprestado ao
primeiro que lhe aparecia, evidentemente sem a mais leve intenção de pagar.
Não jogava, ou, pelo menos, não jogava para ganhar. Não tinha amor-próprio.
Era-lhe absolutamente indiferente o que os outros pensassem dele. Tão-pouco
podia ser considerado ambicioso. Mais de uma vez fizera perder a cabeça ao pai
comprometendo a sua própria carreira, e menosprezava todas as honrarias. Não
era avaro e nunca negava o que lhe pediam. Acima de tudo amava o prazer e as
mulheres, e, como em sua opinião não havia nisso qualquer sentimento vil, não lhe
passava pela cabeça que pudesse prejudicar os outros a satisfação, que buscava,
dos seus prazeres, considerando-se sinceramente irrepreensível, desprezando com
a mesma sinceridade os patifes e os covardes, erguendo bem alto a cabeça, sinal
de uma consciência tranquila.
Todos os estróinas, tanto os homens— Madalenas como as Madalenas —
mulheres, vivem com a secreta e ingénua convicção de serem perfeitamente
inocentes, persuadidos de que toda a gente está disposta a perdoar-lhes. «Muito
lhe será perdoado pelo muito que amou; muito lhe será perdoado pelo muito que
se divertiu.»
Dolokov, que reaparecera naquele ano em Moscovo depois do seu exílio e das
suas aventuras na Pérsia, e que vivia ali no luxo e na devassidão, voltara a
relacionar-se com Kuraguine, seu antigo camarada de Petersburgo, e dele se
utilizava por interesse próprio.
Anatole apreciava sinceramente a inteligência e a coragem do amigo.
Dolokov, que precisava do nome, da notoriedade e das relações de Anatole
Kuraguine para atrair e depenar ao jogo os rapazes ricos, tirava partido dele, sem
lho dar a entender, e com isso se divertia. Além dos seus cálculos interesseiros, o
simples facto de dirigir a seu talante a vontade de outrem era para ele um hábito
e uma necessidade.
Natacha impressionara vivamente Kuraguine. Durante a ceia, depois do
espectáculo, descreveu pormenorizadamente, perito, que era, na presença de
Dolokov, a beleza dos braços, dos ombros, dos minúsculos pés e dos cabelos da
filha do conde Ilia Andreitch, confessando-se na disposição de lhe fazer uma corte
sem tréguas. Quanto ao que daí podia resultar, pouco importava a Anatole, pelasimples razão de que nunca o preocupavam as consequências de qualquer dos seus
actos.
— Sim, é bonita, meu velho, mas não é para a nossa boca — volveu-lhe
Dolokov.
— Vou dizer a minha irmã que a convide para jantar — tornou Anatole. — Que
achas?
— É melhor esperares que esteja casada...
— Sabes? — declarou Anatole — Adoro as rapariguinhas: perdem logo a
cabeça.
— Já uma vez foste apanhado por uma dessas rapariguinhas... — comentou
Dolokov, que sabia da história do casamento. — Tem cuidado!
— Não se é apanhado duas vezes! Que achas? — replicou Anatole, numa
gargalhada.
[XII]
No dia seguinte ao do espectáculo ninguém saiu em casa dos Rostov e
nenhuma visita apareceu. Maria Dmitrievna, às escondidas de Natacha, teve uma
conversa com o pai. Natacha percebeu que haviam falado do velho príncipe e que
tinham combinado pôr em prática um projecto qualquer, o que a deixou inquieta e
irritada. Aguardava de um momento para o outro o príncipe André e por duas
vezes nesse dia mandou o porteiro a Vozdvijenka saber se ele teria realmente
chegado. Mas o príncipe não viera. Sentia-se ainda mais acabrunhada do que nos
primeiros dias após a sua chegada. Agora, à impaciência e ao desgosto por ele
ocasionados vinham acrescentar-se a penosa lembrança do seu encontro com a
princesa Maria e o velho príncipe e um terror e uma inquietação cuja causa não
sabia explicar. Afigurava-se-lhe que ele nunca mais viria ou que antes da sua
chegada qualquer coisa fatal para ela aconteceria. Era-lhe impossível agora pensar
nele, como outrora, serena e amorosamente, a sós consigo mesma. Assim que se
dava a pensar em André, vinha misturar-se aos seus pensamentos a lembrança do
velho príncipe, da princesa Maria, da noite no teatro e de Kuraguine. E de novo
surgia nela a pergunta que a si própria fazia: não seria culpada? Não teriaatraiçoado a sua fidelidade ao príncipe André?, obrigando-se a recapitular, nos
seus mínimos pormenores, cada palavra, cada gesto, cada expressão fisionómica
daquele homem que soubera despertar nela um sentimento tanto mais para
recear quanto era certo lhe ser incompreensível. Aos olhos das pessoas de família.
Natacha parecia mais animada do que de costume, mas a verdade é que estava
longe de se encontrar tão serena e feliz como antigamente.
No domingo, pela manhã. Maria Dmitrievna propôs aos seus hóspedes ouvirem
missa na paróquia da Assunção de Moguilts.
— Não gosto das igrejas à moda — dissera, jactando-se da sua largueza de
espírito. — Deus é o mesmo em toda a parte. Temos ali um pope muito bom, diz
lindamente os ofícios e mesmo até com nobreza, e o diácono também. Não consigo
perceber como os concertos no coro tornam mais santos os templos. Não gosto,
são divertimentos como outros quaisquer. — Maria Dmitrievna apreciava muito
os domingos e sabia festejá-los. No sábado era a casa cuidadosamente lavada e
espanejada; ao domingo tanto ela como o seu pessoal se abstinham de trabalhos
manuais, vestiam-se com trajos festivos e iam todos à missa.
O jantar dos amos era acrescentado com pratos suplementares e a criadagem
tinha uma dose de vodka, pato assado ou leitão. Mas em nenhum outro rosto, por
toda a casa, se espelhava mais festivo ar que na larga e severa cara de Maria
Dmitrievna, que por essa altura assumia a expressão imutável dos dias solenes.
Quando, depois da missa, tomado já o café no salão, donde se haviam retirado
as capas que cobriam os móveis, vieram anunciar a Maria Dmitrievna que a sua
carruagem a esperava, ela, com o seu ar severo, embrulhada no seu xale de
cerimónia, levantou-se e declarou que ia a casa do príncipe Nicolau Andreievitch
Bolkonski, para com ele ter uma explicação a respeito de Natacha.
Assim que ela saiu, chegou uma costureira da parte de Madame Chalmet, e
Natacha, a quem esta diversão muito agradava, fechou a porta do quarto contíguo
ao salão e preparou-se para provar o seu novo fato. Vestia ela um corpinho
apenas alinhavado e ainda sem mangas e de cabeça descaída para trás observava
no espelho o seu cair nas costas quando ouviu no salão a voz animada do pai e de
qualquer outra pessoa, o que a fez corar imediatamente. Era a voz de Helena.
Ainda não tivera tempo de despir o corpinho que provara e já a porta se abria e a
condessa Bezukov entrava, radiosa no seu bom e afectuoso sorriso, vestida de
veludo lilás-carregado e gola alta.— Ah, minha deliciosa pequena! — exclamou para Natacha, que corara muito.
— Não, isto é impossível, meu querido conde — acrescentou, dirigindo-se a Ilia
Andreitch, que a seguia. — Viver em Moscovo e não ir a parte alguma! Sim, já os
não largo. Esta noite recebo em minha casa. Vamos ouvir Mademoiselle Georges
recitar, haverá apenas algumas pessoas íntimas. Se não me traz as suas lindas
filhas, que valem bem mais do que ela, corto relações convosco. O meu marido não
está, foi para Tvier, caso contrário pedir-lhe-ia que as viesse buscar. Venham, sem
falta, sem falta, às nove horas.
Saudou com um movimento de cabeça a costureira sua conhecida, que lhe fez
uma respeitosa reverência, e sentou-se numa poltrona junto do toucador,
ajeitando graciosamente as pregas do vestido de veludo. Num tom jovial e cheio
de cordialidade, continuou a tagarelar, a cada momento extasiada perante a
beleza de Natacha. Viu uma por urna as toilettes da jovem condessa, elogiou-as
muito, pondo em relevo, igualmente, a sua própria, novinha, de gaze metálica,
acabada de chegar de Paris, aconselhando Natacha a que mandasse fazer uma
igual.
— De resto, a si, minha linda, tudo lhe fica bem — acrescentou.
O rosto de Natacha resplandecia de satisfação. Sentia-se feliz, e toda ela era
vida ouvindo os elogios daquela amável condessa Bezukov, que de princípio se lhe
afigurara tão altiva e inabordável e que a tratava agora com tanta simpatia.
Contentíssima, ei-la pronta a adorar aquela mulher tão bela e tão boa. Helena,
por seu lado, era sincera na admiração que mostrava por Natacha e no desejo que
tinha de a distrair. Anatole pedira-lhe que os aproximasse e por essa razão viera a
casa dos Rostov. A ideia de aproximar o irmão daquela jovem antolhava-se-lhe
divertida.
Embora tivesse sentido outrora um certo despeito por Natacha lhe haver
roubado. Bóris, já se não lembrava disso e queria-lhe bem, do coração, à sua
maneira. Antes de retirar-se, chamou de parte a sua protegida.
— Ontem meu irmão jantou em minha casa, íamos morrendo a rir... Não come
e passa a vida a suspirar por si, feiticeira! Está louco, mas louco de amor por si,
minha querida.
Ao ouvir isto. Natacha ficou toda corada.
— Ai que corada, que corada, minha deliciosa pequena! Então não falte. Se
ama alguém, minha deliciosa pequena, não é razão para fazer vida de monja. Atémesmo se estiver prometida, tenho a certeza de que o seu prometido preferiria
sabê-la a fazer vida de sociedade do que a definhar de tédio.
«Então, ela sabe que eu estou comprometida; naturalmente falaram disso, ela
e o marido, com Pedro, esse homem que é a rectidão em pessoa» dizia de si para
consigo Natacha. «E riram-se desta aventura. Portanto, é coisa sem importância...
» E subitamente, sob a influência de Helena, o que ainda há pouco lhe parecia
horrível afigurou-se-lhe tudo que havia de mais simples e natural. «E ela, essa
grande senhora, tão gentil, e que com certeza gosta muito de mim! Realmente,
porque me não hei-de distrair?», concluía, pousando em Helena os seus grandes
olhos inocentes muito abertos.
Maria Dmitrievna voltou para casa à hora do jantar. Pelo seu ar taciturno e
pensativo via-se que sofrera uma decepção em casa do velho príncipe. Ainda
estava demasiado impressionada para poder contar serenamente o que se
passara. A pergunta do conde respondeu que tudo corria bem e que no dia
seguinte falariam do caso. Ao saber da visita da condessa Bezukov e do seu
convite, declarou:
— Não gosto da companhia de Madame Bezukov e não vos aconselho a que
vão a sua casa, mas, se lhe prometeste, então vai. É uma distracção para ti —
acrescentou dirigindo-se a Natacha.
[XIII]
O conde Ilia Andreich levou as meninas a casa da condessa Bezukov. Havia
muita gente nos salões, mas quase todos os convidados eram desconhecidos de
Natacha. O pai verificou, pouco satisfeito, que a maior parte eram homens e
senhoras conhecidas pela sua liberdade de costumes. Mademoiselle Georges,
rodeada de uma corte de rapazes, estava num dos recantos do salão. Havia alguns
franceses, entre os quais Métivier, que se tornara íntimo da casa desde que
Helena chegara. O conde Ilia Andreitch resolveu não jogar para não se afastar das
filhas e retirar-se assim que a artista houvesse recitado.
Anatole estava à porta procurando não perder a chegada de Natacha. Depois
de cumprimentar o conde, aproximou-se dela e seguiu-a de perto. Esta mal o viralogo sentira, como no teatro, esse estranho sentimento misto de vaidade, por
perceber que lhe agradava, e de temor, por verificar que os não separavam
quaisquer barreiras morais.
Helena acolheu alegremente Natacha e extasiou-se em voz alta elogiando-lhe
a beleza e o vestido. Pouco depois. Mademoiselle Georges desaparecia do salão
para mudar de toilette.
Principiaram a dispor as poltronas e a mandar sentar os convidados. Anatole
trouxe uma cadeira a Natacha e quis sentar-se a seu lado, mas o conde, que não
perdia a filha de vista, ocupou o lugar e Anatole sentou-se atrás dela.
Mademoiselle Georges, com os seus fortes braços desnudados, um xale
encarnado atirado para o ombro, avançou pelo espaço livre reservado entre as
cadeiras e ficou imóvel, numa atitude afectada. Pela sala perpassou um sussurro
de admiração.
Depois de percorrer a assistência com um olhar profundo e sombrio.
Mademoiselle Georges principiou a declamar uns versos franceses em que se
falava da criminosa paixão de uma mulher pelo próprio filho. Em certos passos
elevava a voz, noutros falava baixo, empertigando a cabeça soberbamente, e
noutros ainda calava-se, suspirando e rolando as pupilas.
«Adorável, divino, delicioso!», ouvia-se dizer por todos os lados.
Natacha, de olhos fitos na planturosa Georges, nada percebia, nada via, nada
compreendia do que se passava à sua roda. De novo e definitivamente se sentia
arrastada para esse mundo louco e estranho, tão diferente daquele em que
sempre vivera, um mundo onde se não podia distinguir o bem do mal, o razoável
do insensato. Atrás dela estava Anatole e, sentindo-o tão próximo de si, esperava,
numa angústia.
Findo que foi o monólogo todos se levantaram, rodeando Mademoiselle
Georges, a quem manifestavam o seu entusiasmo.
— É tão bonita! — exclamou Natacha para o pai, que também se erguera e se
dirigia para a actriz levado pela assistência.
— Não acho quando olho para si — murmurou Anatole, que a seguia,
aproveitando uma oportunidade em que só ela o poderia ouvir. — É
encantadora... Desde o momento em que a vi nunca mais deixei...
— Vamos, vamos. Natacha — disse o conde, voltando ao encontro da filha. —
Que linda!Natacha, sem dizer palavra, aproximou-se do pai, interrogando-o, assustada,
com os olhos.
Depois de declamar ainda algumas cenas. Mademoiselle Georges retirou-se e a
condessa Bezukov pediu aos seus convidados que passassem para a sala.
O conde dispôs-se a partir, mas Helena implorou-lhe que não lhe estragasse o
prazer que tinha naquele baile improvisado. E os Rostov ficaram. Anatole convidou
Natacha para dançar a valsa, e enquanto dançava com ela, apertando-lhe a
cintura e as mãos, repetia-lhe que a achava encantadora e que a amava. Durante
a escocesa, que também dançaram juntos, no momento em que ficaram sós.
Anatole limitou-se a olhá-la sem lhe dirigir palavra. E Natacha perguntou-se então
a si mesma se não teria ,sonhado com o que ele lhe dissera enquanto dançavam a
valsa. No fim da primeira marca, de novo ele lhe apertou a mão. Natacha ergueu
para ele uns olhos assustados, mas o olhar terno e o sorriso de Anatole tinham
tanta segurança e doçura que ela não pôde deixar de lhe dizer o que entendia ser
obrigação sua. Baixou as pálpebras.
— Não me diga essas coisas — pronunciou, rapidamente.— Estou noiva e amo
outra pessoa.— E então olhou para ele. Anatole não parecia nem perturbado nem
ofendido com o que ela dissera.
— Não me fale disso. Que me importa? Já lhe disse que estou louco,
apaixonado loucamente por si. Que culpa tenho eu de que seja encantadora?
Somos nós que temos de principiar.
Natacha, animada e inquieta, olhava sem ver com os olhos assustados, muito
abertos, e parecia mais alegre do que de costume. Não dava pelo que se passava à
sua volta. Dançaram a escocesa, e depois o grossvater (Espécie de cotilion. (N, dos
T.). O pai quis levá-la, mas ela pediu-lhe que ficassem mais algum tempo. Onde
quer que fosse, conversasse com quem conversasse, sentia sobre ela aquele olhar.
Depois recordava-se de ter dito ao pai que ia ao toucador arranjar o vestido, e de
que Helena a seguira, lhe falara, rindo, do amor do irmão e de que se encontrara
com Anatole num pequeno gabinete e de que Helena desaparecera e de que os
dois haviam ficado sós e de que Anatole, pegando-lhe nas mãos, lhe dissera numa
voz cheia de ternura:
— Não posso visitá-la em sua casa, mas será possível que a não torne a ver?
Amo-a loucamente. Será possível que nunca?... E, cortando-lhe o caminho,
aproximou o seu do rosto dela.Dois grandes olhos faiscantes estavam tão próximos dos dela que para Natacha
tudo o mais deixou de existir.
— Natália! — murmurou a sua voz, e Natacha sentiu as suas mãos muito
apertadas. — Natália!
«Nada sei, nada tenho que lhe dizer», parecia replicar o seu olhar atónito.
Uns lábios ardentes premiram os seus e no mesmo instante sentiu-se
subitamente livre. Ouviu uns passos e o ruge-ruge do vestido de Helena. Natacha
voltou-se, depois olhou para Anatole com uns olhos onde havia angústia e pavor e
encaminhou-se para a porta.
— Uma palavra, uma palavra, por amor de Deus! — prosseguiu Anatole.
Natacha parou. Precisava de que ele pronunciasse a palavra que lhe explicaria
o que acontecera, e a que ela responderia.
— Natália, uma palavra, uma palavra apenas — repetia ele, não sabendo,
evidentemente, o que havia de dizer, e não deixou de pronunciar estas palavras
enquanto Helena se aproximava deles.
Helena e Natacha regressaram ao salão. Os Rostov retiraram-se antes da ceia.
De regresso a casa. Natacha não dormiu. Não deixava de a atormentar um
problema insolúvel: a quem amava ela, a Anatole ou ao príncipe André? Amava
André, com certeza, não esquecera quão viva se mantinha a sua afeição por ele.
Mas também gostava de Anatole, era incontestável. «Se assim não fosse, como
poderia ter acontecido o que aconteceu?», dizia ela. «Se eu pude, depois, ao
despedir-me, responder com um sorriso ao sorriso dele, se pude chegar até aí, não
quererá isto dizer que desde o primeiro momento gostei dele? Não quererá dizer
que ele é bom, nobre e excelente, e que era impossível não o amar?» E não
achava resposta para estas angustiosas interrogações.
[XIV]
Chegou a manhã com as suas ocupações e os seus quefazeres quotidianos.
Todos se levantaram, se agitaram, tagarelaram. De novo apareceram as modistas.
Depois Maria Dmitrievna e todos se reuniram para tomar chá. Natacha, cujos
olhos a insónia ainda tornara maiores, como se quisesse impedir que a olhassemfundo nas pupilas, mirava toda a gente com inquietação, esforçando-se por parecer
igual à Natacha de todos os dias.
Depois do almoço. Maria Dmitrievna — e era esse o seu grande momento —
sentou-se na sua poltrona e chamou para junto de si Natacha e o velho conde.
— Ora aqui têm, meus amigos: pensei muito em tudo isto, e o meu conselho é
este — principiou ela. — Ontem, como sabeis, fui a casa do príncipe Nicolau. E falei
com ele... Deu-lhe para gritar. E eu ainda gritei mais. Despejei ali todo o meu
saco!
— E ele, que disse? — inquiriu o conde.
— Ele é doido.., nada quer ouvir. Para que serve tornar a falar no caso? Já
atormentámos bastante esta pobre pequena. A minha opinião é esta: trate o
conde de resolver as suas coisas e voltem para casa, para Otradnoie.., e esperem
ali...
— Não! Não! — gritou Natacha.
— Sim, sim, é preciso voltar para casa — insistiu Maria Dmitrievna — e
esperar lá. Se o noivo agora aqui aparecesse, era certa uma discussão; mas uma
vez só com o velho, saberá levar a água ao seu moinho e depois lá irá ter
convosco. — Ilia Andreitch aprovou a proposta de Maria Dmitrievna, assimilando
imediatamente a prudência da medida. Se o velho se humanizasse, era sempre
tempo de regressarem a Moscovo ou de o procurarem em Lissia Geri. Caso
contrário, não seria possível casarem sem o seu consentimento senão em
Otradnoie.
— Tem toda a razão — corroborou ele. — Sinto ter ido a sua casa e ter levado
comigo minha filha.
— Não tem que se arrepender. Estando em Moscovo, não podia deixar de lhe
dar essa prova de cortesia. Mas se ele não quer, que se avenha! — acrescentou
Maria Dmitrievna, enquanto procurava fosse o que fosse na algibeira. — E, visto
que o enxoval está pronto, não têm que esperar mais tempo. O que faltar eu me
encarrego de o expedir. Tenho pena de que se vão embora, mas acho melhor. Ide e
fazei boa viagem.
Tendo encontrado na algibeira o que procurava, entregou-o a Natacha. Era
uma carta da princesa Maria.
— Escreveu-te. Muito sofre ela, coitada! Tem medo de que possas pensar que
não gosta de ti.— E é verdade, não gosta de mim — disse Natacha.
— Tolice, não digas isso— exclamou Maria Dmitrievna.
— Em nada acredito do que me digam; sei muito bem que ela não gosta de
mim — insistiu Natacha com decisão, pegando na carta. No seu rosto pintava-se
uma resolução fria e maldosa, que levou Maria Dmitrievna a fitá-la com atenção,
franzindo o sobrolho.
— Não digas isso, minha santa — censurou ela. — O que te estou a dizer é a
verdade. Deves responder-lhe.
Natacha, sem dar réplica, retirou-se para o seu quarto, disposta a ler a carta.
A princesa Maria dizia-lhe que o mal-entendido que se estabelecera a deixara
num grande desespero. Fossem quais fossem os sentimentos do pai, pedia a
Natacha que acreditasse não querer negar o seu afecto àquela que fora escolhida
por seu irmão, e que estava pronta a tudo sacrificar pela felicidade dela.
«De resto», prosseguia, «não pense que meu pai tem qualquer má vontade
para consigo. É um velho e um doente, a quem é preciso perdoar; mas no fundo é
bom, magnânimo, e acabará por estimar aquela que fizer a felicidade do filho.»
Maria pedia-lhe depois que lhe marcasse um dia para a tornar a ver.
Natacha, finda que foi a leitura da carta, sentou-se à mesa disposta a
responder. «Querida princesa», escreveu, rápida e maquinalmente. Em seguida
deteve-se. Que havia ela de dizer depois do que se passara na véspera? «Sim, sim,
não é a mesma coisa, agora tudo é diferente», disse de si para consigo, diante da
carta principiada. «É preciso acabar com isto. Mas será preciso? É horrível!...» E
para fugir àquelas medonhas ideias foi ter com Sónia e ambas se puseram a ver
riscos de bordados.
Depois do jantar. Natacha retirou-se para o quarto e continuou a carta. «Será
possível que tudo tenha terminado já?», pensou. «Como é que tudo sucedeu tão
depressa e tão depressa fez esquecer o passado?» Lembrou-se do seu amor pelo
príncipe André então em plena força e percebeu ser Kuraguine a quem amava.
Pôs-se a imaginar-se casada com André e a imaginação pintou-lhe diante dos olhos
o quadro, tantas vezes evocado, da felicidade que a aguardava junto dele, mas no
mesmo instante sentiu que toda a sua alma se incendiava à lembrança do
encontro a sós, na véspera, com Anatole.
«Porque não poderei eu amar os dois ao mesmo tempo?», interrogava-se, por
vezes, numa perfeita obnubilação de espírito. «Só então me sentiriacompletamente feliz; mas agora tenho de escolher, e privada de um deles nunca
mais poderei ser feliz. Confessar a André o que se passou ou ocultar-lho é por igual
impossível. Afinal nada aconteceu de irremediável. Serei eu obrigada a renunciar
para sempre ao amor de André, esse amor que por tanto tempo foi toda a minha
felicidade?»
— Menina — murmurou uma criada, em voz muito baixa e com um ar
misterioso, entrando-lhe no quarto! — Olhe o que um homem me deu para lhe
entregar. — E a moça passou-lhe uma carta para as mãos.— Mas, por Deus... —
prosseguiu a criada.
Natacha, porém, sem lhe responder, arrancou maquinalmente o lacre e leu a
carta. Não percebeu uma só palavra. Apenas sabia que aquela carta era dele, do
homem a quem amava. Sim, amava-o. Se o não amasse, poder-se-ia dar o que
estava a suceder? Poderia ela ter entre as suas mãos aquela carta apaixonada que
ele lhe endereçara?
Nas suas mãos trémulas tinha Natacha a carta inflamada de paixão que
Dolokov redigira para Anatole e, lendo-a, era como se encontrasse nela íntimas
correspondências com os sentimentos que julgava transbordar-lhe do coração.
«Desde ontem à note que o meu destino está decidido: ou o seu amor ou a
morte. Não tenho outro caminho!» Assim principiava a carta. Depois dizia saber
que os pais dela nunca consentiriam em dar-lhe , sua mão, que para isso havia
razões secretas que só a ela podia revelar, mas se em verdade ela o amava
bastava dizer que sim e não havia forças humanas capazes de se oporem à sua
felicidade. O amor vence todos os obstáculos. Raptá-la-ia para a levar consigo para
o fim do mundo.
«Sim, sim, amo-o!», exclamava Natacha para si mesma, lendo pela vigésima
vez aquela carta e deixando-se trespassar por cada uma das suas palavras, como
se nelas houvesse um sentido profundo.
Nessa noite Maria Dmitrievna foi a casa dos Arkarov e propôs às meninas que
a acompanhassem. Natacha, sob o pretexto de que lhe doía a cabeça, ficou em
casa.
[XV]
Já tarde, ao regressar a casa. Sónia entrou no quarto de Natacha e com
grande surpresa sua foi encontrá-la a dormir num canapé, toda vestida. Na mesa,
a seu lado, estava a carta aberta de Anatole. Sónia pegou nela pôs-se a ler.
Enquanto a lia ia olhando para Natacha adormecida, como que a procurar no seu
rosto a explicação do que lia e sem conseguir encontrá-la. O rosto dela respirava
serenidade, felicidade e doçura. Levando as mãos ao peito para não sufocar. Sónia,
pálida e trémula de emoção e receio, deixou-se cair numa cadeira, rompendo em
soluços.
«E eu não dei por coisa alguma. Como puderam as coisas chegar a este ponto?
Teria ela deixado de gostar do príncipe André? E como pôde consentir isto a
Kuraguine? Não há dúvida de que é um impostor e um miserável. Que dirá
Nicolau, o nobre, o gentil Nicolau, quando vier a saber? Agora já compreendo o
que queria dizer aquele rosto transtornado, decidido a tudo, nada natural, que ela
tinha nestes últimos dias», dizia Sónia de si para consigo. «Mas não, não o pode
amar. Naturalmente abriu a carta sem saber de quem vinha. É impossível que se
não tivesse sentido ofendida. Não pode fazer uma coisa destas!»
Sónia enxugou as lágrimas e aproximou-se de Natacha, examinando-a mais uma
vez.
— Natacha — chamou muito baixo.
Natacha acordou e viu Sónia.
— Já voltaste?
E, num destes acessos de ternura que se costumam ter ao acordar, lançou-se
nos braços da amiga. Ao ver, porém, a emoção que se pintava no rosto de Sónia.
Natacha perturbou-se também e mostrou-se desconfiada.
— Sónia, tu leste a carta? — perguntou ela.
— Li — murmurou Sónia.
Natacha sorriu vitoriosa.
— Oh! Sónia, não posso, não posso mais esconder-te... Sabes? Amamo-nos!...
Sónia querida, escreve-me... Sónia... Sónia, como se não percebesse o que ouvia,
olhou para ela com os olhos muito abertos.
— E Bolkonski? — interrogou.
— Oh!. Sónia, oh!, se tu pudesses saber como sou feliz! — exclamou Natacha.
— Mas se tu não sabes o que é o amor...— Mas, então, Natacha, tudo acabou com o outro?
Natacha olhava para ela, com os olhos muito abertos, como se não
compreendesse.
— Então rompeste com o príncipe André?
— Oh!, nada percebes. Não digas tolices. Ouve... — respondeu Natacha, com
impaciência.
— Não, não posso acreditar — repetiu Sónia. — Confesso que não compreendo.
Quer dizer, tu, durante um ano inteiro, gostaste de um homem, e de repente... Um
homem que tu mal viste por duas ou três vezes. Natacha, não acredito, tu estás a
brincar. Em três dias esqueceres tudo e...
— Três dias... — exclamou Natacha. — Tenho a impressão de que o amo há
cem anos. Parece-me que nunca amei alguém antes dele. Não podes
compreender... Sónia, vem cá, senta-te ao pé de mim. — E estreitou-a nos braços,
depondo-lho um beijo na cara. — Tinha ouvido dizer que estas — coisas
acontecem, e com certeza também ouviste dizer o mesmo, mas só agora me foi
dado sentir um amor assim. Oh!, é muito diferente do outro. Assim que o vi, senti
ser aquele o meu senhor e eu a sua escrava, senti que não podia deixar de o amar.
Sim, sou a sua escrava! Pode mandar o que quiser, que estou pronta a obedecer.
Não podes compreender. Mas, diz-me, que posso eu fazer, que posso eu fazer.
Sónia? — acrescentou com uma expressão de felicidade a que se misturava
qualquer coisa de receoso.
— Pensa no que fazes — tornou Sónia. — Eu não posso deixar as coisas assim.
Estas cartas recebidas a ocultas... Como pudeste consentir? — continuou com um
horror e uma repulsa impossíveis de dissimular.
— Já te disse — replicou Natacha. — Deixei de ter vontade. Pois não
compreendes? Amo-o!
— Não consentirei, vou contar tudo! — exclamou Sónia, rompendo em soluços.
— Oh, meu Deus!, que estás a dizer?... Se contares alguma coisa considero-te
minha inimiga. É que me queres mal, é que queres que nos separem...
Ao ver o pânico de que Natacha fora tomada. Sónia chorou lágrimas de
vergonha e compaixão pela amiga.
— Que houve então entre vocês? — perguntou. — Que te disse ele? Porque
não vem ele a nossa casa?
Natacha não respondeu à pergunta.— Por amor de Deus. Sónia, nada digas a ninguém, não me faças sofrer —
implorou ela. — Lembra-te de que ninguém se deve meter nestas coisas. Confessei-
te...
— Porquê todo esse mistério? Porque não vem ele a nossa casa? Porque não
pede ele directamente a tua mão? Realmente, e príncipe André deu-te plena
liberdade para decidires, caso esta oportunidade surgisse. Mas numa coisa eu não
posso acreditar. Já pensaste. Natacha, no que podem ser essas «razões secretas»?
Natacha fitou em Sónia uns olhos assombrados. Era, evidentemente, a
primeira vez que esta pergunta lhe vinha ao espírito, e na verdade não sabia
responder-lhe.
— Não sei que razões serão essas. Mas devemos crer que as haja!
Sónia suspirou e abanou a cabeça com desconfiança.
— Se há razões... — principiou ela.
Natacha, adivinhando as dúvidas da amiga, interrompeu-a, assustada.
— Sónia, não devemos duvidar dele! Não devemos, não devemos,
compreendes? — exclamou.
— Gosta de ti?
— Se gosta de mim? — redarguiu Natacha com um sorriso de comiseração. —
Não leste a carta dele, não a leste?
— E se ele não fosse um homem digno?
— Ele? Um homem indigno? Se tu o conhecesses!
— Se é um homem digno — voltou Sónia com energia —, deve dizer quais as
suas intenções ou então deixar de te ver. E se tu não lho quiseres dizer, eu me
encarregarei disso. Escrever-lhe-ei e contarei tudo ao pai.
— Não posso viver sem ele! — exclamou Natacha.
— Natacha, não te compreendo. Que estás a dizer? Lembra-te de teu pai, do
Nicolau.
— De ninguém preciso, não quero saber de mais ninguém senão dele. Atreves-
te a dizer que ele não é um homem digno? Não sabes que o amo? Sónia, vai-te
embora! Não me quero zangar contigo. Vai-te, vai-te, por amor de Deus! Vai-te!
Não vês que me fazes sofrer! — Natacha falava com ira e numa voz cheia de
desespero. Sónia, não podendo suster as lágrimas, retirou-se.
Natacha sentou-se à sua mesa e sem um momento de reflexão escreveu à
princesa Maria a carta que não fora capaz de redigir durante a manhã inteira. Empoucas palavras dizia-lhe que o mal-entendido entre elas acabara, que o príncipe
André, ao partir, lhe dera plena liberdade e que ela aproveitava a sua
generosidade. Pedia-lhe esquecesse o que se passara e lhe perdoasse se em
alguma coisa a magoara, declarando-lhe que não podia ser mulher de seu irmão.
Naquele momento tudo lhe parecia fácil, simples e claro.
Na sexta-feira deviam os Rostov regressar à aldeia, e na quarta-feira o conde
dirigiu-se à sua propriedade nas imediações de Moscovo na companhia de um
comprador.
No dia da partida do conde. Sónia e Natacha estavam convidadas para um
jantar em casa das Karaguine, e foi Maria Dmitrievna quem as acompanhou.
Natacha voltou a encontrar-se com Anatole, e Sónia pôde ver que ela lhe falava
de maneira a não ser ouvida por mais alguém e que durante o jantar ainda lhe
pareceu mais agitada do que antes. No regresso a casa. Natacha foi a primeira a
dar a explicação que Sónia esperava da amiga.
— Vês. Sónia, eu bem dizia que só tinhas dito tolices a respeito dele —
principiou ela, nesse tom insinuante habitual nas crianças quando querem que as
elogiem. — Tivemos uma explicação.
— E então? Que te disse ele? Ainda bem que não estás zangada comigo.
Natacha. Conta-me toda a verdade. Que te disse? Natacha ficou um momento
pensativa.
— Oh. Sónia, se tu o conhecesses como eu o conheço! Disse-me... Perguntou-me
em que pé estava o meu noivado com Bolkonski. Ficou tão contente quando soube
que de mim dependia acabar com tudo...
Sónia soltou um profundo suspiro.
— Mas não acabaste com o Bolkonski — disse ela.
— E se eu realmente tivesse acabado? Se, efectivamente, tudo tivesse
acabado com ele? Porque pensas tu tão mal de mim?
— Não penso mal de ti. Mas não percebo...
— Espera. Sónia, já vais compreender tudo. Já vais ver como ele é. Não penses
mal nem dele nem de mim.
— Não penso mal de ninguém. Gosto de toda a gente e tenho piedade de
todos. Mas que hei-de eu fazer?
Sónia não se deixava levar pelas meigas palavras de Natacha. Quanto maismimados e insinuantes os modos a amiga, mais sério e grave era o seu rosto.
— Natacha — disse ela —, pediste-me que te não falasse nisso, de nada te falei
e és tu a primeira a referires-te ao caso. Natacha, eu não tenho confiança nele.
Que significa este mistério?
— Outra vez! Outra vez!
— É que tenho medo por ti. Natacha.
— De que tens medo?
— Tenho medo de que te percas — disse Sónia, num tom enérgico, como se ela
própria se sentisse assustada com o que estava a dizer.
O rosto de Natacha de novo assumiu uma expressão de ira.
— Pois bem, perder-me-ei, perder-me-ei, e quanto antes! Nada tens com isso.
O mal será para mim e não para vós. Deixa-me. Deixa-me. Odeio-te!
— Natacha! — exclamou Sónia, assustada.
— Odeio-te! Odeio-te! És minha inimiga para sempre!
E Natacha saiu a correr do quarto.
Não voltou a falar mais com Sónia e evitou tornar a encontrá-la. Natacha
vagueava pela casa com o seu ar perturbado e a sua expressão de pessoa culpada,
ora fazendo isto, ora aquilo e sem acabar coisa alguma.
Embora isso lhe fosse penoso. Sónia não perdia de vista Natacha. Na véspera
do dia em que o conde devia regressar notou que ela estivera toda a manhã à
janela do salão como se aguardasse fosse o que fosse e viu-a fazer sinais a um
militar que passava pela rua e lhe pareceu Anatole.
Então pôs-se a observá-la com mais atenção e reparou que durante o jantar e
à noite Natacha tinha uma atitude estranha e pouco natural: respondia às
perguntas a trouxe-mouxe, principiava frases que não acabava e ria a propósito de
tudo.
Depois do chá viu uma criada muito atrapalhada esperando à porta do quarto
de Natacha. Aguardou que ela entrasse, e, escutando à porta, veio a saber que
uma nova carta chegara.
E de súbito Sónia compreendeu que Natacha ocultava um projecto
inconfessável para aquela mesma noite. Bateu à porta, mas não a deixaram
entrar.
«Vai fugir com ele», disse Sónia para si mesma. «Capaz disso é ela! Pareceu-me
hoje especialmente triste, mas decidida. Ao despedir-se do pai chorou. Sim, estouconvencida de que vai fugir com ele; que hei-de eu fazer?», interrogou-se a si
própria, recordando todos os pormenores que podiam revelar o terrível projecto
de Natacha. «O conde não está. Que hei-de fazer? Escrever uma carta a Kuraguine
a pedir-lhe uma explicação? Quem o obrigaria a responder-me? Escrever ao Pedro,
como me recomendou o príncipe André se viesse a dar-se alguma desgraça...? Mas
não acabou ela com Bolkonski? Efectivamente, foi ontem à noite que ela
respondeu à princesa Maria. E o meu tio não está em casa... » Dirigir-se a Maria
Dmitrievna, que tinha tanta confiança em Natacha, parecia-lhe horrível. «Seja
como for», dizia ela, de si para consigo, no corredor sombrio, «chegou agora o
momento de mostrar que não esqueço o bem que eles me têm feito e que gosto de
Nicolau. Ainda que tenha de passar três noites sem dormir, deste corredor é que
eu não arredo pé, e hei-de evitar que ela saia daqui, nem que seja à força. Não
consinto que tal vergonha cubra esta família!»
[XVI]
Ultimamente Anatole fora viver para casa de Dolokov. O plano de rapto de
Mademoiselle Rostov fora combinado e preparado por este havia vários dias e
devia ser posto em execução na noite em que Sónia, escutando atrás da porta de
Natacha, decidira não a perder de vista. Natacha prometera ir ter com Kuraguine
às dez horas da noite, saindo pela escada de serviço. Anatole metê-la-ia numa
troika preparada de antemão e conduzi-la-ia a umas sessenta verstas de Moscovo,
ao povoado de Kamenka, onde um pope interdito os devia consorciar. Em
Kamenka estaria preparada uma muda, que os levaria para mais longe, pela
estrada de Varsóvia, donde, na mala-posta, seguiriam para o estrangeiro.
Anatole arranjara um passaporte, um livre-trânsito, dez mil rublos, que a irmã
lhe havia emprestado, e mais outros dez mil, que conseguira por intermédio de
Dolokov.
As testemunhas. Kvostikov, um antigo amanuense que Dolokov utilizava nas
suas operações de jogador, e Makarine, hússar na reserva, homem franco e
ingénuo, de uma ilimitada dedicação por Kuraguine, estavam sentadas na sala de
espera tomando chá.No amplo gabinete de Dolokov, revestido de alto a baixo de tapetes persas,
peles de urso e armas, o dono da casa, de bechemé de viagem e botas altas,
estava sentado diante da secretária aberta, onde havia contas e maços de notas.
Anatole, com o uniforme desabotoado, andava de um lado para o outro, entre a
sala onde estavam as testemunhas, atravessando o gabinete e um quarto das
traseiras, onde o seu criado francês, ajudado por outros, preparava as bagagens.
Dolokov contava o dinheiro e anotava as somas.
— Bom, então é preciso dar dois mil rublos ao Kvostikov.
— Pois dá-lhos — replicava Anatole.
— Makarka — assim tratava Makarine — de nada precisa. Era capaz de se
deitar a afogar por ti. Bom, as contas estão prontas — disse Dolokov, mostrando-
lhe a nota. Está bem?
— Com certeza — replicou Anatole, que evidentemente nada ouvira e olhava
vago na sua frente, sempre com o mesmo sorriso.
Dolokov fechou a secretária e dirigiu-se em tom zombeteiro a Anatole:
— Sabes o que te digo? Ainda estás a tempo, deixa-te disso!
— Imbecil! — exclamou Anatole. — Não digas tolices. Se soubesses... Só o
Diabo sabe o que isto é!
— Falo sério; deixa-te disso — insistiu Dolokov. — Estou a falar-te a sério.
Estarás convencido de que se trata de uma brincadeira?
— Lá estás tu outra vez. Vai para o diabo que te carregue! — exclamou
Anatole, franzindo o sobrolho.— Palavra, não estou com disposição de te ouvir
dizer tolices. — E fez menção de sair do gabinete.
Dolokov sorriu, ao mesmo tempo formalizado e condescendente.
— Escuta, peço-te pela última vez. Para que havia eu de estar a brincar
contigo? Porventura te levantei algum obstáculo? Quem preparou tudo, te
arranjou um pope, te obteve um passaporte, te conseguiu dinheiro? Eu.
— Pois bem, e estou-te agradecido. Julgas talvez que te não estou
reconhecido? — E Anatole, suspirando, abraçou Dolokov.
— Ajudei-te, mas, no entanto, devo dizer-te a verdade: a aventura é perigosa,
e, se nos pomos a pensar nela, é mesmo estúpida. Bom, tu rapta-la, está bem. Mas
julgas que vão deixar as coisas assim? Hão-de acabar por saber que és casado.
Serás chamado aos tribunais...
— Tolices, tolices — contraveio Anatole, contrariado. — Pois não te expliqueieu já, hem? — E Anatole, com a obstinação própria das pessoas pouco inteligentes
sempre que tomam uma resolução, repetiu o raciocínio que lhe expusera já centos
Ge vezes. — Já te expliquei. Aqui tens o que eu resolvi. — E, contando pelos
dedos: — primeiro, se este casamento não é válido, não tenho qualquer
responsabilidade; segundo, se é válido, estou-me nas tintas: ninguém saberá disso
no estrangeiro. Não é assim? E nem mais uma palavra, nem mais uma palavra,
nem mais uma palavra!
— Ouve o que te digo: deixa-te disso! Vais enterrar-te...
— Vai para o Diabo! — vociferou Anatole, e com as mãos na cabeça saiu do
gabinete, para voltar em seguida a sentar-se, escarranchado numa poltrona,
mesmo diante do amigo. — Só o Diabo sabe o que isto é! Olha, repara como — ele
bate — pegou-lhe na mão e pousou-a sobre o coração — Ah, que pés, meu caro,
que olhar! Uma deusa!
Dolokov, sorrindo friamente, olhava para ele com os seus belos olhos
insolentes e brilhantes, divertido, evidentemente, à custa do amigo.
— Acaba-se o dinheiro, e depois?
— Depois? — repetiu Anatole, repentinamente embaraçado diante de tal
perspectiva. — Depois? Sei lá! E depois, deixa-te de tolices. São horas! —
acrescentou, consultando o relógio.
Entrou no quarto das traseiras.
— Então, esta pronto? Que estão para aí a fazer? — gritou para os criados.
Dolokov guardou o dinheiro, chamou um dos criados, para que ele lhes
trouxesse qualquer coisa para comer antes da abalada, e entrou na sala onde
estavam Kvostikov e Malcarine.
Anatole, estiraçado no divã do gabinete, sorria, pensativo, enquanto sua bela
boca ia balbuciando palavras ternas.
— Vem comer qualquer coisa! — gritou-lhe Dolokov da outra sala.
— Não tenho fome — replicou Anatole, sem deixar de sorrir.
— Anda, já aí está o Bálaga.
Anatole levantou-se do divã e entrou na sala de jantar. Bálaga era um
afamado postilhão de troika, que havia cinco ou seis anos servia os dois amigos;
recorriam frequentes vezes aos seus serviços. Mais de uma vez, quando o
regimento de Anatole estava em Tvier, o trouxera de noite daquela cidade:
chegava a Moscovo de madrugada e voltava a levá-lo na noite no dia seguinte.Por várias vezes conseguira livrar Dolokov dos apuros que o perseguiam. Passeara
os dois pela cidade na companhia de ciganos e «senhoritas», como costumava
dizer. E até, ao bater as ruas com eles, atropelara pessoas e sempre aqueles
«senhores», como ele dizia, o tinham livrado de complicações. Que de cavalos ele
rebentara já ao seu serviço! Muitas vezes o tinham emborrachado, enfrascando-o
de champanhe e madeira, o seu vinho predilecto, e a verdade era estar no
segredo de aventuras que a outros, que não a eles, de há muito os teriam atirado
para a Sibéria. Convidavam frequentes vezes Bálaga para as suas orgias,
obrigavam-no a dançar e a beber em casa dos ciganos e já lhe tinham passado
pelas mãos muitos milhares de rublos. Arriscava a vida e a pele mais de vinte
vezes por ano para lhes ser agradável e já rebentara cavalos que o dinheiro que
eles lho haviam dado, a ganhar não pagava de modo algum. Mas gostava deles à
sua maneira; morria por aquelas corridas loucas, a dezoito verstas à hora, adorava
fazer os cocheiros de praça virarem os pés por cima da cabeça e esmagar os peões
nas ruas de Moscovo, lançando-se depois à desfilada. Gostava de ouvir vozes
avinhadas gritar-lhe, frenéticas: «Mais depressa! Mais depressa!», quando já lhe
não era possível ir mais veloz. O que ele gostava de chicotear a nuca dos
camponeses que, mais mortos do que vivos, se não voltavam a tempo! «São uns
senhores às direitas», dizia de si para consigo.
Por seu lado, tanto Dolokov como Anatole tinham Bálaga em alta conta,
grande mão de rédea, que era, e em matéria de gosto afinavam uns pelos outros.
Quando se tratava de outras pessoas, fazia os seus preços, pedia vinte e cinco
rublos por uma corrida de duas horas, sendo raro também ser ele a conduzir
quando eram outros os fregueses, e nesse caso mandava um dos seus moços. Com
«aqueles senhores», porém, como costumava dizer, era ele quem aparecia em
carne e osso e nunca pedia fosse o que fosse. Quando sabia pelos criados que eles
tinham dinheiro, coisa que acontecia urna vez de dois em dois ou de três em três
meses, aparecia pela manhã, sem ter bebido, e pedia-lhes que o livrassem de
apuros. Então «aqueles senhores» mandavam-no sempre sentar.
«Acuda-me, meu paizinho Fiodor Ivanovitch», ou então: «Excelências, estou
sem cavalos. Tenho de ir à feira: emprestem-me o dinheiro que puderem.»
Anatole e Dolokov, quando abonados, davam-lhe sempre mil ou dois mil
rublos.
Bálaga era um camponês dos seus vinte e seis anos, louro, corado, de pescoçovermelho e cheio, membrudo, de nariz arregaçado, olhos vivos e uma barbicha
curta. Usava cafetã azul com forro de seda por cima da peliça,
Benzeu-se ao passar pelo recanto dos ícones e aproximou-se de Dolokov,
estendendo-lhe a mão negra.
— Boas noites. Fiodor Ivanovitch! — disse, inclinando-se.
— Boas noites, irmão! Ora aqui está ele!
— Boas noites. Excelência — repetiu, para Anatole, que acabava de entrar,
estendendo-lhe igualmente a mão.
— Ouve. Bálaga — disse-lhe Anatole, batendo-lhe no ombro. És realmente meu
amigo? Então, presta-me um serviço... Que cavalos tens tu? Hem?
— Aqueles que me mandou trazer, os seus, os fogosos.
— Então, ouve. Bálaga! Arrebenta a tua troika, mas quero que me ponhas lá
em três horas, hem!
— Se arrebento os cavalos, como havemos de lá chegar? — observou Bálaga,
malicioso.
— Deixa-te de graças ou apanhas dois estalos! — gritou Anatole, subitamente,
com os olhos fora das órbitas.
— Porque não hei-de brincar? — volveu o cocheiro, sorrindo. — Já alguma vez
disse que não a estes senhores? Enquanto os cavalos puderem, está visto.
— Bom! — exclamou Anatole — Vamos, senta-te.
— Senta-te, não ouves? — insistiu Dolokov.
— Estou bem de pé, Fiodor Ivanovitch.
— Tolice! Senta-te e bebe — voltou Anatole, enchendo-lhe um copázio de
madeira.
Ao ver o vinho os olhos do cocheiro coriscaram. Primeiro recusou, por cortesia,
e depois bebeu de um trago, limpando os beiços com um tabaqueiro de seda
vermelha que trazia no fundo do boné.
— Então quando abalamos, Excelência?
— Pois — imediatamente — disse Anatole, consultando o relógio. — E toma
tento. Bálaga, hem! É preciso chegar a horas.
— Depende da partida. Se estivermos com sorte... E porque não havemos nós
de chegar a horas? — tomou Bálaga. — Pois não viemos uma vez de Tvier em sete
horas? Lembras-te. Excelência?
— Sim, é verdade, uma vez, pelo Natal, viemos de Tvicr — disse Anatolesorrindo. Lembrava-se muito bem. E, voltando-se para Makarine, que o olhava
cheio de devoção, de olhos muito abertos. — Não calculas. Makarka, até nos
cortava a respiração, tão depressa vínhamos. A certa altura deparou-se-nos um
comboio de carros: passámos por cima de duas galeras. Que te parece?
— Também aquilo é que eram cavalos! — prosseguiu Bálaga, e, dirigindo-se a
Dolokov: — Tinha atrelado dois animais novos ao meu alazão claro. Acredita.
Fiodor Ivanovitch, aqueles diabos fizeram de uma tirada sessenta verstas. Não
havia quem os segurasse. Tinha as mãos dormentes. Gelava que era um louvar a
Deus! Acabei por abandonar as rédeas. Pegue nelas. Excelência. Não podia mais e
deixei-me cair no fundo do trenó. Não só não era preciso tocá-los, como custava a
ter mão neles. Aqueles diabos fizeram o percurso em três horas! Só o da esquerda
se foi abaixo.
[XVII]
Anatole desapareceu, voltando daí a pouco com uma peliça cingida à cintura
por uma correia com fivela de prata, um gorro de zibelina posto gaiatamente à
banda e que muito bem lhe ficava ao rosto. Depois de passar os olhos pelo espelho
e na postura em que se mirara postou-se diante de Dolokov e bebeu de um trago
um copo de vinho.
— Bom. Fédia, adeus! Obrigado por tudo. Adeus! — exclamou. — Camaradas,
amigos da minha mocidade, vamos — acrescentou, pensativo, dirigindo-se a
Makarine e aos outros— Adeus!
Embora todos o acompanhassem. Anatole queria dar um tom solene e
comovido àquela despedida. Falava alto e devagar, enchendo o peito e abanando
uma perna.
— Vamos beber todos, tu também. Bálaga. Camaradas, amigos da minha
mocidade, passámos juntos muitos anos e muita loucura fizemos. Quando nos
tornaremos a ver? Vou para o estrangeiro. Adeus, rapazes! Levámo-la direita! A
vossa saúde! Bebeu de um trago e jogou o copo ao chão.
— A sua saúde! — disse Bálaga, virando também o seu copo e limpando a boca
com o tabaqueiro.Makarine, os olhos rasos de lágrimas, abraçou-se a Anatole.
— Oh, príncipe! Custa-me tanto separar de ti — murmurou.
— Vamos! A caminho! — comandou Anatole.
Bálaga ia sair.
— Espera! Um momento! — interrompeu Anatole. — Fecha a porta, sentemo-
nos todos. Ali, assim.
Fecharam a porta e toda a gente se sentou.
— E agora, a caminho, rapazes! — exclamou Anatole, erguendo-se.
Joseph, o criado, entregou-lhe uma maleta e o sabre e todos saíram para o
vestíbulo.
— Onde está a peliça? — perguntou Dolokov. — Eh! Ignatka! Vai num rufo
pedir a peliça a Matriona Matvievna, uma rica zibelina. Sim, eu sei como estas
coisas se fazem, os raptos — acrescentou, piscando o olho— A pequena vai sair de
casa, mais morta do que viva, tal como está. Basta um pequeno atraso e lá vêm as
lágrimas, o papá e a mamã e ela toda a tremer de frio e a querer voltar para
casa... Mas tu embrulha-la logo ali na peliça e mete-la no trenó.
Um lacaio veio com um casaco de mulher de pele de raposa.
— Imbecil! Eu não te disse que era de zibelina? Eh. Matrioshka! A capa de
zibelina! — gritou numa voz tão forte que ressoou por toda a casa.
Uma linda cigana, magra e pálida, de olhos pretos, muito brilhantes, e caracóis
negros cheios de reflexos, como a asa de um corvo, um xale vermelho pelas costas,
apareceu com a capa de zibelina.
— Julgas que tenho pena dela? Toma-a, leva-a — disse, visivelmente
intimidada diante do amo e cheia de pena pela perda da peliça.
Dolokov, sem lhe responder, pegou na capa, assentou-a nas costas de
Matrioshka, e embrulhou-a nela.
— Assim, e depois assim — disse, levantando a gola de sorte que só lhe ficava
de fora parte da cara. — E depois assim, vês? — E obrigou Anatole a espreitar
pela abertura através da qual se via brilhar o sorriso da cigana.
— Bom, adeus. Matrioshka — disse Anatole, beijando-a. Acabaram-se todas as
minhas loucuras aqui! Diz adeus por mim a Stiochka. Vamos, adeus, adeus.
Matrioshka. Deseja-me sorte!
— Que Deus lhe dê todas as venturas, príncipe! — murmurou Matrioshka, com
o seu sotaque cigano.A porta estavam duas troikas com dois postilhões a postos. Bálaga subiu para
a primeira e, erguendo os cotovelos, apanhou as rédeas sem pressas. Anatole e
Dolokov sentaram-se na sua troika. Makarine. Kvostikov e os criados tomaram
lugar na outra.
— Tudo pronto? — perguntou Bálaga. — Avante! — gritou enrolando as
rédeas em volta do braço, e o trenó despediu a galope pela Avenida Nikitski.
— Oh! Oh!... Avante!... Oh! Oh!... — gritavam Bálaga e o rapaz sentado a seu
lado.
Na Praça Arbatskaia a troika abalroou outro carro. Ouviu-se um estampido,
depois um grito e ela aí vai direita ao seu destino. Depois de ter percorrido de
ponta a ponta Podnovinski. Bálaga refreou os cavalos e, voltando para trás, foi
parar na encruzilhada da Rua Staraia Koniushina.
O moço saltou do assento para pegar no bridão dos cavalos. Anatole e Dolokov
meteram pelo passeio. Ao chegar junto do portão. Dolokov assobiou. Respondeu-
lhe outro assobio e à porta apareceu uma criada.
— Entre para o pátio. Aqui podem vê-lo. A menina já aí vem — disse ela.
Dolokov ficou junto do portão. Anatole seguiu a criada, contornou o recanto do
pátio e galgou os degraus da escada. Gavrila, um homenzarrão que tratava dos
cavalos de Maria
Dmitrievna, saiu ao encontro de Anatole.
— A senhora quer falar consigo, faça favor — disse, numa voz de baixo,
cortando-lhe o caminho.
— Que senhora? Quem és tu? — perguntou Anatole, numa voz entrecortada.
— Faça favor, tenho ordens para isso.
— Kuraguine! Para trás! — gritou Dolokov. — Fomos traídos! Raspa-te!
Dolokov, que ficara no portão, lutava com o porteiro, que tentava fechar a
porta para não deixar sair Anatole. Apelando para todas as suas forças, conseguiu
empurrar o porteiro. Depois, agarrando um braço de Anatole, que aparecera,
correndo, puxou-o para a rua e ambos deram às de vila-diogo em direcção à troika
que os esperava.
[XVIII]
Maria Dmitrievna encontrara Sónia a chorar no corredor e obrigara-a a
contar-lhe tudo. Depois de apanhar a carta de Natacha e de a ter lido, apresentou-
se no quarto dela com o papel na mão.
— Miserável! Desavergonhada! — gritou-lhe. — Não quero ouvir nem uma
palavra.
Empurrando Natacha, que, assustada, olhava para ela com os olhos enxutos,
fechou-a à chave, e depois de ter dado ordens ao porteiro para deixar entrar as
pessoas que aparecessem naquela noite, não as deixando, porém, sair, disse ao
criado que lhas trouxesse à sua presença e sentou-se no salão à espera dos
raptores.
Quando Gavrila lhe veio anunciar que eles tinham fugido, levantou-se; de
sobrolho carregado e de mãos atrás das costas pôs-se a passear na sala,
reflectindo sobre o que devia fazer.
À meia-noite, apalpando a chave na algibeira, apresentou-se no quarto de
Natacha. Sónia estava no corredor, a soluçar.
— Maria Dmitrievna, deixe-me entrar consigo, peço-lhe! — suplicou.
Maria Dmitrievna abriu a porta sem lhe responder e entrou. «Que
vergonha!... Que porcaria!... Debaixo do meu tecto... Miserável! Má filha!... Só
tenho pena do pai! », dizia de si para consigo, procurando refrear a cólera que a
tomava. «Embora não seja fácil, farei com que todos se calem e o conde nada há-
de saber.» Entrou no quarto de Natacha num passo decidido.
Esta, estiraçada no divã, com a cabeça nas mãos, sem se mexer, continuava na
posição em que Maria Dmitrievna a deixara.
— Muito bem, muito bonito! — exclamou ela. — Na minha casa, receber
amantes na minha casa! Escusas de esconder! Ouve quando te falam! — Maria
Dmitrievna tocou-lhe no braço. Ouve quando te falam. Portaste-te como uma
desavergonhada! Eu bem sei o que devia fazer.., mas tenho pena de teu pai. Nada
lhe direi.
Natacha não se mexeu, mas todo o seu corpo estremeceu. Soluços secos e
convulsivos a sufocavam. Maria Dmitrievna trocou um olhar com Sónia e veio
sentar-se ao lado dela.
— Ele teve sorte em escapar. Mas hei-de apanhá-lo — disse ela, na sua voz
rude. — Ouves o que estou a dizer-te?Passou a grande mão pelo queixo de Natacha e obrigou-a a virar-se para ela.
Maria Dmitrivena e Sónia ficaram aterradas com a expressão que lhe viram. Seus
olhos estavam brilhantes e sem uma lágrima, os seus lábios cerrados, as suas faces
cavadas.
— Deixem-me... Quero lá saber... Vou morrer... — murmurou, libertando-se,
com um sacão, de Maria Dmitrievna e retomando a sua primeira postura.
— Natália!... — disse Maria Dmitrievna — Só quero o teu bem. Deixa-te estar
deitada, deixa-te estar assim, não te tocarei, mas ouve... Não preciso de te dizer
da culpabilidade que te cabe. Tu bem sabes. Mas o teu pai chega amanhã. Que lhe
hei-de dizer? Hem!
De novo estremeceu, abalada pelos soluços.
— Há-de sabê-lo, sim, e teu irmão, e teu noivo também!
— Já não tenho noivo, acabei — gritou Natacha bruscamente.
— Tanto faz — prosseguiu Maria Dmitrievna.— Seja como for, hão-de saber
tudo. Julgas que deixarão as coisas assim? E o teu pai, conheço-o muito bem... E se
o desafiar para um duelo, vai ser bonito, hem?
— Oh, deixe-me. Porque estragou tudo? Porquê? Quem lhe pediu? — gritou
Natacha, soerguendo-se e olhando para Maria Dmitrievna com uns olhos irados.
— E tu, que querias tu fazer? — exclamou a pobre senhora, exaltando-se. —
Tínhamos-te fechada, porventura? Quem o impedia de vir a nossa casa? Porque
havia ele de te raptar como se fosses uma boémia? E se te tivesse raptado, julgas
que o não encontrariam? Ou o teu pai, ou o teu irmão, ou o teu noivo... Um
desavergonhado, um valdevinos, é o que ele é!
— Vale mais que todos vós! — gritou Natacha, empertigando-se. — Se me não
tivessem impedido... Oh, meu Deus! Porquê? Porquê? Sónia, porquê? Deixem-me!
E rompeu a chorar com tanto desespero como só choram aqueles que se
sentem a causa das suas próprias infelicidades. Maria Dmitrievna quis ainda dizer
qualquer coisa, mas Natacha pôs-se a gritar: — Vão-se embora! Vão-se embora!
Todos me odeiam, todos me detestam! — E voltou a deixar-se cair sobre o divã.
Maria Dmitrievna ainda esteve algum tempo a exortá-la, dizendo-lhe ser
preciso ocultar tudo do conde e que ninguém saberia coisa alguma desde que
Natacha prometesse esquecer e evitasse que qualquer coisa chegasse aos ouvidos
fosse de quem fosse. Natacha não respondeu. Deixara de chorar, mas agora
arrepios de febre a faziam estremecer. Maria Dmitrievna pôs-lhe uma almofadadebaixo da cabeça, cobriu-a com dois cobertores e trouxe-lhe uma chávena de tília.
Natacha, porém, continuava calada.
— Bom, deixemo-la dormir! — disse Maria Dmitrievna, retirando-se,
persuadida de que Natacha adormecera.
Natacha não dormia porém, e os seus olhos, muito abertos, no rosto pálido,
olhavam fixamente diante de si. Toda a noite esteve sem dormir, sem chorar, sem
dizer nada a Sónia, que várias vezes se levantou para vigiá-la.
No dia seguinte, à hora do almoço, como prometera, chegou o conde Ilia
Andreitch, de regresso das suas propriedades nas imediações de Moscovo. Vinha
muito contente. Tudo ficara resolvido com o comprador e já nada o retinha em
Moscovo e longe da condessa, de quem se sentia muito saudoso.
Maria Dmitrievna foi ao seu encontro e contou-lhe que a filha estivera muito
doente na véspera, que mandara chamar o médico, mas que estava agora muito
melhor. Natacha nessa manhã ficou no quarto. De lábios fechados e a tremer de
frio, os olhos secos e fixos, permaneceu à janela, observando ansiosamente o
vaivém dos transeuntes, e voltando-se, de súbito, sempre que alguém entrava no
seu quarto. Aguardava, evidentemente, notícias de Anatole, esperava que ele se
apresentasse pessoalmente ou lhe escrevesse.
Quando o conde entrou. Natacha estremeceu ao ouvir passos de homem, mas
assim que o reconheceu a expressão tomou-se--lhe fria e teve mesmo um
movimento de irritação. Nem sequer se levantou.
— Que tens, meu anjo, estás doente? — perguntou-lhe o pai.
Natacha ficou calada.
— Sim, estou doente — acabou por dizer.
Inquieto, o conde quis saber porque estava ela tão abatida e se acontecera
alguma coisa entre ela e o noivo. Natacha garantira-lhe que nada acontecera,
pedindo-lhe que se não atormentasse, e Maria Dmitrievna confirmou junto do
conde as palavras de Natacha. Apesar de tudo, o conde, diante da doença
simulada de Natacha e da expressão embaraçada de Sónia e Maria Dmitrievna,
percebeu que alguma coisa de grave ocorrera durante a sua ausência. A verdade,
porém, é que a, ideia de que poderia ter acontecido alguma coisa capaz de afectar
a dignidade da sua filha preferida o assustava de tal modo, e tão amigo era da sua
tranquilidade, que tratou de não fazer perguntas, persuadindo-se de que nada de
anormal tinha ocorrido e limitando-se a lastimar que a doença de Natacha viesseretardar o seu regresso à aldeia.
[XIX]
Pedro, desde que a mulher chegara a Moscovo, passava a vida a arranjar
pretextos para sair de casa, a fim de não se ver obrigado a encontrar-se com ela. A
impressão que lhe fizera Natacha, aquando da sua viagem, ainda mais concorrera
para acelerar a realização dos seus propósitos. Dirigiu-se a Tvier, a casa da viúva
de Osip Alexeievitch, que há muito lhe prometera confiar-lhe os papéis de seu
defunto marido.
De regresso a Moscovo, entregaram-lhe uma carta de Maria Dmitrievna, que
lhe pedia viesse a sua casa por causa de um assunto muito importante que dizia
respeito a André Bolkonski e à noiva. Pedro procurava não ver Natacha. Para si
mesmo dizia que ela lhe inspirava um sentimento mais vivo do que aquele que
seria razoável na sua qualidade de homem casado e amigo do noivo. No entanto, o
destino parecia comprazer-se em reuni-los a cada passo.
«Que terá acontecido? E que tenho eu a ver com isso?», cogitava ele enquanto
se preparava para dirigir-se a casa de Maria Dmitrievna. «O que é preciso é que o
André venha quanto mais depressa melhor e que eles tratem de se casar»,
pensou, já a caminho.
Ao passar pela Avenida de Tvier, alguém chamou-o.
— Pedro, já chegaste há muito tempo? — gritou-lhe uma voz conhecida.
Levantou a cabeça. Num trenó tirado por dois cavalos cinzentos que levantavam
nuvens de neve passaram junto dele Anatole e o seu inseparável camarada.
Makarine. Anatole aprumava-se no assento, na clássica postura dos militares
elegantes, o mento enterrado na gola de castor, a cabeça ligeiramente inclinada.
Tinha a pele rosada e fresca, e o chapéu, com uma pluma branca, posto ao lado,
deixava ver os cabelos frisados e cheios de brilhantina, salpicados de uma poeira
de neve muito fina.
«Ora ali está um homem com juízo!», exclamou Pedro. «Não tem olhos para
ver mais longe que o prazer do momento. Nada o preocupa e por isso passa a vida
alegre, contente e tranquilo!» E olhou-o com inveja. «Que não daria eu para meparecer com ele?»
No vestíbulo de Madame Akrosiuova, o criado, enquanto o ajudava a despir a
peliça, disse-lhe que Maria Dmitrievna lhe pedia que subisse ao seu quarto.
Ao abrir a porta do salão viu Natacha sentada à, janela, de rosto afilado e
pálido, com uma expressão dura e má. Olhou para ele, franzindo as sobrancelhas, e
desapareceu, afectando uma reserva fria.
— Que aconteceu? — perguntou Pedro, ao entrar no quarto de Maria
Dmitrievna.
— Lindas coisas! — exclamou ela. — Há cinquenta e oito anos que ando cá por
este mundo e nunca tive ocasião de presenciar uma vergonha assim.
E depois de ter exigido de Pedro a sua palavra de honra de que não abriria a
boca acerca do que ela lhe diria, contou-lhe que Natacha desfizera o casamento
sem nada dizer à família e que a culpa era de Anatole Kuraguine, que a mulher de
Pedro lhe apresentara e com quem Natacha pensava fugir, na ausência do pai,
para com ele casar secretamente.
Pedro, de ombros encolhidos e a boca aberta, ouvia toda aquela história sem
poder acreditar nos seus ouvidos. Pois quê, a noiva bem-amada do príncipe André,
a encantadora Natacha Rostov, preferia a Bolkonski o imbecil do Anatole, homem
casado aliás (Pedro estava a par do seu casamento secreto), e a tal ponto gostava
dele que consentia que a raptasse? Eis o que Pedro não podia compreender nem
admitir.
Não lhe era possível consentir que no seu espírito se associasse a simpática e
encantadora figura de Natacha, que ele conhecia desde pequena, a tanta baixeza,
a tanta estupidez, a tanta crueldade. Lembrou-se da sua própria mulher. «São
todas iguais», dizia de si para consigo, pensando que, no fim de contas, nem só a
ele cabia o triste privilégio de estar ligado a uma mulher desprezível. E no
entanto vieram-lhe as lágrimas aos olhos ao lembrar-se do príncipe André,
sofrendo pelo seu ferido orgulho. E quanto mais lastimava o amigo maior era o seu
desprezo pela Natacha que havia momentos passara por ele afectando um ar de
fria dignidade. Mal sabia ele que a alma de Natacha transbordava então de
desespero, de vergonha, de humilhação, não sendo culpada de trazer afivelada
aquela máscara fria e severa.
— Quê? Casar? — balbuciou Pedro. — Ele não pode casar-se, já é casado.
— Era o que faltava — suspirou Maria Dmitrievna. — É fresco, o menino! Quecanalha! E aí está ela à espera, há dois dias que espera. Que ao menos deixe de
esperar. É preciso que saiba.
Depois de tomar conhecimento dos pormenores do casamento de Anatole.
Maria Dmitrievna aliviou a sua cólera, soltando violentas injúrias, e explicou a
Pedro porque mandara chamá-lo. Receava que o conde ou mesmo Bolkonski, capaz
de chegar de um momento para o outro, viessem a saber do caso, que ela, pela
sua parte, estava disposta a esconder-lhes, e desafiassem Kuraguine para um
duelo. Eis porque lhe rogava que pedisse em seu nome ao cunhado que saísse de
Moscovo e que nunca mais ali aparecesse. Pedro prometeu-lhe que o faria, e só
então se apercebeu do perigo que ameaçava ao mesmo tempo o velho conde.
Nicolau e o príncipe André. Expôs-lhe, pois, em poucas palavras e com clareza o
que queria dele e acompanhou-o ao salão.
— Cuidado, o conde de nada sabe. Finja nada saber — pediu-lhe ela. — Por
mim, vou dizer a Natacha que escusa de esperar. E fica para jantar, se te apetece
— acrescentou na sua grossa voz.
Pedro dirigiu-se ao velho conde, que parecia profundamente perturbado. Nessa
mesma manhã Natacha dissera-lhe que desfizera o noivado com Bolkonski.
— Que desgraça, que desgraça, meu caro! — exclamou ele —, quando lhes
falta a mãe. Não calcula a pena que tenho de ter feito esta viagem. Vou ser franco
consigo. Pois não sabe? Despediu o noivo sem dizer coisa alguma a ninguém.
Realmente nunca me entusiasmou muito este casamento. Sim, bem sei, é um
homem às direitas, mas, pois não é verdade?, uma pessoa não pode ser feliz
quando age contra a vontade de seu pai, e a Natacha não faltam pretendentes.
Mas o que é certo é que isto já durava há muito, e dar semelhante passo sem
consultar nem o pai nem a mãe!... E para aí está doente, só Deus sabe com quê!
Ah, conde, tudo corre mal, tudo corre mal quando falta a mãe a uma filha...
Pedro, ao ver o conde tão comovido, procurou mudar de assunto, mas ele
voltava sempre à sua preocupação.
— Natacha não passa bem de saúde. Está nos seus aposentos e queria falar
consigo. Maria Dmitrievna está ao pé dela e também lhe queria falar. É verdade,
como é amigo de Bolkonski, naturalmente quererá mandar-lhe algum recado —
acrescentou o conde. — Meu Deus, meu Deus, e ia tudo tão bem!
E, levando as mãos aos escassos cabelos que tinha ainda na cabeça, saiu do
salão.Maria Dmitrievna dissera a Natacha que Anatole já era casado. Esta não
quisera acreditar em tal e pedira a Pedro que viesse junto dela confirmar o facto.
Eis o que Sónia explicou a Pedro enquanto o acompanhava ao quarto de Natacha.
Natacha, pálida e de severa expressão, ao lado de Maria Dmitrievna, assim
que o viu surgir no limiar da porta pousou nele uns olhos interrogativos em que se
sentia brilhar a febre. Não teve um sorriso nem um movimento de cabeça. Limitou-
se a fita-lo obstinadamente e no seu olhar apenas se lia uma pergunta: estava
diante de um amigo ou de um inimigo, como todos os outros, no que dizia respeito
a Anatole? Era evidente que Pedro, em si próprio, naquele momento, não existia
para ela.
— Pedro sabe tudo — disse Maria Dmitrievna, apontando para ele. — Ele que
diga se faltei à verdade.
Natacha, tal um animal perseguido, e já ferido, que vê aproximar cães e
caçadores, olhava com uns olhos vagos e errantes.
— Natália Ilinitchna — principiou Pedro, baixando os, olhos, tomado de uma
profunda piedade por ela e de um invencível desgosto pelo que se via obrigado a
dizer. — Verdade ou mentira, isso deve-lhe ser indiferente, porque...
— Então não é verdade que está casado?
— Sim, é verdade.
— Está casado, e há muito tempo? — insistiu ela. — Palavra de honra?
Pedro deu-lhe a sua palavra de honra.
— Ainda cá está? — perguntou Natacha vivamente.
— Está. Acabo de o encontrar.
Natacha não teve forças para dizer mais e fez com a mão um gesto a suplicar
que a deixassem.
[XX]
Pedro não ficou para jantar; depois disto saiu do aposento e abalou. Andou por
toda a cidade à procura de Anatole Kuraguine. Só pensar nele lhe fazia afluir o
sangue ao coração e o deixava sem fôlego. Não estava nas montanhas, nem com os
ciganos, nem em casa de Coraneno. Dirigiu-se ao clube. Ali tudo na mesma: ossócios que vinham jantar formavam vários grupos. Cumprimentaram Pedro e
puseram-se a falar dos casos do dia.
Um criado, familiarizado com os hábitos de Bezukov, depois de lhe ter feito
uma vénia, disse-lhe que a sua mesa estava reservada na salinha de jantar, que o
príncipe Fulano se encontrava na biblioteca e que Sicrano ainda não chegara.
Um dos seus conhecidos, entre outras coisas triviais, perguntou-lhe se ouvira
dizer que Mademoiselle Rostov fora raptada por Kuraguine, caso de que muito se
falava em Moscovo, e se era verdade. Pedro replicou-lhe, rindo, ser um absurdo,
pois acabava de sair de casa dos Rostov. A toda a gente perguntou por Anatole.
Alguém disse-lhe que ele ainda não chegara, e houve também quem o informasse
de que viria jantar com toda a certeza. Pedro observava com um estranho
sentimento aquele agregado de pessoas tranquilas e indiferentes completamente
alheias ao que se estava a passar na sua alma. Andou a vaguear pelos salões,
aguardando que toda a gente chegasse, e, vendo que Anatole não aparecia,
decidiu não jantar e voltar para casa.
Anatole naquele dia jantara em casa de Dolokov e conferenciara com ele
acerca da maneira de reparar o que falhara. Parecia-lhe indispensável tornar a ver
Mademoiselle Rostov. A noite dirigiu-se a casa da irmã para lhe falar na maneira
de conseguir um encontro com Natacha. Quando Pedro, depois de ter percorrido
debalde toda a cidade, voltou para casa, soube pelo criado que o príncipe Anatole
Vassilievitch se encontrava com a condessa. O salão de Helena estava cheio.
Sem cumprimentar a mulher, a quem não via desde que voltara a Moscovo —
mais do que nunca a odiava naquele momento —, Pedro penetrou no salão da
condessa, viu Anatole e foi direito a ele.
— Ah. Pedro!... — exclamou a condessa, aproximando-se. Não imaginas o
estado em que está Anatole...
Calou-se ao ver na atitude do marido, na sua cabeça baixa, nos seus olhos
brilhantes, no seu passo enérgico, aqueles terríveis sinais de ira e violência que
ela tão bem conhecia e cujos efeitos experimentara aquando do duelo com
Dolokov.
— Onde a senhora estiver só há depravação e maldade — pronunciou Pedro.
— Anatole, venha cá, preciso de lhe falar — acrescentou em francês.
Anatole olhou a irmã e levantou-se docilmente, disposto a seguir Pedro. Este,
pegando-lhe por um braço, arrastou-o consigo para fora do salão.— Como se atreve, na minha sala... — ia a dizer Helena, em voz baixa, mas
Pedro saiu da sala sem lhe responder.
Anatole seguiu o cunhado com a sua arrogância habitual, embora houvesse
inquietação nos traços do seu rosto.
Assim que entrou no gabinete. Pedro fechou a porta e dirigiu-se a Anatole sem
olhar para ele.
— É verdade que prometeu casar com a condessa Rostov e que a quis raptar?
— Mon cher — replicou Anatole em francês (foi em francês, de resto, que se
travou todo o diálogo) — não me julgo obrigado a responder a perguntas
formuladas nesse tom.
O rosto de Pedro, pálido até então, surgiu descomposto pelo furor. Agarrando
Anatole, com as suas grossas mãos, pela gola do uniforme, pôs-se a sacudi-lo de um
lado para o outro de tal maneira que um indizível terror se pintou na cara do
rapaz.
— Se eu lhe disse que precisava de falar consigo... — repetia Pedro.
— Que é isto? Está doido! — exclamou Anatole, apalpando a gola, em que o
botão arrancado pendia juntamente com um pedaço de pano.
— O senhor é um canalha, um bandido, não sei porque lhe não rebento a
cabeça com isto — exclamou Pedro, exprimindo-se um pouco artificiosamente, pois
falava em francês.
Pegara num bojudo pesa-papéis, erguera-o num gesto de ameaça e voltara a
depô-lo sobre a mesa.
— Prometeu casar com ela?
— Eu, eu, acho que não. De resto, não lhe prometi coisa alguma, visto que...
Pedro cortou-lhe a palavra:
— Tem cartas dela? Tem cartas dela? — repetiu, aproximando-se dele.
Anatole fitou-o, e imediatamente, metendo a mão ao bolso, tirou a carteira.
Pedro pegou na carta que Anatole lhe estendia e, afastando a mesa, que o
estorvava, deixou-se cair no divã.
— Não serei violento, por isso não tem nada a recear — disse, em resposta a
um gesto receoso de Anatole. — Primeiro as cartas... — continuou como se
repetisse de cor uma lição. — Depois... — acrescentou, após uma pausa, em
seguida à qual se ergueu e se pôs a andar de um lado para o outro. — Em segundo
lugar amanhã vai sair de Moscovo.— Mas como hei-de poder...
— Em terceiro lugar — continuou Pedro sem lhe dar ouvidos —, a ninguém
deve dizer uma palavra acerca do que se passou entre o senhor e a condessa. Bem
sei que não o posso proibir, mas se ainda lhe resta um vislumbre de consciência...
Pedro continuou, em silêncio, a sua caminhada.
Anatole estava sentado à mesa, de sobrancelhas carregadas e mordendo os
lábios.
— É impossível que o senhor não compreenda que independentemente dos
seus prazeres pessoais há a felicidade e a tranquilidade das outras pessoas; é
impossível que não compreenda que deita a perder uma vida inteira apenas
porque lhe apetece divertir-se. Se isso lhe agrada, divirta-se com mulheres no
género da minha, tem direito a isso: essas sabem perfeitamente o que o senhor
pretende delas. Estão armadas contra o senhor pela mesma experiência da
devassidão. Mas prometer casamento a uma donzela.., enganá-la.., raptá-la... Será
possível que não compreenda que é vilania tão grande como bater num velho ou
numa criança?!
Pedro calou-se e fitou Anatole, já não com ira, mas interrogativamente.
— Não sei — disse Anatole, ganhando audácia à medida que Pedro dominava a
sua cólera. — Não sei nem quero saber — prosseguiu, olhando-o e com um nervoso
movimento do queixo —, mas o senhor disse-me coisas.., o senhor pronunciou a
palavra covarde e ainda outras, palavras que eu, como um homem de honra, a
ninguém posso admitir.
Pedro olhou-o com espanto, sem perceber onde ele queria chegar.
— Embora isto se tenha passado só entre nós — prosseguiu eu não posso...
— Quê? Está a exigir de mim uma reparação? — murmurou Pedro, em tom
sarcástico.
— Pelo menos podia retirar as suas expressões! Se quer que cumpra as suas
condições, hem?
— Retiro-as, retiro-as — disse Pedro — e peço-lhe desculpa — acrescentou,
lançando um olhar ao botão arrancado de Anatole. — E se tiver necessidade de
dinheiro para a viagem...
Anatole sorriu. Este sorriso tímido e covarde, que Pedro conhecia por tê-lo
visto na mulher, exasperou-o.
— Oh, raça vil e sem coração! — exclamou, saindo do gabinete.No dia seguinte Anatole partia para Petersburgo.
[XXI]
Pedro dirigiu-se a casa de Maria Dmitrievna para lhe comunicar que o seu
desejo fora satisfeito, que Kuraguine saíra de Moscovo. Toda a gente lá em casa
estava consternada e abatida. Natacha adoecera gravemente e Maria Dmitrievna
contou em segredo a Pedro que naquela noite, quando ela soubera que Anatole
era casado, tomara arsénico, que conseguira arranjar às escondidas. Depois de ter
ingerido uma pequena dose, tão assustada ficou que foi acordar Sónia, a quem
revelou o que fizera. Como haviam empregado a tempo os meios mais enérgicos,
estava livre de perigo, mas tão fraca que era impossível pensar em levá-la para a
aldeia e que tinham mandado vir a condessa. Pedro foi encontrar o conde
compungido e Sónia desfeita em lágrimas, mas não pôde ver Natacha. Nesse dia
jantou no clube. Por toda a parte se falava na tentativa de rapto de Mademoiselle
Rostov, empenhando-se ele opiniosamente em refutar essa atoarda, garantindo a
toda a gente que nada mais houvera além de um pedido de casamento da parte
de seu cunhado, pedido que fora mal sucedido. Pedro pensava ser obrigação sua
esconder a verdade, salvando, assim, a reputação de Natacha.
Esperava aterrorizado o regresso do príncipe André e todos os dias ia saber
dele a casa do velho príncipe.
O príncipe Nicolau Andreievitch fora informado por Mademoiselle Bourienne
do que se dizia na cidade e lera a carta que Natacha escrevera à princesa Maria
considerando o noivo desobrigado da palavra dada. Parecia mais alegre do que
habitualmente e aguardava, impaciente, a chegada do filho.
Alguns dias depois da partida de Anatole. Pedro recebeu um bilhete do
príncipe André comunicando-lhe que regressara a Moscovo e pedindo-lhe que
passasse por sua casa.
Assim que chegara fora o príncipe André informado pelo pai do teor da carta
de Natacha à irmã, carta esta furtada à princesa Maria por Mademoiselle
Bourienne e por ela entregue ao príncipe. Além disso o pai tivera o cuidado de lhe
contar, consideravelmente ampliado, o que se dizia sobre o rapto de Natacha.Pedro foi a casa do príncipe André na manhã seguinte ao dia da sua chegada.
Julgando encontrá-lo num estado semelhante ao de Natacha, grande foi o seu
espanto ao ouvir, no momento em que entrava no salão, a bem timbrada voz de
André, que no seu gabinete contava, animado, uma intriga recente de
Petersburgo. O velho príncipe e uma pessoa desconhecida interrompiam-no de
quando em quando. Ao encontro de Pedro veio a princesa Maria. Num suspiro,
apontou-lhe com os olhos a porta do quarto do irmão, procurando deste modo
mostrar quanto sentia o desgosto de André, mas Pedro viu claramente na sua
expressão que ela estava satisfeita com o que acontecera e com a maneira como
ele recebera a notícia da traição da noiva.
— Disse que já contava com isso — observou ela. — Compreendo que o
orgulho lhe não deixe exprimir o que sente, mas a verdade é que recebeu a notícia
melhor do que eu esperava. Evidentemente que assim tinha de ser...
— Será possível que tudo tenha acabado? — perguntou Pedro.
A princesa Maria olhou-o surpreendida. Nem sequer compreendia que se
pusesse o problema. Pedro penetrou no gabinete.
O príncipe André, à paisana, muito mudado, e naturalmente com melhor
aspecto, mas com uma nova ruga entre as sobrancelhas, estava de pé diante do
pai e do príncipe Mechtcherski e discutia acaloradamente, gesticulando com
energia. Falava-se de Speianski, da notícia do seu repentino exílio e da sua
pretensa traição, que acabava de se espalhar em Moscovo.
— Agora, todos os que há um mês se entusiasmavam com ele estão prontos a
acusá-lo e a condená-lo — dizia o príncipe André —, gente incapaz de compreender
o alcance das suas medidas. É muito fácil julgar um homem quando cai em
desgraça e atribuir-lhe então todos os erros alheios. Pois bem, na minha opinião,
entendo que se alguma coisa de bom se fez no actual reinado a ele e só a ele se
deve.
Calou-se ao ver entrar Pedro. Um estremecimento nervoso lhe perpassou pelo
rosto, denotando de súbito uma violenta irritação.
— A posteridade se encarregará de lhe fazer justiça — concluiu. E depois,
voltando-se para Pedro: — Ah!, és tu? Continuas a engordar — disse com
vivacidade, enquanto se lhe cavava mais funda a nova ruga da testa. — Sim, isto
vai melhor! — replicou ele, sorrindo, em resposta a uma pergunta de Pedro acerca
da sua saúde.Este sorriso queria dizer, e assim o compreendeu Pedro: «Sim, bem sei, mas
ninguém precisa de saber se estou bom de saúde.»
Depois de ter trocado algumas palavras com Pedro sobre o medonho estado
das estradas entre a fronteira da Polónia e Moscovo, de lhe ter falado de umas
pessoas que encontrara na Suíça, e que eram das relações do amigo, e de ter
aludido a Monsieur Dessalles, que consigo trouxera do estrangeiro para dirigir a
educação do filho. André enfronhou-se de novo com entusiasmo na discussão sobre
Speranski, que prosseguia entre os dois velhos.
— Se houvesse traição e se existissem provas da sua conivência secreta com
Napoleão, já a esta hora seriam conhecidas — disse ele com uma apaixonada
vivacidade — Pessoalmente não gosto de Speranski, mas sou pela equidade.
Pedro via que o amigo sentia a necessidade — necessidade que tão bem lhe
conhecia — de entusiasmar-se e discutir qualquer assunto estranho para assim
mais facilmente esquecer pensamentos íntimos demasiado penosos.
Quando o príncipe Mechtcherski se retirou. André travou do braço de Pedro e
conduziu-o ao quarto expressamente preparado para si. Estava ali uma cama
armada e no chão havia malas e baús abertos.
O príncipe André aproximou-se de um deles e pegou numa caixa. Dentro estava
um pacote embrulhado em papel. Tudo isto ele fez muito depressa e sem dizer
palavra. Depois soergueu-se, tossicando. A expressão era taciturna e tinha os
lábios cerrados.
— Desculpa se te incomodo...
Pedro compreendeu que ele lhe queria falar de Natacha e no seu cheio rosto
pintaram-se-lhe compaixão e simpatia. A irritação de André foi maior ainda.
Prosseguiu, num tom cortante e resoluto, mas que soava a falso:
— A condessa Rostov repudiou-me e ouvi falar de um pedido de casamento do
teu cunhado ou de qualquer coisa no mesmo género. É verdade?
— É verdade e não é — principiou Pedro, mas André interrompeu-o:
— Aqui tens as cartas dela e o seu retrato — articulou.
Pegou no maço de papéis e entregou-o a Pedro.
— Entrega isto à condessa.., quando a vires.
— Está muito doente — disse Pedro.
— Ah! Ainda está em Moscovo? E o príncipe Kuraguine? — perguntou,
precipitadamente.— Abalou há dias. Ela esteve à morte...
— Tenho muita pena — replicou, sorrindo com uma expressão fria, má,
desagradável, muito parecida com a do pai.
— Pelo que veio, o Sr. Kuraguine não se dignou conceder a sua mão à condessa
Rostov? — disse ele.
Por várias vezes pareceu fungar.
— Não podia casar com ela; já é casado — observou Pedro.
O príncipe André pôs-se a rir, exactamente como o pai.
— E onde está ele neste momento, o teu cunhado, pode saber-se?
— Foi para Peters... Isto é, não tenho a certeza.
— Sim, pouco importa — comentou André. — Peço que digas, da minha parte,
à condessa Rostov que ela sempre foi e continua a ser completamente livre e que
lhe desejo muitas felicidades.
Pedro pegou no maço das cartas. O príncipe André, como se a si próprio
perguntasse se não estaria a esquecer-se ainda de qualquer coisa ou como se
aguardasse que Pedro dissesse fosse o que fosse, interrogou-o com os olhos.
— Escute; lembra-se da nossa discussão em Petersburgo? — murmurou Pedro.
— Lembra-se...
— Lembro-me — apressou-se André a responder — Dizia-te que era preciso
perdoar à mulher que cai, mas eu não disse que lhe podia perdoar. Eu não posso.
— Podem comparar-se as duas situações? — observou Pedro.
André interrompeu-o. Em tom sarcástico exclamou:
— Sim, pedir de novo a sua mão, ser magnânimo e outras coisas do mesmo
teor?... Sim, é muito nobre, mas não me sinto capaz de ficar reduzido a apanhar-
lhe as migalhas. Se queres que eu continue a ser teu amigo nunca mais me fales no
caso. Bom, então adeus! Está combinado, tu entregas-lhe...
Pedro foi dali aos aposentos do velho príncipe e da princesa Maria.
O velho parecia mais animado do que de costume. Maria continuava a mesma,
mas Pedro via claramente que na compaixão que ela mostrava pela infelicidade de
André se traía a alegria que lhe causava o desmanchar daquele casamento.
Observando-os, pôde compreender o desdém e a inimizade que ambos nutriam
pelos Rostov, e percebeu que não seria possível sequer pronunciar na sua presença
o nome daquela que fora capaz de trocar o príncipe André por um homem
qualquer.A mesa falou-se da guerra, que parecia iminente. O príncipe André não parava
de falar e de discutir, ora com o pai ora com Dessalles, o preceptor suíço, e mais do
que nunca dir-se-ia dominado por uma excitação cuja causa Pedro conhecia
muitíssimo bem.
[XXII]
Nessa mesma noite. Pedro foi ter com os Rostov a fim de dar cumprimento à
sua missão. Natacha estava de cama, o conde fora para o clube e Pedro, depois de
entregar as cartas a Sónia, procurou Maria Dmitrievna, ansiosa por saber como o
príncipe André acolhera o caso. Passados uns dez minutos. Sónia apareceu também
nos aposentos de Maria Dmitrievna.
— Natacha quer ver sem falta o conde Pedro Kirillovitch — disse ela.
— Como assim? Há-de ir ao quarto dela, onde está tudo desarrumado? — disse
Maria Dmitrievna.
— Arranjou-se e espera por ele no salão — voltou Sónia.
Maria Dmitrievna limitou-se a encolher os ombros.
— Quando chegará a condessa? Já não posso mais. Tem cuidado não lhe digas
tudo — recomendou a Pedro. — Não há coragem para a censurar: é tão infeliz, tão
infeliz!
Natacha, magra, pálida e com uma expressão severa, mas sem de modo
nenhum denunciar a mais pequena humildade, como Pedro esperava, recebeu-o de
pé no meio do salão. Ao vê-lo aparecer no limiar da porta teve um movimento de
hesitação, como que indecisa, sem saber se devia aproximar-se ou aguardar que
ele viesse para ela.
Pedro apressou o passo. Julgou que ela lhe ia estender a mão como de
costume, mas, ao aproximar-se viu-a imóvel, a respiração opressa e os braços
caídos, numa atitude exactamente igual à que costumava tomar outrora quando
cantava, embora fosse muito diferente a sua expressão.
— Pedro Kirillovitch — principiou ela numa voz precipitada —, o príncipe
Bolkonski era seu amigo; é seu amigo — rectificou. Dir-se-ia que para ela nada
havia do que existira e que tudo era diferente agora. — Disse-me então que medirigisse a si...
Pedro fitava calado, a respiração opressa. Até àquele momento não fizera
outra coisa senão censurá-la no fundo do seu coração, esforçando-se por desprezá-
la. Naquele momento, porém, tamanha era a piedade que ela lhe inspirava que
não lhe passava pela cabeça dirigir-lhe qualquer censura.
— Ele está cá... Diga-lhe.., que me per.., que me perdoe.
Natacha calou-se, o peito a arfar, mas sem uma lágrima.
— Sim.., dir-lhe-ei — replicou Pedro —, mas...
Não sabia que dizer.
Natacha, assustada com a ideia que poderia ter acorrido a Pedro, disse-lhe
vivamente:
— Não, sei muito bem que tudo acabou. Nunca mais poderá recompor-se. A
única coisa que me atormenta é o mal que lhe causei. Mas diga-lhe que lhe peço
me perdoe, me perdoe, me perdoe...
Um estremecimento nervoso lhe percorreu todo o corpo. Sentou-se numa
cadeira.
Um sentimento de piedade como nunca experimentara até então inundou a
alma de Pedro.
— Dir-lhe-ei, dir-lhe-ei tudo.., mas desejaria saber uma coisa...
«Saber o quê?», perguntavam os olhos de Natacha.
— Desejaria saber se amou...— Pedro perguntou-se a si mesmo se devia
pronunciar o nome de Anatole, e este pensamento fê-lo corar... — se amou esse
malvado?
— Não lhe chame malvado — disse Natacha. — Não sei, já nada sei...
Rompeu a chorar. Um sentimento de piedade, de ternura e de amor mais
veemente ainda inundou a alma de Pedro. Sentia as lágrimas a escorrerem pelos
vidros das lunetas e desejava que ela se não apercebesse disso.
— Não falemos mais nisso, minha amiga — disse ele.
Esta voz doce, terna, em que vibrava uma nota profunda, surpreendeu
Natacha.
— Deixemos isso minha amiga, dir-lhe-ei tudo, mas só uma coisa lhe peço; é
que de hoje para o futuro me considere seu amigo. Se precisar de auxílio, de
conselho, se algum dia sentir a necessidade de abrir o seu coração a alguém, agora
não, quando puder olhar com clareza para dentro de si mesma, lembre-se de mim.— Pegou-lhe na mão e beijou-a. — Sentir-me-ei muito feliz, se for capaz...
Pedro perturbou-se.
— Não me fale assim, eu não o mereço! — exclamou Natacha, fazendo menção
de retirar-se. Pedro, contudo, reteve-a. Sabia haver ainda qualquer coisa para lhe
dizer. Pronunciadas que foram porém as suas palavras, ele próprio se surpreendeu.
— Não, não, não diga isso: tem a vida toda diante de si murmurou ele.
— Eu? Não, para mim tudo acabou — replicou ela num sentimento em que
havia vergonha e humildade.
— Tudo acabou! — repetiu ele.— Se eu não fosse quem sou, se fosse o mais
belo e o mais inteligente dos homens sobre a Terra, e se fosse livre, pedir-lhe-ia,
neste mesmo momento, de joelhos, a sua mão e o seu amor.
Natacha, pela primeira vez de há muito tempo para cá, foi acometida de um
ataque de choro, choro de reconhecimento e de emoção, abandonando a sala com
um olhar de agradecimento.
Pedro saiu logo atrás dela, refugiando-se, por assim dizer, no vestíbulo,
enquanto sufocava as lágrimas de felicidade que lhe haviam subido aos olhos. E,
enfiando a peliça ao acaso, subiu para o trenó que o aguardava.
— Aonde vamos agora? — perguntou o cocheiro.
«Aonde vamos?», repetiu Pedro de si para consigo. «Aonde poderemos ir
agora? Ao clube ou fazer visitas?» Tudo se lhe afigurava tão miserável, tão pobre,
em comparação com os sentimentos de amor e doçura que o tinham invadido com
aquele olhar comovido e cheio de reconhecimento, velado de lágrimas, que
Natacha pousara nele.
— Para casa — gritou Pedro, que, apesar de dez graus abaixo de zero, abrira a
peliça de urso e deixava dilatar de felicidade o seu largo peito.
Nevava, mas o tempo estava muito claro. Ao alto das ruas sujas e quase em
trevas, por cima dos telhados negros, alastrava um céu escuro salpicado de
estrelas. Só a contemplação dessas altas esferas permitia a Pedro evadir-se do
aflitivo contraste entre a baixeza do que é humano e os nobres sentimentos que
lhe enchiam a alma. Ao chegar à Praça de Arbate, viu, por cima da cabeça, uma
vasta toalha de céu estrelado. Quase no centro deste horizonte, ao alto da
Avenida Pretchistenski, cercado de estrelas por todos os lados, mas avultando no
meio de todas elas, muito mais próximo, com a sua branca luminosidade e a sua
longa cabeleira arqueada na ponta, surgia o brilhante e enorme cometa de 1812,esse mesmo cometa, dizia-se, presságio de grandes desgraças e do fim do mundo.
A verdade, porém, é que esta luminosa estrela, com a sua longa cabeleira
cintilante, não despertou o mais pequeno terror em Pedro. Muito pelo contrário:
olhava-a com os olhos cheios de lágrimas. Dir-se-ia que depois de haver percorrido,
a uma velocidade incalculável, espaços incomensuráveis, seguindo uma curva
parabólica, se imobilizara, de súbito, como uma flecha que se crava na terra, no
ponto que escolhera naquele negro céu e ali estava plantada, a cabeleira hirsuta,
espelhando as cintilações da sua branca claridade no meio de um sem-número de
outras cintilantes estrelas. Pedro sentia que aquele astro vinha acordar na sua
alma, toda aberta, uma vida nova, comovida e reconfortada.
LIVRO TERCEIRO
PRIMEIRA PARTE
[I] [II] [III] [IV] [V] [VI] [VII] [VIII] [IX] [X] [XI] [XII] [XIII] [XIV] [XV] [XVI]
[XVII] [XVIII] [XIX] [XX] [XXI] [XXII] [XXIII]
[I]
Em fins de 1811 principiaram os armamentos intensivos e a concentração das
forças da Europa ocidental e, em 1812, estas forças, ou seja, milhões de homens,
no número das quais se contava transportes e abastecimentos, puseram-se em
marcha do ocidente para o oriente, em direcção às fronteiras da Rússia, para onde
se encaminhavam, igualmente, a partir de 1811, os exércitos russos. No dia 12 de
Junho, os exércitos da Europa ocidental atravessaram a fronteira e a guerra
principiou, isto é, produziu-se então um acontecimento em desacordo completo
com a razão e a própria natureza do homem. Estes milhões de homens praticaram,
em relação uns aos outros, tão grande número de abominações, de fraudes, de
traições, de roubos, de falsificações de moeda, de pilhagens, de incêndios e de
morticínios como não há exemplo nos arquivos dos tribunais do mundo inteiro,
funcionando há séculos, e sem que, no entanto, durante todo este período, aqueles
que cometeram tais crimes fossem considerados, realmente, criminosos.
Que produziu tão monstruoso acontecimento? Quais as suas causas? Os
historiadores, com uma segurança ingénua, foram buscá-las ao insulto de que foi
vítima o duque de Oldemburgo, não observância do bloqueio continental, à
ambição de Napoleão, à resistência de Alexandre, aos erros da diplomacia, etc. Por
conseguinte, teria bastado que Metternich, Rumiantsov ou Talleyrand, entre uma
recepção na corte e uma reunião política, conviessem em redigir com arte uma
nota bem cozinhada ou que Napoleão pegasse na pena para escrever a Alexandre:
«Senhor meu irmão, consinto em devolver o ducado ao duque de Oldemburgo»,
para que não tivesse havido guerra.
É natural que fosse este o ponto de vista dos contemporâneos. Concebe-se que
Napoleão tivesse atribuído a guerra às intrigas da Inglaterra, como declarou na
ilha de Santa Helena. Admite-se que os membros do Parlamento inglês pensassem
que deveriam ir buscar-se-lhe as causas à ambição de Napoleão; que o duque de
Oldemburgo as tivesse visto na violência de que fora vítima; o comércio nobloqueio que arruinava a Europa; que os velhos militares e os generais tenham
dado como pretexto do conflito a necessidade de ocupar os seus homens; os
legitimistas da época a urgência em restabelecer os bons princípios, enquanto os
diplomatas pensavam que tudo provinha de a aliança da Prússia com a Áustria em
1809 não ter sido habilmente escondida de Napoleão e de o memorando nº 178
haver sido mal redigido. Compreende-se que os contemporâneos tenham invocado
estas e ainda outras razões, tantas ou tão poucas que o número delas pode variar
consoante os numerosos pontos de vista.
Para nós, a posteridade, que contemplamos em toda a sua amplitude este
acontecimento considerável e que penetramos o seu sentido simples e terrível,
todas elas são, evidentemente, insuficientes. Não podemos conceber como milhões
de cristãos puderam matar-se uns aos outros e torturar-se mutuamente só porque
Napoleão era ambicioso, Alexandre firme, a política da Inglaterra tortuosa e o
duque de Oldemburgo se sentia ofendido. Não é possível compreender a ligação
que existe entre todas estas circunstâncias e as violências e os morticínios
propriamente ditos.
Para nós, a posteridade, nós, que não somos historiadores, nem nos deixamos
levar pelo entusiasmo das investigações, e examinamos, por conseguinte, com um
bom senso imperturbável os acontecimentos, as causas aparecem-nos em número
incalculável. Quanto mais nos enfronhamos na investigação dessas causas mais
numerosas elas se nos revelam e cada uma em si ou uma série delas se nos
afiguram igualmente justas, embora falsas também, dada a sua insignificância
quando comparadas com a imensidade do acontecimento, e igualmente falsas pela
sua insuficiência, independentemente de todas as demais causas concordantes
poderem ter produzido o resultado encarado, Uma delas, por exemplo, o facto de
Napoleão se ter recusado a retirar as suas tropas para o outro lado do Vístula e
restituir o ducado de Oldemburgo, parece-nos valer tanto como a recusa de um
primeiro-cabo francês a realistar-se, pois a verdade é que, se este não tivesse
querido voltar à actividade e o seu exemplo houvesse sido seguido por milhares de
soldados, teria havido muito menos homens no exército de Napoleão e este ver-se-
ia impossibilitado de declarar a guerra.
Se Bonaparte se não houvesse sentido ofendido ao receber a comunicação em
que se lhe pedia que se retirasse para a outra margem do Vístula e não tivesse
dado às suas tropas ordem de marcha, não teria havido guerra. Mas se todos osseus sargentos se houvessem recusado a realistar-se também a agressão não se
daria. Fosse como fosse, não se teria dado se não tivesse havido intrigas da
Inglaterra, se não existisse o príncipe de O1demburgo, se Alexandre não fosse tão
susceptível, se a Rússia não tivesse um governo autocrático, se não tivesse havido
a Revolução Francesa e assim por diante. Sem qualquer destas causas nada teria
acontecido. É muito possível que para que o acontecimento se produzisse tivesse
sido preciso o encontro de todas estas causas, de milhares de causas, o que só quer
dizer não haver causas exclusivas e que as coisas acontecem porque têm de
acontecer.
Milhões de homens, repudiando todo o sentimento humano e toda a espécie
de razões, tinham de marchar do Ocidente para o Oriente dispostos a matar os
seus semelhantes, tal qual, séculos antes, massas de homens tinham marchado do
Oriente para o Ocidente matando igualmente o seu semelhante.
Os actos de Napoleão e de Alexandre, cuja palavra, na aparência, só por si
podia impedir ou desencadear os acontecimentos, eram tão pouco livres e
arbitrários como os do simples soldado destinado pela sorte ou o recrutamento a
tomar parte na campanha.
As coisas não podiam passar-se de outra maneira, pois, para que fosse
cumprida a vontade de Napoleão ou de Alexandre, na aparência senhores
omnipotentes, era absolutamente necessária a concordância de numerosas
circunstâncias, e bastava faltar uma só que fosse para nada vir a produzir-se. Era
necessário que milhões de homens entre cujas mãos se encontrava a força
actuante — soldados para disparar e transportar abastecimento,, e canhões—
estivessem de acordo para cumprir a vontade daqueles dois fracos indivíduos, se
isolados, e que a tal fossem conduzidos por um número infinito de razões, tão
complicadas quão diversas.
A intervenção do fatalismo na história é inevitável para explicar estas
manifestações desprovidas de sentido, ou, antes, cujo sentido nos não é dado
compreender. Quanto mais procuramos explicá-las logicamente tanto mais
desarrazoadas e incompreensíveis se nos apresentam.
O homem vive para si mesmo, goza de liberdade para alcançar os seus
objectivos particulares; todo o seu ser lhe diz que pode realizar ou não
imediatamente este ou aquele acto; mas assim que age, realizado que seja o seu
acto em tal ou qual momento da continuidade temporal, ei-lo que passa a serirrevogável e a pertencer daí para o futuro à história, perdendo o seu carácter de
acto livre para ocupar um lugar que lhe é previamente designado.
A vida do homem tem duas faces. Há, em primeiro lugar, a vida individual,
tanto mais livre quanto mais gerais os seus interesses, quanto mais abstractos; e
depois a vida como um elemento social, a vida do cortiço humano, em que o
homem tem inevitavelmente de se submeter às leis que lhe são prescritas.
O homem vive conscientemente a sua vida individual, servindo de instrumento
inconsciente à realização dos fins históricos da humanidade inteira. O acto
realizado torna-se irrevogável, e, graças à sua concordância com os milhões de
outros actos realizados ao mesmo tempo, assume valor histórico. Quanto mais alto
o homem está colocado na escala da humanidade, quanto mais importantes as
personagens com quem entra em contacto, tanto maior, igualmente, o seu poder
sobre os outros homens e mais evidente o carácter de predestinação e de
fatalidade de cada um dos seus actos.
«O coração dos reis está na mão de Deus.» «O rei é escravo da história.»
A história, quer dizer, a vida inconsciente, geral, elementar, da humanidade
serve-se de todos os minutos da vida dos reis para alcançar os seus objectivos.
Embora então, em 1812, Bonaparte estivesse mais do que nunca convencido de
que não dependia senão dele «fazer ou não verter o sangue dos povos», como
dizia Alexandre na última carta que lhe escreveu, a verdade era mais do que
nunca encontrar-se sujeito a essas leis fatais que, enquanto lhe davam a ilusão de
agir por si, segundo o seu próprio capricho, o compeliam o, colaborar na obra
comum, a história, realizando o que necessariamente tinha de realizar-se.
Os homens do Ocidente puseram-se a caminho do Oriente para se chacinarem
uns aos outros. E, segundo a coincidência das causas, colaboraram neste
acontecimento e encontraram-se em correlação com ele milhares de pequenas
causas desse movimento e dessa guerra, entre as quais a violação do bloqueio
continental, a ofensa ao duque de Oldemburgo, os deslocamentos de tropas na
Prússia, realizados, segundo pensava Napoleão, com o único fim de se conseguir
uma paz armada; o amor da guerra do imperador dos Franceses e o hábito em que
estava de a fazer, de acordo com as disposições particulares do seu povo; o
entusiasmo a que levavam os preparativos grandiosos; as despesas que estes
preparativos determinaram; a necessidade de conseguir vantagens que
compensassem tais despesas; as honrarias inebriantes que recebera em Dresde; asconversações diplomáticas que, de acordo com a opinião dos contemporâneos,
haviam sido realizadas com o sincero desejo de alcançar a paz e que no fim de
contas só serviram para irritar o amor-próprio de parte a parte; milhões de
milhões de outras causas, enfim, que concorreram para a realização do
acontecimento ou que coincidiram com ele.
Uma maçã cai quando está madura. Porquê? É o peso que a faz cair? Ou
porque se lhe seca o pé, porque o sol a queima, porque se tornou pesada de mais,
porque o vento a sacudiu ou, muito simplesmente, porque um garoto junto da
árvore morria por comê-la?
Nenhuma destas causas é a válida. Não há mais que uma concordância de
condições favoráveis na realização de qualquer dos acontecimentos elementares
da vida orgânica. O botânico que descobre que a maçã cai como consequência da
decomposição do tecido celular ou qualquer coisa semelhante não tem mais razão
que o garoto dizendo que a maçã caiu porque ele a desejava comer e nesse intuito
rezou a Deus. Igual razão ou sem-razão terá aquele que vier dizer que Napoleão
entrou em Moscovo por ser esse o seu desejo e que aí se perdeu por ser essa a
decisão de Alexandre. Igualmente estará em erro e terá razão aquele que disser
que uma montanha de milhões de puds que acabou por se desmoronar minada na
base caiu graças ao último golpe de picareta do último dos sapadores. Nos factos
históricos, esses a quem se dá o nome de grandes homens não passam, no fundo,
de etiquetas para designar o acontecimento. Aqueles têm tão pouca relação com
tais factos como as próprias etiquetas que lhes põem.
Nenhum dos seus actos que a eles se lhes afigurem produto do livre arbítrio
podem considerar-se em verdade voluntários no sentido histórico da palavra, pois
estão relacionados com a marcha geral da história, onde o seu lugar se encontra
assinalado para toda a etcrnidade.
[II]
No dia 29 de Maio, Napoleão abandonou Dresde, onde passara três semanas,
rodeado por uma corte de príncipes, de duques, de reis e até por um imperador.
Antes da sua partida, agradecera aos príncipes, aos reis e ao imperador quemereceram os seus elogios, dera uma lição aos reis e aos príncipes de quem tinha
razões para estar descontente, presenteara com pérolas e diamantes do seu
próprio escrínio, isto é, roubados a outros reis, a imperatriz da Áustria, e, depois
de estreitar amorosamente nos braços Maria Luísa, deixara-a, assim dizia um
historiador, profundamente dorida com uma despedida que, ao que parece, esta
Maria Luísa muito sentia, considerando-se já esposa de Bonaparte apesar da outra
esposa que ficara em Paris.
Não obstante a confiança dos diplomatas na manutenção da paz, para que
trabalhavam com afinco, não obstante a carta autógrafa de Napoleão a Alexandre,
em que o tratava por Senhor meu irmão e lhe dava a sincera garantia de não
querer a guerra e de nunca vir a deixar de lhe consagrar estima e amizade, não
obstante tudo isso, pôs-se em marcha, em seguimento do exército, dando as suas
ordens, em cada muda, para se activar o movimento das tropas para oriente.
Numa sege de viagem tirada por seis cavalos, rodeado de pajens, de ajudantes-de-
campo e seguido de uma escolta, ei-lo que toma a estrada de Posen Thorn,
Danzigue e Conisberga. Milhares de pessoas vieram ao seu encontro em cada uma
destas cidades movidas por um entusiasmo a que se misturava algum terror.
O exército deslocava-se para oriente e após ele o levava aquela sege tirada
por seis cavalos mudados em cada nova posta. A 1O de Junho alcançou o exército e
passou a noite em plena floresta de Wilkowyski, na propriedade de um conde
polaco, onde lhe haviam reservado aposentos.
No dia seguinte ultrapassou o exército, seguindo de sege até às margens do
Niémen, e, disposto a estudar um local propício à passagem das suas tropas,
envergou um uniforme polaco e apeou-se do cavalo para examinar o rio.
Ao ver os cossacos na outra margem, as estepes perdendo-se na distância, no
meio das quais estava Moscovo, a cidade santa, a capital desse mesmo império
dos Citas por onde passara Alexandre da Macedónia, Napoleão, com espanto de
todos, e contrariamente a todas as considerações, quer estratégicas quer
diplomáticas, deu ordem para avançar, e no dia seguinte as suas tropas
atravessaram o Niémen.
A 12, de madrugada, saiu da tenda armada sobre uma eminência da margem
esquerda e pôs-se a observar com o óculo a vaga das tropas que saíam da floresta
de Wilkowyski e enfiavam pelas três pontes que mandara lançar sobre o rio. Os
soldados, sabendo que o imperador estava presente, procuravam-no com os olhos,e quando o descobriram sobre a escarpa, diante da tenda, afastado do resto da
comitiva, de redingote e chapéu, lançaram ao ar as barretinas de pêlo, gritando:
«Viva o imperador!» E, inesgotável, lá continuava a correr, da enorme floresta em
que se ocultava, aquela torrente de homens que, dividindo-se pelas três pontes,
inundava a margem oposta.
«Desta é que vamos longe. Quando ele próprio intervém no assunto a coisa
aquece... Com mil demónios!... Ei-lo!... Viva o imperador!... São estas, pois, as
estepes da Ásia! De qualquer modo, uma terra feia. Adeus, Beauché; reservo-te o
mais belo palácio de Moscovo. — Adeus, boa sorte.— Viste o imperador? Viva o
imperador... rador...! — Se me nomearem governador das índias, Gérard, faço-te
ministro de Caxemira, fica combinado. — Viva o imperador! Viva! Viva! Viva! — É
ver como eles fogem, esses marotos dos cossacos. Viva o imperador! Ei-lo! Viste-
o? Vi-o duas vezes tal como te estou a ver a ti. O pequeno cabo... Vi-o dar a cruz a
um dos velhos... Viva o imperador!...»
Eis o que diziam velhos e novos, homens de todos os feitios e posições sociais.
Em todos os rostos se reflectia a mesma alegria por verem iniciada uma campanha
tão ardentemente esperada e o mesmo entusiasmo e a mesma dedicação pelo
homem do redingote cinzento que lá estava em cima naquela eminência.
A 13 de Junho trouxeram a Napoleão um cavalinho árabe, puro-sangue, que
ele montou, e a galope despediu em direcção a uma das pontes de Niémen,
sempre no meio do mesmo clamor, clamor que ele apenas tolerava, via-se bem,
por não ser possível impedir os seus soldados de assim exprimirem o amor que lhe
tinham. Esses gritos que o perseguiam por toda a parte fatigavam-no e distraíam-
no das preocupações militares que o assoberbavam desde que se juntara ao
exército. Atravessou uma das oscilantes pontes de barcas e, embrenhando-se na
outra margem, meteu à esquerda, e a galope seguiu na direcção de Kovno,
precedido pelos caçadores da Guarda, que, loucos de alegria, lhe abriam caminho
por entre os soldados. Quando chegou junto do curso do grande Vístula, parou ao
pé de um regimento de ulanos polacos que estacionava ali.
«Viva!», gritavam os polacos com não menor entusiasmo que os próprios
franceses, rompendo fileiras e acotovelando-se para melhor o verem.
Napoleão examinou o rio, desmontou e foi sentar-se num tronco de árvore
junto das águas. A um seu gesto, trouxeram-lhe o óculo, que ele apoiou no ombro
de um pajem, contentíssimo, que logo aparecera, e pôs-se a olhar para a margemoposta. De— pois enfronhou-se no estudo do mapa aberto sobre o tronco da
árvore. Sem erguer a cabeça, pronunciou duas ou três palavras e imediatamente
dois dos seus ajudantes-de-campo despediram a galope em direcção aos ulanos
polacos.
«Que foi? Que disse ele?», ouvia-se nas fileiras, à medida que se aproximava o
ajudante-de-campo.
Fora dada ordem para se procurar um vau por onde passar à margem oposta.
O coronel dos ulanos, homem idoso, mas de bela presença, corando e com a língua
entaramelada pela emoção, perguntou ao oficial se lhes seria permitido, a ele e
aos seus homens, atravessarem o no a nado, sem se darem ao trabalho de
procurar um vau. Receoso que lhe recusassem o que pedia, como um garoto que
pede para montar a cavalo, solicitou autorização para atravessar o no na presença
do imperador, o ajudante-de-campo replicou ser muito natural que este excesso de
zelo não deixasse de ser agradável ao imperador.
Ao ouvir estas palavras, o velho oficial de grande bigodeira, felicidade no rosto
e os olhos cintilantes, puxou do sabre, gritando: «Viva!» Depois, dando ordem aos
seus ulanos para que o seguissem, esporeou o cavalo e meteu-se ao rio.
Fustigando, colérico, o animal, que vacilava, entrou na água, dirigindo-se para um
local profundo onde a corrente era impetuosa. Atrás dele iam centenas de
homens. Lá para o meio do rio, o frio principiou a apoquentá-los. Os soldados
tropeçavam uns nos outros e caíam das montadas. Houve cavalos que se afogaram
e alguns soldados também, enquanto outros procuravam nadar, agarrando-se às
selas ou às crinas dos animais. Embora a meia versta apenas houvesse um vau,
eles, procurando alcançar a outra margem, mostravam-se orgulhosos de nadar e
morrer afogados à vista daquele homem sentado num tronco de árvore que nem
sequer olhava para eles. Quando o ajudante-de-campo voltou para junto do
imperador e, aproveitando um momento favorável, se permitiu chamar-lhe a
atenção para a prova de lealdade dos polacos, o homenzinho do redingote
cinzento levantou-se, chamou Berthier e pôs-se a passear com ele de um lado para
o outro, ao longo da margem, dando-lhe ordens e lançando de tempos a tempos
um olhar descontente para aqueles homens que se afogavam, distraindo-lhe a
atenção.
Não era a primeira vez que podia convencer-se de que bastava a sua presença,
em qualquer parte do mundo, da África às estepes da Moscóvia, para despertarnos homens como que a loucura do sacrifício. Mandou que lhe trouxessem o cavalo
e regressou ao acantonamento.
Quarenta ulanos se afogaram, apesar das barcaças que foram socorrê-los. A
maior parte dos corpos foi arrastada para a cidade que acabavam de deixar. O
coronel e alguns soldados atravessaram o no e com grande dificuldade
conseguiram escalar a margem. Assim que lá chegaram, com os uniformes a
pingar, gritaram: «Viva!», procurando com os olhos o local onde se devia
encontrar Napoleão, que já lá não estava, e nesse momento sentiram-se
plenamente felizes.
Pela noite, após ter tomado duas decisões, a primeira no sentido de apressar o
envio de notas de banco eslavas falsificadas com destino à Rússia e a segunda de
se executar um saxão em poder do qual se haviam encontrado informes relativos à
situação do exército francês, ainda tomou uma terceira, mandando que fosse
condecorado com a Legião de Honra, de que era chefe supremo, o coronel polaco
que, sem necessidade, se precipitara no rio.
Quos vult perdere dementat...
[III]
Entretanto havia mais de um mês que o imperador da Rússia se encontrava em
Vilna, onde passava revista às tropas e assistia às manobras. Nada estava
disposto para a guerra que toda a gente esperava e para a preparação da qual o
imperador deixara Petersburgo. Não havia qualquer plano geral para as
operações. As dúvidas e hesitações sobre o plano a seguir ainda eram maiores um
mês depois de o imperador se achar no quartel-general. Cada um dos três corpos
de exército tinha um general-chefe, mas não havia generalíssimo e o imperador
não queria assumir semelhantes funções.
À medida que o tempo ia passando em Vilna mais atrasados estavam os
preparativos. Toda a gente se sentia cansada de esperar. Dir-se-ia que a maior
preocupação do séquito de Sua Majestade era fazer que ele passasse
agradavelmente o seu tempo e esquecesse a guerra iminente.
Depois de muitos bailes e festas oferecidos pelos magnates polacos,personagens da corte e pelo próprio imperador, um dos generais polacos ajudante-
de-campo teve a ideia de organizar um jantar e um baile oferecidos pelos seus
colegas. Esta ideia obteve o mais jovial acolhimento. O próprio imperador lhe deu
o seu apoio. Os generais ajudantes-de-campo abriram uma subscrição. A senhora
que gozava de maior prestígio junto do imperador aceitou desempenhar o papel
de anfitrião. O conde de Bennigsen, proprietário na província de Vilna, pôs o seu
castelo de Zakreta, nos arredores da cidade, à disposição dos organizadores da
festa, e 13 de Junho foi a data marcada para o festival, que se compunha de
banquete, baile, passeio no rio e fogo de artifício.
No mesmo dia em que Napoleão dera ordem para se atravessar o Niémen e
em que as guardas avançadas do seu exército, repelindo os cossacos,
atravessavam a fronteira da Rússia, encontrava-se Alexandre no festival
promovido pelos seus ajudantes-de-campo na propriedade de Bennigsen.
A festa foi alegre e brilhante; os entendidos opinaram que raramente se tinha
visto um conjunto de tão lindas mulheres. A condessa Bezukov, que, na companhia
de outras senhoras russas, seguira o imperador até Vilna, assistiu à festa
eclipsando com a sua beleza tipicamente russa, um pouco pesada, a das mais
airosas polacas. Chamou as atenções e o imperador concedeu-lhe a honra de a ir
buscar para dançar.
Bóris Drubetskoi, de novo solteiro, como ele dizia, deixara a mulher em
Moscovo, e também assistiu ao baile. Embora não fosse ajudante-general,
contribuíra com uma bonita soma para a colecta. Agora era o que se chama um
homem rico, dado ao culto de honrarias de toda a espécie, sem precisar já de
protecções e tratando de igual para igual as mais altas personalidades do tempo.
Encontrou-se com Helena em Vilna; não a via há muito e não lhe lembrou o
passado, mas, como ela estava nas graças de uma personalidade muito
importante, desde logo passaram a ser velhos amigos.
A meia-noite ainda se dançava. Helena, que não via à sua volta par digno de
si, propôs a Bóris que a fosse buscar para a mazurca. Bóris,, indiferente aos
resplandecentes ombros nus de Helena, que emergiam de um corpinho de gaze
escura bordado a ouro, falava de pessoas conhecidas sem deixar de seguir com os
olhos, como que inconscientemente, o imperador, que se encontrava no mesmo
salão. Este não dançava; estava de pé junto de uma porta e ora detinha este ora
aquele, dirigindo a cada um a sua palavra amável como só ele sabia fazer.No princípio da mazurca Bóris notou que o general ajudante-de-campo
Balachov, um dos íntimos do imperador, se aproximou do monarca e esperava a
seu lado, numa atitude inteiramente contrária ao protocolo, enquanto este
conversava com uma senhora polaca. Quando a conversa acabou, o imperador
interrogou-o com a vista e, compreendendo que Balachov não teria procedido
daquela maneira se não fosse por qualquer grave motivo, fez uma mesura à
senhora e voltou-se para o general. Poucas palavras ele dissera ainda e já no rosto
do imperador se pintava um profundo espanto. Travou do braço de Balachov e
atravessou com ele a sala, sem prestar a mais pequena atenção às pessoas
presentes, que abriram largas alas para o deixar passar. Bóris reparou que
Araktcheiev, ao ver o imperador com Balachov, mostrara certa perturbação. O
ministro, olhando para o monarca com olhos baixos e resfolgando pelo afogueado
nariz, destacara-se da multidão, como que à espera que o imperador lhe dirigisse a
palavra. Bóris percebeu que Araktcheiev sentia ciúmes de Balachov e estava
contrariado com o facto de uma notícia, sem dúvida importante, não ser
transmitida por ele.
No entanto, o imperador e Balachov atravessaram o salão sem o ver e
penetraram no jardim iluminado. Araktcheiev, com mão na bainha da espada e
olhares coléricos, seguiu-os a uns vinte passos de distância.
Enquanto durou a marcação da mazurca, Bóris deu voltas à imaginação para
descobrir o que teria dito Balachov ao imperador e a maneira de o vir a saber
antes de mais ninguém.
Como naquele momento lhe competia escolher outro par, murmurou ao ouvido
de Helena que ia tirar a condessa Potochka, o qual, segundo pensava, saíra para a
escada. Deslizando pelo parquet, precipitou-se para a porta que dava para o
jardim e ao ver o imperador e Balachov entrarem no terraço deteve-se. Ambos se
encaminhavam para a porta. Bóris, pressuroso, como se não tivesse tido tempo de
se afastar, colou-se, respeitosamente, contra o alizar, numa grande vénia.
O imperador, com a expressão de um homem pessoalmente ofendido,
pronunciava estas palavras:
— Entrar na Rússia sem declaração de guerra! Só assinarei a paz no dia em
que não houver sobre o meu território um único inimigo armado.
Afigurou-se-lhe, a Bóris, que Alexandre punha uma espécie de satisfação em
exprimir-se daquela maneira: a forma que dera ao pensamento agradava-lhe. Noentanto, pouco satisfeito se mostrou pensando ter sido ouvido.
— É preciso que ninguém saiba! — acrescentou, franzindo o sobrolho. Bóris
percebeu que aquela advertência lhe dizia respeito e, baixando os olhos, vergou a
cabeça. O imperador voltou ao salão e permaneceu no baile ainda cerca de meia
hora.
Foi assim que Bóris veio a saber antes de mais ninguém que os Franceses
haviam atravessado o Niémen e deste modo lhe foi possível mostrar a algumas
altas personalidades que tinha conhecimento do que os outros ignoravam. E isto
tornou-o aos seus olhos maior ainda.
A notícia de que os Franceses haviam atravessado o Niémen caía de improviso
no meio do baile depois de um mês de expectativa! O imperador, no primeiro
momento de indignação e de cólera, encontrara a fórmula, mais tarde célebre, que
a ele próprio agradara, e que em verdade exprimia plenamente os seus
sentimentos. No regresso do baile, às duas horas da madrugada, mandou chamar o
seu secretário, Chichkov, a quem ditou uma ordem do dia dirigida às tropas e um
rescrito com vista ao príncipe Soltikov. Teve o cuidado de transcrever a frase
célebre em que declarava só assinar a paz no dia em que não houvesse um único
francês armado sobre a terra russa.
No dia imediato dirigiu a Napoleão a carta que se segue:
«Senhor meu irmão. Soube ontem que, apesar da
lealdade com que mantive os meus compromissos para com
Vossa Majestade, as suas tropas atravessaram as fronteiras
da Rússia, e acabo de receber de Petersburgo uma nota em
que o conde Lauriston, por causa dessa agressão, anuncia
que Vossa Majestade se considerou em estado de guerra
para comigo desde o momento em que o príncipe Kurakine
fez o pedido dos seus passaportes. Os motivos em que o
duque de Bassano fundamentava a recusa de lhos passar
nunca me fariam supor que essa diligência viria alguma vez
a servir de pretexto para a agressão. Com efeito, o
embaixador não fora a tal autorizado, como ele próprio o
declarou, e logo que fui disso informado comuniquei-lhe
quanto desaprovava essa deslocação, dando-lhe a ordem dese manter no seu posto. Se Vossa Majestade não tem a
intenção de fazer verter o sangue das nossas gentes por um
mal-entendido desta espécie e se consentir em retirar as
suas tropas do território russo, encararei o que se passou
como se nada fosse, e será possível as coisas comporem-se
entre nós. No caso contrário, Vossa Majestade, ver-me-ei
forçado a repelir um ataque que nós não provocámos.
Depende ainda de Vossa Majestade evitar à humanidade as
calamidades de uma nova guerra.
Sou, de Vossa Majestade, etc.
ALEXANDRE»
[IV]
No dia 13 de Junho, às duas horas da madrugada, o imperador mandou chamar
Balachov, leu-lhe a carta que acabara de escrever a Napoleão, dando-lhe ordem
para que a fosse entregar pessoalmente ao imperador dos Franceses. Ao despedir-
se dele repetiu as palavras que pronunciara no baile, ordenando-lhe que as
repetisse fielmente a Napoleão. Não as transcrevera na sua carta, pois sentia, com
o seu tacto habitual, que seriam ali deslocadas, visto tratar-se de uma última
tentativa de conciliação. No entanto, ordenou a Balachov que lhas repetisse
textualmente.
Tendo partido na noite de 13 para 14, Balachov, acompanhado de um
trombeta e de dois cossacos, chegou de madrugada à aldeia de Rykonty, guarda-
avançada dos Franceses nessa margem do Niémen. As sentinelas da cavalaria
francesa detiveram-no.
Um sargento de hússares, de uniforme amaranto e barretina de pêlo, gritou-
lhe que parasse. Balachov não obedeceu imediatamente e prosseguiu a passo.
De sobrancelhas franzidas e soltando palavrões, o sargento atravessou-se na
estrada com o seu cavalo, fazendo parar o general russo. Depois desembainhou o
sabre e perguntou-lhe grosseiramente se era surdo, pois não parecia entender oque ele dizia. Balachov declinou a sua identidade. O francês deu ordens a um
soldado para que fosse chamar um oficial.
Indiferente ao enviado russo, o hússar pôs-se a conversar com os seus
camaradas sobre assuntos que lhes diziam respeito, sem se dignar pousar nele os
olhos.
Estranha impressão causou isto a Balachov. Ele, que estava em comunicação
contínua com o poder supremo e as autoridades, ele que, algumas horas antes,
falava com o imperador, ele, que no desempenho das suas funções estava
habituado a ser tratado com todas as honras, via-se agora, em terra russa,
tratado como um inimigo e, pior ainda, sem qualquer respeito, por semelhantes
representantes da força bruta.
O sol principiava a romper as nuvens; o ar era fresco e repassado de humidade.
Um rebanho ia da aldeia a caminho dos montes. As andorinhas, umas após outras,
como bolhas que rompem à superfície de água, saíam das sebes, soltando trinados.
Balachov olhava à sua roda enquanto aguardava o oficial que haviam ido
buscar à aldeia. Os cossacos e o trombeta, em silêncio, de tempos a tempos,
trocavam olhares com os hússares franceses.
O coronel dos hússares, que naturalmente acabara de saltar da cama,
apareceu montado num belo cavalo cinzento, bem tratado, escoltado por dois dos
seus homens. O oficial, os soldados, os seus próprios cavalos, respiravam
contentamento e abastança.
Estava-se no princípio da guerra, nesse momento em que as tropas, de ponto
em branco, parecem preparadas para uma parada do tempo da paz, apenas com
qualquer coisa de mais bélico no equipamento e esse matiz de jovialidade e
animação, traço característico de um exército quando principia uma nova
campanha.
Só muito a custo o coronel francês reprimiu o bocejar, mas mostrou-se polido e
percebeu, evidentemente, a importância da missão de que Balachov vinha
incumbido. Fê-lo atravessar as linhas e garantiu-lhe que o desejo manifestado de ir
à presença do imperador seria imediatamente satisfeito, visto o quartel-general,
assim o supunha pelo menos, estar situado ali perto.
Atravessaram a aldeia de Rykonty pelo meio dos piquetes de hússares, de
sentinelas e de soldados que faziam continência ao seu coronel e olhavam curiosos
para o uniforme russo, e assim atingiram a outra extremidade da povoação.Segundo dizia o coronel, a dois quilómetros dali estava o comandante da divisão,
que receberia Balachov e o conduziria ao seu destino.
O Sol surgira no horizonte e brilhava alegremente sobre os campos muito
verdes.
Mal ultrapassaram a estrada do monte viram surgir diante de si, descendo a
encosta, um grupo de cavaleiros, à frente dos quais, montado num cavalo preto,
cujos arreios brilhavam ao sol, cavalgava um homem de grande estatura, de
chapéu emplumado, com os negros cabelos encaracolados caindo-lhe pelas costas,
embrulhado numa capa vermelha e as pernas estendidas para a frente,
característica maneira de montar dos Franceses. Este homem galopava ao
encontro de Balachov, e a sua pluma, as suas pedras preciosas, os seus galões
dourados ondulavam e brilhavam ao ardente sol de Junho.
Estava Balachov a menos de dois cavalos daquele cavaleiro em atitude solene
e teatral, coberto de cordões, de plumas, de colares e de galões dourados, quando
Ulner, o coronel francês, lhe segredou ao ouvido respeitosamente: «O Rei de
Nápoles.» Era, efectivamente, Murat, a quem chamavam então rei de Nápoles.
Embora fosse absolutamente impossível saber porquê, o certo é que era rei de
Nápoles, assim lhe chamavam, e ele próprio disso estava convencido, circunstância
que lhe dava um aspecto mais imponente e solene. Tão persuadido estava da
situação que na véspera da sua partida de Nápoles, andando a passear com a
mulher nas ruas da cidade e ouvindo alguns italianos aclamá-lo, gritando «Viva il
re!», se voltou para a mulher com um triste sorriso e disse: «Desgraçados!
Ignoram que os deixo amanhã!»
Apesar da sua íntima convicção de ser realmente rei de Nápoles e de que os
seus súbditos suspiravam por ele, naqueles últimos tempos, depois de receber
ordem para regressar ao serviço do exército, principalmente após a sua entrevista
com Napoleão em Danzigue, quando ouviu o seu augusto cunhado dizer-lhe: «Eu
tornei-o rei para que reinasse à minha maneira, não à sua», confiou-se
alegremente ao seu mister familiar e como um cavalo bem tratado e sem gorduras
em excesso, que, sentindo-se atrelado, brinca entre os varais, arreado com as
cores mais vistosas e as mais preciosas jóias, ei-lo que vai caracolear, sem que ele
próprio saiba muito bem aonde nem porquê, pelas estradas da Polónia.
Ao ver o general russo, atirou majestosamente para trás, numa atitude
verdadeiramente real, a sua cabeça ornada de compridos cabelos encaracolados, einterrogou com os olhos o coronel francês. Este informou respeitosamente Sua
Majestade da identidade de Balachov, cujo nome não conseguia pronunciar.
— De Bal-Machève! — articulou o rei, superando com decisão a dificuldade que
o coronel não soubera vencer — muito prazer em conhecê-lo, general —
acrescentou com um gesto de condescendência verdadeiramente augusto.
Assim que ergueu a voz e principiou a falar depressa, toda a, sua dignidade
real desapareceu como por encanto e, em vez dela, surgiu, sem que ele próprio
desse por isso, um tom de bonomia familiar. Passou a mão pela crina do cavalo de
Balachov.
— Pois bem, general, estamos então em guerra, ao que parece — disse, como
se lamentasse uma circunstância de que se não sentia responsável.
— Sire — replicou Balachov — o imperador, meu senhor, não deseja a guerra,
como Vossa Majestade pode verificar. — Para o que desse e viesse, Balachov
resolvera tratar Murat por Majestade, evidente despropósito, visto que se dirigia
a alguém para quem esse título constituía uma novidade.
O rosto do rei de Nápoles todo se abriu numa estúpida satisfação enquanto lhe
dirigia a palavra Monsieur de Balachoff. Mas, realeza obriga, teve de reconhecer
ser indispensável abordar negócios de Estado com o enviado de Alexandre, uma
vez que era rei e aliado. Desmontando, pegou no braço de Balachov, afastou-se
alguns passos da comitiva, que aguardava numa atitude respeitosa, e pôs-se a
passear com ele de um lado para o outro, procurando imprimir autoridade às mais
pequenas palavras que pronunciava. Lembrou que o imperador Napoleão ficara
ofendido com o pedido que lhe fora dirigido no sentido de retirar as suas tropas da
Prússia, sobretudo porque essa intimação fora divulgada por toda a parte, ferindo
assim a dignidade da França.
Balachov replicou-lhe não haver a mais pequena ofensa num tal pedido, uma
vez que.— Murat interrompeu-o.
— Com que então, na sua opinião, o instigador não é o imperador Alexandre?
— exclamou, de chofre, com o seu estúpido sorriso bonacheirão.
Balachov explicou-lhe porque entendia ser, de facto, Napoleão o causador da
guerra.
— Eh!, meu querido general — interrompeu de novo Murat —, desejo de todo
o coração que os imperadores cheguem a um acordo e que esta guerra de que eu
não sou responsável ter— mine o mais cedo possível. — Dizendo o que, assumiu otom dos criados que conversam entre si, querendo continuar bons amigos, embora
os amos andem desavindos.
Em seguida quis saber como ia de saúde o grão-duque, recordando os
agradáveis momentos que haviam passado juntos em Nápoles.
E de súbito, como se se tivesse lembrado da sua dignidade real, empertigou-se
majestosamente, tomou a atitude que assumira por altura da coroação e com um
gesto da mão direita:
— Não o retenho mais, general, e desejo-lhe o êxito da sua missão —
exclamou, e, resplandecente no seu manto vermelho bordado a ouro, as plumas do
chapéu a esvoaçar, as jóias faiscantes, encaminhou-se ao encontro da comitiva que
o aguardava respeitosamente.
Balachov prosseguiu o seu caminho, supondo, de acordo com o que lhe dissera
Murat, que não tardaria a encontrar-se na presença de Napoleão. Mas, em vez
disso, as sentinelas do corpo de infantaria de Davout detiveram-no ainda na
localidade próxima, como acontecera na primeira linha, e um ajudante-de-campo
conduziu-o à aldeia, à presença do marechal Davout.
[V]
Davout era o Araktcheiev do imperador Napoleão, Araktcheiev em tudo
menos na covardia, como ele meticuloso e cruel e incapaz de provar a dedicação
que tinha ao amo de outra maneira que não fosse pela crueldade.
Nas engrenagens de um Estado, homens assim são tão necessários como os
lobos na natureza. Existem sempre, aparecem sempre e mantêm-se, por mais
absurda que a sua presença possa parecer, junto do chefe do Estado ou na sua
intimidade. Graças à fatalidade desta lei se pode explicar que este cruel
Araktcheiev, habituado a arrancar com as próprias mãos os bigodes aos
granadeiros, e de resto incapaz, por fraqueza nervosa, de enfrentar o menor
perigo, que este homem sem cultura e sem educação tivesse podido manter uma
tal influência sobre a natureza nobre, cavalheiresca e doce de um Alexandre.
Balachov encontrou o marechal Davout na isbá de um aldeão, sentado num
barril e ocupado a verificar umas contas. A seu lado, de pé, estava um ajudante-de-campo. Ter-lhe-ia sido possível arranjar uma instalação mais própria, mas
Davout pertencia ao número dos homens que gostam de viver nas mais difíceis
condições de vida para terem o direito de se conservar tristes e severos. E é por
isso também que tais homens andam sempre apressados e esmagados com
trabalho. «Como se há-de pensar nas coisas agradáveis da vida quando, como
vocês estão a ver, uma pessoa tem de sentar-se em cima de um barril numa isbá
sórdida, sempre que precisa de trabalhar?» Eis o que parecia ler-se-lhe na cara. O
maior prazer, a necessidade capital destas pessoas quando em presença de alguém
contente de viver é atirar-lhes à cara o seu trabalho obstinado e taciturno. Eis a
satisfação que sentiu Davout com a chegada de Balachov. Ainda mais se enfronhou
nas suas contas ao ver aparecer o general russo, e, depois de lançar um olhar por
cima das lentes àquela figura animada pela corrida matinal e a conversa que
tivera com Murat, sem se erguer, sem fazer um movimento, ainda franziu mais as
sobrancelhas, com um sorriso mau.
Vendo a impressão desagradável que o acolhimento provocava no recém-
chegado, acabou por levantar a cabeça e perguntar-lhe friamente o que desejava.
Como Balachov só podia atribuir aquela recepção ao facto de Davout ignorar a
sua dupla qualidade de general ajudante-de-campo e de enviado, junto de
Bonaparte, do imperador Alexandre, tratou de declinar a sua identidade e de
enunciar o objectivo da sua missão. Ao contrário, porém, do que esperava, Davout
ainda se mostrou mais rude e severo.
— Onde está a sua mensagem? — interrogou ele. — Dê-ma, que eu envio-a ao
imperador.
Balachov replicou que recebera ordens para a entregar pessoalmente ao
imperador.
— As ordens do seu imperador só têm curso no exército dele; aqui o senhor
tem de fazer o que se lhe diz.
E, como que para fazer compreender ao general russo que estava na
dependência de uma força brutal, mandou um ajudante-de-campo procurar o oficial
de serviço.
Balachov sacou do invólucro que continha a carta do imperador e pousou-o em
cima da mesa, a qual era formada por uma porta donde pendiam ainda os gonzos,
assente sobre dois barris. Davout pegou no sobrescrito e leu o endereço.
— É consigo tratar-me ou não com respeito — disse Balachov —, mas permitaque lhe observe que tenho a honra de pertencer ao número dos generais
ajudantes-de-campo de Sua Majestade.
Davout olhou-o sem dizer palavra e a irritação que se lia no rosto do oficial
russo foi para ele evidente motivo de satisfação.
— Será tratado com as honras devidas — replicou, e, metendo a mensagem na
algibeira, saiu da cabana.
Um minuto mais tarde entrou o ajudante-de-campo do marechal, o Sr. De
Castries, que conduziu Balachov ao alojamento que lhe fora destinado.
Balachov jantou nesse dia com o marechal, na choupana, em cima da mesa de
barris.
No dia seguinte Davout partiu logo de madrugada, depois de haver convocado
Balachov e de lhe ter ordenado que permanecesse onde estava, que apenas se
afastasse com o comboio, no caso de este receber instruções para se deslocar, e
que não falasse fosse com quem fosse, à excepção de Castries.
Depois de quatro dias de tédio e solidão, agravados pelo sentimento de
sujeição e de impotência, tanto mais impressionantes para ele quanto acabava de
abandonar um meio onde era todo poderoso, após várias etapas com as bagagens
pessoais do marechal e as tropas francesas que ocupavam toda a região, Balachov
entrou em Vilna, então ocupada pelos Franceses, pela mesma porta da cidade por
onde havia saído quatro dias antes.
No dia seguinte, o camareiro do imperador, Monsieur de Turenne, veio
anunciar-lhe que o imperador Napoleão lhe concedia uma audiência.
Quatro dias antes, sentinelas do regimento de Preobrajenski estavam de
guarda à porta da casa onde conduziram Balachov; no lugar delas, agora, havia
dois granadeiros franceses, de uniforme azul com largas bandas e barretinas de
pêlo, uma escolta de hússares e de ulanos, uma brilhante comitiva de ajudantes-
de-campo, pajens e, generais, que aguardavam a saída de Napoleão à roda do
cavalo do imperador, mantido pela arreata pelo mameluco Roustan. Napoleão
recebeu Balachov na mesma casa de Vilna em que Alexandre lhe entregara a
mensagem.
[VI]
Embora Balachov estivesse muito habituado às magnificências da corte, o luxo
e o fausto da de Napoleão impressionaram-no.
O conde de Turenne introduziu-o numa grande antecâmara onde esperavam
muitos generais, camareiros e magnates polacos, a maior parte dos quais ele vira
já na Rússia. Duroe veio anunciar que Napoleão receberia o general russo antes do
passeio habitual,
Após alguns minutos de espera, apareceu o camareiro de serviço, que, com
uma polida reverência a Balachov, o convidou a segui-lo.
Balachov entrou numa salinha cuja porta dava para um gabinete, para esse
mesmo gabinete em que recebera as últimas ordens do imperador da Rússia.
Esperou dois ou três minutos. Atrás da porta ouviram-se passos precipitados. Os
dois batentes foram bruscamente abertos, toda a gente se calou, e novos passos
firmes e enérgicos ressoaram no gabinete: era Napoleão. Acabava de vestir-se
para o seu passeio a cavalo, Envergava um uniforme azul, cujas bandas abertas
deixavam ver o colete branco que lhe moldava a rotundidade do ventre, e calções
brancos também cingindo-lhe as coxas gordas e as curtas pernas metidas em botas
altas, de montar. Via-se que acabara de pentear os cabelos curtos, mas uma
madeixa se lhe derramava pela ampla testa. O branco e anafado pescoço
ressaltava da gola negra do uniforme; rescendia a água-de-colónia. Em seu rosto
cheio, ainda novo, de queixo proeminente, pintava-se a benevolência e a
majestade de um acolhimento imperial.
Entrou apressado, uma espécie de estremecimento nervoso a cada passo que
dava, a cabeça ligeiramente atirada para trás. Toda a sua figura, repleta e curta,
de ombros largos e espessos, o ventre e o arcabouço do peito fugindo-lhe para
avante, davam-lhe esse aspecto representativo e imponente próprio dos
quarentões que sempre viveram vida folgada. E, depois, via-se que nesse dia
estava muito bem disposto.
Com uma ligeira inclinação de cabeça respondeu à profunda e respeitosa
saudação de Balachov, depois aproximou-se dele e imediatamente se pós a falar
como um homem para quem todos os minutos são preciosos, que não se dá sequer
ao trabalho de preparar os seus discursos, persuadido de que dirá sempre o que é
preciso.
— Bons dias, general! — exclamou. — Recebi a carta, que me trouxe, doimperador Alexandre e tenho muito prazer em vê-lo. — Fitou Balachov com os
seus grandes olhos, desviando-os, porém, imediatamente.
Era evidente que a personalidade de Balachov o não interessava: o que tinha
interesse para ele era o que se passava na sua própria alma. Tudo o que lhe era
exterior não tinha qualquer importância, uma vez que no mundo — pensava ele —
tudo dependia da sua vontade.
— Não desejo, nem desejei a guerra — disse ele. — Obrigaram-me a fazê-la. E
mesmo agora — acrescentou, acentuando estas palavras — estou pronto a aceitar
todas as explicações que me possa dar.
E pôs-se a expor, pormenorizadamente, as causas do seu descontentamento em
relação ao Governo russo. Graças ao tom tranquilo, moderado e até mesmo
amistoso que tomou então, Balachov persuadiu-se de que na verdade ele desejava
a paz e estava disposto a entabular negociações.
— Sire!... O imperador, meu senhor... — tentou dizer Balachov, quando
Napoleão, que se calara, o interrogou com o olhar.
O russo trazia preparado o seu discurso, mas aqueles olhos fitos nele
desorientaram-no. «Está perturbado, calma», parecia dizer Napoleão, que
examinava, com um imperceptível sorriso nos lábios, o uniforme e a espada de
Balachov.
Este, serenando, continuou. Disse que o imperador Alexandre não considerava
casus belli suficiente o pedido de passaportes de Kurakine, que este agira por
iniciativa própria, sem conhecimento do monarca, que Alexandre não queria a
guerra e não assinara qualquer pacto com a Inglaterra.
— Ainda não — interveio Napoleão, mas, receoso de se deixar arrastar pelos
seus sentimentos, franziu as sobrancelhas e baixou ligeiramente a cabeça, dando a
entender a Balachov que podia continuar.
Exposto que foi quanto lhe fora ordenado que dissesse, Balachov concluiu que o
imperador Alexandre desejava a paz, porém que só entabularia negociações com a
condição de... Neste ponto hesitou: lembrava-se das palavras que Alexandre não
escrevera na sua carta mas que ordenara fossem introduzidas, sem esquecimento,
no seu rescrito a Saltikov e que ele fora encarregado de repetir textualmente a
Napoleão. Lembrava-se das palavras: «... enquanto houver um só inimigo em
armas sobre a terra russa», mas um sentimento muito complexo reteve-lhe a
frase, prestes a escapar-lhe, Foi-lhe impossível pronunciá-la, embora o desejasse.Acrescentou: — Com a condição de que as tropas francesas se retirem para o outro
lado do Niémen.
Napoleão dera-se conta da perturbação de Balachov no momento de
pronunciar estas palavras: o rosto estremeceu-lhe e os músculos da barriga da
perna esquerda tremeram-lhe. Sem se mover do sítio em que estava, mas em voz
mais alta e mais precipitada, pôs-se a falar. Durante todo o discurso que se seguiu,
Balachov, sempre que baixava os olhos, reparava, sem querer, no tremor da
barriga da perna esquerda de Napoleão, que se ia acentuando à medida que o
soberano levantava a voz.
— Não desejo menos a paz que o imperador Alexandre — principiou ele. —
Não fui eu quem durante dezoito meses fez tudo para a conseguir? Há dezoito
meses que espero explicações. E que exigem de mim para entabular negociações?
— acrescentou, franzindo o sobrolho e fazendo um gesto enérgico com a pequena
mão branca e anafada.
— A retirada das tropas para o outro lado do Niémen, Majestade — disse
Balachov.
— Para o outro lado do Niémen? — repetiu Napoleão. — Então agora querem
que eu retroceda para lá do Niémen? — insistiu, fitando Balachov nos olhos.
Este inclinou respeitosamente a cabeça.
Em vez de lhe exigirem, como quatro meses antes, a evacuação da Pomerânia,
agora apenas lhe pediam a retirada para o outro lado do Niémen. Napoleão
voltou as costas, num movimento brusco, e pôs-se a andar de um lado para o
outro.
— Com que então, exigem de mim que retire para o outro lado do Niémen
para entabular negociações? Mas há dois meses queriam que me retirasse para o
outro lado do Óder e do Vístula, e apesar disso estão prontos agora a entabular
negociações.— Percorreu a sala em silêncio de um extremo ao outro, depois
deteve-se novamente diante de Balachov. Este notou que a barriga da perna
esquerda do imperador ainda tremia mais e que a sua máscara se havia como que
petrificado numa expressão severa. Napoleão conhecia esta sua particularidade:
«A vibração da barriga da perna esquerda é, em mim, um grande sinal»,
costumava dizer.
— Proposta como essa, o abandono do Óder e do Vístula, é para fazer ao grão-
duque de Baden, não a mim — exclamou, de súbito, com uma violência que osurpreendeu a ele próprio. Mesmo que me oferecessem Petersburgo e Moscovo,
não aceitaria as vossas condições. Dizem os senhores que eu principiei esta
guerra! Mas quem primeiro concentrou as suas tropas? O imperador Alexandre e
não eu. E vem o senhor falar-me de negociações quando eu já gastei milhões,
quando sois aliados de Inglaterra e a vossa situação é má. Propõem-me
negociações? Mas qual o objectivo da vossa aliança com a Inglaterra? Que vos deu
Ela? — Falava precipitadamente; via-se que o seu discurso não tentava mostrar as
vantagens da paz e discutir a viabilidade desta, mas apenas demonstrar quer o
seu direito, quer a sua força e provar os erros e as faltas de Alexandre.
Quando principiara a falar, tinha por finalidade, evidentemente, chamar a
atenção para as vantagens da sua situação e que apesar de tudo aceitava as
negociações. Mas agora, quanto mais falava menos senhor era das suas palavras.
— Diz-se que assinaram a paz com os Turcos?
Balachov inclinou a cabeça afirmativamente.
— A paz foi assinada... — principiou.
Mas Napoleão cortou-lhe a palavra. Havia nele uma necessidade imperiosa de
monologar, e prosseguiu com essa eloquência irritada e essa intemperança de
linguagem própria, às vezes, das pessoas favorecidas pela sorte.
— Sim, bem sei, assinaram a paz com os Turcos sem terem conseguido nem a
Moldávia nem a Valáquia. E eu teria dado essas províncias ao seu imperador, da
mesma maneira que lhe ofereci a Finlândia. Sim – continuou — prometera e daria
ao imperador Alexandre a Moldávia e a Valáquia, mas a verdade é que essas
belas províncias lhe fugiram das mãos. E no entanto teria podido anexá-las ao seu
império e sob o seu reinado a Rússia alargar-se-ia do golfo de Bótnia até às
embocaduras do Danúbio. Nem a grande Catarina faria mais. — À medida que
falava ia ficando mais exaltado.
De um lado para o outro, na sala, repetia a Balachov, quase palavra por
palavra, o que dissera na entrevista de Tilsitt. — E teria tido tudo isso devido à
minha amizade. Ah, que belo reino, que belo reino! — Repetiu várias vezes estas
palavras, parou, tirou da algibeira uma caixa de rapé, de ouro, e sorveu
avidamente uma pitada.
— Que belo reino poderia ter sido o do imperador Alexandre!
Olhou para Balachov com ar de compaixão e, como este ia dizer qualquer coisa,
interrompeu-o:— Que pode ele desejar e procurar que eu lhe não pudesse oferecer com a
minha amizade?... — pronunciou, encolhendo os ombros. — E pensou que seria
melhor rodear-se dos meus inimigos, e que inimigos? Chamou para junto de si os
Stein, os Armfeld, os Bennigsen, os Wintzengerode. Stein, um traidor expulso do
seu país, Armfeld, um libertino e um intriguista, Wintzengerode, um súbdito
francês foragido, Bennigsen, um pouco mais militar que os outros, mas tão inepto
como eles, que não foi capaz de fazer fosse o que fosse em 1807 e cujo nome deve
despertar no imperador Alexandre tremendas recordações... Se eles prestassem
para alguma coisa, vamos, podiam ser úteis — prosseguiu Napoleão, cuja palavra
dificilmente lhe obedecia, tantos os argumentos que lhe acorriam para demonstrar
o seu direito e a sua força, a seus olhos, afinal, uma e a mesma coisa. — Não, para
nada prestam, nem na guerra nem na paz! Barclay, segundo dizem, é o mais
esperto deles todos, mas eu não sou dessa opinião, a julgar pelos seus primeiros
passos. E eles que fazem? Que fazem todos estes cortesãos? Pfuhl propõe, Armfeld
discute, Bennigsen examina. Quanto a Barclay, chamado para agir, não sabe por
onde começar. E o tempo vai passando sem nada acontecer de novo, Militar só
Bagration. É estúpido, mas tem experiência, golpe de vista e decisão... E que papel
desempenha o vosso jovem imperador no meio dessa massa amorfa?
Comprometem-no e fazem pesar sobre ele a responsabilidade de tudo. Um
soberano só deveria encontrar-se à frente do exército quando fosse general —
concluiu Bonaparte, como se estas palavras fossem uma provocação directa ao
czar. Ele bem sabia que Alexandre tinha o sonho de ser um grande capitão.
— Há oito dias que a campanha principiou e os senhores não souberam
defender Vilna. O exército russo está cortado em dois e foi expulso das províncias
polacas. As tropas rebelam-se.
— Perdão, Majestade — interrompeu Balachov, que, com dificuldade,
apreendia aquela torrente de palavras — Pelo contrário, as tropas ardem em
desejos...
— Sei tudo — interrompeu Napoleão. — Sei tudo e o número dos vossos
batalhões tão bem como dos meus. Os senhores nem duzentos mil homens têm em
armas e eu tenho mais do triplo. Dou-lhe a minha palavra de honra —
acrescentou, esquecendo-se de que esta sua garantia não podia ser tomada a
sério —, dou-lhe a minha palavra de honra que tenho quinhentos e trinta mil
homens deste lado do Vístula. Os Turcos não os podem ajudar: para nada prestam,e mostraram-no bem quando assinaram a paz convosco. Os Suecos, esses estão
predestinados a ser governados por loucos. Tinham um rei louco: mudaram de rei
e arranjaram outro, Bernadotte, que logo enlouqueceu também, pois é preciso
estar doido para, sendo sueco, assinar uma aliança com a Rússia.
Napoleão sorriu malevolamente e sorveu mais uma pitada de rapé. Cada frase
sua sugeria uma réplica a Balachov, que gesticulava, como se fosse pedir a
palavra. Napoleão, porém, interrompia-o sempre.
A propósito da pretensa loucura dos Suecos queria dizer que a Suécia se
transformava numa ilha, com a Rússia por detrás dela, mas Napoleão vociferava,
para lhe abafar a voz. Estava nesse estado de irritação em que as pessoas têm
necessidade de falar, de falar, de falar sempre, apenas para provarem a si próprias
terem razão. A situação de Balachov era penosa.
Como embaixador, receava comprometer a sua dignidade e sentia dever
apresentar objecções; como homem, encolhia-se moralmente perante os excessos
de ira sem causa a que o imperador se entregava. Sabia que aquela torrente de
palavras não tinha grande importância, que Napoleão, quando voltasse a si, seria
o primeiro a envergonhar-se do que dissera. Conservava-se diante dele com os
olhos baixos, observando as grossas pernas do imperador e procurando evitar-lhe
o olhar.
— Que importam, no fim de contas, todos os vossos aliados? — dizia este. —
Também os tenho, os Polacos: oitenta mil homens que se batem como leões. E não
tarda que sejam duzentos mil.
E indignado, provavelmente por ter a consciência de estar a mentir e da
atitude de Balachov, o qual, dando a impressão de resignado perante a sua sorte,
não dizia palavra e se mantinha sempre na mesma atitude, voltou-se
bruscamente, veio colocar-se à frente do seu interlocutor e, com violentos gestos
das suas mãos brancas, quase gritou:
— Fique sabendo que, se levantarem a Prússia contra mim, eu apagá-la-ei do
mapa da Europa.
Estava pálido e desfigurado — pela ira e uma das suas pequenas mãos sobre a
outra simulava o gesto de apagar.
— Sim, fá-los-ei retroceder para lá do Dvina, para lá do Dniéper e
restabelecerei contra vós essa barreira que a Europa, cega e criminosa, permitiu
que desaparecesse. Sim, eis o que vos espera, eis o que ganharam afastando-se demim — concluiu. Depois, em silêncio, deu alguns passos, os largos ombros agitados
por movimentos nervosos.
Guardou a caixa do rapé na algibeira do colete, voltou a tirá-la, levou-a várias
vezes às narinas e de novo veio postar-se diante de Balachov. Calado, por
momentos, olhou ironicamente nos olhos o general russo, dizendo em voz serena:
— E no entanto que belo reino poderia ter sido o do seu senhor!
Balachov, sentindo ser preciso objectar fosse o que fosse, disse que da parte
dos Russos as coisas não se apresentavam sob um aspecto tão tétrico. Napoleão
continuou calado, olhando-o sempre com a mesma ironia, naturalmente sem o
ouvir. Balachov acrescentou que na Rússia se esperavam óptimos resultados da
guerra. Napoleão abanou a cabeça, condescendente— mente, como a dizer-lhe:
«Bem sei, falas assim por obrigação, mas nem tu próprio acreditas no que estás
a dizer. Convenci-te.»
No fim da tirada de Balachov, Napoleão puxou de novo da caixa de rapé, tomou
outra pitada, e, como se fizesse um sinal, bateu duas vezes com o pé no chão. A
porta abriu-se; um camareiro, respeitosamente vergado pela cintura, entregou ao
imperador o chapéu e as luvas, outro pôs-lhe na mão o lenço de assoar. Napoleão,
sem lhes prestar a mínima atenção, voltou-se para Balachov:
— Assegure, em meu nome, ao imperador Alexandre — disse, pegando no
chapéu —, que continuo a ter por ele a mesma devoção de sempre: conheço-o e
aprecio altamente as suas grandes qualidades. Não continuo a retê-lo, general,
receberá a minha carta para o imperador.
E Napoleão encaminhou-se rapidamente para a porta. Todos os que estavam
na sala de espera se precipitaram para a escada.
[VII]
Depois de tudo o que Napoleão lhe dissera, dos seus arrebatamentos coléricos
e das suas últimas palavras secas em extremo: «Não o retenho mais, general,
receberá a minha carta dirigida ao imperador», Balachov persuadiu-se de que o
imperador não só não tinha o mais pequeno desejo de o tornar a ver, mas até
evitaria mesmo voltar a encontrá-lo, a ele, embaixador humilhado, e sobretudotestemunha da sua intempestiva exaltação. Mas, com grande espanto seu, foi
convidado por Duroe, nesse mesmo dia, para sentar-se à mesa do imperador.
Bessières, Caulaincourt e Berthier eram também convivas do jantar.
Napoleão recebeu Balachov alegre e afavelmente. Não só não deu mostras de
molestado ou arrependido pelo que se passara nessa manhã, mas, muito pelo
contrário, procurou por o seu hóspede perfeitamente à vontade. Era evidente de
há muito estar convencido de que não podia enganar-se e que aos seus próprios
olhos tudo quanto ele próprio fizesse estaria bem feito, não porque os seus actos
estivessem de acordo com a ideia que ele tinha do bem e do mal, mas
simplesmente por ser ele o autor de tais actos.
Voltara muito alegre do seu passeio a cavalo pelas ruas de Vilna, onde a
multidão o acolhera e aclamara com entusiasmo. Todas as janelas das casas nas
ruas que ele atravessara ostentavam colgaduras e bandeiras com as suas armas e
as senhoras polacas haviam-no saudado agitando os lencinhos.
A mesa sentou Balachov a seu lado e não só o tratou amavelmente, mas como
se fosse um dos seus cortesãos, como se pertencesse ao número dos que
aprovavam os seus planos e deviam alegrar-se com os seus êxitos. Entre outras
coisas, veio à fala Moscovo, e Bonaparte interrogou-o acerca da capital, ao mesmo
tempo como um viajante, desejoso de se instruir, que colhe informações sobre um
país desconhecido que deseja visitar, mas também com a convicção de que
Balachov, russo que era, se sentiria muito lisonjeado com esse interesse.
— Quantos habitantes tem Moscovo? Quantas casas? É verdade que lhe
chamam Mouscou la sainte? Quantas igrejas tem? — perguntou.
E, ao ouvir que mais de duzentas, observou:
— Para quê tantas igrejas?
— Os Russos são muito tementes a Deus — replicou Balachov.
— Convém notar que grande número de conventos e de igrejas é sempre sinal
de atrasada civilização — disse o imperador, procurando a aprovação de
Caulaincourt.
Balachov, respeitosamente, ousou exprimir opinião contrária.
— Cada terra com seus usos — disse.
— Mas nada há na Europa que se pareça com isso — voltou Napoleão.
— Que Vossa Majestade me perdoe — tornou o russo —, mas, além da Rússia,
há a Espanha também, onde existem, igualmente, muitos conventos e igrejas.Esta resposta, alusão à recente derrota dos Franceses em Espanha, foi muito
apreciada na corte da Rússia quando Balachov aludiu a ela, mas não produziu o
mais pequeno efeito na mesa de Napoleão, onde passou despercebida.
Via-se na indiferença das máscaras atentas dos senhores marechais que eles
não haviam apreendido o sal da resposta, bem sublinhado pela entoação de
Balachov. «Se isso levava água no bico, não demos por tal, o que quer dizer que
graça nenhuma tem», pareciam dizer.
Tão bem apreciada foi tal resposta que Napoleão lhe não prestou qualquer
atenção e se limitou a perguntar a Balachov quais as cidades atravessadas pela
estrada directa para Moscovo. Balachov, sempre de sobreaviso, respondeu que
assim como todos os caminhos levavam a Roma, todos os caminhos levavam a
Moscovo, que, aliás, eram muitas as estradas e que no número delas se contava a
que passava por Poltava, escolhida por Carlos XII. Balachov corou
involuntariamente, satisfeito com resposta tão feliz. Mas ainda não acabara de
pronunciar o nome de Poltava já Caulaincourt falava dos incómodos da estrada de
Petersburgo a Moscovo e das suas recordações da capital.
Depois do jantar foram tomar café para o gabinete de Napoleão, o qual,
quatro dias antes, pertencera ao imperador Alexandre.
Bonaparte sentou-se, mexendo o seu café numa chávena de Sévres, e apontou
a Balachov uma cadeira a seu lado.
Depois do jantar o homem está sempre numa disposição bem conhecida, a
qual, mais persuasiva que qualquer razão lógica, o leva a sentir-se satisfeito
consigo mesmo e disposto a não ver senão afeições à sua roda. O imperador
estava nessa feliz disposição. Imaginava-se rodeado de amigos que o adoravam.
Estava convencido de que o próprio Balachov, depois daquele jantar, também era
seu amigo e admirador. Observou-lhe com um sorriso amável e ligeiramente
trocista:
— Disseram-me que o imperador Alexandre ocupava esta mesma sala, É
curioso, não acha, general? — Não lhe passou pela cabeça que esta observação
não podia agradar ao seu interlocutor, visto ser uma prova da sua superioridade,
dele, Napoleão, sobre Alexandre.
Balachov, como não podia responder, limitou-se a inclinar a cabeça
silenciosamente.
— Sim, há quatro dias, discutiam nesta mesma sala Wintzengerode e Stein —continuou Napoleão, sempre com um sorriso trocista e seguro de si. — Eis o que eu
não posso perceber, que e imperador Alexandre se haja rodeado de todos os meus
inimigos pessoais. É o que eu não posso compreender... Não teria ele pensado que
eu poderia vir a fazer o mesmo? — Formulando a pergunta, a Balachov, sentia-se,
evidentemente, arrastado pela ira que o tomara nessa manhã, recordação bem
presente no seu espírito.
— Pois é bom que ele saiba que o farei — acrescentou, levantando-se e
afastando de si a chávena. — Enxotarei da Alemanha toda a sua parentela, os
Wurtemberg, os Bade, os Weimar.... sim, correrei com eles. Trate de lhes arranjar
refúgio na Rússia!
Balachov abanou a cabeça, dando a entender que desejava retirar-se e que
não ouvia semelhantes considerações senão por lhe ser impossível proceder
doutra maneira. Napoleão não dera por coisa alguma; continuou a tratar Balachov
não como um enviado do seu inimigo, mas como um homem agora absolutamente
dedicado e que devia sentir-se contente com a humilhação infligida ao seu antigo
amo.
— Porque assumiu o imperador Alexandre o comando dos seus exércitos? Que
significa isso? A guerra é o meu mister, o dele é reinar, não comandar as tropas.
Para que assumiu ele uma tal responsabilidade?
Bonaparte tornou a puxar da caixa de rapé, deu alguns passos em silêncio e de
repente abeirou-se de Balachov. Com um ligeiro sorriso, num gesto firme, pronto e
simples, como se executasse um acto não só importante, mas em extremo
lisonjeiro para o general russo, aproximou a mão do rosto daquele homem de
quarenta anos e puxou-lhe ao de leve uma orelha.
Receber um puxão de orelhas do imperador era considerado na corte de França
uma grande honra e uma alta mercê.
— Então, não diz nada, admirador e cortesão do imperador Alexandre? —
pronunciou, ele, como se houvesse qualquer coisa de divertido de na sua presença
ser-se cortesão e admirador de outro homem que não ele, Napoleão. — Os cavalos
para o general estão prontos? — acrescentou, respondendo com um aceno de
cabeça à saudação de Balachov. — Dêem-lhe os meus, têm muito que andar.
A carta que Balachov levou consigo seria a última que Napoleão escreveria a
Alexandre. Todos os pormenores da precedente conversa foram transmitidos ao
imperador russo e a guerra principiou.
[VIII]
Depois da sua conversa em Moscovo com Pedro, o príncipe André dirigiu-se a
Petersburgo para tratar de negócios, dissera ele à família, mas em verdade para
se encontrar com Anatole Kuraguine, encontro que ele considerava indispensável.
Procurou logo informar-se do paradeiro deste, mas Kuraguine já não estava em
Petersburgo, Pedro fizera saber ao cunhado que André o procurava. Anatole
obtivera imediatamente do ministro da Guerra uma comissão e partira a
incorporar-se no exército da Moldávia. Em Petersburgo, o príncipe André
encontrou Kutuzov, seu antigo general, sempre muito bem disposto a seu favor.
Propôs-lhe que fosse com ele para o Moldávia, de cujo exército o velho general
fora nomeado comandante-chefe. André, nomeado adido ao estado-maior do
quartel-general, partiu para a Turquia.
O príncipe considerava inconveniente escrever a Kuraguine desafiando-o para
um duelo. Achava que desafiá-lo sem alegar um pretexto plausível seria, da sua
parte, comprometer a condessa Rostov; por isso procurava encontrá-lo
pessoalmente, o que lhe proporcionaria a oportunidade desejada. Mas também
não encontrou Kuraguine no exército da Turquia; este mal soubera da chegada de
André regressara à Rússia. Naquele país desconhecido e nas suas novas condições
de existência a vida pareceu-lhe mais fácil. Depois da traição da noiva, tanto mais
penosa para ele quanto mais procurava esconder o desgosto que sofrera, o meio
em que fora feliz tornara-se-lhe insuportável e a liberdade e a independência, que
tão caras lhe eram, ainda mais penosas. Não voltara ao estado de espírito que se
apoderara dele pela primeira vez diante do céu de Austerlitz e às ideias que tanto
gostava de discutir com Pedro e as quais lhe haviam enchido a solidão de
Bogutcliarovo e, depois, da Suíça e de Roma. Receava mesmo tornar a evocá-las, a
essas ideias, que lhe abriam horizontes luminosos e infinitos. Agora não se
ocupava de mais nada senão de interesses práticos imediatos, sem relação com os
de outrora, e punha nisso tanto maior ardor quanto mais distantes lhe ficavam as
antigas ideias. Dir-se-ia que a abóbada do céu perdida no infinito que tivera por
cima da cabeça se transformara de súbito numa abóbada baixa, limitada, que oesmagava, e tudo era nítido e claro, sem nada já de misterioso e etcrno.
De todas as ocupações a que podia consagrar-se, o serviço militar era a mais
simples e a mais familiar. Nas suas funções de adido ao estado-maior de Kutuzov
ocupou-se com perseverança e zelo do seu mister, surpreendendo o chefe com o
afã e a pontualidade do seu trabalho. Não topou com Kuraguine na Turquia, julgou
desnecessário ir atrás dele para a Rússia, o que o não impediu de dizer de si para
consigo que, apesar do tempo que passara já, se viesse a encontrar Anatole, não
obstante o desprezo que tinha por ele e as razões que alegava para o julgar
indigno de se bater consigo, consideraria indispensável, no entanto, desafiá-lo,
pela mesma razão que um esfomeado que vê um prato de sopa não pode deixar de
se atirar a ele. E o certo é que o sentimento de que a ofensa que recebera ainda
não fora vingada, que a sua ira ainda não extravasara, continuando entranhada no
fundo do seu coração, lhe envenenava a calma fictícia que criara na Turquia graças
a uma actividade cheia de zelo e preocupações e de certa ambição e vaidade.
Quando, em 1812, chegou a Bucareste, onde, havia dois meses, Kutuzov
passava os dias e as noites em casa de uma amante valáquia, a notícia da guerra
com Napoleão, o príncipe André pediu licença para ser transferido para o exército
do Ocidente. Kutuzov, a quem o zelo de Bolkonski ofuscava, como uma censura
viva à sua indolência, de muito boa vontade lhe deu consentimento, confiando-lhe
uma missão junto de Barclay de Tolly.
Antes de se juntar ao exército, que em Maio estava no acampamento d6
Drissa, André passou por Lissia Gori, que ficava no seu caminho, a três verstas da
estrada real de Smolensk. Naqueles três últimos anos houvera tantas modificações
na sua vida, tantas revoluções nas suas ideias e nos seus sentimentos, vira tantas
coisas nas suas viagens no Ocidente e no Oriente, que, ao chegar a Lissia Gori,
sentiu uma impressão estranha verificando que a vida ali se mantinha imutável
nos seus mais pequenos pormenores. Entrou na alameda e transpôs o pórtico de
pedra da residência como se entrasse num castelo encantado. Sempre o mesmo
alinho, o mesmo asseio, a mesma serenidade em casa: os móveis eram os mesmos,
as mesmas paredes; os ruídos os mesmos; o mesmo cheiro, as mesmas caras
tímidas, embora um pouco envelhecidas. A princesa Maria a mesma, já não muito
nova, feia e medrosa, vivendo continuamente em terrores e transes morais e
assim passando os melhores anos da sua existência sem utilidade nem alegria.
Mademoiselle Bourienne não mudara, apreciando alegremente os mais curtosmomentos, fabricando para si própria as mais belas esperanças, coquette e
satisfeita. «Apenas adquirira mais segurança em si própria», assim pensou André.
O preceptor, Dessalles, que ele trouxera da Suíça, vestia um redingote de talho
eslavo, mastigava o russo com os criados e era sempre o mesmo pedagogo
mediocremente inteligente, mas instruído, honestíssimo e um pouco pedante. O
velho príncipe mudara fisicamente apenas nisto: a um canto da boca notava-se que
perdera um dente; moralmente estava na mesma. Tornara-se apenas mais
irritável e mais desconfiado de tudo neste mundo. Só Nikoluchka crescera,
transformara-se, ganhara cores rosadas, e os seus cabelos eram agora castanhos
encaracolados, rindo sem saber porquê, divertido com tudo. Soerguia o lábio
superior da sua linda boca, tal qual a mãe, a falecida princesinha. Era o único que
não queria saber da regra imutável que parecia reinar naquele castelo encantado.
Mas, embora as aparências fossem as mesmas, as relações íntimas dos habitantes
tinham mudado muito desde que André partira. Havia dois campos opostos
naquela casa, estranhos um ao outro e inimigos, que apenas agora na sua
presença se aproximavam, renunciando provisória— mente aos seus hábitos. A um
desses campos pertencia o velho príncipe, Mademoiselle Bourienne e o arquitecto;
ao outro, Maria. Dessalles, Nikoluchka e todas as criadas e amas.
Durante a sua estada todos comeram juntos; sentia-se, porém, um mal-estar
geral e o príncipe André tinha a sensação de ser um hóspede a favor de quem se
faz uma excepção, e de que a sua presença era um embaraço para toda a gente.
No primeiro dia, à mesa, sentindo esse embaraço, quedou-se silencioso, e o velho
príncipe, que notava o seu ar pouco à vontade, mostrou-se igualmente taciturno e
silencioso, retirando-se assim que a refeição acabou. Quando, pela noite, André o
veio ver, e, para o distrair, se pôs a contar-lhe a campanha do jovem conde
Kamenski, o pai, de repente, principiou a falar da princesa Maria, acusando-a de
ser supersticiosa e de não gostar de Mademoiselle Bourienne, em sua opinião a
única pessoa que lhe era verdadeiramente dedicada.
O velho príncipe assegurou ao filho que se estava doente a culpa era de Maria,
pois o atormentava de propósito e o irritava, estragando o príncipezinho com os
seus excessos de indulgência e as suas tolas histórias. Sabia muito bem que
atormentava inutilmente a filha, que a vida dela, em tais condições, era muito
penosa, mas também sabia que não podia impedir-se a si próprio de a atormentar
e que ela merecia esse tratamento.«Por que razão o André», dizia de si para consigo, «que vê tudo isto, não me
fala da irmã? Naturalmente porque julga que eu sou algum malfeitor ou um velho
doido, que, sem motivos, se afastou da filha para se aliar com a francesa? Então
ele não me compreende. É por isso que preciso de lhe explicar, é preciso que ele
me entenda.» E pôs-se a demonstrar as razões por que não podia tolerar o
carácter absurdo da filha.
— Se o pai me não tivesse pedido — volveu André, sem olhar para o príncipe,
e era a primeira vez em sua vida que se atrevia a censurá-lo —, não lhe teria
falado no caso, mas, desde que o pai pede a minha opinião, vou dizer-lhe
francamente o que penso de tudo isto. Se existe entre o pai e Macha qualquer
mal-entendido ou desacordo, não posso de maneira alguma acusá-la disso. Pois sei
perfeitamente quanto ela lhe quer e quanto o venera. Desde que me pergunta a
minha opinião — continuou André, irritando-se, o que, de resto, nesses últimos
tempos se lhe tornara habitual —, só lhe direi uma coisa: se há qualquer mal-
entendido, a única culpada é a insignificante dessa mulher, indigna de ser amiga
de sua filha.
O velho, no primeiro momento, não cabia em si de surpreendido, os olhos fitos
em André, mostrando, com um sorriso forçado, a falta do dente, coisa a que o filho
não conseguira habituar-se.
— Que amiga é essa, meu caro? Hem! Estás a repetir a lição que aprendeste!
Hem!
— Meu pai, não pretendo ser seu juiz — disse André num tom azedo e duro —,
mas obrigou-me a isso e eu digo e direi sempre que a princesa Maria não tem
culpa, que os culpados... a culpada é essa francesa... é essa francesa...
— Ah! Tu estás a julgar-me!... Estás a julgar-me! — exclamou o velho, em voz
serena, e, assim pareceu a André, com um certo embaraço. Mas, de súbito,
erguendo-se de um salto, gritou: — Fora daqui! Fora daqui! Não voltes a pôr aqui
os pés!...
O príncipe André resolveu abalar imediatamente, mas Maria implorou-lhe que
ficasse mais um dia, Durante todo esse dia não viu o pai, que não saiu dos seus
aposentos nem admitiu ao pé de si mais alguém além de Mademoiselle Bourienne
e de Tikon. Por várias vezes perguntou se André já partira. No dia seguinte, antes
da abalada, o príncipe André foi despedir-se do filho. A criança, saudável e decabelos encaracolados, como sua mãe, sentou-se-lhe nos joelhos. O pai pôs-se a
contar-lhe a história do Barba— Azul, mas, antes de chegar ao fim, calou-se,
pensativo. Não era na gentil criança que tinha nos joelhos que pensava, mas em si
próprio. Procurava em si mesmo, sem nada encontrar, qualquer coisa que lhe
dissesse estar arrependido de ter provocado a ira do pai ou penalizado por se ver
obrigado a deixá-lo zangado com ele pela primeira vez na sua vida. E o mais
importante ainda é que procurava debalde em si mesmo vestígios da sua antiga
ternura pelo filho, tentando despertá-la acariciando-o e sentando-o nos seus
joelhos.
— Anda! Conta-me o fim — dizia o filho.
Sem lhe responder, fê-lo saltar dos seus joelhos e saiu. Logo que deixava as
suas ocupações quotidianas, sobretudo assim que voltava a sentir-se no meio
antigo, em que fora feliz, o tédio da existência apoderava-se dele tão intenso que
procurava fugir o mais depressa que podia das suas recordações, fazendo por
encontrar uma ocupação qualquer.
— Decididamente, vais-te, André? — disse-lhe a irmã.
— Louvado seja Deus que me posso ir embora — respondeu-lhe ele— e só
lamento não poderes fazer outro tanto.
— Porque falas assim? — voltou Maria.— Porque falas assim quando partes
para essa guerra terrível e ele é tão velho! Mademoiselle Bourienne disse-me que
perguntou por ti...
Maria não podia abordar este assunto sem que a emoção lhe fizesse tremer os
lábios e as lágrimas se lhe soltassem dos olhos. O príncipe André afastou-se e
principiou a passear na sala.
— Meu Deus, meu Deus! Quando uma pessoa pensa que seres desprezíveis
podem ser a causa da infelicidade dos outros! — exclamou, com uma raiva que
assustou a irmã.
Compreendera que os seres de quem ele falava eram não só Mademoiselle
Bourienne, que a fizera infeliz a ela, mas também o homem que o fizera infeliz a
ele.
— André, só te peço uma coisa, suplico-te — disse-lhe ela, travando-lhe do
braço e fitando-o com uns olhos que cintilavam através das lágrimas.— Vai,
compreendo-te — acrescentou, baixando os olhos.— Mas não penses que são os
homens a causa das nossas dores. Os homens não são mais do que os Seusinstrumentos. — O olhar de Maria passou por cima da cabeça de André, como se
ela procurasse, confiante, com os olhos, uma imagem familiar no seu lugar
habitual.— As dores são-nos enviadas por Ele e não pelos homens. Os homens são
instrumentos, não são culpados. Se estás convencido de que alguém andou mal
contigo, esquece e perdoa. Nós não temos o direito de castigar. Um dia
compreenderás a felicidade de perdoar.
— Se eu fosse mulher, assim faria. Perdoar é uma virtude de mulher. Mas o
homem não deve nem pode esquecer e perdoar. — Embora até então não tivesse
pensado em Kuraguine, toda a sua cólera insatisfeita lhe afluiu subitamente ao
coração.
«Se Maria me pede tanto que perdoe é porque há muito que eu o devia ter
castigado», disse de si para consigo. E, sem responder à irmã, pensou, com uma
alegria raivosa, no momento em que encontraria Kuraguine, que sabia no exército.
A princesa Maria ainda suplicou ao irmão que ficasse mais um dia; disse-lhe
saber muito bem que o pai sofreria caso ele partisse sem se reconciliarem. O
príncipe André respondeu-lhe que podia muito em breve estar de volta do exército
e que não deixaria de escrever ao pai, mas que naquela altura quanto mais tempo
ali estivesse mais o seu desentendimento se acentuaria.
— Adeus, André. Recorde-se de que as desgraças provêm de Deus e que os
homens nunca são culpados. — Tais foram as últimas palavras que a irmã lhe disse
no momento da despedida.
«Assim deve ser!», pensava o príncipe André ao deixar a alameda de Lissia
Gori. «Ela, pobre e inocente criatura, aqui vai ficar entregue a este velho meio
doido. O velho sabe que é culpado, mas não pode modificar-se. O meu pequeno
cresce e sorri à vida, a vida, onde, como todos os outros, virá a enganar ou ser
enganado. Eu vou para a guerra, porquê? Nem eu próprio o sei, e só desejo
encontrar esse homem que desprezo para lhe dar uma oportunidade de me matar
e de se rir de mim!» Os elementos de que a sua existência se compunha não
deixavam de seios mesmos, mas antes formavam um conjunto uno e agora iam por
água abaixo,
E uma série de visões insensatas e incoerentes se lhe foi representando no
espírito.
[IX]
O príncipe André chegou em fins de Junho ao quartel-general. As tropas do
primeiro exército, sob o comando do imperador, estavam concentradas no campo
fortificado de Drissa, as do segundo recuavam, esforçando-se por juntar-se ao
primeiro exército, de que as separavam, dizia-se, forças francesas muito
consideráveis. Toda a gente se mostrava descontente com a marcha geral das
operações, mas a ninguém passava pela cabeça que se pudesse vir a dar uma
invasão das províncias russas, ninguém mesmo supunha que a guerra pudesse
ultrapassar as províncias polacas de oeste.
O príncipe André encontrou Barclay de Tolly, junto do qual fora nomeado
adido, estabelecido nas margens do Drissa. Como não havia qualquer casal ou
povoado nas imediações do acampamento, grande número de generais ou
dignitários da corte que estavam no exército tinha-se espalhado por uma área de
dez verstas em volta, nas melhores casas das aldeias de um lado e outro do rio.
Barclay de Tolly alojara-se a quatro verstas do imperador, Acolheu Bolkonski seca
e friamente e disse-lhe, com o seu sotaque estrangeiro, que informaria o czar para
que se lhe desse algum destino e que entretanto ficaria pertencendo ao seu
estado-maior, Anatole Kuraguine, que André supunha no exército, também ali se
não encontrava. Estava em Petersburgo, e esta notícia não lhe foi de todo
desagradável.
Todo o seu interesse se concentrava agora naquela guerra gigantesca e sentia-
se feliz por se ver livre por algum tempo do nervosismo que lhe, causava a
lembrança de Kuraguine. Durante os primeiros dias, em que ninguém lhe
perguntou fosse o que fosse, deu-se a percorrer todo o campo fortificado, e, graças
aos seus próprios conhecimentos e às conversas que teve com pessoas
competentes, tratou de formar uma ideia exacto, da situação militar. Um
problema, porém, não foi capaz de resolver: o da utilidade daquela posição, A sua
experiência da guerra ensinara-lhe que os planos mais cuidadosamente elaborados
pouco valor têm, coisa que pudera verificar por si próprio em Austerlitz, e que
tudo depende da maneira como se riposta aos ataques inesperados e imprevisíveis
do inimigo e da forma como são conduzidas as operações, bem como da capacidade
daqueles que as dirigem. Na intenção de obter pormenores sobre este últimoponto, procurou, mercê da situação que ocupava e dos conhecimentos que tinha,
penetrar o carácter do comando e das pessoas e dos grupos que nele tomavam
parte, e acabou por obter do conjunto o quadro seguinte:
Quando o imperador se encontrava ainda em Vilna, o exército achava-se
dividido em três partes: o primeiro exército estava sob o comando de Barclay de
Tolly o segundo, sob o de Bagration; o terceiro, sob o de Termassov. O imperador
encontrava-se junto do primeiro corpo do exército, sem, no entanto, desempenhar
funções de comandante-chefe. Na ordem do dia dizia-se apenas que ele estava
presente, não que o comandava. Além disso, o imperador, pessoalmente, não
tinha junto de si um estado-maior de comandante-chefe, mas o estado-maior do
quartel-general imperial.
Sob as suas ordens tinha o chefe do estado-maior imperial, o general quartel-
mestre príncipe Volkonski, generais, ajudantes-de-campo, diplomatas, uma
turbamulta de estrangeiros, mas a verdade é que não existia estado-maior do
exército. Também estavam com o czar, sem missão especial: Araktcheiev, o antigo
ministro da Guerra, o conde Bennigsen, o general mais antigo da sua patente, o
czarevitch, grão-duque Constantino Pavlovitch, o conde Rumiantsov, chanceler.
Stein, antigo ministro prussiano. Armfeld, general sueco, Pfuhl, principal
organizador do plano de campanha, Paulucci, ajudante-de-campo general e
foragido da Sardenha, Woltzogen e muitos outros. Estas personalidades, embora
não desempenhassem funções oficiais, exerciam pessoalmente grande influência, e
muitas vezes um comandante de corpo de exército e até mesmo o comandante-
chefe não sabiam em que qualidade Bennigsen ou o grão-duque, Araktcheiev ou o
príncipe Volkonski lhes perguntavam isto ou aquilo ou lhes davam este ou aquele
conselho, ignorando se tais observações provinham do seu comandante ou da
parte do imperador, e se era mister ou não executá-las. Tudo isto, aliás, não
passava de um cenário. No fundo ninguém se enganava sobre o que queria dizer a
presença junto do exército do imperador e de todas essas personagens, as quais,
necessariamente, na intimidade, não passavam, de cortesãos.
O imperador não assumira o título de comandante-chefe, mas na realidade
tinha nas mãos todos os corpos do exército. As pessoas que o rodeavam eram seus
colaboradores. Araktcheiev era o fiel mantenedor da ordem e o guarda do corpo
do soberano; Bennigsen, grande proprietário da região de Vilna, parecia limitar-se
a fazer as honras do país, quando na realidade era um bom general, útil noconselho e óptimo para conservar de reserva e substituir Barclay. O grão-duque,
esse apenas ali estava porque isso lhe dava prazer. O antigo ministro Stein
encontrava-se presente na qualidade de conselheiro e por Alexandre ter em alta
estima as suas qualidades pessoais. Armfeld era o inimigo implacável de Napoleão
e um general muito seguro de si próprio, coisa que sempre impressionava o
imperador. Paulucci era ousado e enérgico por palavras. Os generais ajudantes-de-
campo estavam onde estivesse o imperador, e finalmente, ponto principal, Pfuhl
achava-se presente por ser o autor do plano de campanha contra Napoleão,
aprovado por Alexandre, que o considerava perfeito no seu conjunto, sendo ele
quem na realidade dirigia todas as operações, Ao lado de Pfuhl, Woltzogen
encarregava-se de dar uma forma prática às ideias deste teórico de gabinete,
homem violento, cheio de uma tal confiança em si próprio que tinha um soberano
desprezo por tudo e todos.
Além destas personagens, russas e estrangeiras, principalmente estrangeiras
— e estas, com a ousadia característica de todo o indivíduo que actua num meio
que não é o seu próprio, todos os dias propunham novos planos —, ainda havia
muitas mais, homens em posições subalternas, que se encontravam ali por os seus
superiores lá estarem também.
Entre todas as ideias e opiniões que ganhavam corpo no meio daquela massa
de gente inquieta, vaidosa e ávida de honrarias não tardou que André pudesse
distinguir correntes bem nítidas, partidos vários e diversas tendências.
O primeiro partido era formado por Pfuhl e os seus apaniguados, teóricos
convencidos de que existe uma ciência da guerra fiel a leis imutáveis, como as do
movimento oblíquo, do envolvimento do inimigo, etc. Pfuh1 e os seus sequazes
preconizavam a retirada para o interior do país, em virtude de leis estritas,
fixadas pela pretensa teoria da guerra, e consideravam qualquer infracção a esta
teoria como uma prova de barbárie, de ignorância ou de má-fé. A este partido
pertenciam os príncipes alemães, Woltzogen, Wintzengerode, e outros, numa
palavra, sobretudo os alemães.
O segundo partido era diametralmente oposto. Como sempre acontece, pecava
por excesso contrário. As pessoas que dele faziam parte reclamavam a ofensiva na
Polónia, a partir de Vilna, e opunham-se a todos os planos traçados de antemão.
Ao mesmo tempo que defendiam a ousadia na acção encarnavam o espírito
nacional. Por isso eram ainda mais intransigentes nas discussões. Eram os russos:Bagration, Ermolov, que então principiava a elevar-se, e outros ainda. Contava-se
então uma anedota de Ermolov. Dizia-se que ele pedira ao imperador uma única
mercê: ser promovido a alemão. Os membros deste partido repetiam, lembrando-
se de Suvorov, ser inútil conceber lindas teorias e espetar alfinetes num mapa,
dizendo que o que era preciso era lutar, vencer o inimigo, não o deixar penetrar
na Rússia e não dar tempo a que as tropas se desmoralizassem.
O terceiro partido, aquele que inspirava mais confiança ao imperador, era
formado por cortesãos partidários de combinações entre as duas tendências
extremas. As pessoas deste partido, pela sua maior parte civis, pensavam e diziam
o que geralmente dizem os que não têm convicções, embora desejem mostrar-se
convencidos de alguma coisa. Eram de opinião de que a guerra, sobretudo com um
génio como Bonaparte (de novo o chamavam assim), exigia combinações profundas
e conhecimentos científicos e que de tal ponto de vista Pfuhl era um talento. Nem
por isso, no entanto, devia deixar de reconhecer-se que os teóricos são por vezes
exclusivistas, Daí que se não depositasse neles uma confiança absoluta. Deviam
ouvir-se também os adversários de Pfuhl e o que diziam as pessoas práticas,
experimentadas na arte da guerra, preferindo um meio-termo.
Teimavam na necessidade de se manter a posição do Drissa, de acordo com o
plano de Pfuhl, e de modificar o movimento dos demais corpos de exército. Embora
desta sorte não se alcançasse nem uma nem outra solução, as pessoas deste
partido pensavam ser aquele o caminho mais acertado.
A quarta tendência tinha por representante mais saliente o grão-duque
herdeiro, que não podia esquecer o desastre de Austerlitz, em que ele se
apresentara como numa parada militar, à frente da Guarda, de capacete e plumas,
convencido de que num abrir e fechar de olhos esmagaria os Franceses, tendo-se
surpreendido de repente nas primeiras linhas, e só com grande dificuldade
conseguindo escapar no meio da debandada geral. As pessoas deste partido
tinham o mérito e ao mesmo tempo o de— feito de serem sinceras. Temiam
Napoleão, reconheciam ser forte e elas fracas e diziam-no às claras. Iam repetindo:
«De tudo isto não nos virá senão vergonha, desgraça e a derrota! Já
abandonámos Vilna e Vitehsk, Também acabaremos por abandonar Drissa. A única
coisa razoável a fazer é assinar a paz, e o mais depressa possível, se não quisermos
ser expulsos de Petersburgo!»
Esta opinião, muito espalhada nas altas esferas, obtinha eco também emPetersburgo e junto do próprio chanceler Rumiantzov, que outrossim sustentava o
ponto de vista da paz por razões de Estado.
O quinto partido agrupava-se em volta de Barclay de Tolly, não tanto pelo seu
valor pessoal como pelo facto de ser ministro da Guerra e comandante— chefe. Os
membros deste partido diziam: «Seja como for (era assim que principiavam
sempre), é um homem honesto e activo e não temos melhor. Dêem-se-lhe poderes
absolutos, pois a guerra não pode ter êxito sem unidade de comando, e ele se
encarregará de demonstrar do que é capaz, como aconteceu na Finlândia. Se o
nosso exército é organizado e forte e já pôde recuar até ao Drissa sem nenhuma
derrota, a Barclay, e só a Barclay, o devemos. Se agora o substituíssemos por
Bennigsen tudo estaria perdido. Bennigsen já mostrou a sua incapacidade em
1807.»
O sexto grupo, de que faziam parte os partidários de Bennigsen, dizia, pelo
contrário, não haver homem mais activo e experimentado e que fizessem o que
fizessem acabariam sempre por recorrer a ele.
E os membros deste grupo demonstravam ser a retirada russa até ao Drissa o
mais vergonhoso dos desastres e uma cadeia ininterrupta de erros. «Quanto mais
erros cometerem melhor! É a única maneira de compreenderem que as coisas não
podem continuar assim», diziam. «Não precisamos de um Barclay qualquer, mas de
um homem como Bennigsen, que já se revelou em 1807, e a quem o próprio
Napoleão fez justiça. E o único homem a quem todos reconheciam poderes é
Bennigsen.»
As pessoas que constituíam a sétima categoria pertenciam a essa espécie de
criaturas que sempre se encontram na roda dos jovens soberanos e que eram
sobretudo numerosos junto do imperador Alexandre: generais e ajudantes-de-
campo apaixonadamente devotados mais ao homem que ao soberano, que o
adoravam sincera e desinteressadamente, como acontecera a Rostov em 1805, e
que atribuíam ao imperador não só todas as virtudes, mas também todas as
qualidades humanas. Essa gente, ao mesmo tempo que exaltava a modéstia do seu
imperador, que se escusara a chamar a si o comando das tropas, censurava tão
excessiva modéstia, declarando só desejarem uma coisa: que o seu soberano bem-
amado vencesse essa desconfiança exagerada, declarasse francamente que
tornava o comando do exército, organizasse em torno de si um estado-maior de
comandante-chefe e, depois de se ter aconselhado junto dos técnicos, práticos maisexperimentados, conduzisse ele próprio no campo de batalha as suas tropas, a
quem a sua presença, só por si, encheria de um entusiasmo desbordante.
O oitavo grupo, o mais importante de todos — em relação ao anterior na
proporção de noventa e nove para um — era constituído por pessoas que não
queriam nem a paz, nem a guerra, nem a ofensiva, nem campos entrincheirados
em Drissa ou em qualquer outra parte, nem Barclay, nem o imperador, nem Pfuhl,
nem Bennigsen: não procuravam senão uma coisa, para eles mais substancial que
tudo o mais: o maior número possível de vantagens pessoais e de diversões.
Nestas águas turvas de intrigas e de enredos que formigavam no quartel-general
do imperador era possível atingir situações que noutra altura se não poderiam
conseguir. Um, para não perder uma situação vantajosa, era hoje partidário de
Pfuhl, amanhã do adversário deste, e depois de amanhã afirmava não ter opinião
sobre determinado ponto, e isto apenas para evitar assumir responsabilidades e
agradar ao imperador.
Outro, desejoso de se colocar bem, chamava sobre si a atenção do soberano
fazendo muito barulho a propósito de unia, observação que o imperador fizera na
véspera, discutia, gritava no conselho, batendo no peito, desafiava para duelo
aqueles que não eram da sua opinião e tudo isto para demonstrar que estava
pronto a sacrificar-se pelo interesse geral. Um terceiro, entre dois conselhos, e na
ausência dos seus inimigos, solicitava muito simplesmente auxílio pecuniário por
motivo dos seus fiéis serviços, convencido de naquele momento não haver tempo
para lho recusarem. Um quarto procurava encontrar-se sempre, como que por
acaso, esmagado de trabalho ante os olhos do imperador. Um quinto, para
alcançar um objectivo ardentemente ambicionado — sentar-se à mesa imperial —,
demonstrava encarniçadamente a justeza ou a falsidade de uma opinião
recentemente adoptada e para tal servia-se de argumentos mais ou menos sólidos
e justos,
Toda esta gente não pensava noutra coisa senão em caçar dinheiro, cruzes,
categorias, e nessa caçada não seguia outra pista que não fosse o penacho da
mercê imperial, e assim que verificava que esse penacho se voltava para
determinado ponto, todo esse enxame de zangãos batia as asas na mesma
direcção, de tal sorte que se tornava por assim dizer impossível ao imperador fazê-
lo girar noutro sentido. Em presença da incerteza da situação, da gravidade de um
perigo iminente, que dava a todas as intrigas um carácter muito alarmante, nomeio daquele remoinho de intrigas, de ambições e conflitos entre pontos de vista
e tendências diferentes, na confusão daquela gente de nacionalidades várias, este
oitavo grupo, o mais numeroso, exclusivamente preocupado com os seus interesses
pessoais, contribuía de maneira singular para tornar a marcha geral mais difícil e
complicada. Fosse qual fosse a questão que se levantasse, este enxame de
zangãos, sem ter ainda resolvido um problema, tratava de voar para outro,
ensurdecendo com os seus zumbidos e abafando cada vez mais as vozes sinceras
que tomavam parte na discussão.
Na altura da chegada do príncipe André ao exército acabava de se constituir
um novo partido, cuja voz apenas principiava a ouvir-se, Era o partido das pessoas
idosas, sensatas, com experiência de assuntos políticos e que sabiam, sem partilhar
nenhuma das opiniões contraditórias enunciadas, examinar objectivamente tudo
quanto se passava no quartel-general, procurando maneira de acabar com a
incerteza, a indecisão, a confusão e a fraqueza.
Esta gente dizia e pensava que o mal provinha antes de mais nada da presença
do imperador e da sua corte militar junto do exército, que se haviam
transplantado para o campo de batalha os hábitos de versatilidade, de hesitação e
de indiferentismo, talvez próprios da corte mas fatais no exército, e que o papel de
um soberano era o de reinar e não o de comandar tropas, e que a, única saída
para a situação consistia na partida do imperador e da sua corte. Bastava a sua
presença para paralisar cinquenta mil soldados, indispensáveis para assegurar a
sua guarda pessoal, e que o mais medíocre dos generais— chefes, sentindo-se
independente, valia mais que o melhor deles enleado pela presença e pela
vontade soberana do imperador.
Quando o príncipe André vivia em Drissa, sem ocupar-se em quaisquer funções
definidas, o secretário de Estado, Chichkov, um dos membros mais influentes deste
partido, escreveu uma carta ao imperador, que Balachov e Araktcheiev
concordaram em assinar também.
Aproveitando a autorização que lhe fora concedida de apreciar a marcha geral
das operações, propunha ao soberano, em termos respeitosos e salientando a
necessidade de acordar o valor bélico do povo da capital, que abandonasse o
exército.
Esta necessidade de animar o moral do povo, de chamá-lo à defesa da pátria,
acção que mais tarde se tornou eficaz com a presença pessoal de Alexandre emMoscovo e que veio a ser uma das razões principais da vitória russa, foi exposta ao
imperador e por ele aprovada, ficando decidida a sua partida.
[X]
Ainda esta carta não fora entregue ao imperador quando um dia Barclay,
durante uma das refeições, disse a Bolkonski que Sua Majestade desejava vê-lo
para o interrogar sobre a Turquia e que devia apresentar-se a Bennigsen nesse
mesmo dia às seis horas.
Nessa mesma altura chegou ao quartel-general do imperador a notícia de um
novo avanço de Napoleão que podia tornar-se perigoso para o exército, notícia
esta que depois se reconheceu ser inexacta. Pela manhã, o coronel Michaux
percorrera com o imperador as defesas de Drissa e provara que aquele campo
entrincheirado construído Por Pfuhl, e que gozava da fama de obra-prima de
técnica, destinado a vir a ser a ruína de Napoleão, não só não passava de uma
utopia mas poderia vir a ser a perda do exército russo.
O príncipe André apresentou-se no alojamento de Bennigsen, que estava
instalado numa casa senhorial nas margens do rio. Não encontrou nem Bennigsen
nem o imperador, mas Tchernichov, o ajudante-de-campo do czar, recebeu
Bolkonski e explicou-lhe que o soberano fora, na companhia do general Bennigsen
e do marquês Paulucci, inspeccionar, pela segunda vez nesse dia, as fortificações do
campo, sobre cujo valor defensivo principiavam a correr sérias dúvidas.
Tchernichov lia um romance francês à janela da primeira sala. Esta
dependência servira provavelmente outrora de salão; ainda lá se via um
harmónio, sobre o qual se empilhavam tapetes. A um canto estava a cama de
campanha do ajudante-de-campo de Bennigsen. O ajudante-de-campo estava
presente. Provavelmente cansado por algum divertimento ou por muito ter
trabalhado, dormitava na cama de campanha, Duas portas abriam Para esta
dependência: uma, em frente, dava directamente para o antigo salão, a outra, à
direita, para um gabinete. Através da primeira ouvia-se falar alemão e de longe
em longe francês. No antigo salão, por desejo do Imperador, reunira-se não um
conselho de guerra, pois o czar gostava das designações vagas, mas um grupo depessoas cuja opinião queria conhecer rias circunstâncias actuais. Não era um
conselho de guerra, mas uma espécie de reunião de personalidades selectas para
esclarecer certos problemas para interesse próprio do imperador. Tinham sido
convocados: o general sueco Armfeld, o ajudante-de-campo Woltzogen,
Wintzengerode, a quem Napoleão chamava o súbdito francês foragido, Michaux,
Toll, o conde Stein, que não era militar, e finalmente Pfuhl, que, como André veio
a perceber, era a trave mestra do caso de que se tratava. André teve ocasião de o
examinar muito bem, pois Pfuhl chegou pouco depois dele e passou pelo salão,
detendo-se um momento a falar com Tchernichov.
A primeira vista, Pfuhl, com o seu uniforme de general russo mal feito, e que
lhe ficava tão mal que parecia disfarçado, deu-lhe a impressão de alguém muito
seu conhecido, embora nunca o tivesse visto antes. Parecia-se muito vagamente
com os Weirother, os Mack, os Schmidt, com tantos outros generais teóricos que
ele tivera oportunidade de ver em 1805, embora fosse mais típico que todos os
demais. Nunca vira um alemão que reunisse a tal ponto os traços característicos
de todos os alemães.
Pfuhl era de pequena estatura, mas de sólida compleição, bacia larga e
omoplatas ossudas. Tinha a cara sulcada de rugas f, os olhos profundamente
enterrados nas órbitas.
Devia ter passado uma escova pelos cabelos, à frente e nas têmporas, mas
atrás mechas soltas pendiam, ridiculamente. Entrou lançando à sua roda olhares
inquietos e furiosos, como se tudo receasse na vasta sala em que penetrava.
Segurando na espada desajeitadamente dirigiu-se a Tchernichov, perguntando-lhe
em alemão onde estava o imperador. Era evidente que desejava atravessar a sala
à pressa e desembaraçar-se das saudações e dos cumprimentos habituais para se
instalar diante de um mapa, o seu elemento natural. Fez com a cabeça repetidos e
breves acenos, enquanto ouvia Tchernichov, e teve um sorriso irónico quando este
lhe disse que o imperador examinara o entrincheiramento que ele, Pfuhl,
construíra segundo as suas teorias. Numa voz rude de baixo, como é própria dos
alemães muito seguros de si, resmungou para si mesmo: «Imbecil... está tudo
estragado... Daqui não sai coisa que preste.» (Em alemão no texto original. (N dos
T.) O príncipe André, que não conseguia perceber distintamente o que ele dizia,
quis afastar-se, mas Tchernichov apresentou-o a Pfuhl, dizendo que ele acabava de
chegar da Turquia, onde a guerra findara vitoriosa, Pfuhl mal o olhou: disse rindo:«Devia ter sido uma rica guerra táctica.» (Em alemão no texto original. (N dos T.) E
com um riso desdenhoso penetrou na sala onde se ouviam vozes.
Pfuhl, irritável por natureza e propenso à ironia, estava evidentemente furioso
por terem ousado na sua ausência examinar o seu campo entrincheirado,
atrevendo-se a criticá-lo. Mercê daquela rápida entrevista com Pfuhl, e graças ao
que vira em Austerlitz, não foi difícil ao príncipe André ficar com uma ideia muito
nítida de tal personagem. Pfuhl era criatura de uma só peça e de uma teimosia tal
que seria capaz de afrontar o martírio em defesa das suas ideias; era como só os
Alemães sabem ser, pois só eles são capazes de uma cega confiança nas noções
abstractas, na ciência, isto é, no conhecimento pressuposto da verdade absoluta.
O Francês é um homem seguro de si, persuadido de que, pessoalmente, quer
pelo espírito, quer pelo físico, exerce uma irresistível sedução tanto nos homens
como nas mulheres. O Inglês também, goza da mesma segurança por estar
persuadido de que é cidadão do Estado mais bem organizado do mundo, e daí
saber sempre, na sua qualidade de inglês, que o que deve fazer e faz é
indiscutivelmente perfeito. Pelo seu lado, o Italiano tem confiança em si próprio
porque facilmente se emociona, esquecendo-se ainda mais depressa de si e dos
outros. Ao Russo também não falta confiança, visto que tudo ignora e nada quer
saber e estar convencido de que ninguém pode saber seja o que for. No que diz
respeito ao Alemão, porém, esse é o pior de todos, mais obstinado que ninguém e
mais desagradável para todo o mundo, convencido de que conhece a verdade, ou
seja a ciência que ele próprio fabrica, para ele, a verdade absoluta.
Evidentemente Pfuhl era assim mesmo, Tinha na sua mão uma ciência: isto é, a
teoria do movimento oblíquo, colhida na história das guerras de Frederico, o
Grande, e vai daí tudo quanto observava na história das guerras recentes a seus
olhos não passava de insensatez, barbaria e um tremendo caos. Tailtos eram os
erros nelas cometidos que a bem dizer nem sequer mereciam o nome de guerras.
Como não acertavam com a sua teoria, não podiam mesmo ser objecto de estudo,
Em 1806, Pfuhl fora um dos autores do plano que conduzira a leria e a
Auerstaedt, mas o resultado dessa campanha não lhe Provara a falsidade da sua
teoria, Pelo contrário, em sua opinião haviam sido precisamente os desvios dela as
únicas causas do seu malogro e por isso dissera com ironia, muito contente de si
próprio, coisa que lhe era peculiar: «Imbecil... está tudo estragado... vai tudo por
água abaixo... » (Em alemão no texto original. (N dos T.)Pfuhl pertencia à família desses teóricos que de tanto amarem as teorias em si
acabam por esquecer-lhes os fins, ou seja a sua aplicação prática. Por amor da
própria teoria odiava tudo quanto fosse prático, recusando sistematicamente
prestar atenção a esse aspecto. Até o próprio fracasso lhe dava satisfação, uma
vez que o insucesso provocado pela violação da teoria na sua aplicação prática só
servia para lhe provar a ele a justeza da teoria que professava.
As poucas palavras que trocara com o príncipe André e Tchernichov sobre a
guerra em curso foram pronunciadas no tom de quem sabe de antemão que tudo
correrá mal e nada mais pode fazer senão lamentar que assim seja. O tufo de
cabelos que lhe fustigava a nuca e as têmporas penteadas a preceito estavam a
dizer isso mesmo com particular eloquência. Entrou na sala contígua e
imediatamente se principiou a ouvir a sua voz rabugenta de baixo.
[XI]
Ainda o príncipe André não tivera tempo de ver desaparecer a figura de Pfuhl
quando entrou, apressadamente, o conde de Bennigsen. Cumprimentando— o com
um aceno de cabeça, penetrou no gabinete depois de ter dado ordens ao ajudante-
de-campo. Como o imperador vinha logo atrás dele, tinha pressa de tomar
algumas disposições antes de o receber. Tchernichov e André vieram até à
escadaria da entrada. Com ar fatigado, o imperador desmontava. O marquês
Paulucci dirigiu-lhe a palavra. O czar, inclinando a cabeça para a esquerda, ouvia,
descontente, o que Paulucci lhe dizia, e este exprimia-se com uma violência
desusada. O imperador, que evidentemente queria pôr ponto final naquele
discurso, principiou a andar, mas o italiano, muito afogueado pela exaltação de
que se achava possuído, esquecendo as conveniências, foi-lhe no encalço, falando
sempre.
— Quanto aquele que aconselhou este campo, este campo de Drissa — dizia
Paulucci, enquanto o imperador, subindo os degraus da escada, fixava o príncipe
André, que, de momento, parecia não conhecer. — Quanto aquele, Sire — teimava
ele num ímpeto de quem não pode dominar-se —, que aconselha o campo de
Drissa, não vejo outra alternativa senão a casa amarela (Hospital de alienados,geralmente pintado de amarelo (N, dos T.) ou a forca.
Sem esperar pela conclusão do discurso e como se não tivesse ouvido o que
dizia o italiano, o imperador, que acabava de reconhecer Bolkonski, dirigiu-se-lhe,
muito cortês:
— Gostei muito de te ver: entra para a sala em que eles estão reunidos e
espera lá por mim.
O czar penetrou no gabinete, onde o seguiram o príncipe Piotre Mikailovitch
Volkonski e o barão Stein, e a porta fechou-se.
O príncipe André, servindo-se da autorização do imperador, entrou com
Paulucci, a quem conhecera na Turquia, no salão onde estava reunido o conselho.
O príncipe Piotre Mikailovitch Volkonski desempenhava então as funções de
chefe do estado-maior do imperador. Veio do gabinete com uns mapas que
desdobrou em cima da mesa do salão. Depois pôs à assembleia as questões acerca
das quais desejava conhecer a opinião dos presentes. Recebera-se durante a noite
a notícia — que depois veio a saber-se, aliás, ser falsa —, de que os Franceses se
propunham contornar o campo de Drissa.
O primeiro a usar da palavra foi o general Armfeld. Inesperadamente, para
enfrentar as dificuldades que se levantavam, propôs que se ocupasse uma posição
completamente nova e que nada justificava (salvo o desejo que tinha de fazer ver
que também podia ter uma opinião) a retirada das estradas de Petersburgo e
Moscovo, posição essa na qual, segundo ele, o exército devia concentrar-se para ai
aguardar o inimigo. Via-se perfeitamente que este plano de há muito estava
elaborado pelo seu autor, o qual, se o expunha naquele momento, era menos para
responder às questões formuladas, a que, aliás, nenhuma resposta dava, que para
aproveitar a ocasião de o tornar conhecido, Era uma dessas numerosas propostas,
nem melhor nem pior que qualquer outra aos olhos de quem quer que fosse sem a
menor ideia do que aquela guerra viria a ser. Houve quem a combatesse e quem a
defendesse. O moço general Toll, com mais ardor que nenhum outro, criticou esse
plano, e, extraindo da algibeira um manuscrito, pediu licença para proceder à sua
leitura. Nessa exposição, amplíssima, propunha um plano de campanha
inteiramente oposto ao de Armfeld e de Pfuhl. Para o refutar, Paulucci aconselhou
a ofensiva e o ataque, única solução, em seu parecer, para arrancá-los a todos da
incerteza e da ratoeira, nome que dava ao campo de Drissa, onde se encontravam.
Durante a discussão, Pfuhl e o seu intérprete Woltzogen — era obrigado a fazerpassar através dele todas as suas comunicações com a corte mantinham-se
calados. Pfuh1 limitava-se a fungar desdenhosamente e a voltar as costas,
mostrando que nunca desceria a refutar as tolices que ouvia. Quando o príncipe
Volkonski, que presidia ao debate, lhe pediu que expusesse a sua opinião, limitou-
se a dizer:
— Para quê? O general Armfeld propôs-lhe uma posição magnífica com as
retaguardas descobertas. Podem escolher, igualmente, ou o ataque desse senhor
italiano, que também é óptimo, ou então a retirada, que é melhor ainda (Em
alemão no texto original. (N, dos T,). Para que pedem a minha opinião? Os
senhores sabem tudo melhor do que eu.
Quando Volkonski franziu o sobrolho, dizendo pedir-lhe a sua opinião em nome
do imperador, ele levantou-se, exaltando-se de repente, e prosseguiu:
— Estragaram tudo, complicaram tudo: toda a gente queria saber mais do que
eu e agora recorrem a mim. Como reparar o que está mal? Nada há a reparar. O
que é preciso é aplicar exactamente os princípios que eu estabeleci — afirmou,
batendo com o dedo ossudo em cima da mesa. — Onde está a dificuldade da
situação? Tolices! Kinderspiel! (Brincadeira de crianças. (N, dos T)
Aproximou-se da mesa e pôs-se a falar muito depressa, enquanto ia batendo no
mapa com a ponta do dedo seco, demonstrando que nenhum acontecimento
imprevisto poderia modificar a eficácia do campo de Drissa, que tudo fora previsto
e que se de facto o inimigo tentasse um movimento de flanco acabaria
inevitavelmente por ser aniquilado.
Paulucci, que não sabia alemão, interrogou-o em francês. Woltzogen acorreu
em auxílio do seu chefe, que falava mal o francês, e traduziu as suas explicações,
seguindo-o com muita dificuldade, pois Pfuhl demonstrava, cada vez mais rápido,
que, tudo, tudo, fora previsto no seu plano, não só o que acontecera, mas também
o que viria a acontecer, e que se presentemente algumas dificuldades se
levantavam o mal advinha de o não terem executado tal qual. E continuava a
fungar ironicamente, prosseguindo na sua demonstração. Por fim deixou de
argumentar pela mesma razão que um matemático desiste de apresentar provas
de um problema demonstrado, Woltzogen substituiu-o, e continuou a expor, em
francês, as ideias de Pfuhl, dizendo de vez em quando: «Não é verdade,
Excelência?» (Em alemão no texto original. (N, dos T) Pfuhl, como um soldado que
na excitação da batalha se põe a disparar contra os seus camaradas, gritava,furioso, a Woltzogen:
— Pois claro, pois claro, para quê tantas explicações? Tanto Paulucci como
Michaux refutavam Woltzogen, » mesmo tempo, em francês. Armfeld dirigia-se a
Pfuhl em alemão. Toll explicava em russo a Volkonski o que todos eles diziam. O
príncipe André ouvia e observava em silêncio.
De entre todas aquelas personalidades, a que lhe despertava maior simpatia
era Pfuhl, esse homem irascível, decidido e doidamente seguro de si próprio. De
todos quantos ali estavam era aquele o único que nada queria para ele, a ninguém
tinha inimizade. Apenas pretendia uma coisa: pôr em execução um plano assente
numa teoria que lhe custara anos de trabalho. Evidentemente que era ridículo e
desagradável com a sua permanente ironia, mas apesar de tudo inspirava
respeito, graças â absoluta devoção pelas suas ideias. Aliás, em todos os discursos
pronunciados, à excepção de Pfuhl, havia um traço comum, coisa que se não
verificava nos do conselho de guerra de 1805: sentia-se neles uma espécie de
terror pânico, conquanto dissimulado, perante o génio de Napoleão, e esse pânico
transparecia nos argumentos mais insignificantes. Estavam convencidos de que
aquele homem era capaz de tudo, esperavam vê-lo aparecer em toda a parte ao
mesmo tempo e o seu temido nome servia a cada um para dar um golpe de morte
na posição do adversário. Só Pfuhl se atrevia a considerar bárbaro Napoleão, pela
mesma razão que considerava bárbaro qualquer que se opusesse às suas teorias,
Além do respeito que Pfuhl lhe inspirava, o príncipe André sentia por ele uma
espécie de piedade. Pelo tom que tomavam os cortesãos ao dirigir-se-lhe, pelo que
Paulucci se permitira dizer ao imperador, e sobretudo pelo amargor e pela
violência de que as suas próprias palavras vinham repassadas, era evidente todos
estarem certos, e ele mesmo já desconfiava disso, de ser chegada a hora da sua
ruína. Eis porque, não obstante a sua segurança e a sua acerba ironia de alemão,
causava dó, com as melenas empastadas nas fontes e os tufos de cabelo a caírem-
lhe na nuca. Embora dissimulasse os seus sentimentos por detrás de umas
maneiras irritadas e desdenhosas, via-se que estava desesperado por ver fugir-lhe
a ocasião única de verificar em vasta escala as suas teorias e de poder prová-las
aos olhos do mundo.
Os debates prolongaram-se por muito tempo e quanto mais se prolongavam
mais exaltados se mostravam os contendores, que gritavam e faziam alusões
pessoais, e menos probabilidades havia de extrair qualquer conclusão prática detudo quanto se dissera.
No meio de toda aquela confusão de línguas, de todas aquelas hipóteses, de
todos aqueles planos, de todas aquelas contradições e de todos aqueles gritos não
pôde o príncipe André deixar de se mostrar surpreendido que fosse possível falar-
se tanto. Enquanto estivera no exército várias vezes fora levado a pensar que não
havia nem podia haver uma ciência da guerra e que por isso mesmo se não devia
falar num suposto génio militar. E eis esta ideia confirmada agora com a plena
evidência da verdade. ,Como falar-se em teoria e ciência numa matéria em que as
condições e as circunstâncias são desconhecidas, não podendo ser definidas de
antemão, e em que as forças actuantes mais dificilmente ainda podem ser
determinadas? Nunca ninguém soube nem nunca ninguém poderá saber qual a
posição do nosso exército e a do inimigo dentro de vinte e quatro horas e qual a
acção deste ou daquele destacamento. Partindo do princípio de que na primeira
fileira, em vez de um poltrão que debande a gritar: ’Estamos cortados!’ se ouve,
em seu lugar, um moço, valente e decidido, gritando ’Hurra!, aí temos como um
destacamento de cinco mil homens vale mais de que um corpo de exército de
trinta mil. Esse o caso de Schöngraben. O que não impede que, noutra altura,
cinquenta mil homens debandem diante de oito mil. Assim acontecera em
Austerlitz. Como falar em ciência numa matéria em que, como sucede com todas as
coisas da vida prática, nada pode ser previsto antecipadamente e tudo depende
de circunstâncias imponderáveis cuja importância surge de um momento para o
outro, sem que ninguém saiba quando chegará a sua hora? Armfeld sustenta que,
o nosso exército está cortado: Paulucci, pelo contrário, afirma que colocámos o
exército francês entre dois fogos; Michaux diz que o campo entrincheirado de
Drissa é desvantajoso, pois o no lhe fica na retaguarda, enquanto Pfuhl mantém
ser precisamente isso que lhe dá força. Toll propõe um plano, Armfeld propõe
outro.
«Todos estes planos são igualmente bons e igualmente maus e as vantagens
de cada um deles não podem tornar-se evidentes senão no próprio momento em
que os acontecimentos vierem a cumprir-se. Porque falta então toda a gente em
génio militar? Será génio aquele que saiba abastecer a tempo de biscoitos o
exército e envie Fulano para a direita e Sicrano para a esquerda? A verdade é
esta: os génios militares são brilhantes e poderosos e há uma multidão de
cobardes sempre pronta a lisonjear o poder, chamando a tais homens génios eatribuindo-lhes qualidades extraordinárias. Em vez de génios, os melhores
generais que eu conheci eram estúpidos ou pouco sérios. Bagration, por exemplo, o
melhor de todos, como o próprio Napoleão o reconheceu. E Bonaparte? Lembro-me
perfeitamente da sua máscara cheia de suficiência na batalha de Austerlitz. Um
bom militar nem precisa de ser génio nem de ter qualidades especiais. Pelo
contrário, deve ser desprovido do que há de melhor e de mais elevado no homem:
o amor, a poesia, a ternura, a dúvida filosófica, filha da experiência. Deve ser
limitado, estar persuadido de que é de alta importância tudo quanto faz. De outro
modo faltar-lhe-á a persistência; só assim será um valoroso capitão. Que Deus o de
— fenda de amar alguém, de se afeiçoar seja a quem for, de ser compadecido, de
pensar no que é justo e no que o não é. Compreende-se que desde tempos
imemoriais se tenha inventado para galardão seu a teoria do génio, pois, em
verdade, representa o poder. O êxito ou o desaire de uma acção militar não
podem ser-lhe atribuídos, mas ao soldado que nas fileiras grita: ’Estamos
perdidos!’ ou então exclama ’Hurra!’ Somente nas fileiras um homem pode servir
convencido de que é útil!»
Assim pensava o príncipe André enquanto ouvia as discussões e só deu por si
quando todos se levantaram e Paulucci o chamou. No dia seguinte, durante a
revista, o imperador perguntou a André onde desejava prestar serviço. E foi então
que ele para sempre perdeu os seus créditos junto da corte pedindo que o
deixassem prestar serviço na frente de batalha, em lugar de se deixar ficar na
comitiva do soberano.
[XII]
Antes do princípio da campanha, Rostov recebera uma carta dos pais onde
estes o informavam sumariamente da doença de Natacha e do seu rompimento
com o príncipe André, rompimento que lhe explicaram como tendo sido provocado
pela irmã, e de novo lhe rogavam que pedisse baixa do exército e voltasse para
junto deles. Nicolau, quando recebeu esta carta, não tentou sequer obter licença
ou autorização para deixar a tropa, e escreveu aos pais a dizer-lhes estar muito
zangado por causa da doença de Natacha e do malogro do seu noivado, e que faria
todo o possível para cumprir os desejos deles. A Sónia escreveu separadamente:
Adorada amiga do meu coração.
Nada, a não ser a honra, me impediria de regressar a
casa. Mas neste momento, na altura em que se inicia u
campanha, considerar-me-ia desonrado, não só perante os
meus camaradas mas aos meus próprios olhos, se preferisse
a minha felicidade ao meu dever e ao meu amor pela pátria.
Esta será, porém, a nossa última separação, podes crer:
assim que a guerra acabar e se eu for vivo e tu ainda me
quiseres, deixarei tudo e correrei a apertar-te para sempre
contra o meu coração fervoroso e apaixonado.
E, com efeito, só o início da campanha retivera Rostov e o impedira, como
prometera, de voltar a casa para casar com Sónia.
O Outono em Otradnoie, com as suas caçadas, o Inverno, com as suas festas do
Natal, e o amor de Sónia prometiam-lhe toda uma perspectiva de serenas alegrias
e o, sossego de uma fidalga vida que ele outrora não conhecera e tanto o seduzia
agora. «Uma esposa dedicada, filhos, uma boa matilha de cães com dez ou doze
casais de vigorosos galgos, os trabalhos agrícolas, os vizinhos e as funções que
competem à nobreza...», pensava Nicolau.
Mas havia guerra e impunha-se-lhe ficar no regimento. E como tinha de ser,
Nicolau Rostov, por índole, parecia satisfeito com a vida assim que levava no
exército, procurando torná-la agradável.
No regresso da licença fora acolhido com grande alegria pelos camaradas. E,encarregado da remonta, trouxera consigo da Pequena Rússia óptimos cavalos,
que muito o entusiasmaram e lhe mereceram as felicitações dos chefes. Durante a
ausência fora promovido a capitão e quando o regimento foi colocado em pé de
guerra, com os efectivos reforçados, deram-lhe o comando do seu antigo
esquadrão.
A campanha principiou, o regimento foi enviado para a Polónia, dobraram os
soldos, chegaram novos oficiais, praças novas, cavalos, e especialmente passou a
reinar na tropa a animação de todas as novas campanhas. Rostov, que apreciava
as vantagens da sua posição, entregou-se inteiramente aos prazeres e aos deveres
do serviço militar, sabendo perfeitamente que mais tarde ou mais cedo teria de
abandonar o exército.
As tropas tinham evacuado Vilna por diversas e complicadas razões: razões de
Estado, razões políticas e tácticas. Cada passo à retaguarda era pretexto para
toda uma rede de complicações de interesses, de combinações, e todo um jogo de
paixões do estado-maior. Para os hússares do regimento de Pavlogrado esta
retirada, na melhor estação do ano, com abastecimentos em abundância, não
passava de uma agradável excursão. Tudo quanto fossem tristezas, inquietações,
intrigas, era com o quartel-general no seio do exército ninguém perguntava para
onde iam e qual o motivo daquela retirada.
A única coisa que levava a tropa a lamentar ter de bater em retirada era o
facto de se ver obrigada a mudar do alojamento a que estava afeita, renunciando
à bela polaca local. Se porventura algum dos oficiais se lembrava de pensar que as
coisas não corriam bem, logo tratava de se sentir alegre, como é próprio de todo o
bom soldado, e não pensava na situação geral, preocupando-se exclusivamente
com as suas ocupações imediatas. De princípio estiveram alegremente
acantonados em volta de Vilna, travando conhecimento com os proprietários
polacos e preparando-se constantemente para as revistas que eram passadas pelo
imperador e outros altos postos militares.
Depois vieram ordens para retirarem sob Sventsiany e destruírem os
abastecimentos que não fosse possível transportar. Sventsiany ficou memorável
para os hússares, pois esse acampamento veio a ser conhecido por todo o exército
pelo «campo dos borrachos», sendo muitas as queixas que se receberam por
virtude de as tropas, que tinham ordem para se abastecer junto dos habitantes,
haverem requisitado aos proprietários polacos, em matéria de abastecimentos,cavalos, equipagens e tapetes. Rostov lembrava-se muitíssimo bem de Sventsiany.
No próprio dia da chegada vira-se obrigado a meter na ordem o sargento, nada
podendo conseguir dos soldados do seu esquadrão, que se tinham emborrachado,
bebendo cinco barris de cerveja velha roubada. Depois de Sventsiany cada vez
recuava mais até ao Drissa, e ainda para além do Drissa, aproximando-se das
fronteiras russas.
A 13 de Julho, pela primeira vez, o regimento de Pavlogrado tomou parte
numa operação séria.
A 12, pela noite, levantou-se uma grande tempestade com forte chuva e
granizo. O Estio de 1812 foi particularmente assinalado por numerosas
tempestades.
Dois esquadrões do regimento de Pavlogrado acampavam numa seara de
cevada pisada pelos homens e pelo gado. Chovia a cântaros, e Rostov, mais o moço
oficial Iline de nome, a quem tomara sob a sua protecção, abrigaram-se numa
cabana construída ao deus-dará.
Um oficial do regimento, de grandes bigodaças, que regressava do quartel-
general e fora surpreendido pela chuva, entrou no abrigo de Rostov:
— Acabo de chegar do estado-maior, conde. Já ouviu falar da façanha de
Raievski?
E o oficial pôs-se a contar o que soubera acerca da batalha de Saltanovka.
Rostov, voltando o pescoço, onde a chuva penetrava, fumava o seu cachimbo e
ouvia, com ar distraído, olhando de vez em quando para Iline, todo encolhido junto
dele. Este oficial, um rapazote dos seus dezasseis anos chegado havia pouco ao
regimento, era agora tratado por Nicolau como ele o fora, anos antes, por
Denissov. Iline fazia por imitar Rostov em tudo e dir-se-ia enamorado dele como
uma mulher.
O oficial da bigodaça, Zdrzinski, contava, enfático, como o dique de Saltanovka
era agora as Termópilas russas e como o general Raievski aí realizara uma façanha
digna da antiguidade. Raievskl, sob intenso fogo inimigo, conduzira os seus dois
filhos até ao dique e lançara-se na batalha com eles a seu lado. Rostov escutava o
relato não só sem uma palavra que encorajasse o narrador, mas inclusivamente
com uma cara que dir-se-ia envergonhada pelo que ouvia, embora nada tivesse
que objectar. Depois de Austerlitz e da campanha de 1807, sabia, por experiência
própria, que quem conta um episódio militar nunca fala inteiramente verdade,como com ele próprio acontecera então. Além disso, já era bastante
experimentado na guerra para saber que nada se passa no campo de batalha como
as pessoas o imaginam ou como é costume virem a contá-lo mais tarde. Por tudo
isso, não lhe agradava o relato e também porque não morria de amores por
Zdrzinski, que, com as suas bigodaças, tinha o péssimo costume de se debruçar
sobre o interlocutor, estando a ocupar muito espaço na acanhada choupana.
Rostov olhava para ele sem dizer palavra. «Em primeiro lugar, no dique em que se
deu o ataque deve ter-se produzido uma tal barafunda e uma tal compressão que
mesmo ainda que Raievski tivesse levado consigo os filhos, esse acto apenas
poderia ter impressionado os dez ou doze homens que o rodeavam», pensava
Rostov. «Os outros não podiam ter visto com quem é que Raievski pusera os pés
no dique. E aqueles que porventura o tivessem visto não deviam ter sentido uma
impressão por aí além, pois a verdade era esta: que lhes importavam a eles os
sentimentos paternais do general, quando eles próprios estavam a dar o corpo ao
manifesto? E depois, o destino da pátria não dependia da tomada de tal dique.
Não vinha, pois, a propósito falar-se das Termópilas. E para que servia aquele
sacrifício? Que ideia era aquela de arriscar a pele dos próprios filhos no campo de
batalha? Eu, por mim, nunca me lembraria de expor assim roeu irmão Pétia, nem
mesmo Iline, que não é meu parente, embora seja um belo moço. Pelo contrário,
tudo faria para o deixar em lugar seguro. E Rostov assim ia pensando enquanto
Zdrzinski falava, embora não lhe passasse pela cabeça dizer a alguém o que lhe
ocorria naquele momento: a sua experiência pessoal dizia-lhe que era inútil. Sabia
que todas aquelas histórias tinham por fim a glorificação dos exércitos russos; por
isso o melhor era não pô-las em dúvida. E eis o que estava a fazer.
— Já não posso mais! — disse, por fim, Iline, que percebera que a algaraviada
de Zdrzinski não agradava a Rostov. — As botas, a camisa, estou todo a escorrer.
Vou tratar de arranjar outro abrigo. Parece-me que a chuva está a passar.
Iline abalou e Zdrzinski abalou também.
Cinco minutos depois já Iline estava de volta, patinhando na lama.
— Hurra! Rostov, despacha-te! Encontrei! A duzentos passos temos uma
taberna, e os nossos já lá estão. Ao menos podemos enxugar a roupa. E está lá a
Maria Henrikovna.
Maria Henrikovna era a mulher do médico do regimento: uma jovem e bonita
alemã com quem ele se casara na Polónia. Ou porque não tivesse recursos paradeixar a mulher em qualquer outra parte, ou porque não quisesse separar-se dela,
nos primeiros tempos de noivado levava-a sempre consigo atrás do regimento, e
os ciúmes que isso lhe causava tornaram-no motivo de troça entre a oficialidade.
Rostov embrulhou-se no capote, e, chamando Lavnichka, mandou que levasse
as suas coisas para a taberna. E lá foi com Iline, patinhando na lama, debaixo da
chuva, que ia passando, no meio das trevas da noite, de onde em onde iluminadas
pelos relâmpagos longínquos.
— Rostov, onde estás tu?
— Aqui. Olha, isto é que são relâmpagos — iam dizendo um para o outro.
[XIII]
A kibitka do médico estacionava diante da porta da taberna, onde já estavam
quatro ou cinco oficiais. Maria Henrikovna, uma lourita alemã, roliça de carnes, de
casaco e de touca de dormir, estava sentada, em lugar de honra, num grande
banco, O marido, o médico, dormia atrás dela. Rostov e Iline foram recebidos com
joviais exclamações e grandes risadas. — Ena! Vocês estão muito alegres por estes
sítios! — disse Rostov, rindo.
— E vocês, porque estão vocês aborrecidos?
— Ah!, vêm em bonito estado! Deitam água por todos os lados! Nada de
inundar o salão.
— É proibido sujar o vestido de Maria Henrikovna.
Rostov e Iline trataram de descobrir um recanto onde pudessem mudar de
roupa sem ofender o pudor da mulher do médico. Passaram para o outro lado do
tabique, para aí se despirem, mas o cubículo, iluminado por uma candeia pousada
em cima de uma arca vazia, estava inteiramente ocupado por três oficiais que
jogavam as cartas e por nada deste mundo lhes quiseram ceder o lugar. Maria
Henrikovna então ofereceu-lhes a saia, que tirou para esse fim, com que eles
fizeram um reposteiro, atrás do qual, auxiliados por Lavruchka, que lhes trouxera
um carregamento de roupa, despiram as fardas molhadas e vestiram outras
enxutas.
Acenderam a estufa desmantelada, Depois arranjaram uma tábua, quecolocaram sobre duas selas de montar, cobriram-na com a gualdrapa de um cavalo,
puseram-lhe em cima um samovar, uma cantina e meia garrafa de rum, e, tendo
pedido a Maria Henrikovna que fizesse as honras da casa, juntaram-se todos à sua
volta. Um deles ofereceu-lhe o lenço de assoar para enxugar as roliças mãos: outro
pôs-lhe debaixo do,—, pés, para os resguardar da humidade, o seu capote de
hússar: um terceiro tapou a janela com o seu para não deixar entrar o vento, e um
quarto deu-se a afugentar as moscas da cara do médico para ele não acordar.
— Deixem-no em paz — exclamou Maria Henrikovna, com um sorriso jovial e
nada tímido. — Está a dormir, porque passou a, outra noite em claro.
— Impossível, Maria Henrikovna — replicou o oficial —, temos de ter cuidado
com o doutor. Talvez seja a maneira de ele ter pena de nós quando for obrigado a
cortar-nos um braço ou uma perna.
Só havia três copos. A água, de tão suja, tornara impossível saber se o chá
estava forte ou fraco de mais, e no samovar apenas havia beberagem para seis
copos. Contudo era uma satisfação para todos receber o seu copo, à vez, e por
ordem de antiguidade, das mãos rechonchudas, de curtas unhas, e nada limpas, de
Maria Henrikovna. Naquela noite dir-se-ia que todos os oficiais estavam
realmente enamorados dela. Até os que se encontravam atrás do tabique a jogar
as cartas acabaram por deixar o jogo, vindo juntar-se em volta do samovar,
dispostos a fazer a corte a Maria Henrikovna. Ao ver-se rodeada de tantos moços
distintos e corteses, a mulher do médico não cabia em si de contente, embora
procurasse esconder essa satisfação e estivesse receosa de que o marido
entretanto acordasse.
Havia apenas uma colher. O açúcar era de sobra, mas não se conseguia
dissolvê-lo na beberagem. Foi por isso resolvido ser ela a mexer o açúcar de todos,
cada um por sua vez. Rostov, depois de ter deitado rum num copo, pediu a Maria
Henrikovna que lhe mexesse o chá.
— Mas o senhor não tem açúcar — exclamou ela, sorrindo sempre, como se
tudo o que ela, dizia ou o que os demais diziam fosse engraçadíssimo e se
prestasse a um segundo sentido.
— Não preciso de açúcar, o que eu queria era vê-la a mexer o meu chá com a
sua linda mãozinha.
Maria Henrikovna acedeu e pôs-se à procura da colher de que alguém se havia
apropriado.— Mexa com o seu dedinho, Maria Henrikovna — disse Rostov —, ainda será
mais gostoso.
— Mas está muito quente! — protestou ela, toda ruborizada de satisfação.
Iline pegou num jarro de água, deitou-lhe dentro algumas gotas de rum e
aproximou-se de Maria Henrikovna, a quem pediu que o mexesse com o dedo.
— É a minha chávena — disse ele. Ponha lá o seu dedinho que eu bebo tudo.
Unia vez despejado o samovar, Rostov pegou nas cartas e propôs-se jogar aos
reis com Maria Henrikovna. Tiraram à sorte, para ver quem seria o parceiro dela.
Rostov propôs, e foi aceite, que quem fosse rei teria o direito de beijar a mão de
Maria Henrikovna e aquele que perdesse seria obrigado a preparar um novo
samovar para o médico, quando este acordasse.
— E se o rei for Maria Henrikovna? — perguntou Iline.
— Já é rainha! E uma ordem sua é uma lei.
Assim que principiou o jogo, por detrás de Maria Henrikovna ergueu-se a
cabeça toda esguedelhada do médico. Havia algum tempo já que estava acordado,
ouvindo o que se dizia. E via-se perfeitamente que aqueles ditinhos alegres nada
tinham, para ele, de engraçado ou divertido. Era triste e aborrecida a sua
expressão. Sem saudar os oficiais, coçou a cabeça e pediu licença para sair, pois
vedavam-lhe o caminho. Mal ele desapareceu, todos romperam num estrondoso
riso, o que fez com que Maria Henrikovna corasse muito, razão por que ainda ficou
mais atraente aos olhos dos companheiros. Quando voltou a entrar, o médico disse
à mulher, a qual perdera a vontade de rir e o olhava como se aguardasse,
ansiosamente, a sentença que ele ia lavrar, que deixara de chover e que era
melhor irem dormir para a kibitka, pois de outra maneira lhe roubariam as suas
coisas.
— Se quiser mandarei uma sentinela... até duas — disse Rostov. — Não se
preocupe, doutor.
— Eu próprio me encarrego de fazer de sentinela! — acrescentou Iline.
— Não, meus senhores, os senhores dormiram bem, mas eu há duas noites que
não prego olho — disse o médico, sentando-se de má catadura ao pé da mulher, à
espera que a partida acabasse.
O aspecto carrancudo do médico, que olhava a mulher de soslaio, ainda lhes
tornou a cena mais divertida, e alguns deles não puderam reter o riso, rompendo
em gargalhadas para que buscavam justificações adrede. Quando o médico e aesposa foram alojar-se na pequenina kibitka, os oficiais deitaram-se no chão,
cobrindo-se com os capotes molhados. Mas muito tempo levaram antes que
adormecessem: ora se punham a comentar o ar carrancudo do médico e a
jovialidade da mulher, ora vinham à porta espreitar o que se estava passando
dentro da kibitka.
Por várias vezes, Rostov, cobrindo a cabeça, tentara dormir, mas os ditos deste
e as saídas daquele não lho consentiam, e as conversas recomeçavam, bem como
as gargalhadas infantis, joviais, sem tom nem som, que rompiam de todos os lados.
[XIV]
As três horas da manhã, ainda não tinham conseguido conciliar o sono,
apareceu um sargento com ordem de retirarem imediatamente para a aldeia de
Ostrovno.
Sem deixarem de palestrar e de rir, fizeram os oficiais apressadamente os
preparativos da partida, e de novo acenderam o samovar, metendo-lhe dentro a
mesma água suja. Rostov, sem aguardar que o chá estivesse pronto, tratou de
abalar para o esquadrão. Já era dia, deixara de chover, as nuvens abriam clareiras
no céu. Sentia-se frio e humidade, sobretudo os que tinham em cima, do corpo
roupas mal secas. Quando saíram da taberna, Rostov e Iline, ao passarem,
lançaram um olhar, através da semi-obscuridade da madrugada, às cortinas de
couro da kibitka, todas reluzentes da chuva, por baixo das quais se estiraçavam as
longas pernas do médico, e para o seu interior, onde se descortinava, numa
almofada, a touca de noite de Maria Henrikovna, ouvia-se lá dentro ressonar.
— Realmente, é uma linda mulher — disse Rostov para Iline.
— É encantadora! — replicou Iline, com a gravidade dos seus dezasseis anos.
Meia hora mais tarde estava o esquadrão alinhado na estrada. A voz de
comando «Montar!» ressoou. Os soldados persignaram-se e montaram a cavalo.
Rostov tomou o comando da coluna e gritou: «Marchar!» Os hússares, quatro a
quatro, no meio do estrépito das patas dos cavalos na lama da estrada, do
entrechocar dos sabres e do rumor das conversas surdas, puseram-se a caminho ao
longo da ampla estrada orlada de álamos, atrás da infantaria e da artilharia, quecaminhavam na vanguarda.
O vento varria rapidamente as nuvens de um azul-violáceo, todas
avermelhadas lá para os lados donde nascia o Sol. Ia clareando cada vez mais. Via-
se agora nitidamente a erva rasteira e frisada que corre sempre ao lado das
estradas vicinais e que estava toda repassada da chuva da véspera. Os ramos dos
álamos, todos molhados também, balançando ao vento, despediam gotas de água
brilhantes. As caras dos soldados desenhavam-se cada vez mais distintamente.
Rostov, com Iline, que o não deixava um só momento, cavalgava, ao longo da
berma da estrada, entre duas fileiras de álamos.
Em campanha, Rostov dava-se ao luxo de montar, não um cavalo regimental,
mas um cavalo de cossaco. Como aficcionado e entendedor que era, arranjara
ultimamente um alazão do Dom, de crinas brancas, belo animal, vigoroso e
possante, que nenhum outro podia vencer. Montá-lo era para ele um grande
prazer. Pensando no seu cavalo, na manhã que chegava e na mulher do médico,
nem um só momento lhe vinha à mente o perigo grande que os esperava.
Outrora, Rostov, antes de um combate, tinha medo; agora não sentia o mais
pequeno receio. Não porque se tivesse acostumado à metralha (ninguém pode
habituar-se ao perigo), mas aprendera a dominar a alma. Acostumara-se, quando
ia para o combate, a pensar em tudo menos no que mais importava, a proximidade
do perigo. Apesar de todos os seus esforços, não obstante chamar-se a si próprio
cobarde, nos primeiros tempos fora-lhe muito difícil chegar àquele resultado, mas
com os anos as coisas vieram naturalmente. Lá ia cavalgando, ao lado de Iline,
entre os álamos, arrancando, de quando em quando, um ramo que lhe passava
junto das mãos, outras vezes aflorando de leve com as esporas o ventre do cavalo,
ou, sem se voltar, estendendo o cachimbo ao hússar que o seguia, tão tranquilo e
despreocupado como se fosse em passeio. Grande era a compaixão que lhe
inspirava o rosto alterado de Iline, que falava muito e se mostrava inquieto.
Conhecia por experiência aquela angústia na expectativa do medo e da morte que
apertava o coração do porta— estandarte Iline e sabia que só o tempo lhe daria
remédio.
Assim que o disco do Sol apareceu numa faixa de céu descoberta, emergindo de
entre as nuvens, o vento serenou como se não quisesse perturbar aquela
magnífica manhã de Verão após aí, tempestade da noite. Ainda caíram algumas
gotas de chuva, mas verticalmente já, e tudo se acalmou... O Sol descobrira-se porcompleto, surgindo por cima da linha do horizonte e desaparecendo em seguida
por detrás de uma longa e estreita nuvem. Minutos depois despontou de novo,
mais brilhante ainda, pela parte superior da nuvem, cujos bordos se franjaram,
Tudo se iluminou e cintilou. E, como que para saudar esta onda de luz, ouviu-se, lá
longe, o troar do canhão. Ainda Rostov não tivera tempo de se dar conta da
distância a que estavam a troar os canhões quando surgiu, a galope, dos lados de
Vitebsk, um ajudante-de-campo do conde Ostermann Tolstoi com ordem de
meterem a trote.
O esquadrão, ultrapassando a infantaria e, a bateria de artilharia, que
igualmente aceleraram a sua marcha, meteu por uma ladeira, atravessou uma
povoação abandonada pelos habitantes, e outra vez subiu a encosta. Os cavalos
estavam cobertos de suor e os rostos dos soldados afogueados pela cavalgada,
«Alto! Alinhar!», gritou a voz do comandante. «A esquerda, marchar!»
Os hússares seguiram ao longo do flanco esquerdo das tropas e foram colocar-
se por detrás dos ulanos da primeira linha, A direita, formando uma coluna
compacta, estava a infantaria, que constituía a reserva. Por cima dela, na colina,
destacavam-se os canhões russos iluminados pela luz clara e oblíqua da manhã. Lá
para diante, no vale, divisavam-se as colunas e os canhões do inimigo. As
primeiras linhas russas já tinham entrado em acção, trocando vivo tiroteio com os
franceses,
Como se ouvisse os primeiros compassos de uma alegre melodia, Rostov
regozijou-se com o ruído da fuzilaria, que havia muito não ouvia! Trap, ta, ta, tap!
As descargas sucediam-se, ora simultaneamente, ora sucessivas, Depois tudo
ficava silencioso, e de repente os estampidos recomeçavam, como se fossem
petardos que alguém tivesse pisado,
Os hússares permaneceram quase uma hora no mesmo sítio, o canhoneio
recomeçou. Seguido da sua escolta, passou o conde Ostermann por detrás do
esquadrão. Parou, trocou algumas palavras com o comandante do regimento e
afastou-se na direcção dos canhões instalados na colina.
Pouco depois de ele se ter afastado ouvia-se a voz do comandante dos ulanos
gritar: «Formar, colunas! Atacar!» A infantaria, que os encobria, abriu fileiras
para deixar passar a cavalaria. Com as flâmulas das suas lanças flutuando ao
vento, os ulanos desceram a trote a encosta ao encontro da cavalaria francesa,
que se divisava no sopé da colina, à esquerda.Assim que os ulanos abandonaram a sua posição, os hússares receberam ordem
de subir à cumeada para cobrirem a bateria. Enquanto este movimento se
executava, algumas balas, gemendo e assobiando, passaram, perdendo-se no ar.
Este ruído, que Rostov há muito não ouvia, ainda mais o estimulou que os
primeiros que ouvira, enchendo-o de força e de alegria.
Endireitou-se na sela e pôs-se a observar o campo de batalha, que se
descortinava do alto, e com toda a sua alma tomou parte no ataque dos ulanos.
Estes caíram sobre os dragões franceses.
No meio da fumarada houve um momento de confusão e cinco minutos depois
os ulanos retrocediam a galope, não para o lugar que anteriormente ocupavam,
mas um pouco mais para a esquerda. Por entre os uniformes alaranjados dos
ulanos em seus cavalos alazões, e também na sua retaguarda, distinguia-se um
grupo compacto de dragões azuis montados em cavalos cinzentos.
[XV]
Rostov, com o seu penetrante olhar de caçador, fora um dos que primeiro vira
os dragões azuis na cola dos ulanos. Estes fugiam em debandada, e os franceses,
que os perseguiam, cada vez se aproximavam mais deles. Já se podiam ver os
homens, que lá no sopé da colina pareciam pequeníssimos, investirem agitando os
sabres e os braços.
Rostov olhava para o espectáculo como se assistisse a uma caçada. Por
instinto, compreendia que, se caísse, naquele momento, COM os seus hússares,
sobre os dragões franceses, estes não resistiriam, mas era preciso agir
imediatamente, de chofre; de outra maneira seria tarde de mais. Olhou à sua
volta. O capitão, que estava a seu lado, também não perdia de vista a cavalaria lá
no fundo da encosta.
— André Sevastianitch — disse. — Nós podíamos dar cabo deles...
— Realmente, que golpe magnífico — exclamou o capitão — e se...
Sem ouvir mais, Rostov esporeou o seu cavalo e pôs-se à frente do esquadrão.
Não teve tempo de dar qualquer voz de comando; todos os seus homens, impelidos
pelo mesmo sentimento, se precipitaram atrás dele. Nem ele próprio sabia como eporque agira daquela maneira. Procedera como se estivesse numa caçada, sem
pensar, nem reflectir. Ali muito perto via os dragões que galopavam. Tinha a
convicção íntima de que não resistiriam. Sabia que, se perdesse a oportunidade,
aquele minuto não voltaria. O assobio das balas excitava-o tanto, tamanha era a
impaciência do seu cavalo, que não pudera resistir. No momento em que
esporeava a montada, soltando o grito de comando, sentiu atrás de si todo o
esquadrão que se agitava, e despediu a trote largo, pela encosta abaixo, direito
aos dragões. Mal atingiram o fundo da encosta, os cavalos, espontaneamente,
puseram-se a galopar, galope que se tornava cada vez mais rápido à medida que
se aproximavam dos ulanos e dos dragões que os perseguiam. Estes estavam
muito próximos. Os que iam na vanguarda, ao verem carregar os hússares, deram
meia volta, e os da retaguarda pararam. Impelido pelo mesmo entusiasmo de
quando se lançava atrás de um lobo, Rostov, lançando à rédea solta o seu cavalo
do Dom, precipitou-se através das fileiras desordenadas dos dragões. Um ulano
estacou, um soldado de infantaria deitou-se ao chão para não ser esmagado, um
cavalo sem cavaleiro veio embater nos hússares. Quase todos os dragões fizeram
meia volta. Rostov firmou-se num montado num cavalo cinzento, correu sobre ele.
Na sua galopada surgiu-lhe diante uma moita; o seu rico cavalo empinou-se e
galgou-a de um salto. Aguentando-se a custo em cima do selim, momentos depois
Nicolau verificava ter apanhado o inimigo que se propusera atacar. Este, oficial,
naturalmente, como se depreendia do uniforme, todo alapardado sobre o cavalo,
galopava a mais não poder, fustigando-o com o sabre. Num abrir e fechar de olhos
a montada de Rostov veio embater com os peitorais na garupa do cavalo do
dragão, que por pouco não atirou a terra, ao mesmo tempo que Nicolau, sem
saber o que fazia, brandia o sabre e feria o inimigo.
De súbito todo o seu entusiasmo se desvaneceu por completo.
O oficial caiu, não tanto em virtude da sabrada que recebera, a qual apenas
lhe rasgara o braço um pouco acima do pulso, mas por causa do choque dos dois
animais e do medo que o tornou. Refreando o seu cavalo, Rostov procurou-o com a
vista para ver o homem a quem acabava de atacar. O oficial de dragões saltava,
coxo, um dos pés preso no estribo. Fechava os olhos, franzia as sobrancelhas, cheio
de medo, sempre à espera de receber uma nova cutilada, horrorizado, olhando, de
baixo para cima, para o hússar. Aquele rosto, pálido e sujo de lama, muito infantil,
de cabelos louros, olhos azul-claros, uma covinha no queixo, não era um rosto deguerreiro, um rosto de inimigo, mas a mais simples das caras, uma cara de filho de
família. Ainda Rostov não sabia o que ia fazer dele quando o oficial gritou: «Rendo-
me!»
Tentando libertar o pé do estribo, sem o conseguir, continuava a fitar Rostov
com os olhos azuis espavoridos. Os hússares que acorreram soltaram-lhe o pé e
ajudaram-no a montar. Por todos os lados havia hússares a bater-se contra os
dragões. Um deles estava ferido, e embora o sangue lhe escorresse pela cara
abaixo não largava o cavalo; outro, com um hússar nos braços, cavalgava montado
na garupa; um terceiro montava amparado por um hússar. A infantaria francesa
acorria em reforço, disparando. Os russos trataram de se retirar, levando consigo
os prisioneiros. Rostov ia atrás deles, dominado por uma penosa sensação, que lhe
alanceava a alma. Despontava nele um pensa— mento obscuro, complicado, que
não compreendia, desde que fizera prisioneiro aquele homem, e sobretudo desde
que o atingira com o sabre.
O conde Ostermann Tolstoi acolheu os hússares, mandou chamar Rostov,
felicitou-o e disse-lhe que comunicaria ao imperador o seu acto heróico, propondo-
o para a cruz de S. Jorge. Quando o chamaram à presença do conde, lembrando-se
de que atacara sem ordens superiores, ia convencido de que o iriam castigar por
ter agido de moto próprio. Maiores foram por isso a sua surpresa e o
contentamento que sentiu ao ouvir as palavras elogiosas de Ostermann e a
promessa de uma recompensa. No entanto, o tal sentimento obscuro e penoso
continuava a pesar-lhe no coração. «Então, que me está a atormentar?»,
perguntava a si Próprio, no regresso. «Iline? Não; esse está são e salvo.
Procederia eu mal? Não. Não é nada disso.» Qualquer outra coisa o atormentava
como um remorso. «Sim, sim, é aquele oficial francês com a covinha no queixo. Ah!,
sim, já sei! Foi o meu braço que se deteve quando o ergui para o acutilar.»
Ao ver aproximar-se a leva dos prisioneiros quis tornar a Olhar para o francês.
Lá vinha ele, com o seu estranho uniforme, montado num belo cavalo de hússar,
lançando em roda olhares inquietos. A ferida que recebera no braço era por assim
dizer insignificante. Sorriu para Rostov, com um ar embaraçado, acenando-lhe com
a mão, como se o cumprimentasse. Também Rostov se sentiu embaraçado e quase
com vergonha.
Durante todo aquele dia e no que se lhe seguiu, amigos e camaradas notaram
que, embora não estivesse aborrecido ou zangado, permanecia silencioso,pensativo e concentrado. Não lhe apetecia beber, procurava estar só e dir-se-ia
obcecado por uma ideia qualquer.
Rostov não se cansava de pensar na proeza que com grande espanto seu lhe
valera a cruz de S. Jorge e lhe fizera ganhar a reputação de herói, dizendo de si
para consigo haver ali qualquer coisa que ele não podia compreender. «Então eles
ainda têm mais medo do que eu!», dizia com os seus botões. «E é a isto que se
chama heroísmo? Foi, realmente, pela minha pátria que eu fiz isto? E que culpa
cabe àquele outro com a sua covinha no queixo e os seus olhos azuis? E o medo
que teve! Julgava que eu o ia matar. E porque havia eu de o matar? Aliás,
tremeu-me a mão. E dar-me-ão a cruz de S. Jorge! Realmente não consigo
perceber!»
A verdade, porém, é que enquanto Rostov ia debatendo consigo todas estas
interrogações, sem conseguir uma ideia clara do que o perturbava a tal ponto, a
roda da fortuna, como tantas vezes acontece, rodava a seu favor. Depois da acção
de Ostrovno foi promovido, nomearam-no comandante de batalhão e quando
precisavam de um oficial corajoso para qualquer missão a ele se dirigiam.
[XVI]
Quando teve conhecimento da doença de Natacha, a condessa, que ainda não
estava restabelecida e se sentia fraca, partiu para Moscovo com Pétia e toda a
criadagem. A família abandonou a casa de Maria Dmitrievna e foi instalar-se na
sua residência da capital, onde todos se reuniram.
A doença de Natacha era tão séria que, felizmente para ela e para os pais, as
causas que a tinham provocado — o seu procedimento e o desmanchar do
casamento — foram relegadas para segundo plano. Tão grave era o seu estado
que ninguém pensava nas suas culpas e em tudo o que acontecera. Não comia, não
dormia, emagrecia a olhos vistos, tossia e corria sério risco, como os médicos
davam a entender. Não se podia pensar noutra coisa senão em tratá-la. Os
médicos iam vê-la, quer separadamente, quer em conferência, discutiam muito em
francês, alemão e latim, criticavam-se mutuamente, prescreviam os remédios mais
variados, aptos para curar todas as doenças de que tinham conhecimento, masnunca pela cabeça de qualquer deles passou a ideia tão simples de que a doença
de que ela padecia estava tão pouco ao seu alcance como qualquer dos muitos
males de que sofre a criatura humana. Cada homem, com efeito, tem sua
constituição particular e traz consigo a sua doença especial, uma doença só dele,
nova, complicadíssima, desconhecida da medicina, uma doença que não é dos
pulmões, nem do fígado, nem da pele, nem do coração, nem dos nervos, etc., não
está descrita nos livros, mas é produto de inumeráveis combinações produzidas
pela alteração dos órgãos. Esta ideia simplíssima não podia vir à cabeça dos
médicos — pela mesma razão que uma bruxa não pode renunciar aos seus
bruxedos —, pois que o mister deles era curar, para isso eram pagos, e a essas
funções consagravam os melhores anos da sua vida. Se antes de mais nada, porém,
lhes não vinha à cabeça uma tal ideia, é porque sabiam incontestavelmente serem
úteis, e o facto é que eram de grande utilidade para todos os habitantes da casa
Rostov. Não por fazerem com que a doente ingerisse drogas geralmente
prejudiciais, cujo nefasto efeito era, de resto, atenuado por serem tomadas em
pequeninas doses. Eram úteis, indispensáveis, inevitáveis pelo facto de darem
satisfação às necessidades morais da doente e daqueles que lhe queriam, e é essa
a razão por que há e sempre haverá curandeiros, charlatães, homeopatas e
alopatas. Davam satisfação aos desejos, perenes no homem, de consolação, à
avidez de simpatia que há nele, à necessidade de que se ocupem dele sempre que
sofre. Davam satisfação a essa perene necessidade que nas crianças se observa sob
a sua forma elementar esfregando o sítio em que se magoam. A criança que se
magoa vai logo lançar-se nos braços da mãe ou da ama, na esperança de que elas
a beijem e lhe esfreguem o lugar ofendido, e o certo é que se sente consolada
assim que obtém estes carinhos. Não lhe passa pela cabeça que as pessoas mais
fortes e mais crescidas do que ela sejam capazes de a não socorrer. E com efeito a
esperança de um lenitivo, a simpatia que lhe testemunham enquanto a mãe lhe
passa a mão pelo sítio lesado, eis quanto basta para a consolarem. Os médicos
desempenhavam junto de Natacha o papel da mãe que beija o filho e lhe passa a
mão pelo dói-dói. Diziam-lhe que o mal de que padecia se curaria desde que o
cocheiro fosse comprar ao farmacêutico da Praça de Arbate, por um rublo e sete
grivens, certos pós ou certas pílulas, numa caixinha muito bonita, e ela tomasse
esses pós, sem falta, de duas em duas horas, nem mais nem menos, em água
fervida.Que seria de Sónia, do conde, da condessa, se todos tivessem de cruzar os
braços em vez de cuidarem em dar-lhe essas pílulas de hora a hora, essas poções
mornas, em vez de lhe prepararem esses caldos de galinha e tantas outras coisas
prescritas pelos médicos, coisas para eles uma ocupação e uma consolação
apreciáveis? Teria o conde podido suportar a doença da sua filha querida se não
pudesse dizer consigo mesmo que esta já lhe custara mil rublos e que de bom
grado despenderia outros mil para lhe dar alívio, se não pudesse pensar que para
a restabelecer não se importaria de gastar outros mil rublos, levando-a a
consultar médicos no estrangeiro sem olhar a despesas; se lhe não tivesse sido
dado contar a toda a gente que Métivier e Feller nada tinham percebido do
estado dela e que Friese acertara com o mal, mas que Mudrov ainda fora mais
feliz no seu diagnóstico? Que teria sido da condessa se lhe não fosse dado zangar-
se de quando em quando com a doente por esta não seguir à risca as prescrições
médicas?
— Assim nunca mais te curas — dizia-lhe ela numa irritação que a fazia
esquecer o desgosto —, se não ouves o que diz o médico e não tomas o teu
remédio a tempo e a horas! Não é ocasião para brincadeiras, quando tudo isso
pode degenerar numa pneumonia — acrescentava, consolada por poder empregar
aquele termo científico nem só para ela ininteligível.
E Sónia, que teria feito Sónia pela sua parte se não lhe fosse dada a satisfação
de dizer a si mesma que passara, de princípio, três noites sem se despir, sempre
pronta a executar pontualmente as prescrições do médico e que ainda então mal
fechava os olhos para não esquecer a hora de lhe administrar as pílulas assaz
inofensivas da linda caixa dourada? E a própria Natacha, conquanto estivesse
sempre a dizer que nenhum medicamento a poderia curar e que todas aquelas
drogas eram tolice, ela própria sentia uma certa satisfação ao ver que as pessoas
faziam por ela tantos sacrifícios, e tomava as suas poções a horas fixas. E até
alegre se sentia descuidando-se do cumprimento das prescrições, por poder
mostrar que não acreditava na cura e que não apreciava a vida.
Todos os dias vinha o médico, que lhe tomava o pulso, lhe olhava a língua e
gracejava com ela, sem prestar atenção ao seu parecer desfeito. Depois, quando
entrava no quarto contíguo, a condessa seguia-o, e ele, com um ar grave e
abanando a cabeça pensativamente, afirmava que, embora a situação fosse
bastante grave, tinha confiança no efeito do último remédio, que era precisoaguardar e ver, que a doença era sobretudo moral, mas que...
A condessa, procurando dissimular o pormenor, tanto aos seus próprios olhos
como aos do médico, introduzia-lhe na mão uma moeda de ouro e voltava sempre
com o coração mais aliviado para ao pé da doente.
As características da doença de Natacha consistiam em que comia e dormia
pouco, tossia e não tinha ânimo para coisa alguma. Os médicos diziam que ela não
podia estar sem assistência clínica e por isso a mantinham na atmosfera sufocante
da cidade. Os Rostov passaram o ano de 1812 sem irem à aldeia.
Apesar da imensidade das pílulas absorvidas, das gotas e dos pós em
garrafinhas e caixas, caixas de que Madame Schoss, que muito apreciava esse
género de bugigangas, fizera uma colecção completa, apesar de a terem privado
dos ares do campo, a mocidade venceu. O desgosto de Natacha foi pouco a pouco
absorvido pelas impressões da vida quotidiana. Deixou de sentir uma dor tão
violenta, que, lentamente, se foi desvanecendo e as forças físicas principiaram a
reanimá-la.
[XVII]
Natacha estava mais tranquila, mas não mais alegre. Não só evitava todas as
oportunidades de se distrair — os bailes, os passeios, os concertos, os espectáculos
—, como nunca na sem que sentisse as lágrimas a borbulhar por detrás do riso. Já
não podia cantar. Se se punha a rir, ou se tentava cantar só para si, as lágrimas
sufocavam-na: lágrimas de arrependimento, lágrimas choradas sobre o seu
inocente passado, que não mais volta— ria, lágrimas de pesar por ter dissipado
daquele modo a sua juventude, que tão feliz podia ter sido. O riso e o canto
afiguravam-se-lhe como que uma profanação da sua dor. Nem sequer pensava em
ser coquette, pelo que não precisava de se reprimir. Dizia Para si mesma que
todos os homens agora lhe eram tão indiferentes como Nastásia Ivanovna, o bobo.
Uma voz íntima lhe interdizia ainda toda a espécie de prazeres. Já não sentia em
si o amor à vida como outrora, no tempo em que fora rapariga descuidada, cheia
de esperanças. Lembrava-se, com muitas saudades, dos meses do Outono, da caça,
do tio, das festas do Natal, na Companhia de Nicolau, em Otradnoie. Que não teriaela dado Para voltar atrás, um dia só que fosse, a esses felizes tempos! Mas não,
tinham passado para sempre. Não a enganava o pressentimento de que nunca
mais voltaria a encontrar a alma livre que tivera outrora, aberta, a todas as
alegrias. No entanto era preciso viver. Consolava-a pensar que não era mais feliz
do que os outros, como imaginara antigamente, mas menos, muito menos feliz do
que qualquer outra pessoa. O presente, contudo, pouco lhe importava.
Desconfiava dele e perguntava a si mesma muitas vezes: «Que acontecerá mais
tarde?» E o futuro também nada lhe dizia. Já não sentia alegria na vida e a vida
continuava a passar. A única coisa que desejava era não ser pesada a ninguém,
não incomodar fosse quem fosse, embora para si mesma nada pedisse. Conservava-
se muitas vezes afastada de todos os que a cercavam e a única satisfação que
tinha era junto de Pétia, seu irmão.
Divertia-se muito mais com ele do que com os outros e por vezes a sós com a
criança voltava a ser alegre. Quase não saía de casa, e de todas as pessoas que a
visitavam uma só lhe era simpática: Pedro. Ninguém era capaz de lhe falar com
tanta ternura, tanto tacto e ao mesmo tempo tanta seriedade como o conde
Bezukov. Sem dar por isso, sentia bem toda aquela ternura, daí o grande prazer
que lhe dava a companhia do amigo. E no entanto nem sequer lhe agradecia.
Sabia que a bondade nada custava a Pedro. Tão natural lhe parecia a ele dever
ser bom para toda a gente que lhe não advinha daí qualquer mérito. Por vezes
Natacha percebia-o embaraçado e confuso na sua presença, principalmente quando
ele queria ser-lhe agradável ou então quando receava que a conversa lhe pudesse
trazer penosas recordações. Reparava nisso e atribuía o facto ao seu bom coração
e sua timidez, que tímido, supunha-o ela, devia ele ser com toda a gente.
Desde aquele dia em que lhe dissera inopinadamente que se fosse livre lhe
pediria de joelhos que lhe quisesse e casasse com ele, palavras pronunciadas num
momento de profunda emoção, Pedro nunca mais lhe falara dos seus sentimentos e
para ela era evidente que aquelas palavras, que então lhe haviam sido de grande
lenitivo, não tinham tido mais importância do que o que se diz Para consolar uma
criança que chora. Não por Pedro ser casado, mas por Natacha sentir entre eles,
no mais alto grau, aquela barreira moral que tanta falta lhe fizera na presença de
Kuraguine; nunca lhe ocorrera que das suas relações pudesse nascer amor, não só
nela, mas muito menos nele, ou sequer essa espécie de amizade amorosa, só
poesia natural entre um homem e uma mulher, como ela conhecia alguns casos.Depois da Quaresma de S. Pedro, Agráfena Ivanovna Bielova, vizinha dos
Rostov em Otradnoie, chegou a Moscovo para orar aos santos moscovitas. Propôs
a Natacha que fizesse com ela as suas devoções e esta aceitou a ideia com alegria.
Apesar da advertência dos médicos, que a proibiam de sair de manhã cedo, ela
insistiu em fazer as suas devoções, e não era como de costume em casa dos Rostov,
ou seja mandando rezar três ofícios na capela particular, mas como as fazia
Agráfena Ivanovna, isto é, durante uma semana inteira, sem faltar às matinas, à
missa e ao ofício de vésperas.
Esta devoção religiosa agradou à condessa, que no fundo esperava, depois do
tratamento pouco profícuo dos médicos, que a oração fosse mais eficaz do que as
drogas. E embora receosa, escondendo o caso ao médico, cedeu aos desejos da
filha, confiando-a à senhora Melova. Agráfena Ivanovna costumava chamar
Natacha às três horas da manhã, e geralmente já a encontrava acordada.
Arranjada à pressa, tendo enfiado o seu mais simples vestido e um casaco velho, lá
ia a tremer de frio, pela algidez da noite, ao longo das ruas desertas, que a aurora
começava já a iluminar. A conselho da companheira, Natacha não se dirigia à
igreja paroquial, mas ao templo em que a devota Bielovna dizia haver um
sacerdote muito austero e digno. Havia ali sempre muito poucos fiéis. As duas
mulheres iam colocar-se no seu recanto habitual, diante do ícone da Virgem, que
pendia da parte posterior do coro esquerdo. Um desconhecido sentimento de
humildade invadia a alma de Natacha na presença de qualquer coisa de grande e
de inacessível quando, àquela hora da manhã, contemplando o rosto enegrecido
da Mãe de Deus iluminado pelos círios e a luz da madrugada filtrada pelas janelas,
prestava atenção ao ofício divino, que procurava compreender. Se percebia as
palavras, os seus sentimentos íntimos fundiam-se com a oração, se as não
percebia, ainda lhe era mais grato pensar que o desejo de tudo compreender
nascia do orgulho e não era possível saber tudo e que cada qual deve limitar-se a
crer e a confiar-se a Deus, que ela, naqueles instantes, sentia reinar no seu
coração. Persignava-se, posternava-se e quando não compreendia limitava-se,
horrorizada perante as suas inquietações, a pedir a Deus que lhe perdoasse e se
amerceasse dela. As orações que proferia eram de contrição. No regresso a casa, a
uma hora ainda muito matinal, quando nas ruas apenas se viam os operários a
caminho do trabalho, os porteiros que varriam os passeios diante das portas, e
toda a gente dormia, Natacha experimentava um sentimento novo para ela, apossibilidade de corrigir os seus defeitos e vir a conhecer ainda uma vida de
regeneração pura e feliz.
Durante toda a semana em que se consagrou a estas piedosas práticas cresceu
nela este sentimento de regeneração. E a felicidade que era para ela comungar,
ou, como Agráfena Ivanovna gostava de dizer, recorrendo a um trocadilho,
comunicar com Deus, afigurava-se-lhe tamanha que receava morrer antes da
chegada desse bem-aventurado domingo.
Essa venturosa data chegou, por fim, e quando Natacha, nesse domingo
memorável, voltou da comunhão, com o seu vestido de musselina branca, foi a
primeira vez após muitos meses que se sentiu em paz consigo mesma e a vida
deixou de lhe parecer penosa.
O médico, à hora da visita habitual, observou-a e mandou que continuassem a
dar-lhe os pós que prescrevera quinze dias antes.
— É preciso tomá-los de manhã e à noite, sem falta — disse, convencido da
eficácia da droga —, e com toda a regularidade, se fazem favor. Esteja descansada,
condessa — gracejou, fechando com presteza, na palma da mão, a moeda de ouro
costumada —, não tarda que a tornemos a ver cantar e divertir-se. Está com
muito melhor parecer,
A condessa, olhando para as unhas, cuspiu (Entre o povo russo, cuspir
correspondia a um exorcismo. (N, dos T) voltando muito contente ao salão.
[XVIII]
Em princípios de Julho espalharam-se em Moscovo boatos cada vez mais
inquietantes sobre a marcha das operações militares; falava-se numa proclamação
do imperador dirigida ao povo e no seu regresso à capital. Ora como a 11 ainda se
não tinha conhecimento de qualquer manifesto nem de qualquer proclamação,
mais exagerados se espalharam os rumores a esse respeito e a propósito da
situação. Dizia-se que o imperador abandonava o exército por este estar em
perigo, que Smolensk se rendera, que Napoleão dispunha de um milhão de homens
e que só um milagre podia salvar a Rússia.
Sábado, 11, recebeu-se o manifesto, mas ainda não fora tornado público,Pedro, que se encontrava nessa altura em casa dos Rostov, prometeu vir jantar no
dia seguinte, domingo, e trazer o manifesto e a proclamação, que esperava obter
através do conde Rostopchine.
Nesse domingo, como de costume, os Rostov foram ouvir missa à capela
particular dos Razumovski. Estava muito calor. Desde as dez da manhã, hora a que
os Rostov se apearam da sua carruagem diante da capela, que o vento quente, os
pregões dos vendedores ambulantes, a multidão com os seus trajos claros do Estio,
as árvores das avenidas cobertas de poeira, o rataplã da banda de um regimento
de pantalonas brancas dirigindo-se à parada, o rolar das carruagens ao longo dos
pavimentos, o resplandecer de um sol de fogo, tudo se misturava, transmitindo já
essa impressão amodorrante, misto de satisfação e de desgosto, que costuma
sentir-se numa grande cidade em dia de muito calor. Boa parte da nobreza
moscovita, personagens dos conhecimentos dos Rostov, estava reunida na capela
dos Razumovski. Nesse ano, por causa dos acontecimentos, muitas das mais ricas
famílias haviam ficado na capital, embora habitualmente passassem esses meses
nas suas propriedades no campo. Seguindo atrás de um lacaio que afastava a
multidão, Natacha, ao lado da mãe, ouvia um rapaz falar dela em voz baixa.
— É a Rostov, a que...
— Que magra, mas ainda assim é uma linda rapariga!
Julgou ouvi-los pronunciar os nomes de Kuraguine e de Boikonski. Aliás, isso
acontecia-lhe frequentemente. Estava sempre a pensar que toda a gente falava da
sua aventura. Dolorosamente sentida e de coração apertado, que assim estava
sempre no meio da multidão. Natacha continuou a andar, com o seu vestido de
seda lilás guarnecido de rendas pretas, num passo tanto mais calmo e majestoso
quanto maior a vergonha e o desgosto no fundo da alma, Sabia muito bem, e não
se enganava, que era muito bonita; mas não sentia com isso o prazer de outrora.
Pelo contrário, ultimamente o reconhecer que assim era fazia-a sofrer, sobretudo
num dia como aquele, claro e quente, em plena cidade. «Mais um domingo, mais
uma semana», dizia de si para consigo, lembrando-se de que ali viera no domingo
anterior, «e sempre a mesma vida, que não chega a ser vida, sempre a mesma
gente agradável de antigamente. Sou bonita, sou nova e agora também sei que
sou bondosa; antigamente era má, mas agora não, tenho a certeza, e assim, em
pura perda, vão passando os meus dias sem proveito para nada, sem proveito
Para ninguém.» Ficou ao lado da mãe e cumprimentou com acenos de cabeça aspessoas conhecidas mais próximas. Como de costume, examinou os vestidos das
senhoras, criticou o porte e a maneira pouco fina como uma delas fazia o sinal da
cruz, e ali a dois passos, na estreita capela, pensou com despeito que diziam dela o
que ela dizia das demais, mas de súbito, assim que principiou o serviço divino,
sentiu-se como que assustada diante da sua própria baixeza e como que aterrada
ao ver que perdera de novo a pureza de outrora.
Um velhinho, de venerável aspecto, oficiava, com a serena unção de tão
apaziguadora influência na alma dos fiéis. As portas reais abriram-se; a cortina
afastou-se lentamente; ouviu-se lá dentro uma voz misteriosa e doce. Lágrimas,
cuja causa ela não compreendia, oprimiam Natacha, e uma impressão alegre e
enervante a invadiu,
«Ensina-me o que tenho de fazer, como me devo conduzir na vida, como
corrigir-me para sempre», orava ela.
O diácono subiu ao púlpito, afastou com o dedo polegar as longas madeixas que
lhe saíram do stikar, e depois de ter levado a cruz ao peito leu, em alta voz e
solenemente, as palavras da oração.
«Oremos em paz a Deus nosso Senhor!»
«Oremos em paz todos juntos, isto é, sem distinções de classe, sem ódios,
unidos no mesmo amor fraternal», disse Natacha para si mesma.
«Oremos para que nos seja dado o reino dos Céus e a salvação das nossas
almas!»
«Sim, o reino dos anjos e de todos os espíritos celestes que vivem por cima de
nós», pensou ela, ao mesmo tempo.
Quando rezaram pelo exército lembrou-se do irmão e de Denissov. Quando
rezaram pelos que andam sobre a terra e sobre o mar, rezou pelo príncipe André,
pedindo que o Senhor lhe perdoasse o mal que lhe fizera. Quando oraram pelos
entes queridos, rezou pelos seus, pelo pai, pela mãe e por Sónia, e pela primeira
vez sentiu quanto era culpada para com eles e quanto lhes queria. Quando
rezaram pelos que têm ódio, procurou saber quais os seus inimigos e os que lhe
queriam mal, para rezar por eles. Não achou, porém, senão os credores de seu pai
e aqueles que com ele haviam questionado. E assim lhe veio à mente Anatole, que
tanto mal lhe fizera, e embora o não considerasse no número dos que a odiavam,
rezou por ele, satisfeita, como se de um inimigo se tratasse. Só enquanto rezava
era capaz de se lembrar serenamente e sem comoção do príncipe André e deAnatole, pois os sentimentos que nesse momento sentia nada eram ao pé do seu
temor e do seu amor de Deus. Quando rezaram pela família imperial e pelo Santo
Sínodo, ainda se posternou mais contra o solo, persignando-se e dizendo para si
mesma que, embora o não compreendesse, lhe era impossível duvidar e que, fosse
como fosse, tinha de amar o Sínodo e rezar por ele.
Dita que foi a lektenia, o diácono fez com a estola o sinal da cruz sobre o peito
e murmurou:
«Encomendemo-nos, e encomendemos as nossas vidas a Jesus Cristo Nosso
Senhor!»
«Encomendemo-nos a Deus», repetiu Natacha no seu íntimo. «Deus meu,
entrego-me à Tua vontade», orou ela. «Nada quero nem desejo mais. Ensina-me o
que devo fazer, como hei-de empregar a minha vontade! Mas toma-me, toma-
me!», murmurou ela mentalmente com exaltação e impaciência, sem se benzer,
deixando cair os braços, como se esperasse que uma força invisível, naquele
mesmo instante, tomasse conta dela e a libertasse de si própria, das suas mágoas,
dos seus desejos, dos seus remorsos, das suas esperanças e dos seus erros.
A condessa, por várias vezes durante o ofício, relanceara os olhos ao rosto
recolhido e aos olhos fulgurantes da filha e rogara a Deus que a ajudasse.
Subitamente, no meio da cerimónia, e alterando a ordem que Natacha muito
bem conhecia, o sacristão trouxe um escabelo, o escabão que costumava servir
para ler as orações da Santíssima Trindade, e colocou-o diante das portas reais. O
sacerdote, com a sua sotaina de veludo lilás, emergiu das portas, compôs os
cabelos e ajoelhou com dificuldade. Todos os fiéis repetiram o seu gesto, olhando
uns para os outros com grande surpresa. Ia-se rezar a oração, recentemente
emanada do Santo Sínodo, rogando a Deus a salvação da Rússia, sob a ameaça da
invasão estrangeira.
«Senhor Deus todo-poderoso, Deus da nossa salvação», principiou o sacerdote
nessa voz nítida, suave e sem ênfase tão característica dos eclesiásticos eslavos
quando oram e que tão grande Poder exerce sobre a alma russa.
«Senhor Deus todo-poderoso, Deus da nossa salvação! Concede a Tua graça e a
Tua misericórdia às Tuas humildes criaturas e ouve a nossa oração, amerceia-Te de
nós e tem piedade.
O inimigo enche de confusão a Terra e quer transformar o mundo num deserto.
Este inimigo levanta-se contra nós. Homens criminosos reuniram-se para destruir oTeu bem, para arrasar a Tua fiel Jerusalém, a Tua Rússia bem-amada, para
conspurcar Os Teus templos, derrubar os altares e profanar os Teus santuários.
Até quando, Senhor, até quando triunfarão os pecadores?
«Senhor todo-poderoso! Escuta-nos a nós, que Te imploramos: ampara com a
Tua força o nosso mui piedoso imperador autocrata Alexandre Pavlovitch. Lembra-
Te da sua lealdade e da sua doçura, recompensa-o pela bondade com que ele nos
protege, a nós, a Tua Israel bem-amada. Abençoa as suas decisões, as suas
empresas, as suas obras. Revigora com a Tua dextra todo-poderosa o seu reino e
concede-lhe a vitória sobre o inimigo, como a Moisés sobre Amalek, Gedeão sobre
Madian, David sobre Golias. Protege os seus exércitos, sustém o arco de cobre
debaixo do braço dos que se armaram em Teu nome e cinge-os com a Tua força
para o combate. Pega nas Tuas armas e no Teu escudo e vem em nosso auxílio.
Que a confusão e a vergonha caiam sobre aqueles que nos querem mal e que eles
sejam diante do rosto dos Teus fiéis armados como a poeira diante do vento e que
o Teu Anjo todo-poderoso os expulse e persiga. Que uma rede os envolva sem eles
darem por isso e que as armadilhas que escondem sirvam para que caiam nelas.
Que eles caiam aos pés dos Teus escravos e que eles sejam esmagados pelos Teus
exércitos, Senhor! Tens o poder que salva grandes e pequenos. Tu és Deus e o
homem nada pode contra Ti.
«Deus de nossos pais! Lembra-Te da Tua generosidade e da Tua graça, que são
etcrnas. Não nos afastes da Tua presença, não Te apartes das nossas iniquidades,
mas, na grandeza da Tua bondade e na imensidade da Tua misericórdia, esquece
os nossos crimes e os nossos pecados. Edifica em nós um coração puro e renova no
nosso seio um espírito recto. Fortalece-nos a todos na nossa fé em Ti, revigora a
nossa esperança, inspira-nos um verdadeiro amor ao próximo, une-nos a todos
para a defesa legítima do património que Tu nos deste, a nós e a nossos pais, e
que o ceptro dos ímpios se não eleve sobre a terra daqueles a quem abençoaste.
«Senhor nosso Deus, em quem nós cremos e em quem temos firme confiança,
não desiludas a nossa esperança na Tua graça c, faz um milagre para nosso bem.
Que o vejam aqueles que nos odeiam, a nós e à nossa fé ortodoxa, e que eles
sejam confundidos e que pereçam e que todas as nações saibam que o Teu nome é
Senhor e que nós somos Teus filhos. Revela-nos, Senhor, hoje mesmo, a Tua
misericórdia e concede-nos a Tua salvação. Regozija o coração dos Teus escravos
com a Tua graça. Fulmina os nossos inimigos e aniquila-os debaixo dos pés dos Teusfiéis. És o apoio, és o socorro e a vitória dos que confiam em Ti. Glória ao Pai, ao
Filho e ao Espírito Santo, agora e por todos os séculos dos séculos. Amen.»
No estado impressionante em que se encontrava, Natacha sentiu-se
profundamente abalada por esta oração. Escutando as palavras referentes à
vitória de Moisés sobre Amalek, de Gedeão sobre Madian, de David sobre Golias
e à ruína de Jerusalém, rezava com toda a doçura e toda a ternura do seu coração.
Contudo, não compreendia lá muito bem o que estava a rogar a Deus.
Com toda a sua alma pedia que se lhe purificasse o espírito, que se lhe
fortalecesse o coração com a fé e a esperança e que nela reinasse o amor. Era-lhe
impossível, porém, orar para que os seus inimigos fossem esmagados quando
minutos antes desejara ter ainda mais inimigos para por eles poder rezar. No
entanto, não podia duvidar da justiça da oração que se rezara de joelhos. No fundo
do seu coração sentia um terror pleno de reconhecimento ao pensar no castigo
que fulmina os pecadores e sobretudo no castigo a que a expunham os seus
próprios pecados e pediu a Deus que lhes perdoasse a eles e a ela própria e que
lhes concedesse a todos, igualmente, o descanso e a felicidade nesta vida. E
parecia-lhe que Deus ouvia a sua oração.
[XIX]
Desde o dia em que Pedro, ao sair de casa dos Rostov sob a impressão do olhar
reconhecido de Natacha, contemplara o cometa e sentira como que desvendar-se-
lhe um novo horizonte, deixara de ser atormentado pelo etcrno problema da
vaidade e da loucura de tudo quanto existe à face da Terra. A terrível pergunta:
«Porquê? Para quê?», que outrora vinha associar-se às suas ocupações, achava-se
substituída não por qualquer outra pergunta ou por qualquer solução, mas pela
imagem que guardara dela. Quando escutava ou falava de coisas insignificantes,
quando lia ou se inteirava de qualquer baixeza ou loucura humana, não se
horrorizava como antigamente. Não estava sempre a perguntar-se a si próprio
porque se agitam tanto os homens quando a vida é tão curta e depois os espera o
desconhecido. Bastava evocá-la, no aspecto em que a vira pela última vez, e todas
as suas dúvidas desapareciam, e não era porque ela desse resposta a estasperguntas, mas porque a sua imagem o transportava num instante a uma região
luminosa da alma onde não podia haver nem justos nem culpados, à região da
beleza e do amor, as únicas razões pelas quais vale a pena viver. Fossem quais
fossem as misérias morais que a existência lhe oferecia, para si mesmo Pedro
murmurava:
«Que me importa a mim que fulano roube o Estado e o czar e que o Estado e o
czar o tenham cumulado de honrarias? Ontem ela sorriu-me e pediu-me que a
fosse ver e eu amo-a e ninguém o saberá jamais.» E a alma de Pedro ganhava a
serenidade e a paz.
Pedro continuava a frequentar a sociedade, a beber muito, a levar a mesma
vida ociosa e dissipada, pois, não falando nas horas que passava em casa dos
Rostov, as demais tinha ele de as preencher de qualquer maneira. Os seus hábitos
e as suas relações arrastavam-no vitoriosamente para aquela vida que o absorvia.
Mas ultimamente, quando principiaram a chegar do campo de batalha notícias
cada vez mais alarmantes, quando a saúde de Natacha principiou a restabelecer-se
e deixou de lhe inspirar aquele antigo sentimento de compaixão, uma vaga
inquietação, cada vez mais inexplicável a seus olhos, se apoderou dele. Pressentia
que a vida que levava não podia durar muito, que uma catástrofe se preparava
que transformaria toda a sua existência, e ei-lo a espiar com impaciência os sinais
anunciadores. Um dos pedreiros-livres seu irmão desvendara-lhe a profecia
seguinte, referente a Bonaparte, extraída do Apocalipse de S. João.
No capítulo XIII do Apocalipse, versículo 18, diz-se: «Aqui está a sabedoria.
Aquele que tem entendimento conte o número da besta; porque é número de
homem, e o seu número é seiscentos e sessenta e seis.»
No mesmo capítulo, versículo 5: «E deu-se-lhe a boca para falar grandezas e
blasfémias: e deu-se-lhe poder para assim o fazer quarenta e dois meses.»
As letras do alfabeto francês, iguais às do hebraico, podem exprimir-se por
meio de algarismos, e atribuindo as dez primeiras letras o valor das unidades e o
das dezenas às restantes, o seu valor numérico é o seguinte:
a b e d e f g h i j k
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 20
l m n o p q r s t u v
30 40 50 60 70 80 90 100 110 120 130x y z
140 150 160
Utilizando este alfabeto cifrado, as palavras l’empereur Napoléon
correspondem, pelas suas letras, a uns números que, somados, davam o resultado
666. E aí estava como Napoleão era a, besta de que falava o Apocalipse. Além
disso, ao escrever-se, com esse alfabeto, as palavras quarante-deux, isto é, o limite
que fora assinalado à besta para «falar grandezas e blasfémias», a soma das cifras
obtidas era de novo igual a 666. Resultava, pois, que o poder de Napoleão teria o
seu termo em 1812, data em que o imperador faria quarenta e dois anos. Esta
profecia impressionara muito Pedro, que frequentemente perguntava a si próprio
quem acabaria com o poder da besta, isto é, de Napoleão, e, graças à mesma
representação das letras por algarismos e mercê dos mesmos cálculos, deu-se a
procurar uma resposta para a interrogação. Escreveu como resposta a essa
pergunta: «O Imperador Alexandre? A nação russa?» Calculou as letras, mas a
soma era maior que 666. Unia vez em que estava entregue a estes cálculos
escreveu: «Comte Pierre Bésouhoff», mas não conseguiu obter o resultado
desejado. Alterou a grafia e pós um z no lugar do s, acrescentou a preposição de, o
artigo le, mas também sem conseguir o resultado que esperava. Então ocorreu-lhe
que, se a resposta à pergunta estivesse no seu nome, seria naturalmente
necessário mencionar a nacionalidade. Escreveu então: «le russe Bésouhoff» e
adicionando os algarismos obteve como resultado 671. Sobravam apenas cinco
letras, e o cinco representava a letra e, a mesma letra e que em francês se
suprime do artigo da palavra l’empereur. Suprimindo este e, não obstante
resultar um erro, escreveu «le russe Bésouhoff», isto é, precisamente 666. Esta
descoberta perturbou-o. Como estava ele relacionado com aquele acontecimento
previsto pelo Apocalipse? Eis o que a si próprio não sabia explicar. Mas não
hesitou um momento. O amor por Natacha Rostov, o Anticristo, a invasão de
Napoleão, o cometa, o número 666, «l’empereur Napoléon» e «l’russe Besouhoff»,
todo aquele conjunto de factos misteriosos devia amadurecer, tinha de acabar por
explodir, impelindo-o para fora do círculo vicioso dos hábitos mundanos moscovitas
de que se sentia prisioneiro, e levando-o, por fim, a realizar um acto heróico e— a
alcançar uma grande felicidade.
Na véspera daquele domingo em que fora lida a oração, Pedro prometera
trazer aos Rostov a proclamação do imperador e as últimas novas sobre o que se
passava no exército, que procuraria obter junto do conde Rostoptchine, com quem
estava em boas relações. Na manhã em que se apresentou em casa deste
encontrou ali um correio que acabava de chegar do exército. Este correio era um
dos melhores dançarinos dos bailes de Moscovo, e, conhecido seu.
— Não quererá ajudar-me? — disse-lhe o correio — Trago uma mala cheia de
cartas para pessoas de família.
Entre essas cartas havia uma de Nicolau Rostov dirigida ao pai. Pedro tomou
conta dela. Por seu lado, o conde Rostoptchine entregou-lhe a proclamação do
imperador ao povo de Moscovo, que acabava de receber, as últimas ordens do
exército e o último apelo por ele redigido. Ao percorrer as ordens do exército,
Pedro descobriu, na lista dos, mortos, dos feridos e dos agraciados, o nome de
Nicolau Rostov, que fora condecorado com a cruz de S. Jorge, de 4ª classe, pelo
acto de bravura que cometera em Ostrovno, e na mesma ordem do exército a
nomeação de André Bolkonski para comandante de um regimento de caçadores.
Embora não lhe parecesse muito agradável lembrar aos Rostov o nome de
Bolkonski, não quis deixar de lhes comunicar a boa nova da distinção concedida, e,
resolvendo ser ele próprio a levar-lhes as outras ordens do exército, a
proclamação e o apelo, à hora do jantar, tratou de lhes mandar imediatamente a
relação impressa e a carta.
A conversa que teve com o conde Rostopchine, o ar inquieto e azafamado
deste, o encontro com o correio e as más novas do exército que o último lhe
comunicara despreocupadamente, o boato que corria segundo o qual se haviam
descoberto espiões em Moscovo encarregados de distribuir panfletos em que se
dizia que Napoleão prometera ocupar as duas capitais antes do Outono e as
conversações sobre a chegada do imperador, esperado no dia seguinte, tudo
concorria para agravar a agitação e a inquietação em que andava Pedro desde a
aparição do cometa, e sobretudo depois do começo da guerra.
Havia muito que lhe ocorrera a ideia de alistar-se no exército, e já o teria feito
se, por um lado, não pertencesse à sociedade maçónica, a que estava ligado por
um juramento, e a qual pregava a paz perpétua e a abolição das guerras, e, por
outro, não tivesse visto como avultado número de moscovitas vestia o uniforme
militar com grande alarde de patriotismo, coisa que, sem que ele soubesse muitobem porquê, o fazia sentir-se um pouco envergonhado de dar esse passo. A causa
principal do seu retraimento, no entanto, era aquela vaga convicção de ser ele
«l’russe Bésouhoff», quem representava o número 666, e de que a sua participação
na grande obra de destruição do poder da besta estava decidida desde toda a
etcrnidade, facto que o levava a pensar, por conseguinte, não dever tomar por si
próprio qualquer resolução, mas esperar pelo que fatalmente tinha de acontecer.
[XX]
Em casa dos Rostov, como era costume todos os domingos, havia algumas
pessoas íntimas a jantar.
Pedro chegou mais cedo para encontrar a família só. Engordara tanto nesse
ano que, se não fosse a sua grande estatura, estaria disforme. Os seus largos
ombros e a sua grande robustez aguentavam perfeitamente aquela obesidade.
Subiu as escadas resfolgando e murmurando qualquer coisa entre dentes. O
cocheiro não lhe perguntara se devia esperar; sabia muito bem que teria de
aguardar até à meia-noite. Os lacaios de Rostov haviam-se precipitado para o
ajudar a despir o casacão e tomarem conta do chapéu e da bengala. Deixava-os
sempre no vestíbulo, como costumava fazer no clube.
A primeira pessoa que ele avistou foi Natacha, Ouvira-a mesmo antes de a ver
quando despia o casacão ira antecâmara. Dava-se a exercícios de solfejo no salão,
como Pedro sabia que ela não voltara a cantar desde que adoecera, o som da sua
voz foi para ele uma surpresa muito agradável. Entreabriu a porta de mansinho e
viu-a com o seu vestido lilás, o que levara à missa, andar de um lado para o outro
cantando. Estava de costas quando ele abriu a porta, mas, tendo-se voltado
bruscamente, descobriu, assombrada, a sua espessa figura, Corando muito, correu
para ele.
— Estou com vontade de cantar outra vez — disse ela. — Ajuda-me a passar o
tempo — acrescentou, como que a desculpar-se.
— Muito bem.
— Estou muito contente por ter vindo! Sinto-me hoje tão feliz! — continuou
com a mesma animação de outrora, animação que Pedro lhe não via há muito. —Sabe? O Nicolau teve a cruz de S. Jorge! Estou cheia de orgulho por ele!
— Sim, bem sei, fui eu quem mandou a ordem do exército. Mas não a quero
importunar— acrescentou, dispondo-se a passar ao salão contíguo.
Natacha deteve-o.
— Conde! Acha que faço mal em cantar? — disse, corando, enquanto o
interrogava com os olhos.
— Mas... porquê? Pelo contrário... Porque me pergunta isso?
— Não sei — replicou ela precipitadamente. — Não gostava de fazer fosse o
que fosse que lhe desagradasse. Tenho tanta confiança em si! Nem calcula a
importância que tem para mim e o bem que me tem feito!— prosseguiu ela, no
mesmo tom, sem reparar que Pedro ia corando à medida que ela falava.— Ah!,
também vi nessa mesma ordem do exército que ele está na Rússia, ele, Bolkonski
— pronunciou o nome em voz baixa e precipitadamente —, e que voltou para o
exército. Que acha? Crê que virá a Perdoar-me? — acrescentou, em voz sumida,
como se receasse que as forças lhe faltassem antes de acabar a frase. — Acha que
ficará para sempre zangado comigo? Diga. Que lhe parece?
— Acho... — volveu Pedro — que nada tem a perdoar-lhe... E se eu estivesse
no lugar dele...
Por associação de ideias, transportara-se, subitamente, ao momento em que,
para consolá-la, lhe dissera que se estivesse livre lhe pediria de joelhos que se
casasse com ele, e os mesmos sentimentos de piedade, de ternura, de amor lhe
encheram o coração e as mesmas palavras de então lhe vieram aos lábios.
Natacha, porem, não lhe deu tempo de pronunciá-las.
— Oh, o Pedro... o Pedro... — articulou a palavra com exaltação — o Pedro é
muito diferente. Ninguém conheço melhor, mais generoso, mais nobre e não pode
haver outro. Se o não tivesse a meu lado então, e agora mesmo, não sei o que
teria sido de mim, pois...
De súbito encheram-se-lhe os olhos de lágrimas. Voltou a cabeça para o lado,
ergueu o caderno de música para esconder a emoção que a tomava e pôs-se a
cantar, passeando na sala de um lado para o outro.
Nessa altura Pétia entrou no salão.
Era um rapazinho de quinze anos, fresco e rosado, com grossos lábios
vermelhos, que se parecia com Natacha. Estava a preparar-se para entrar na
universidade, mas ultimamente, tanto ele como o seu camarada Obolenski,congeminavam, às escondidas, fazer-se hússares.
Pétia precipitou-se a falar do problema ao seu homónimo. Pediu-lhe que se
informasse se o aceitariam no corpo de hússares.
Mas Pedro, sem o ouvir, continuava a andar de cá para lá. Pétia travou-lhe do
braço para lhe chamar a atenção.
— Então, como vão as minhas coisas, Pedro Kirilovitch? Por amor de Deus! É a
minha única esperança! — exclamou Pétia.
— Ah, sim! O teu caso? Os hússares? Hei-de falar nisso, hei-de falar nisso. Hoje,
sem falta.
— Então, meu caro, então! Arranjou a proclamação? — disse-lhe o velho conde
assim que o viu. — A condessa foi à missa, à capela dos Razumovski. Rezaram uma
nova oração. Parece que é muito bonita. Ela assim o diz.
— Sim, arranjei — redarguiu Pedro — O imperador chega amanhã... Haverá
uma reunião extraordinária da nobreza e faia-se num recrutamento de dez por
cada mil homens. E os meus parabéns!
— É verdade, é verdade! Louvado seja Deus! E do exército, que notícias há?
— Os nossos recuaram outra vez. Estão já nas proximidades de Smolensk,
segundo se diz — replicou Pedro.
— Meu Deus, meu Deus! — exclamou o conde. — E onde é que tem a
proclamação?
— A proclamação! Ah!, sim!
Pedro pôs-se a mexer nos bolsos e não pôde dar com ela. Sempre revolvendo
as algibeiras, ia beijando a mão à condessa, que entretanto penetrara na sala, e
lançando olhares inquietos à sua roda, preocupado com Natacha, que deixara de
cantar e não aparecia.
— Ora que isto, não sei onde a meti — disse ele.
— Perde tudo! — murmurou a condessa.
Natacha entrou nessa altura na sala com um ar enternecido e emocionado e
sentou-se, sem dizer palavra, a olhar para Pedro. Ao vê-la na sala, o rosto deste,
triste até então, iluminou-se de súbito, e, continuando nas suas pesquisas, olhava-
a de vez em quando.
— Eu vou procurá-la. Devo tê-la deixado em casa. Com certeza...
— Vai chegar tarde para o jantar.
— É verdade, e o cocheiro foi-se embora.Mas Sónia, que fora procurar os papéis ao vestíbulo, encontrara-os no chapéu
de Pedro, onde ele os guardara cuidadosamente debaixo da vira, Pedro ia
principiar a ler.
— Não, depois do jantar — atalhou o velho conde, que se preparava para
apreciar devidamente a leitura.
Durante o jantar, em que se bebeu champanhe à saúde do novo cavaleiro de S.
Jorge, Chinchine contou o que se dizia na cidade: falou na doença da velha princesa
georgiana, no desaparecimento de Métivier, na história de um alemão que fora
conduzido à presença de Rostoptchine, a quem disseram que se tratava de um
champignon, mas que, como o próprio Rostoptchine contara, mandara soltar
dizendo que não era um champignon francês, mas apenas um velho cogumelo
alemão.
— Sim, sim, deitam-lhes a mão, deitam-lhes a mão – disse o conde —, e já
tenho dito muitas vezes à condessa que não fale francês. Não é momento para
isso.
— E querem saber? — voltou Chinchine. — O príncipe Galitzine contratou um
preceptor russo, está a aprender russo. Começa a ser perigoso falar francês pelas
ruas.
— Então, Pedro Kirilovitch, quando recrutarem a milícia, lá verei a cavalo —
disse o velho conde.
Pedro estivera silencioso e pensativo durante toda a refeição. Fitou o conde,
que o interpelava, sem parecer tê-lo compreendido.
— Sim, sim, a guerra! — exclamou ele. — E eu, que belo guerreiro! De resto, é
tudo tão estranho! Realmente não percebo coisa alguma. Não sei, sou um homem
com muito pouca propensão para a guerra, mas nos tempos que correm ninguém
pode responder por si.
Depois do jantar, o conde instalou-se tranquilamente numa poltrona, e, com
grave semblante, pediu a Sónia, que tinha fama de pronunciar muito bem, que
lesse a proclamação.
«Dada em Moscovo, a nossa primeira capital.
«O inimigo atravessou com forças consideráveis as fronteiras da Rússia. Vem
assolar a nossa pátria bem-amada», leu Sónia, meticulosamente, com a sua vozita
fina. O conde ouvia-a de olhos fechados, suspirando de vez em quando em certos
passos. Natacha, na sua cadeira, muito atenta, ia fixando, escrutadoramente, ora opai ora Pedro. Este, sentindo que ela o olhava, evitava voltar-se para o seu lado.
A condessa, sempre que havia uma frase solene na proclamação, abanava a cabeça
num ar descontente e desaprovador. Em tudo aquilo via apenas que os perigos
que ameaçavam o filho estavam longe de acabar. Chinchine, a boca franzida num
sorriso trocista, preparava-se evidentemente para aproveitar todas as
oportunidades que se lhe oferecessem para fazer espírito, quer a propósito da
leitura de Sónia, quer do que o conde diria, quer ainda da própria proclamação, à
falta de qualquer outro pretexto.
Depois de ter lido os passos relativos aos perigos que ameaçavam a Rússia, às
esperanças que o imperador depositava em Moscovo e sobretudo na sua gloriosa
nobreza, Sónia, em voz trémula, principalmente por virtude da atenção que lhe
prestavam, chegou ao fim:
«Não tarda que nós próprios nos encontremos entre o nosso povo nesta capital
e em outros locais do nosso Império, prontos a deliberar e a guiar todas as nossas
milícias, tanto as que actualmente cortam o passo ao inimigo como as que se vão
formar para combatê-lo onde quer que ele se encontre. Que a perdição em que ele
quer precipitar-nos recaia sobre a sua própria cabeça e que a Europa, liberta da
escravidão, glorifique o nome da Rússia!»
— Muito bem! — exclamou o conde, entreabrindo os olhos humedecidos e
fungando por várias vezes, como se lhe dessem sais a cheirar. E acrescentou: —
Basta uma palavra do imperador, e estamos prontos a tudo sacrificar, sem poupar
nada.
Ainda Chinchine não tinha tido oportunidade de proferir o seu gracejo sobre o
patriotismo do conde quando Natacha correu para o pai.
— Que pai encantador eu tenho! — exclamou ela, beijando-o, e ao mesmo
tempo relanceava de novo um olhar a Pedro com uma galanteria inconsciente, que
acordava nela ao mesmo tempo que a alegria.
— Isto é que é uma patriota! — disse Chinchine.
— Não sou patriota, sou apenas... — ripostou Natacha, ofendida. — Ri-se de
tudo, mas isto não é para rir...
— Que há nisto que dê vontade de rir...? — observou o conde. — Basta uma
palavra sua, e todos nós nos levantaremos... Nós não somos como os Alemães...
— Repararam que a proclamação diz: «prontos a deliberar»?
— Ou seja para isso ou para qualquer outra coisa.Nesse momento Pétia, a quem ninguém prestava atenção, aproximou-se do
pai, e, muito corado, numa voz entrecortada, ora vibrante ora quase surda, disse-
lhe:
— Pois bem, pai, dir-lhe-ei agora, e a si também, minha mãe, se assim o
querem; digo-lhes: deixem-me ingressar no exército, porque não posso mais... e é
tudo...
A condessa, aterrorizada, elevou os olhos, apertou as mãos uma na outra e
disse para o marido:
— Aqui tens! Foi isto o que tu conseguiste!
Mas o conde imediatamente baixou o calor do seu entusiasmo.
— Bom, bom — disse ele. — Olhem para este guerreiro. Não digas tolices!
Trata mas é de ir para a escola.
— Não são tolices, pai. Obolenski Fédia é mais novo do que eu e também vai
para a guerra. Além disso, por mais que faça, não sou capaz de estudar agora,
que... — Pétia calou-se, corando até às meninas dos olhos, e concluiu: — a pátria
está em perigo.
— Basta, basta! Deixa-te de disparates...
Mas o pai ainda agora disse que estava pronto a sacrificar tudo.
— Pétia! Já te disse que te calasses! — gritou o conde, trocando um olhar com
a mulher, a qual, muito pálida, não retirava Os olhos do seu filho mais novo.
— E vou dizer-lhe... Pedro Kirilovitch lhe dirá...
— Já disse, são disparates. Ainda ontem era um menino de mama e já hoje
quer ser soldado. Bem, bem, já te disse o que tinha a dizer-te.
E o conde, pegando na proclamação, naturalmente para voltar a lê-la no seu
gabinete, antes de ir para a cama, dispunha-se sair.
— Pedro Kirilovitch — disse ele —, venha fumar um cigarro...
Pedro estava muito perturbado e indeciso. Sentia postos nele a todo o
momento os olhos brilhantes e animados de Natacha, com uma insistência que não
era apenas amabilidade.
— Não. Parece-me que vou para casa...
— Que diz? Para casa? Mas o senhor vinha passar a noite connosco... Vem
poucas vezes a nossa casa. E esta... — continuou o conde, bonacheirão, apontando
para Natacha — esta só parece alegre na sua presença.
— Sim, mas esqueci-me... Tenho de voltar a casa sem falta... Uns assuntos... —replicou Pedro, pressuroso.
— Bem, então adeus — disse o conde, retirando-se.
— Porque se vai embora? Porque está tão perturbado? Porquê? — perguntou-
lhe Natacha, fitando-o provocadoramente nos olhos.
«Porque te amo!», teria ele desejado dizer, mas não abriu a boca e corou até à
raiz dos cabelos, baixando a vista.
— Porque seria melhor para mim visitá-los menos vezes... Porque... Não,
seriamente, é porque tenho uns assuntos...
— Porquê? Diga-me porquê... — teimou Natacha, num tom decidido. De
repente, porém, calou-se.
Os dois entreolharam— se, receosos e confusos. Pedro procurou sorrir, mas não
pôde. No seu esgar havia sofrimento. Beijou a mão de Natacha em silêncio e
desapareceu.
Pedro decidiu não voltar a casa dos Rostov.
[XXI]
Pétia, depois de tão formal negativa do pai, fechou-se no quarto e chorou
amargamente. Todos fingiram não dar por coisa alguma quando ele apareceu para
o chá, triste e calado, com os olhos todos vermelhos.
No dia seguinte chegava o imperador. Alguns dos criados de Rostov pediram
licença para assistir à chegada do czar. Naquela manhã Pétia levou muito tempo a
vestir-se e a pentear-se e pôs um colarinho de homem. Franzia as sobrancelhas
diante do espelho, esboçava grandes gestos, encolhia os ombros. Finalmente, sem
dizer nada a ninguém, pôs o chapéu e saiu pela porta de serviço, procurando não
ser visto. Decidira ir directamente ao local onde estivesse o imperador e explicar a
um dos camaristas — pensava que o imperador andava sempre rodeado de uma
nuvem de camaristas — ser o conde Rostov e que, não obstante muito novo, era
seu desejo servir a pátria, e que a sua pouca idade não podia ser obstáculo quando
se tratava de uma coisa assim e que estava disposto... Preparara uma série de
lindos discursos para recitar ao dito camarista.
Pétia contava ser bem sucedido ao apresentar-se ao imperador precisamenteporque era uma criança — pensava, inclusivamente, assombrar toda a gente com
a sua juventude —, e, no entanto, na maneira como arranjara o colarinho, na
forma como se penteara, no seu andar grave e moderado, procurava dar a
impressão de ser um homem feito, A medida, porém, que ia avançando, mais
distraído se mostrava com a multidão que afluía ao Kremlin, esquecendo-se de
manter o ar grave que convinha. Ao aproximar-se do palácio, tratou de não deixar
que a multidão o arrastasse e pôs-se a distribuir empurrões para a direita e para a
esquerda, com ar ameaçador. Na porta da Trindade, apesar de toda a sua energia,
a multidão, que provavelmente ignorava as suas intenções patrióticas, de tal
modo o comprimiu de encontro à muralha que ele não teve outro remédio senão
ficar ali parado espera que as carruagens que passavam sob o arco, estrondeando,
houvessem desfilado. Ao pé dele estava uma mulher do povo, um lacaio, dois
negociantes e um soldado reformado. Depois de algum tempo imobilizado, Pétia,
sem esperar que desfilassem todas as carruagens, quis passar adiante dos demais
e resolveu abrir caminho à força de cotovelos. Porém a mulher que estava a seu
lado, a primeira pessoa a ser acotovelada, interpelou-o, colérica:
— Que é lá isso, senhorito? Não vê que estão todos à espera? Onde vai com
essa pressa?
— Assim todos nós podíamos caminhar — corroborou o lacaio, que, servindo-se
também dos seus cotovelos, o empurrou de encontro a um malcheiroso recanto da
porta.
Pétia passou a mão pela cara coberta de suor e deu um jeito ao colarinho todo
amarrotado que com tanto esmero pusera, à imitação das pessoas crescidas.
Reconhecia já não estar com aspecto decente e que se se apresentasse ao
camarista não o deixariam aproximar-se do imperador. Mas recompor-se e sair
daquele labirinto não lhe era possível. A certa altura viu passar um general
conhecido da família. Pensou pedir-lhe que o ajudasse, mas logo reconsiderou,
achando que isso não era atitude digna de um homem como ele. Assim que
acabaram de desfilar as carruagens, a multidão precipitou-se c, arrastou-o consigo
até à praça, coalhada de povo. Havia gente Por todos os lados, até em cima dos
telhados, Assim que desembocou na praça ouviu distintamente o repicar dos sinos
que enchia todo o Kremlin e o burburinho da turba-multa. De súbito abriu-se uma
clareira entre a multidão, todas as cabeças se descobriram e mais uma vez toda a
gente se lançou para diante. Pétia, esmagado pela multidão, mal podia respirar.Todos gritavam: «Hurra! Hurra! Hurra!» O pequeno erguera-se na ponta dos pés,
empurrava os vizinhos, agarrava-se a eles, mas nada mais podia ver além da
multidão que o cercava.
Em todos os rostos havia o mesmo entusiasmo e o mesmo carinho.
Uma vendedeira, a seu lado, rompeu em soluços, e as lágrimas caíam-lhe pela
cara.
— Paizinho, meu anjo, meu paizinho! — balbuciava ela, enxugando as lágrimas
com as mãos.
«Hurra!», continuava a ouvir-se por todos os lados.
Por momentos, a multidão imobilizou-se, e de novo se lançou para a frente.
Pétia sem dar conta do que fazia, de dentes cerrados e os olhos esbugalhados,
precipitou-se também, distribuindo socos e gritando: «Hurra!» Dir-se-ia que
naquele momento estava pronto a matar os outros e a matar-se a si. A seu lado,
pessoas com expresses idênticas e igualmente selvagens, soltavam os mesmos
clamores.
«Finalmente, lá está o imperador!», pensava ele. «Ah!, mas como apresentar-
lhe a minha petição? Seria um atrevimento!» Nem por isso deixava contudo de
furar a multidão desesperadamente, e por cima dos ombros dos que iam diante
dele pôde ver um espaço livre com uma passadeira encarnada. No mesmo
momento, porém, a multidão recuou, pois os polícias que estavam na frente
tinham repelido os que haviam chegado perto de mais do cortejo na altura em que
o imperador, vindo do palácio, entrava na catedral de Uspenki. Foi então que
Pétia recebeu de repente uma grande pancada na cabeça e se sentiu de tal modo
esmagado pela multidão que a vista lhe toldou e caiu sem sentidos. Quando voltou
a si, um dignitário da igreja, com um rabicho de cabelos brancos na nuca, vestindo
uma sotaina azul desbotada, naturalmente um sacristão, amparava-o com uma
mão por debaixo de um braço, enquanto com a outra o protegia da vaga da
multidão.
— Iam matando este rapazinho! — clamava o sacristão. — Não vêem?...
Cuidado!... Está esmagado, esmagado!
O imperador entrava na catedral. A multidão apaziguou-se outra vez e o
sacristão levou consigo Pétia, muito pálido, mal podendo respirar, até ao pé do rei
dos canhões. Várias pessoas se compadeceram de Pétia e a multidão refluiu, de
súbito, direita a ele, comprimindo-se à sua volta. Os que estavam mais .pertodesapertaram-lhe o fato, obrigaram-no a sentar-se no pedestal do canhão,
manifestando a sua revolta contra os que o haviam Posto em tal estado.
«Podiam tê-lo liquidado! Sempre te digo! É um crime! Olhem para ele, pobre
miúdo, está branco como a cal da parede!» murmurava-se na turba.
Não tardou que Pétia voltasse completamente a si. As faces tornaram a ficar
coradas, a dor passou e graças a esta passageira indisposição pôde conseguir um
bom lugar em cima do canhão, donde esperava poder ver agora perfeitamente o
imperador no seu regresso da catedral. Não pensava mais, porém, na sua petição.
Vê-lo que fosse já era uma grande felicidade.
Durante a cerimónia na catedral, em que se celebrava um serviço de acção de
graças pelo regresso do imperador e outro pela conclusão da paz com os Turcos, a
multidão dispersou-se. Apareceram então os vendedores de kvass, de rosquilhas
de amêndoa e de sementes de papoula, de que Pétia gostava muito; soltavam os
seus pregões enquanto a multidão tagarelava. Uma vendedeira expunha o xale
rasgado e dizia quanto lhe custara, outra garantia estarem as sedas por um preço
doido. O sacristão que salvara Pétia falava com um funcionário sobre as
personalidades que oficiavam com Sua Eminência. Por várias vezes pronunciou a
palavra «concílio», cuja significação Pétia ignorava. Dois comerciantes novos
chalaceavam com duas moças que rilhavam nozes. Todas estas conversas,
principalmente a dos rapazotes com as moças, coisa própria para o interessar na
sua idade, não lhe despertavam a mais pequena curiosidade naquele momento. Ali
estava empoleirado no pedestal do canhão, comovidíssimo, a pensar no imperador
e no amor que lhe tinha. E a dor e o medo que experimentara quando se vira por
terra, juntos ao entusiasmo que sentia, ainda lhe tornavam mais memorável
aquela hora solene.
De repente estrondearam tiros de canhão ao longo do cais — eram salvas para
comemorar a paz com os Turcos —, e a multidão arrojou-se em peso para aquele
lado na esperança de desfrutar o novo espectáculo. Pétia quis fazer o mesmo, mas
o sacristão, que o tomara à sua guarda, não consentiu. Ainda as salvas não tinham
cessado quando saíram apressadamente da catedral oficiais, generais, camareiros,
e atrás deles outra gente que caminhava menos apressada, Todos os presentes se
desbarretaram e a multidão que ocorrera ao cais de novo afluiu àquele lado da
praça. Finalmente quatro senhores de uniforme de gala apareceram à porta.
«Hurra! Hurra!», gritou a multidão,«Qual é? Qual é?», perguntava Pétia com lágrimas na voz, mas ninguém lhe
respondia. Toda a gente estava embasbacada com o espectáculo. E, escolhendo ao
acaso uma das quatro personagens que mal podia distinguir através das lágrimas
de alegria que lhe inundavam os olhos, foi a ela que consagrou todo o seu
entusiasmo. Gritou «Hurra!», numa voz arrebatada, e ali mesmo resolveu
definitivamente, custasse o que custasse, que a partir do dia seguinte seria
soldado.
A turba correu atrás do imperador, acompanhando-o até ao palácio e em
seguida dispersou, Era tarde, e Pétia, em jejum, sentia-se alagado de suor, que lhe
gotejava da testa. Não saía, porém, de ao pé dos basbaques, cada vez mais raros,
mas ainda muitos nessa altura. Enquanto durou o banquete do imperador deixou-
se ficar diante do palácio, a olhar para as janelas, sempre à espera de um
acontecimento qualquer, e cheio de inveja, ao mesmo tempo, quer dos dignitários
que chegavam para tomar parte no jantar, quer dos lacaios que serviam à mesa e
que se viam através das janelas.
Durante o banquete, Valuiev, lançando um olhar para a rua, disse:
— O povo ainda espera tornar a ver Vossa Majestade.
O jantar estava no fim, o imperador levantou-se, a trincar ainda um biscoito, e
apareceu à varanda.
«Nosso anjo! Nosso pai! Hurra! Nosso pai!...», gritava a multidão, e Pétia com
ela. E de novo as mulheres e alguns homens também, mais discretamente, em cujo
número se contava Pétia, choraram lágrimas de alegria.
Um pedaço de biscoito que o imperador tinha na mão caiu sobre o parapeito
da varanda e daí para a rua. Um cocheiro, de avental, que estava mais perto,
precipitou-se para apanhá-lo. Os que se encontravam nas imediações lançaram-se
sobre ele. Vendo o que, o czar mandou lhe trouxessem o prato dos biscoitos e
despejou-o do alto da varanda. Os olhos de Pétia injectaram-se de sangue. O
perigo de ser pisado ainda mais o excitava, e precipitou-se. Não sabia porquê, mas
sentia que precisava absolutamente de um dos biscoitos arrojados pela mão do
imperador e por nada deste mundo teria desistido do seu intento. Na sua carreira
atirou ao chão uma velha que ia deitar a mão a um deles, a qual se não deu por
vencida, embora de joelhos em terra. Tinha, porém, o braço muito curto. Pétia
deu-lhe uma joelhada, apanhou o biscoito, e, para não ficar atrás dos outros,
gritou de novo: «Hurra!», mas desta vez numa voz rouca.O imperador recolheu-se e então a maior parte do povo dispersou.
«Eu bem te disse que era bom esperar. Aqui tens, conseguimos vê-lo!», dizia-
se, alegremente, no meio da multidão.
Apesar da alegria que experimentava, Pétia não estava satisfeito por voltar
para casa; o prazer daquela jornada findara para ele. Por isso, em vez de regressar
ao lar, dirigiu-se a casa do seu camarada Obolenski, que tinha quinze anos e ia
ingressar no exército. Quando voltou a casa, Pétia declarou resoluto que fugiria se
o não deixassem alistar-se. E no dia seguinte, embora sem ter dado ainda a sua
autorização formal, o conde Ilia Andreitch foi informar-se de qual seria a melhor
maneira de alistar o filho sem o expor demasiado.
[XXII]
No dia 15, de manhã, três dias depois dos acontecimentos relatados, grande
número de carruagens estacionava diante do Palácio Slobotski.
Os salões estavam cheios de gente. No primeiro havia nobres envergando os
seus uniformes; no outro, comerciantes de grandes barbas, com as suas
condecorações e os seus cafetãs azuis.
Na sala da nobreza tudo era bulício e agitação. Diante de uma grande mesa,
sob o retrato do imperador, em cadeiras de alto espaldar, sentavam-se as
personalidades mais importantes, mas a maior parte das pessoas deambulava pela
sala.
Toda esta fidalguia, a mesma gente que Pedro encontrava todos os dias no
clube ou a quem visitava, vestia uniformes de épocas diferentes, do tempo de
Catarina, de Paulo, de Alexandre, ou então a farda vulgar da nobreza. Mas esses
uniformes, no fundo bastante parecidos, davam um aspecto estranho e fantástico a
essas figuras, jovens ou idosas, tão diferentes e ao mesmo tempo tão conhecidas.
Os mais extraordinários eram os velhos: desdentados, calvos, meio cegos, cobertos
de uma gordura amarelenta ou então magros e rugosos. A maior parte
permanecia sentada, sem dizer palavra, e, se alguns se levantavam para
conversar, iam instalar-se ao pé dos mais novos.
À semelhança do que acontecia com os rostos da multidão estacionada napraça em que estivera Pétia, também na expressão desta gente se reflectiam as
mais variadas preocupações: a expectativa de um acontecimento memorável ou a
recordação do facto mais banal da vida, uma partida de boston, um bom jantar
preparado pelo cozinheiro Petrushka, a boa saúde de Zenaida Dmitrievna e coisas
do mesmo teor.
Desde manhã muito cedo que Pedro, que a custo se enfiara no seu uniforme de
fidalgo, muito apertado, se encontrava na sala. Uma grande emoção o dominava.
Esta reunião extraordinária, não só da nobreza, mas dos próprios comerciantes,
aquela reunião das diversas classes, os estados gerais, despertava nele uma
revoada de ideias há muito abandonadas, embora profundamente arreigadas no
seu espírito, relativas ao Contrato Social e à Revolução Francesa.
As palavras da proclamação anunciando que o imperador iria a Moscovo para
deliberar com o seu povo confirmavam-no na sua maneira de ver. E na suposição
de que se preparava, nesta ordem de ideias, qualquer coisa de importante, que há
muito esperava, ia e vinha, observava, prestava o ouvido às conversas, sem de
resto nada encontrar em parte alguma que viesse ao encontro dos pensamentos
que o absorviam.
Foi lida a proclamação, que despertou entusiasmo, depois formaram-se grupos
fazendo comentários. Além dos assuntos triviais de conversa, Pedro reparou que
se falava do lugar em que deviam ficar colocados os marechais da nobreza quando
entrasse o imperador, da data do baile em sua honra, e as pessoas perguntavam
umas às outras se deveriam reunir-se por distritos ou por províncias, etc. Sempre
porém que se falava da guerra e do objecto preciso daquela reunião, só se diziam
coisas vagas e indecisas. As pessoas preferiam ouvir a falar.
Um homem de certa idade, com ar marcial, bonita figura e farda de oficial da
marinha reformado, falava numa das salas a um grupo de pessoas que o
rodeavam. Pedro aproximou-se e pôs-se a escutar.
O conde Ilia Andreitch, com o seu cafetã de voivoda do tempo de Catarina,
cirandava com um sorriso nos lábios por meio da multidão, tudo gente sua
conhecida. Aproximando-se igualmente do grupo, apurou o ouvido, com esse ar
bonacheirão que tinha sempre em tais casos, enquanto abanava a cabeça
aprovadoramente. O marinheiro sustentava opiniões muito atrevidas, como podia
depreender-se da expressão dos que o ouviam e do facto de pessoas que Pedro
conhecia como pacíficas e serenas se afastarem dele com modos reprovadores oucontradizendo-o. Abrindo caminho até meio do grupo, Pedro, depois de escutar por
algum tempo, convenceu-se de que quem falava era realmente um liberal, mas um
liberal de uma natureza muito diversa da sua, o orador tinha uma voz de barítono,
sonora e cantante, comia os rr e abreviava as consoantes, uma dessas vozes que
costumam gritar: «Apraz, o meu cachimbo!» e coisas idênticas. Falava com e
entono e a segurança de quem está habituado a mandar.
— E então? Que tem que os de Smolensk tenham oferecido milícias ao
imperador? São eles quem faz as leis? Se a digna nobreza da província de
Moscovo assim o entender, tem outras maneiras de mostrar a sua dedicação. Já
esquecemos a milícia de 1807? Só ganharam com isso os ladrões e os filhos de
pope...
O conde Ilia Andreitch, sorrindo docemente, abanava a cabeça, aprovador.
— E então? De que serviram ao Estado os milicianos? De nada. A única coisa
que fizeram foi arruinar as nossas propriedades. Ainda o melhor é o
recrutamento... Se assim não for, aqueles que voltarem da guerra nem serão
soldados nem camponeses, mas malandros, malandros, nada mais. Os nobres não
poupam a sua vida, todos nós lá iremos individualmente e levaremos connosco os
recrutas. Basta que o imperador chame por nós, e estaremos prontos a morrer por
ele — concluiu o orador, cada vez mais entusiasmado.
Ilia Andreitch engasgava-se, de tão contente, e ia dando cotoveladas a Pedro,
pela sua parte desejoso de dizer alguma coisa também. Deu alguns passos em
frente, arrebatado pelas circunstâncias, mas sem saber ao certo o que ia dizer.
Mal abriu a boca, logo foi interrompido por um senador desdentado, de
expressão inteligente, mas furibunda, que estava ao lado do orador. Via-se ser
homem habituado a presidir a debates, e falava numa voz serena, mas precisa.
— Suponho, meu caro senhor — disse, com a sua boca desdentada —, não
termos sido convocados para discutir o que é preferível para o imperador na hora
que passa: o recrutamento ou a milícia. Temos de responder à proclamação com
que o imperador nos honrou. Quanto a escolher entre o recrutamento e a milícia,
deixemos que o poder supremo decida...
Pedro encontrou logo uma saída para a exaltação que o tomava.
Estava indignado com as vistas curtas e com as limitações que o senador
queria impor às opiniões da nobreza. Deu um passo em frente e interrompeu-o. Ele
próprio não sabia o que ia dizer, mas pôs-se a falar com vivacidade, usandopalavras francesas intercaladas num russo assaz livresco.
— Perdoe-me, Excelência — principiou ele. Era íntimo do senador mas entendia
dever dar-lhe esse tratamento. — Embora eu sei a da opinião deste senhor... —
Engasgou-se. Era sua intenção dizer: meu muito digno preopinante... — Deste
senhor... que não tenho a honra de conhecer, suponho que a nobreza não foi
convocada apenas para exprimir a sua simpatia e o seu entusiasmo, mas também
para discutir as medidas que entenda úteis à pátria. Suponho — prosseguiu ele,
cada vez mais animado — que o próprio imperador ficaria descontente se visse
que não passávamos de proprietários de campónios postos às suas ordens para...
carne de canhão, em vez de um... conselho.
Vários circunstantes afastaram-se ao verem o sorriso desdenhoso do senador,
além de acharem que Pedro empregava uma linguagem muito livre. Só Ilia
Andreitch aprovou o discurso deste, tal qual como havia aprovado antes o do
marinheiro, o do senador e em geral de todos quantos fossem os últimos a falar.
— Suponho — prosseguiu Pedro — que antes de discutirmos estas questões
devemos pedir respeitosamente ao imperador que nos comunique o número de
soldados de que dispomos e a situação em que está o nosso exército e então...
Mas Pedro não pôde continuar. Interpelaram-no de três lugares distintos. E o
mais violento dos seus antagonistas foi um homem que ele conhecia havia muito,
seu parceiro no jogo do boston, sempre nos melhores termos com ele, um tal
Stepan Stepanovitch Adraksine. Este tal Stepan Stepanovitch envergava o
uniforme, e, ou fosse por essa ou por outra razão, Pedro viu diante de si um
homem completamente diferente. Com uma súbita cólera senil pintada no rosto,
gritou para Pedro:
— Em primeiro lugar, devo chamar-lhe a atenção para o facto de não termos o
direito de formular tais perguntas ao imperador, e, em segundo lugar, ainda
mesmo que a nobreza russa tivesse esse direito, o imperador não podia responder-
nos, A marcha das nossas tropas está subordinada à do inimigo. Ora vão ora vêm...
Outra voz ressoou, a voz de um homem de estatura média, dos seus quarenta
anos, que Pedro outrora vira em casa das ciganas e que conhecia por batoteiro.
Completamente outro, talvez também mercê do uniforme que vestia, avançou
para Pedro, interrompendo Adraksine.
— O momento não é para discussões — disse ele —, mas para agir: temos a
guerra em casa. O nosso inimigo avança disposto a esmagar a Rússia, a profanar ostúmulos dos nossos antepassados, a levar consigo as nossas mulheres, os nossos
filhos. — Ao dizer estas palavras o orador bateu no peito. — Levantar-nos-emos
todos, daremos tudo ao nosso pai, o czar! — Gritava com os olhos injectados fora
das órbitas, e na multidão ouviram-se algumas palavras de aplauso — Somos
russos e não pouparemos e nosso sangue na defesa da fé, do trono e da Rússia. E
se somos dignos filhos da nossa pátria, deixemos de lado todas essas quimeras.
Mostraremos à Europa como a Rússia é capaz de se levantar pela Rússia.
Pedro teria querido replicar, mas achou melhor não abrir a boca. Tinha
percebido que as suas palavras, independentemente das ideias que exprimissem,
teriam menos repercussão que as daquele nobre exaltado.
Ilia Andreitch, lá atrás do grupo, aprovou também o orador. Quando este
terminou o seu discurso, alguns dos presentes voltaram-se para ele e exclamaram:
«Muito bem! Muito bem!»
Pedro teria querido dizer estar pronto também a todos os sacrifícios
monetários, e em homens igualmente, e até a sacrificar-se a si próprio, mas que
entendia ser preciso conhecer a situação para lhe dar remédio. Não o pôde fazer
porém. Toda a gente gritava e falava simultaneamente. Ilia Andreitch não tinha
tempo de os aprovar a todos. E o grupo aumentava, dispersava-se, refazia-se, até
que, finalmente, no meio do rumor das conversas, lá foi, através da sala, direito à
grande mesa. Não só Pedro não lograva dizer uma única palavra, como o
interpelavam grosseiramente, repeliam-no, voltavam-lhe as costas, como se ele
fosse um inimigo comum, Não é que estivessem descontentes com o sentido do seu
discurso — tinham esquecido por completo o que, ele dissera depois dos que
haviam falado em seguida —, mas aquela multidão excitada necessitava de um
objecto palpável que amasse ou odiasse. Pedro, eis o bode expiatório. Muitos
foram os oradores que falaram ainda, e todos eles no mesmo tom. Alguns
discursavam bastante bem e de maneira original.
O director do Mensageiro Russo, Glinka, a quem saudaram, ao reconhecê-lo,
gritando: «O escritor! O escritor!», disse que «o Inferno devia ser repelido pelo
Inferno», que «vira uma criança sorrir à luz dos relâmpagos e ao ribombar dos
trovões», mas ele «não era uma criança».
«Sim, sim, o ribombar dos trovões!», repetia-se lá para trás, nas últimas filas.
A multidão aproximou-se da grande mesa onde, de uniforme de gala, se
sentavam as personalidades da alta nobreza, septuagenários de cabelos brancosuns, outros calvos. Pedro tinha-os visto quase todos, quer nas suas próprias casas,
com os seus bufões, quer no clube, sentados às mesas do boston. As conversas nem
por isso cessaram. Uns após outros, e às vezes ao mesmo tempo, iam os oradores
tomando a palavra, comprimidos contra os altos espaldares das cadeiras. Os que
estavam atrás notavam o que o orador precedente não dissera, para se darem
pressa de o expressarem. Outros, no meio daquele calor e daquele apertão,
procuravam no cérebro as ideias que lhes escapavam para que os outros as
tomassem. Os nobres conservavam-se nos seus tronos, olhavam uns para os
outros, um pouco sobressaltados, e na expressão dos seus rostos apenas se
percebia estarem cheios de calor. No entanto, Pedro sentia-se emocionado
também e aquele desejo de tudo sacrificar pela pátria que palpitava em todos os
discursos acabou por comunicar-se-lhe. Não renegava qualquer das suas
convicções, mas sentia-se confusamente culpado e que— na justificar-se.
— Apenas digo que seriam mais fáceis os nossos sacrifícios se soubéssemos
quais as necessidades a enfrentar — gritou, procurando dominar a outras vozes.
Um velhinho que estava perto de Pedro encarou-o, mas logo o distraíram os
gritos que ressoaram na outra extremidade da mesa.
«Sim, Moscovo render-se-á! Será a expiadora», gritava alguém.
«É um inimigo da humanidade!», vociferou outra voz. «Deixem-me falar... Os
senhores sufocam-me!...»
[XXIII]
Naquele momento entrou na sala, apressadamente, por entre a multidão, que
se afastava, o conde Rostoptchine, de uniforme de general, banda militar a
tiracolo, queixo proeminente e olhos coruscantes.
— Sua Majestade o imperador está a chegar — disse ele — Venho lá de
dentro. Creio que na situação em que nos encontramos não temos muito tempo
para discutir. O imperador dignou-se reunir-nos, bem como aos comerciantes. É
dali que virão os milhões — acrescentou, apontando para a sala contígua. — A nós
cabe-nos formar a milícia e não nos pouparmos a nós próprios... É o menos que
podemos fazer.Entre os notáveis que se sentavam em volta da mesa principiou uma espécie
de conselho. Tudo se dizia em voz segredada. E depois da algazarra anterior era
triste ouvir aquele rouquejar de velhos, emitindo as suas opiniões um por um.
Dizia uma voz: «Estou de acordo»; e outra, para variar a fórmula, murmurava:
«Sou da mesma opinião.»
Ao secretário foi dada ordem de inscrever a resolução seguinte da nobreza
moscovita: «Os Moscovitas, seguindo o exemplo dos habitantes de Smolensk,
darão dez homens por mil com equipamento completo.» Em seguida levantaram-
se, satisfeitos por poderem desentorpecei, as pernas, afastando as cadeiras com
fragor, e espalhando-se pela sala, de braço dado, dando à língua.
«O imperador! O imperador!», gritaram daí a pouco, e toda a gente se
precipitou para a entrada.
Em passos largos, pelo meio de uma fila de nobres, o imperador caminhou sala
dentro. Em todos os rostos havia uma curiosidade respeitosa e assustada. Pedro,
bastante longe, não pôde distinguir muito bem as palavras pronunciadas.
Compreendeu apenas que o imperador falava do perigo em que se encontrava o
império e das esperanças que tinha na nobreza de Moscovo. Outra voz respondeu
ao imperador para lhe comunicar os termos da resolução que acabava de tomar-
se.
— Meus senhores — disse o imperador em voz trémula. Um ligeiro sussurro
percorreu a multidão, que instantaneamente se calou, e Pedro ouviu
distintamente a voz simpática e comovedora do soberano, que dizia: — Nunca
duvidei da dedicação da nobreza russa. Mas hoje sinto que ultrapassou as minhas
esperanças. Agradeço-vos em nome da pátria. Meus senhores, mãos à obra, o
tempo e precioso...
O imperador calou-se, a multidão comprimiu-se à sua roda e exclamações de
entusiasmo irromperam de todos os lados.
«Sim, e o que é mais precioso ainda... é a palavra do czar», dizia, soluçando,
nas ultimas filas, Ilia Andreitch, que nada ouvira e tudo compreendera à sua
maneira.
Da sala da nobreza o imperador passou à dos comerciantes. Esteve ali perto de
dez minutos. Pedro, e como ele tantos outros, viram-no abandonar a sala com
lágrimas de reconhecimento a bailar-lhe dos olhos. Como depois veio a saber-se,
mal principiara c seu discurso aos comerciantes, as lágrimas saltaram-lhe dos olhose foi em voz trémula que pronunciou as últimas palavras. Quando Pedro o viu saía
ele da sala acompanhado por dois dos assistentes, Um deles era seu conhecido, um
grande produtor de álcool; o outro era administrador local, de rosto magro e
amarelento, barba rala. Ambos choravam. O magro tinha lágrimas nos olhos, mas
o outro soluçava como uma criança, repetindo constantemente: «Majestade!
Ofereço-vos a minha vida e a minha fortuna!»
Naquele momento Pedro não desejava outra coisa senão mostrar que para ele
não havia obstáculos e que estava disposto a tudo sacrificar. Lamentava o seu
discurso de tendências constitucionais. Procurava uma oportunidade para o fazer
esquecer. Ao saber que o conde Mamonov oferecia um regimento inteiro, declarou
imediatamente ao conde Rostoptchine que daria mil homens e se encarregaria da
sua manutenção.
O velho Rostov não pôde contar sem lágrimas, à mulher, que o ouvia, o que se
tinha passado, dando desde logo a Pétia o consentimento que ele pedia e indo ele
próprio alistá-lo.
No dia seguinte o imperador partiu. Todos os nobres que tinham sido
convocados despiram o uniforme, retomando os seus hábitos, tanto em casa como
no clube, e foi resmungando que deram ordem aos intendentes respectivos para a
formação das milícias, surpreendidos eles próprios dos seus oferecimentos.
SEGUNDA PARTE
[I] [II] [III] [IV] [V] [VI] [VII] [VIII] [IX] [X] [XI] [XII] [XIII] [XIV] [XV] [XVI]
[XVII] [XIX] [XX] [XXI] [XXII] [XXIII] [XXIV] [XXV] [XXVI] [XXVII] [XXVIII] [XXIX]
[XXX] [XXXI] [XXXII] [XXXIII] [XXXIV] [XXXV] [XXXVI] [XXXVII] [XXXVIII] [XXXIX]
[I]
Napoleão iniciou a guerra contra a Rússia porque não podia deixar de ir a
Dresde, porque não podiam deixar de lhe subir à cabeça as honrarias, porque
precisava de envergar um uniforme polaco e de se deixar envolver nos encantos
de uma linda manhã de Junho, porque não pôde resistir à cólera na presença de
Kurakine depois de Balachov.
Alexandre recusara-se a parlamentar, pois se sentia pessoalmente ofendido.
Barclay de Tolly procurava comandar o exército o melhor que podia no
cumprimento do seu dever e na esperança de conquistar a fama de grande cabo-
de-guerra. Rostov lançara-se contra os franceses porque não podia resistir à
tentação de galopar em campo aberto. E eis como agiam, consoante as suas
disposições pessoais, os seus hábitos, a sua condição ou as suas intenções, as
numerosas personagens que tomavam parte na guerra. Os seus receios, as suas
vaidades, as suas alegrias, os seus descontentamentos, as suas críticas vinham de
suporem saber o que faziam e de julgarem agir por si próprios, quando afinal não
passavam de instrumentos inconscientes da história, realizando um trabalho
oculto para eles, mas inteligível para nós. Tal é o destino imutável de todos os
comparsas, tanto menos livres quanto mais alto na hierarquia social.
Os actores dos acontecimentos de 1812 já não pertencem ao número dos vivos,
os interesses que os impeliam não deixaram o mais pequeno vestígio, e só restam
os resultados históricos da sua época.
Mas, se admitirmos que os habitantes da Europa conduzidos Por Napoleão
deviam penetrar no coração da Rússia e ali ficar, toda a conduta contraditória,
insensata e cruel dos actores dessa guerra se nos torna inteligível.
A Providência obrigava todos esses homens na peugada de fins pessoais a
colaborar num único e enorme resultado, resultado que ninguém conhecia, nem
Napoleão nem Alexandre, e ainda muito menos qualquer dos que participavam naguerra.
No momento actual vemos claramente o que provocou a perda do exército
francês. Ninguém contestará que a causa desse desastre foi, por um lado, a sua
penetração tardia e sem preparação suficiente no coração da Rússia, sujeito a
arrostar com uma campanha de Inverno, e, por outro, o carácter que a guerra
assumiu em virtude do incêndio das povoações e o ódio que germinou no coração
do povo russo. Mas então ninguém podia prever o que actualmente é a própria
evidência, isto é, que bastavam estas causas para aniquilar um exército de
oitocentos mil homens, o melhor que ainda houvera no mundo, conduzido pelo
melhor dos capitães, diante do exército russo, duas vezes mais fraco, sem
experiência, e dirigido por generais igualmente inexperientes. E não só ninguém
podia prever semelhante desfecho como todos os esforços da parte dos Russos
tendiam constantemente a impedir a única coisa susceptível de salvar a Rússia e
os da parte dos Franceses, apesar da experiência e do suposto génio militar de
Napoleão, igualmente tendiam a levar as suas vitórias até Moscovo antes do fim
do Estio, ou seja, a fazer exactamente o que deveria perdê-los.
Nas obras históricas respeitantes a 1812 os autores franceses insistem no facto
de Napoleão sentir o perigo que para ele havia em estender demasiado as suas
linhas, e dizem que procurava dar batalha, que os seus generais o tinham
aconselhado a deter-se em Smolensk e em quejandos argumentos da mesma sorte
que provam não se ignorar então o perigo que ameaçava o exército francês, Por
outro lado, os autores russos insistem, com mais peso ainda, no plano
estabelecido, segundo eles, desde o princípio da campanha, de guerra cita, o qual
consistia em atrair Napoleão ao coração da Rússia, e atribuem esse plano uns a
Pfuh1, outros a um certo francês, outros ainda a Toll, e outros, por fim, ao próprio
Alexandre, documentando-se nas notas, nos projectos e nas cartas em que existem,
de facto, alusões a esta maneira de ver. Mas a verdade é que todas estas alusões
a uma previsão do que veio a acontecer, tanto do lado francês como do russo, se
agora são postas em relevo é precisamente porque os acontecimentos as
justificam. Se tivesse acontecido o contrário, teriam sido completamente
esquecidas, como sucede a milhares de alusões e de hipóteses espalhadas então e
que se verificaram ser inexactas. O resultado de cada acontecimento dá sempre
lugar a tantas suposições que, sejam elas quais forem, há sempre pessoas prontas
a afirmar: «Eu bem dizia que as coisas se passariam assim.» Esquecem que entretodas estas numerosas suposições algumas há absolutamente contraditórias.
É evidente que a esta categoria de suposições sem fundamento pertence a do
perigo entrevisto por Napoleão na extensão da sua linha de comunicações e a
relativa à guerra cita, e os historiadores só com muitas reservas devem atribuir
tais vistas a Bonaparte e tal plano aos chefes militares russos. Todos os factos
estão em contradição absoluta com essas hipóteses. Não só no decurso de toda a
guerra se não observou qualquer desejo da parte dos Russos de atraírem os
Franceses ao interior do seu país, mas, pelo contrário, tudo quanto se fez foi no
sentido de os deter, uma vez verificado o seu primeiro avanço. Por outro lado, não
só Napoleão não receava o alongamento da sua linha, mas até se regozijava, como
se se tratasse de uma vitória, de cada passo em frente, indo com maior
entusiasmo para a luta do que no decurso das suas campanhas anteriores.
Desde o princípio que os exércitos russos se encontraram cortados, e o único
objectivo dos seus chefes foi reuni-los de novo, quando é certo que para bater em
retirada e atrair o inimigo ao coração do seu país tal junção não representava
qualquer vantagem. O imperador esteve junto das suas tropas para encorajá-las
na defesa de cada palmo da terra russa, e não para ordenar a retirada. Construiu-
se o enorme campo entrincheirado de Drissa, de acordo com os planos de Pfuhl, na
intenção bem clara de não se recuar mais. Cada passo à retaguarda custou aos
comandantes-chefes repreensões do imperador. Não só este não Podia imaginar
que os Russos deitariam fogo a Moscovo, como nem sequer previa que deixariam
avançar o inimigo até Smolensk, e, quando os exércitos operaram a sua junção,
exasperou-se pelo facto de aquela cidade ser tomada e incendiada e de se não ter
travado uma batalha geral à volta das suas muralhas.
Assim pensava o imperador, mas assim pensavam também os chefes russos, e o
povo inteiro indignou-se com a ideia de que o seu exército recuava até ao interior
do país.
Napoleão, depois de cortar em dois o exército de Alexandre, Penetra cada vez
mais a fundo em território russo, deixando escapar várias oportunidades para dar
combate. Em Agosto está em Smolensk e não pensa noutra coisa senão em
avançar mais ainda, embora, como hoje se vê perfeitamente, esse movimento
fosse perigoso para ele.
Os factos mostram com toda a evidência que Napoleão não previa o perigo de
um movimento em direcção a Moscovo e que Alexandre e os chefes russos nãopensavam em atrair Napoleão, mas sim exactamente no contrário. O facto deu-se
não em resultado de um plano qualquer — e o certo é que ninguém teria
acreditado na possibilidade de o pôr em prática —, mas como consequência de um
complicadíssimo jogo de intrigas, de ambições, de desejos da parte dos comparsas
da guerra, os quais não adivinhavam o que iria acontecer e seria a única salvação
da Rússia. É inopinadamente que as coisas sucedem. Os exércitos são cortados em
dois no princípio da campanha. Os Russos tentam reuni-los na intenção evidente de
travar uma batalha e de deter o inimigo, mas no decurso desta tentativa, quando
as tropas russas evitavam um recontro com forças muito superiores, eis que os
exércitos de Alexandre batem involuntariamente em retirada, formando um
ângulo agudo, e os Franceses se vêem deste modo atraídos até Smolensk. Ainda
não é tudo dizer-se que os Russos retrocedem em ângulo agudo, pois os Franceses
avançam entre os dois exércitos. O ângulo torna-se ainda mais agudo e os Russos
recuam ainda mais, porque Barclay de Tolly, esse estrangeiro impopular. é odiado
por Bagration, que lhe deve ser subordinado, e o qual, à frente do 2º exército,
procura realizar a sua junção com elo, quanto mais tarde melhor, para não vir a
encontrar-se sob as suas ordens. Durante muito tempo Bagration não opera a
junção, embora seja esse o objectivo de todos os comandantes do exército, porque
se lhe afigura que se realizar esse movimento porá em perigo as suas tropas e por
lhe parecer melhor recuar mais à esquerda e para o sul, inquietando o flanco e a
retaguarda do inimigo, o que lhe permitirá completar o seu exército na Ucrânia.
Ao mesmo tempo parece ter imaginado semelhante táctica para não querer ver-se
subordinado ao estrangeiro Barclay, a quem detesta e é mais novo na promoção,
O imperador está com o exército para o animar com a sua presença, mas o
certo é que a sua estada junto das tropas, a ignorância das decisões que devem
tomar-se e o número incrível de conselheiros e de planos propostos anulam a força
ofensiva do 1º exército e as tropas batem em retirada.
As coisas dispõem-se para as tropas irem deter-se no campo de Drissa, mas
inesperadamente Paulucci, que aspira ao posto de comandante-chefe, influi, graças
à sua energia, no espírito de Alexandre, e todo o plano de Pfhul é abandonado,
passando tudo para as mãos de Barclay. Como este porém não inspira confiança, o
seu poder é limitado. E ai temos os exércitos fraccionados. Já não há unidade de
comando, e Barclay não goza de popularidade, Desta confusão, deste
fraccionamento, desta impopularidade do general-chefe, resultam, por um lado, aindecisão e a recusa de travar batalha, a qual se não teria podido evitar se os
exércitos estivessem reunidos e se Barclay não tivesse o comando, por outro, um
descontentamento cada vez maior em relação aos estrangeiros e um despertar do
sentimento patriótico.
Finalmente o imperador retira-se de junto do exército e o único e mais
plausível pretexto da sua retirada é que a ele compete incitar o entusiasmo nas
capitais com vista a criar o espírito de uma guerra nacional. E esta viagem a
Moscovo triplica as forças do exército russo.
O imperador abandona o exército para não prejudicar a unidade do comando e
espera-se que, após a sua partida, se tomem decisões mais enérgicas. Mas não.
Pelo contrário, a situação do chefe do exército complica-se e enfraquece cada vez
mais. Bennigsen, o grão-duque, todo um enxame de generais ajudantes-de-campo,
permanecem no exército para vigiar os actos do comandante-chefe e despertar,
em caso de necessidade, a sua energia, e Barclay, que de dia para dia se sente
menos livre sob a vigilância de todos estes «olhos do imperador», torna-se ainda
mais hesitante nas suas decisões e evita a batalha.
Barclay é, pela prudência. O grão-duque herdeiro chega a pronunciar a palavra
«traição», e pede que se trave a batalha geral. Liubomirski, Bronnitski, Blotski e
outros ainda dão tanta repercussão a este boato que Barclay, a pretexto de
entregar uns documentos ao imperador, faz com que partam para, Petersburgo
todos os ajudantes-de-campo polacos e entra em luta aberta com Benngsen e o
grão-duque.
Finalmente, apesar da oposição de Bagration, em Smolensk opera-se a junção
dos dois exércitos.
Bagration chega, de carruagem, à residência ocupada por Barclay. Este afivela
o cinturão, vai ao seu encontro e faz-lhe o seu relatório como se fosse de patente
inferior a ele. Bagration, num rasgo de magnanimidade, embora mais antigo,
submete-se a Barclay. Feito o que, no entanto, cada vez se mostra em maior
desacordo com ele. Por ordem do imperador, dirige-lhe pessoalmente o seu
relatório. Escreve a Araktcheiev: «Apesar de ser esse o desejo do imperador, não
posso de maneira nenhuma permanecer com o ‘ministro’ [assim designava
Barclay]. Por amor de Deus, enviai-me para qualquer parte, ainda que não seja
senão Para comandar um regimento. Aqui é que eu não me posso ver.
O quartel-general está cheio de alemães, e de tal modo que um russo não podeviver no meio deles. É de perder a cabeça. Julguei servir realmente o imperador e
a pátria e afinal a quem eu sirvo é Barclay. Confesso que me recuso a isso. A praga
dos Bronnitski, dos Wintzengerode e quejandos continua a envenenar cada vez
mais os relatórios dos comandantes-chefes e de dia para dia é menor a unidade de
vistas. Preparam-se para atacar os Franceses diante de Smolensk. É enviado um
general para examinar as posições. Este general, que detesta Barclay, dirige-se a
casa de um dos seus amigos comandante de corpo de exército, passa com ele o dia,
regressa ao quartel-general e faz crítica cerrada, ponto por ponto, do campo de
batalha que não viu nem de longe.
Enquanto os Russos discutem e intrigam e se disputam sobre o futuro campo de
batalha, enquanto procuram os Franceses e se enganam sobre as suas posições,
estes caem sobre a divisão Nevierovski e aproximam-se dos muros de Smolensk,
É preciso aceitar, quer queiram quer não, a batalha às portas de Smolensk a
fim de salvar as linhas de comunicação dos Russos. A batalha dá-se. Caem milhares
de homens de um lado e do outro. Smolensk é abandonada contra a vontade do
imperador e de todo o povo. Os habitantes porém, enganados pelos seus
governantes, queimam a cidade. Completamente arruinados, chegam a Moscovo,
só pensando nos prejuízos que sofreram, para darem o exemplo aos outros russos e
comunicar-lhes o seu ódio ao inimigo. Napoleão prossegue a sua rota. Os Russos
recuam, e assim se encaminham as coisas para que os Franceses sejam vencidos.
[II]
No dia seguinte ao da partida do filho, o príncipe Nicolau Andreievitch mandou
chamar a princesa Maria.
— Bom, estás contente agora? — disse-lhe ele. — Conseguiste que eu me
zangasse com o meu filho! Estás satisfeita? Era isso que querias, não é verdade?
Estás contente?... Mas a mim isso faz-me pena, faz-me pena. Sou velho e fraco e foi
isso que tu quiseste. Anda, alegra-te, alegra-te...
Depois disto a princesa Maria não tornou a ver o pai durante todo o resto da
semana. Estava doente e não saía do seu gabinete.
Com grande espanto seu, a princesa notou que durante todo o período dadoença o velho príncipe também não deixou que Mademoiselle Bourienne entrasse
rios seus aposentos, Tikon era a única pessoa que cuidava dele.
No cabo de oito dias voltou a sair e retomou a sua vida habitual, dedicando-se
com particular actividade à edificação e às plantações, sem, no entanto, voltar a
ver Mademoiselle Bourienne, No seu rosto, na maneira fria como tratava a filha,
parecia ler-se: «Vês, foste contar histórias a meu respeito, caluniaste-me junto de
André por causa das minhas relações com a francesa e conseguiste que eu me
zangasse com ele. Como vês, não preciso de ti nem da francesa.»
A princesa Maria passava parte do dia com Nikoluchka: assistia às suas lições,
dava-lhe mesmo, ela própria, lições de língua russa e de música e entretinha-se
com Dessales. O resto do seu tempo levava-o a ler ou com a velha ama e os
homens de Deus, que a vinham às vezes visitar pela porta do serviço. Pensava na
guerra o que em geral as mulheres pensam. Temia pelo irmão, que por lá andava,
horrorizava-a, sem poder percebê-la, a crueldade dos homens chacinando-se uns
aos outros. E não compreendia a importância daquela guerra, que se lhe afigurava
igual a todas as outras. No entanto, Dessales, o seu habitual interlocutor, seguia
apaixonadamente a marcha das operações, procurando expor-lhe as suas ideias.
Também os homens de Deus, à sua maneira, lhe falavam do que se dizia sobre a
vinda do Anticristo, e Júlia, agora princesa Drubetzkoi, voltara a corresponder-se
com ela, escrevendo-lhe de Moscovo cartas cheias de sentimento patriótico.
Escrevo-lhe em russo, minha querida amiga — dizia-lhe
ela — porque odeio os Franceses e a língua que eles falam,
que já não posso ouvir... Em Moscovo estamos todos
entusiasmados com o nosso adorado imperador.
O meu pobre marido está passando fome e toda a sorte
de incómodos nas sórdidas estalagens judias, mas as
notícias ainda me animam mais.
Provavelmente ouviu falar no feito heróico de Raievsy, o
qual, abraçando os seus dois filhos, lhes disse: «Morrerei
convosco, mas daqui não saímos!» E efectivamente, embora
o inimigo fosse duas vezes mais forte, não recuámos.
Passamos o tempo como podemos, mas a guerra é a guerra!
A princesa Aline e Sofia estão dias inteiros comigo e aspobres de nós, infelizes viúvas de maridos vivos, enquanto
preparamos ligaduras entretemo-nos a falar de coisas
edificantes, Só temos saudades da nossa querida amiga...
A princesa Maria não se dava conta da importância da guerra, principalmente
porque o velho príncipe, que nunca falava em tal, parecia ignorá-la e troçava de
Dessales quando ele se lhe referia, O tom do príncipe era tão calmo e seguro que a
filha, sem raciocinar, acreditava nas suas palavras.
Durante todo o mês de Julho o velho andou muito ocupado e até mesmo
atarefado. Mandou plantar uma nova mata e construir um novo edifício para a
criadagem. A única coisa que apoquentava a filha era o facto de ele passar mal as
noites e de ter acabado com o seu antigo costume de dormir no gabinete: todos os
dias mudava de quarto. Ora mandava pôr a cama de campanha na galeria, ora
ficava num divã ou na cadeira de braços do salão, onde dormitava sem se despir,
enquanto o jovem Petrucha, que substituíra Mademoiselle Bourienne, lhe lia em
voz Outras vezes pernoitava na sala de jantar.
No dia 1 de Agosto chegou a segunda carta do príncipe André, Na primeira,
recebida pouco depois da sua partida, pedia docilmente ao pai lhe perdoasse o que
se permitira dizer-lhe e rogava-lhe que voltasse a conceder-lhe a sua afeição. O
velho príncipe respondera-lhe em termos afectuosos e depois dessa carta afastara
de si a francesa. A segunda, datada de Vitebsk, depois da ocupação da cidade, era
uma rápida descrição de toda a campanha, com um plano desenhado por ele e
algumas considerações sobre a marcha da guerra. Chamava a atenção do pai para
a inconveniência de estar a residir muito próximo do teatro da guerra,
precisamente na linha de movimento das tropas, e aconselhava-o a que partisse
para Moscovo.
Ao jantar, nesse mesmo dia, ao ouvir dizer a Dessales que corria o boato de
que os Franceses se encontravam já em Vitebsk, o velho príncipe lembrou-se da
carta do filho.
— Recebi hoje uma carta do príncipe André — disse ele para Maria. — Não a
leste?
— Não, meu pai — volveu-lhe ela, assustada.
Não lhe teria sido possível, efectivamente, ler uma carta que nem sequer sabia
que tinha chegado.— Falava da guerra, desta guerra — voltou o príncipe, com esse sorriso
desdenhoso que se lhe tornara habitual sempre que abordava o assunto.
— Deve ser, com certeza, muito interessante — observou Dessales. — O
príncipe deve estar bem informado...
— Ah!, interessantíssima! — exclamou Mademoiselle Bourienne.
— Vá buscá-la — disse o velho príncipe para a francesa. — Está na mesinha,
debaixo do pesa-papéis.
Mademoiselle Bourienne ia já a sair, muito contente.
— Não, não! — exclamou ele, franzindo as sobrancelhas. — Vai tu, Mikail
Ivanovitch.
Mikail Ivanovitch levantou-se e dirigiu-se ao gabinete. Mal ele saiu, o velho
príncipe, olhando desassossegadamente à sua roda, atirou com o guardanapo e foi
atrás dele.
— Nada sabem fazer. Vão-me mexer em tudo.
Durante a sua ausência, Maria, Dessales, Mademoiselle Bourienne, o próprio
Nikoluchka, olharam uns para os outros sem dizer palavra. O velho príncipe voltou
dai a pouco em passos apressados, seguido de Mikail Ivanovitch, com a carta e o
plano, que pousou a seu lado, sem consentir que ninguém a lesse antes de findo o
jantar.
Quando passaram ao salão, o velho príncipe entregou a carta à filha, e,
estendendo o plano diante de si, pôs-se a estudá-lo, pedindo a Maria que lesse a
carta em voz alta, Acabada a leitura, Maria olhou para o pai, mas este observava
o plano, parecendo absorto nos seus pensamentos.
— Que pensa de tudo isto, príncipe? — permitiu-se dizer Dessales.
— Eu? Eu? — replicou ele, sem erguer os olhos do plano e como se emergisse
de um sonho.
— É muito possível que o teatro da guerra realmente se aproxime de nós...
— Ah! Ah! O teatro da guerra — repetiu o príncipe — Disse e repito: o teatro
da guerra é a Polónia e o inimigo nunca avançará para além do Niémen.
Dessales fitou-o, estupefacto e falava ele do Niémen quando e, inimigo já
estava no Dniepre. Mas a princesa Maria, que esquecera a geografia, aceitava
como verídicas as palavras do pai.
— Quando as neves principiarem a derreter-se morrerão todos afogados nos
pântanos da Polónia. Agora não podem dar-se conta disso — disse o príncipe, quenaturalmente estava a pensar na campanha de 1807, para ele de há dois dias. —
Bennigsen devia ter entrado mais cedo na Polónia. Então as coisas teriam tomado
outro rumo...
— Mas, príncipe — interveio Dessales, timidamente —, na carta fala-se em
Vitebsk...
— Na carta? Ah! Sim... — replicou ele, enfadado — Sim... Sim... — E de
repente ficou triste, calando-se— Sim – voltou —, ele diz que os Franceses foram
batidos junto a que rio?
Dessales baixou os olhos.
— O príncipe nada diz que se pareça com isso — observou mansamente.
— Quê? Não fala nisso? Fui eu quem o inventou ? Todos permaneceram
calados por muito tempo.
— Sim... sim... Bom, Mikail Ivanovitch — continuou ele, de súbito, levantando
a cabeça e mostrando o projecto do edifício que andava a fazer. — Como é que
queres modificar isto?
Mikail Ivanovitch aproximou-se e o príncipe, depois de ter conversado com ele
sobre o edifício em construção, relanceou um olhar furibundo a Maria e Dessales,
desaparecendo em seguida.
A princesa Maria reparou no espanto do preceptor e na maneira como olhara
o príncipe. Notou o seu silêncio e impressionou-a o facto de o pai ter esquecido em
cima da mesa do salão a carta do filho. Receava interrogar Dessales sobre as
causas do seu estarrecimento e do silêncio a que se votara; temia não só falar
neste assunto, mas, inclusivamente, pensar nele. Pelo fim da tarde, Mikail
Ivanovitch veio pela carta, da parte do príncipe. A princesa Maria entregou-lha.
Embora isso a contrariasse, perguntou ao arquitecto que fazia seu pai.
— Nunca está quieto — replicou ele, com um sorriso entre respeitoso e irónico,
o que fez empalidecer Maria — Está muito preocupado com os novos edifícios. Leu
um bocado e agora — acrescentou Mikail Ivanovitch, baixando a voz — foi para o
escritório, Parece-me estar às voltas com o testamento.
Naqueles últimos tempos uma das ocupações favoritas do príncipe era
compulsar os papéis que queria deixar depois da sua morte: aquilo a que ele
chamava o seu testamento.
— E sempre vai mandar Alpatitch a Smolensk? — inquiriu a princesa Maria.
— Isso mesmo. Há muito tempo já que ele espera ordens.
[III]
Quando Mikail Ivanovitch voltou com a carta, encontrou o príncipe sentado
diante da papeleira aberta, as lunetas no nariz e um quebra-luz na testa. A chama
das velas lia uns papéis que conservava a certa distância dos olhos, numa atitude
assaz teatral: lia o que ele chamava as suas anotações, anotações estas que
deviam ser entregues ao imperador depois da sua morte.
Quando Mikail Ivanovitch entrou, viu que o príncipe tinha lágrimas nos olhos:
recordava-se do tempo em que escrevera aquelas páginas. O príncipe pegou na
carta, meteu-a na algibeira, e depois de juntar os papéis chamou Alpatitch, que
aguardava há muito tempo ali perto.
Escrevera, num papel tudo quanto era preciso comprar em Smolensk e deu as
suas ordens, andando sempre de um lado para o outro do quarto, a Alpatitch, que
continuava no limiar da porta.
— Em primeiro lugar, papel de carta, percebes? Oito mãos, aqui tens o
modelo, Com os cantos dourados, sem falta, como o modelo. Verniz, lacre, como diz
a nota de Mikail Ivanovitch.
Continuando a passear, ia consultando o caderninho de algibeira.
— Depois entregarás pessoalmente ao governador a carta que vou dar-te.
Eram ainda precisas fechaduras para o novo edifício, exactamente do modelo
que ele próprio inventara. E também necessitava de uma pasta para depositar o
testamento.
Mais de duas horas levou o príncipe a dar as suas instruções a Alpatitch. E não
o largava. Sentou-se, ficou um momento pensativo, e em seguida, fechando os
olhos, adormeceu. Alpatitch fez um movimento.
— Anda, vai-te embora, vai-te embora. Se precisar de mais alguma coisa,
chamo-te.
Alpatitch saiu. O príncipe aproximou-se de novo da papeleira, percorreu-a com
a vista, remexeu os papéis, voltou a fechá-la e foi sentar-se à mesa de trabalho,
onde se pôs a escrever uma carta ao governador.
Era, tarde quando se levantou da mesa, depois de ter lacrado a carta. Tinhasono, mas sabia que não poderia dormir e que desde que se deitasse o assaltariam
os mais tristes pensamentos. Chamou Tikon e percorreu com ele várias
dependências da casa à procura de onde instalar a cama para a noite. A cada
canto tomava medidas.
Não lhe agradava sítio algum, mas o que acima de tudo lhe repugnava era o
local do costume, no divã do gabinete. Esse divã causava-lhe um imenso desgosto,
naturalmente por virtude dos Penosos pensamentos que aí tivera deitado. Não lhe
convinha sitio algum, mas apesar de tudo o recanto do gabinete, por detrás do
piano, era o que lhe parecia preferível, naturalmente por ainda aí não ter passado
noite alguma. Tikon, ajudado pelo mordomo, transportou para ali a cama e
preparou-a.
— Assim não! Assim não! — gritou o príncipe, afastando ele próprio e leito do
recanto onde Tikon o armara e voltando a colocá-lo no mesmo sítio.
«Bom, finalmente agora está tudo pronto, vou poder descansar», disse de si
para consigo, consentindo que Tikon principiasse a despi-lo.
Entre trejeitos, devidos ao esforço que tinha de fazer para deixar que lhe
tirassem o cafetã e as calças, acabou por despir-se, caindo pesadamente sobre a
cama, onde ficou pensativo a olhar tristemente as pernas ressequidas e
amarelentas. Não estava propriamente a pensar, apenas adiava o momento difícil
em que teria de soerguer as canelas e estender-se na cama. «Oh, que penoso que
tudo isto é! Se tudo isto pudesse acabar dentro de pouco e se ’vós outros’ me
pudésseis deixar tranquilo!», dizia para si mesmo. Tantas vezes tentou que,
cerrando os dentes, acabou por se deitar. Mal se estendera, pôs-se-lhe a cama a
balouçar. Dir-se-ia que o móvel ganhava vida. Era assim todas as noites. De novo
abriu os olhos, que acabava de fechar.
«Não me deixam em paz estes malditos», resmungou, increpando, colérico,
pessoas invisíveis. «Bom, que tinha eu reservado para me lembrar quando
estivesse deitado? Era uma coisa muito importante. Ah!, já sei, as fechaduras.
Não, as fechaduras já estão. Mas há qualquer coisa, qualquer outra coisa que se
passou no salão. Não teria sido qualquer tolice da princesa Maria?... Ou qualquer
coisa que contou esse imbecil de Dessales?... Não será qualquer coisa que eu tenha
na algibeira?... Já me não lembro.»
— Tikon! De que se falou à mesa?
— Do príncipe André...— Cala-te, cala-te — gritou o príncipe, fazendo um gesto violento. — Ah, sim,
já sei, a carta do príncipe André. Dei-a a ler à Maria, Dessales disse lérias sobre
Vitebsk. Agora é que tenho de a ler.
Deu ordens para lhe irem buscar a carta, que estava na algibeira. Mandou que
lhe aproximassem da cama uma mesinha com o copo de limonada e uma vela de
cera e depois de encaixar as lunetas no nariz principiou a ler. Só então, no silêncio
da noite, àquela pálida luz coada pelo abat-jour verde, compreendeu, de súbito, a
importância do que nela vinha escrito.
«Os Franceses estão em Vitebsk. Estarão em Smolensk em quatro etapas.
Talvez já lá estejam até.» — Tichka! — Tikon, sobressaltado, pôs-se de pé. — Não,
nada quero, não quero coisa alguma!...
Pousou a carta debaixo da palmatória e cerrou as pálpebras, E diante dos olhos
surgiu-lhe o Danúbio, por um radioso meio-dia, uns canaviais, o acampamento
russo, e ele, moço general, sem uma ruga então, vigoroso, fresco e rosado, a
penetrar na tenda bordada de Potemkine. E um pulgente sentimento do ciúme
diante do favorito despertou nele tão poderoso como outrora. E lembrou-se de
tudo quanto se disse nesse primeiro encontro, nos mais pequenos pormenores. E
diante dele está uma mulherzinha de pequena estatura, cheia, as faces
rechonchudas e tez amarelada: é a nossa mãe, a imperatriz. E tinha diante dos
olhos o sorriso dela, ouvia as palavras amáveis que ela lhe dirigira a primeira vez
que o recebeu, e lembrou-se desse mesmo rosto no catafalco e a altercação com
Zubov junto do ataúde por causa do direito de beijar a mão da morta.
«Ah, se eu pudesse voltar atrás a esse tempo e se o presente pudesse
desaparecer por completo, rapidamente, muito rapidamente! Se eles me
deixassem em paz!»
[IV]
Lissia Gori, o domínio do príncipe Nicolau Bolkonski, ficava a sessenta verstas
mais além de Smolensk e a três verstas da estrada de Moscovo.
Na mesma noite em que Bolkonski dera as suas ordens a Alpatitch. Dessales
pediu uma entrevista à princesa Maria e respeitosamente fez-lhe ver, que visto asaúde do príncipe lhe não permitir tomas as medidas necessárias à segurança da
sua gente e a carta do príncipe André indicar claramente que a permanência em
Lissia Gori não podia deixar de constituir um perigo, seria prudente enviar por
Alpatitch uma carta ao governador da Província de Smolensk pedindo-lhe que a
informasse, da verdadeira situação e do risco que corria se continuasse na aldeia.
Ele próprio escreveu a carta, que a princesa Maria assinou, a qual foi confiada a
Alpatitch que recebeu instruções para a entregar ao governador e no caso de
urgência regressar a Lissia Gori o mais cedo possível.
Alpatitch munido, de todas estas instruções, rodeado de gente da casa, gorro
de pelo branco, presente do amo, bengala na mão exactamente como o príncipe,
quando saía, instalou-se numa pequena kibitka, de capota de couro, tirada por
três nutridos cavalos ruões.
Tinha amarrado as campainhas e metido papel nos guizos.. O príncipe não
consentia que se usasse cascáveis no seu domínio. Mas Alpatitch gostava de
guizalhar quando partia para uma longa viagem. Foram despedir-se o cartorário, o
guarda-livros, uma cozinheira, uma moça de cozinha, duas velhas, um moço de
recados, cocheiros e vários criados.
A filha pusera-lhe no assento e nas costas almofadas de penas. A velha
cunhada meteu-lhe no carro, às escondidas, um embrulhinho. Pegando-lhe por um
braço, um dos cocheiros ajudou-o a subir para a carruagem.
— Bom! Bom!, estes arranjos mulherengos! As mulheres! As mulheres! —
exclamou Alpatitch, resfolegando, exactamente como costumava fazer o amo. E
sentou-se no seu lugar.
Depois de ter dado as suas últimas instruções ao chefe da polícia rural a
respeito dos trabalhos e desta vez sem imitar o príncipe, Alpatitch descobriu a
cabeça calva e por três vezes se persignou.
— Se acontecer alguma coisa... volta logo para casa, Iakov Alpatitch. Por Deus,
tem piedade de nós — gritou-lhe a mulher, aludindo aos rumores que corriam
sobre a guerra.
«Ah! Coisas de mulheres! Coisas de mulheres! Sempre com histórias!»,
murmurou Alpatitch para com os seus botões quando a kibitka se pôs em marcha.
E lançava um olhar para a direita, outro para a esquerda, mirando ora os campos
de centeio que amareleciam, ora a aveia ramalhuda e ainda verdejante, ora os
campos ainda negros, que principiavam a ser preparados para as sementeiras.Alpatitch, ao longo do caminho, ia admirando as belas searas de trigo,
excepcionais naquela Primavera, os regos de centeio onde, em certos locais, já
principiava a ceifa, e para si mesmo ia deitando os cálculos às sementeiras e às
próprias colheitas, ao mesmo tempo que se interrogava a si mesmo sobre se não
se teria esquecido de qualquer recado do amo.
Depois de se deter duas vezes para dar de comer aos cavalos, chegou à cidade
na noite de 4 de Agosto.
Já encontrara no caminho comboios e tropas que ultrapassara. Ao aproximar-
se de Smolensk, ouvira tiros de canhão a distância, mas a nada prestara atenção.
Impressionou-o bem mais o facto de ter visto, nos arredores da cidade, uma
magnífica seara de aveia que os soldados ceifavam, naturalmente para ração dos
cavalos, e onde se instalara um acampamento. No entanto, até este pormenor
esqueceu em breve, preocupado que ia com o que tinha a fazer.
Havia mais de trinta anos que Alpatitch não vivia senão para cumprir as
ordens do príncipe, e era tudo. O que não dissesse respeito ao cumprimento das
ordens do amo não só não o interessava como nem sequer existia para ele.
Tendo chegado na noite de 4 de Agosto a Smolensk, deteve-se do outro lado
do Dniepre, no arrabalde de Gatcha, na estalagem de Ferapontov, antigo porteiro
do príncipe, onde havia trinta anos se hospedava. Trinta anos atrás, com a
cumplicidade de Alpatitch, comprara Ferapontov uma mata ao príncipe, pusera-se
a negociar e agora era dono de uma casa, de uma estalagem e de uma tenda de
cereais na capital da província. Era um campónio dos seus cinquenta anos, gordo,
vermelhusco, cabelo preto, lábios grossos, nariz batatudo, pança e lobinhos por
cima das espessas sobrancelhas. Estava à porta da tenda que dava para a rua, de
colete e em mangas de camisa. Ao ver Alpatitch velo a ele.
— Bem-vindo sejas, Iakov Alpatitch! Os habitantes vão-se da cidade e tu vens
— exclamou.
— Que dizes tu? Vão-se da cidade? — inquiriu Alpatich. — E eu entendo que
são estúpidos. Têm medo dos Franceses.
— Coisas de mulheres!, coisas de mulheres! — replicou Alpatitch.
— É o que eu digo, Iakov Alpatitch. Desde que deram ordens para não deixar
passar o inimigo, o inimigo não passa. E aí tens tu os campónios a pedir três rublos
por um carro. Que hereges!
Iakov Alpatitch ouvia distraído. Pediu o samovar e feno para os cavalos edepois do chá foi deitar-se.
Durante toda a noite desfilaram tropas pela porta da estalagem. No dia
seguinte, Alpatitch envergou o trajo que só vestia quando vinha à cidade e
desandou à sua vida. Estava uma manhã soalheira e às oito horas já fazia calor.
«Rico tempo para as colheitas!», pensava Alpatitch. Do outro lado da cidade,
desde manhã se ouvia a fuzilaria.
A partir das oito horas salvas de artilharia vieram juntar-se aos tiros de
espingarda. As ruas transbordavam de gente, que se agitava apressada, e de
soldados, mas os carros de praça circulavam, e os comerciantes conservavam-se
nas suas lojas. Nas igrejas celebravam-se os ofícios matinais. Alpatitch percorreu
as lojas, as repartições, foi ao correio e a casa do governador. Nas repartições, nas
lojas, no correio, não se falava senão na guerra e tio inimigo, que estava já a
atacar a cidade; perguntavam todos uns aos outros o que deviam fazer e cada um
procurava tranquilizar o vizinho.
Em casa do governador havia muita gente, cossacos e carros de viagem
pertença desse alto funcionário. Na escadaria de entrada encontrou dois
indivíduos, um deles seu conhecido. Este, ex-comissário da polícia do distrito,
falava acaloradamente:
— Não se trata de uma brincadeira — dizia ele. — Isso é, bom para quem está
sozinho. Quando se é só e pobre, passa, mas quando se têm treze pessoas de
família a seu cargo e tudo quanto é nosso... Aí é que está, fica-se sem nada. Que,
espécie de autoridades são estas?... Devíamos enforcá-los a todos. Bandidos...
— Bom, bom, basta — dizia o outro.
— Que me importa a mim? Pois que ouçam! Não somos cães.— E, tendo-se
voltado, viu Alpatitch.
— Eh, Iakov Alpatitch, que fazes tu por aqui?
— Trago uma incumbência de Sua Excelência para o governador — replicou
Alpatitch, empertigando a cabeça e metendo a mão na carcela da camisa, atitude
que tomava sempre que se referia ao amo. — Encarregou-me de me informar da
situação.
— Então, trata de te informares — gritou o outro. — Vais ver ao que estamos
reduzidos. Não há mais carros, nada mais há. E eles aí estão, ouves? — prosseguiu
ele, apontando para os lados donde se ouvia a fuzilaria.
— Arranjaram as coisas tão bem que estamos todos liquidados... Bandidos! —repetiu, enquanto descia a escada.
Alpatitch encolheu os ombros e meteu pela escadaria acima. Na sala de espera
havia negociantes, mulheres, funcionários, olhando todos uns para os outros, sem
dizerem palavra. A porta do gabinete abriu-se: todos se levantaram e deram um
passo em frente. Açodado, saiu lá de dentro um funcionário, que disse qualquer
coisa a um dos negociantes, e depois se dirigiu a um gordo burocrata que trazia
uma condecoração ao pescoço, desaparecendo em seguida, como que a eximir-se às
perguntas e aos olhares que lhe endereçavam. Alpatitch colocou-se na primeira
fila, e quando o funcionário voltou a aparecer, metendo a mão na carcela do
cafetã, puxou das duas cartas, que lhe apresentou,
— Para o Sr. Barão Asch, da parte do general-chefe príncipe Bolkonski —
articulou ele, numa voz tão importante e tão solene que o funcionário não teve
outro remédio senão aceitar as cartas.
Alguns minutos depois, o governador recebia Alpatitch e dizia-lhe
apressadamente:
— Diz ao príncipe e à princesa que nada sei: procedo de acordo com as ordens
superiores. Toma, aqui tens – acrescentou, entregando-lhe um papel. — Aliás, se o
príncipe está doente, aconselho-o a que vá para Moscovo, eu próprio vou partir
imediatamente. Diz-lhe...
O governador não pôde concluir a frase. Um oficial coberto de suor e de poeira
precipitou-se na sala e pôs-se a falar-lhe em francês. No rosto do governador havia
uma expressão de pânico.
— Vai-te embora — disse ele, fazendo-lhe um sinal com a cabeça, e pôs-se a
interrogar o oficial,
Olhares ávidos de notícias, assustados e impotentes, interrogaram Alpatitch
quando ele saiu do gabinete do governador, Dando fé, mesmo sem querer, da
fuzilaria cada vez mais intensa e mais próxima, tratou de regressar à estalagem.
O papel que o governador lhe dera dizia o seguinte:
«Asseguro-lhe que a cidade de Smolensk não corre perigo algum e não é de
crer que venha a estar ameaçada. O príncipe Bagration e eu avançamos cada um
pelo seu lado para nos reunirmos diante de Smolensk, junção esta que estará
realizada no dia 22 deste mês, e os dois exércitos, na totalidade das suas forças,
defenderão os seus compatriotas da província que lhe foi confiada até que osnossos esforços afastem deles o inimigo da pátria ou até que caia o último soldado
das nossas valorosas fileiras. Portanto já vê que pode tranquilizar os habitantes de
Smolensk; quando se é defendido por dois exércitos ião valentes pode estar-se
seguro da vitória.» (Ordem do dia de Barclay de Tolly ao governador civil de
Smolensk, barão Asch, no ano de1812.)
O povo girava inquieto pelas ruas. Carroças carregadas de panelas, de
cadeiras, de arcas, saíam a cada momento dos portais e seguiam ruas fora. Diante
da casa contígua à de Ferapontov estacionavam vários carros, e algumas mulheres
soluçavam, despedindo-se. Um cão ladrava correndo à frente dos cavalos
atrelados.
Alpatitch, em passo mais acelerado que de costume, penetrou no pátio e
dirigiu-se directamente ao telheiro onde estavam os seus cavalos e a sua
carruagem. O cocheiro dormia; acordou-o e mandou-o atrelar, entrando depois no
vestíbulo da estalagem.
No quarto do dono da casa ouviam-se choros de crianças, soluços dilacerantes
de mulheres e a voz estentórea e rouca de Ferapontov. Quando Alpatitch
penetrou no vestíbulo, a cozinheira corria de um lado para o outro como uma
galinha assustada.
— Deu-lhe uma paulada que a deixou meio morta... Bateu na patroa. Arrastou-
a.
— Porquê? — perguntou Alpatitch.
— Queria que a levasse daqui. É mulher, coitada! «Leva-me», disse-lhe ela,
«não me deixes morrer aqui com os meus filhos. Toda a gente se vai embora. Que
vai ser de nós?» E ele pôs-se a bater-lhe. Aquilo é que foi dar-lhe. Como ele a
arrastou!
Alpatitch abanou a cabeça, com ar meio aprovador, e sem querer ouvir mais
encaminhou-se para o quarto em frente do do patrão, onde deixara as suas
compras.
— Malvado! Bandido! —, gritava nessa altura uma mulher magricela e pálida,
com uma criança ao colo, que se precipitou na escada a caminho do pátio, o lenço
da cabeça meio rasgado.
Ferapontov saiu-lhe no encalço, mas ao ver Alpatitch ajeitou colete e os
cabelos e, bocejando, penetrou no quarto do amigo.— Pelo que vejo, vais-te embora — disse— lhe.
Sem lhe responder e sem mesmo o olhar, Alpatitch continuou a embrulhar as
suas compras e perguntou-lhe quanto lhe devia.
— Já faremos contas. Falaste com o governador? — inquiriu Ferapontov —
Que decidiram eles?
Alpatitch explicou-lhe que o governador nada lhe dissera de muito preciso.
— Como havemos nós de nos ir embora? — disse Ferapontov. — Quem há-de
dar sete rublos por um carro até Dorogobuj? É por isso que eu digo que são
hereges! Selivanov, esse, teve sorte, na quinta-feira: vendeu farinha ao exército à
razão de nove rublos por saco. Ouve cá, tornas chá? — acrescentou.
Enquanto atrelavam os cavalos os dois foram tomar chá, conversando sobre o
preço dos trigos, sobre as colheitas e o tempo, que ia bom para as ceifas.
— Parece que isto vai melhor — disse Ferapontov, depois de tomar três
chávenas de chá, levantando-se. — Podes crer, os nossos têm-nos na mão. Eles
bem dizem que os não hão-de deixar entrar. Só quer dizer que têm força... No
outro dia, segundo ouvi, Matvei Ivanovitch Platov perseguiu-os até ao Marina.
Dizem que só num dia afogou dezoito mil.
Alpatitch fez um embrulho das suas compras, deu-o ao cocheiro, que acabava
de entrar, e pagou a conta ao estalajadeiro. Junto do portão ouviam-se o ruído da
kibitka que saía do pátio e o retinir dos guizos.
Já passava do meio-dia. Parte da rua estava na sombra enquanto a outra
brilhava ao sol. De súbito ouviu-se um silvo longínquo e estranho acompanhado de
um estampido, e em seguida um ronco prolongado que fez estremecer os vidros.
Alpatitch saiu para a rua. Dois homens corriam na direcção da ponte. Por todos
os lados se ouviam silvos e o estampido surdo das granadas que explodiam sobre a
cidade. Mas isso nada era e pouco chamava a atenção dos habitantes comparado
com o canhoneio que se ouvia fora de portas.
Era o bombardeamento da cidade de Smolensk, com cento e trinta peças de
artilharia, que Napoleão ordenara principiasse às cinco horas da manhã. De
princípio, a população da cidade não tinha sequer percebido que se tratava de um
bombardeamento.
Os obuses e as granadas que caíam começaram por despertar apenas
curiosidade. A mulher de Ferapontov, que continuava a choramingar no telheiro,
calou-se repentinamente, e com o filho nos braços veio para o portão, onde ficou,sem dizer nada, olhando para quem passava, de ouvido à escuta.
A cozinheira e um lojista vieram-se-lhe juntar. Todos, numa curiosidade
divertida, procuravam lobrigar os projécteis que lhes passavam por cima da
cabeça. A esquina da rua apareceram uns indivíduos conversando animadamente.
— Que força, caramba! — dizia um — O telhado, o tecto, ficou tudo em cacos.
— Parece que andaram a fossar a terra como o porco faz com o focinho —
acrescentou outro. — Isto sim, isto vale a pena. Põe um morto em pé! —
prosseguiu um terceiro em ar de mofa. — Tiveste sorte. Se não tens dado um salto
para o lado, estavas a estas horas em fanicos.
Aproximaram-se deles outras pessoas. Contaram que as granadas lhes tinham
caído em casa, mesmo a seu lado. Entretanto, os projécteis, as granadas, de silvos
prolongados e lúgubres, os obuses, de uma música mais alegre, continuavam a
passar por cima das cabeças. No entanto, nenhum caiu nas imediações, todos
seguiam mais longe. Alpatitch instalou-se na kibitka. O estalajadeiro continuava
de pé, ao portão.
— Que estás tu para aí a olhar? — gritou ele para a cozinheira, a qual, de
mangas arregaçadas, saiote vermelho, mãos nas ancas, se aproximara do cunhal
da rua para ouvir o que se dizia.
— Sempre há coisas! — exclamava ela, Mas, ao ouvir a voz do amo,
retrocedeu, deixando cair a saia repuxada para cima. De novo, e desta vez ali
mesmo, ressoou um silvo, e, como uma ave vinda do céu, viu-se um grande clarão
no meio da rua, enquanto uma detonação, que encheu tudo de fumo, atroava os
ares.
— Bandidos! Que está esta gente a fazer? — gritou o estalajadeiro, correndo
para a cozinheira.
Nesse mesmo momento romperam de vários lados gritos aflitivos de mulheres.
A criança, aterrada, pôs-se a chorar, e as pessoas, silenciosas e pálidas, juntaram-
se em volta da cozinheira. Os gemidos e as exclamações que ela soltava ouviam-se
no meio do vozear da multidão.
— Oh, meus pombinhos! Oh, pombinhos brancos! Não me deixem morrer!
Meus pombinhos brancos!
Cinco minutos depois não havia vivalma na rua. A cozinheira fora levada para
a cozinha, com uma costela partida por um estilhaço de obus. Alpatitch, o cocheiro,
a mulher de Ferapontov mais os filhos, o porteiro, todos se haviam refugiado nacave, e falavam de ouvido à escuta. O troar do canhão, o silvar das granadas bem
como os gemidos da cozinheira, que dominavam todos os demais ruídos, não se
calavam um instante, A mulher do estalajadeiro embalava o filho, procurando
sossegá-lo, e perguntam aos que iam entrando se tinham visto o marido, que
ficara lá fora. Um lojista que chegou disse que ele acompanhara o povo que se
dirigia à catedral para rezar diante do ícone miraculoso de Smolensk.
Ao cair da noite o canhoneio diminuiu. Alpatitch saiu da cave e ficou um
momento parado no limiar da porta. O céu, até aí claro, estava agora cheio de
fumo. E no meio de toda aquela fumarada, no horizonte, resplandecia o crescente
da lua nova. Desde que o troar das bocas de fogo se calara, parecia que a calma
caíra sobre a cidade, apenas interrompida pelo ruído confuso dos passos, dos
gemidos, dos gritos longínquos e do crepitar dos incêndios. Os gemidos da
cozinheira tinham deixado de se ouvir. A direita e à esquerda elevavam-se,
dispersando-se pelo ar, negras colunas de fumo, Nas ruas, não já em fileiras, mas
como formigas de um formigueiro arrasado, corriam, em várias direcções, soldados
com os mais variados uniformes. A vista de Alpatitch vários se refugiaram no pátio
de Ferapontov. Alpatitch caminhou para o portão. Um regimento, em retirada,
acelerada e em desordem, obstruía a rua.
— A cidade rende-se, fuja, fuja o mais depressa possível — disse um oficial que,
ao passar, reparara na silhueta de Alpatitch, e logo em seguida, gritando para os
soldados. — Eu vos ensinarei a meterem-se no pátio.
Alpatitch voltou à estalagem e, chamando o cocheiro, deu-lhe ordem de
abalar. O pessoal de Ferapontov saíra logo atrás de Alpatitch e do cocheiro. Ao
verem a fumarada e as chamas dos incêndios, agora mais brilhantes por ter
começado a cerrar-se a noite, as mulheres, até aí caladas, de repente puseram-se
aos gritos. Como se lhes respondessem, nos dois extremos da rua ressoaram
gemidos. Alpatitch e o cocheiro, de mãos trémulas, no telheiro, desembaraçavam
as rédeas dos cavalos e os tirantes enrodilhados.
No momento em que saíam do portão viram na tenda de Ferapontov, cuja
porta ficara aberta, um magote de soldados que em grande alarido enchiam sacos
e bornais de farinha e de girassol. Nessa altura entrava Ferapontov, vindo da rua.
Ao ver os soldados quis gritar mas, de súbito calou-se e, arrancando as mãos
cheias os cabelos da cabeça, rompeu num riso entrecortado de soluços.
— Levem tudo, rapazes! Não deixem coisa, alguma Para esses diabos —gritava ele, pegando também nos sacos e despejando-os na rua.
Alguns dos soldados, assustados, fugiram, enquanto os outros continuaram a
encher os sacos. Ao ver Alpatitch, Ferapontov gritou-lhe:
— Rússia, estás perdida! Alpatitch! Rússia, estás perdida! Eu vou tratar de
deitar o fogo a tudo. Estás perdida... — repetia, correndo para a rua.
A rua estava completamente obstruída pelos soldados que passavam
constantemente e Alpatitch, não podendo avançar, viu-se obrigado a esperar ali
mesmo. A mulher de Feranontov com os filhos meteu-se também num carro à
espera do poder passar.
A noite fechara-se por completo. O céu coberto de estrelas e de tempos a
tempos via-se surgir a Lua através de uma cortina de fumo. Ao descerem para o
Dniepre, os carros de Alpatitch e da mulher do estalajadeiro, que avançavam, a
passo, entre duas filas de soldados e viaturas, foram obrigados a parar. Não longe
da encruzilhada onde fizeram alto, uma casa e uma tenda ardiam ainda. O incêndio
principiava a extinguir-se. Tão depressa as chamas esmoreciam, perdendo-se numa
fumarada negra, como se punham a crepitar de súbito, iluminando, com uma
nitidez fantástica, as figuras dos fugitivos acumulados na estrada. Por diante das
chamas perpassavam silhuetas negras e no meio do crepitar ininterrupto do fogo
ouviam-se vozes e gritos. Alpatitch apeou-se e, vendo que o caminho não estaria
desimpedido tão depressa, dirigiu-se à encruzilhada para contemplar o fogo.
Os soldados andavam de um lado para o outro diante do braseiro. Viu que dois
deles, acompanhados de um homem com um capote pelos ombros, arrastavam
pela rua, em direcção a um Pátio vizinho, pranchas a arder. Outros traziam
braçados de feno.
Alpatitch aproximou-se de um grande ajuntamento estacionado diante de um
vasto estabelecimento que ardia a bom arder. As paredes estavam envoltas em
chamas, a retaguarda ruía. O telhado de folhas de madeira estava prestes a cair,
as pranchas ardiam. A gente aguardava, sem dúvida, que o telhado viesse abaixo.
Alpatitch esperou também.
— Alpatitch! — gritou de repente uma voz conhecida.
— Excelência, paizinho! — exclamou ele, ao reconhecer imediatamente a voz
do seu jovem amo.
O príncipe André, envolto numa capa e montado num murzelo, estava no meio
da multidão, de olhos fitos nele.— Que estás aqui a fazer? — perguntou.
— Exce... excelência... — balbuciou Alpatitch, rompendo a chorar. — Exce...
excelência... É possível que estejamos perdidos? Paizinho...
— Que estás aqui a fazer? — repetiu André.
Naquele momento reavivaram-se as chamas e Alpatitch pode ver o rosto
pálido e esgotado do seu jovem amo, Contou ao que viera e como não podia dali
sair.
— É verdade. Excelência, que estamos perdidos? — repetiu ele.
O príncipe André, sem lhe responder, puxou de uma carteirinha de algibeira,
arrancou-lhe uma página e em cima do joelho pôs-se a escrever a lápis estas
palavras, dirigidas à irmã:
«Smolensk rendeu-se. Lissia Gori será ocupada pelo inimigo dentro de oito
dias. Partam imediatamente para Moscovo. Avisa-me em seguida da data da
vossa partida, enviando-me um portador a Usviage.»
Depois de ter entregue o papel a Alpatitch, deu-lhe oralmente instruções
sobre os preparativos da partida do príncipe, da princesa e do filho, com o seu
preceptor, e sobre a resposta que lhe devia ser remetida imediatamente. Mal
acabara de falar, um dos chefes do estado-maior, a cavalo, e seguido de uma
comitiva, precipitou-se para ele.
— É o senhor o coronel? — Fritou, com um sotaque alemão não de todo
desconhecido do príncipe André. — Estão a deitar fogo às casas na sua presença e
o senhor nada faz para o impedir? Que quer isto dizer? O senhor é o responsável...
Era Berg, então subchefe do estado-maior do flanco esquerdo da infantaria do
1º exército, «posição muito agradável e de destaque», como costumava dizer.
O príncipe André fitou-o, e sem lhe responder continuou para Alpatitch:
— Diz-lhe que espero resposta até ao dia 10, e se nesse dia não receber
comunicação de que toda a gente abalou, ver-me-ei obrigado a deixar tudo para ir
pessoalmente a Lissia Gori.
— Príncipe, falo-lhe assim — disse Berg, reconhecendo-o — Porque sou
obrigado a cumprir as ordens que recebo e desempenho-as sempre
escrupulosamente... Desculpe-me, se faz favor...
Alguma coisa crepitou no meio das chamas, que pareciam esmorecer, e
turbilhões de fumo negro romperam do telhado.
Outro estrondo ainda maior se ouviu e o telhado desmoronou-se.«Hurra!», ululou a multidão ao ouvir o estampido, O telhado do
estabelecimento ruíra, espalhando em torno um forte cheiro a pão queimado. As
chamas reavivaram-se de novo, iluminando os rostos fatigados da multidão
extenuada que rodeava o braseiro.
O homem do capote gritou, erguendo os braços ao ar: — Muito bem! Bom
trabalho! Assim mesmo, rapazes!...
— É o proprietário! — exclamaram algumas vozes de entre a multidão.
— Bom! Está entendido! — prosseguiu o príncipe André — Repete-lhes tudo
tal qual eu te disse. — E sem dar atenção a Berg, que permanecia silencioso junto
dele, esporeou o cavalo e desapareceu por uma azinhaga.
[V]
Depois da queda de Smolensk, as tropas russas continuaram sua retirada,
perseguidas pelo inimigo. No dia 10 de Agosto o regimento comandado pelo
príncipe André passou, seguindo pela estrada principal, junto do caminho que
conduzia a Lissia Gori.
O calor e a seca duravam havia mais de três semanas. Todos os dias grossas
nuvens perpassavam pelo céu, escondendo o Sol de vez em quando. Mas para o
fim da tarde o firmamento clareava e o Sol desaparecia no horizonte no meio de
uma neblina avermelhada. Só o rocio da noite refrescava a terra. O trigo que não
fora ceifado secava e o grão caía. Os pântanos tinham secado. O gado morria de
fome, sem encontrar pastos nos prados restados pelo sol, Só de noite, e nas
florestas, enquanto durava a humidade nocturna, fazia fresco. Mas na estrada
real, por onde seguiam as tropas, até de noite, até mesmo no meio das florestas, o
calor era insuportável. Não se dava pelo rocio da noite na poeira dos caminhos, de
mais de um quarto de archina de altura. Mal luzia a manhã, logo recomeçava a
marcha, Os comboios, a artilharia, rolavam sem ruído, enterrados até aos eixos, e
a infantaria metia os pés, até à barriga da perna, na poeira mole, sufocante, que
nem de noite arrefecia. Parte daquela poeira trituravam-na os pés dos soldados e
as rodas das viaturas e a outra subia no ar, formando uma nuvem por cima das
tropas e metendo-se pelos olhos dentro, por dentro dos cabelos, pelo nariz esobretudo pelos pulmões dos homens e dos animais. À medida que o Sol ia subindo
no horizonte mais espessa se tornava a nuvem! de poeira, a qual, à falta de
verdadeiras nuvens, permitia aos soldados fitar o Sol o olho nu. Então o disco solar
parecia um enorme globo carmesim. Não havia vento, e os soldados sufocavam
nesta atmosfera imóvel. Era preciso marchar com um lenço diante do nariz e da
boca. Ao atravessarem as aldeias precipitavam-se para a abertura dos poços.
Disputavam a água a murro c às vezes até bebiam lama.
O príncipe comandava um regimento e, a administração e o bem-estar dos seus
homens, a necessidade, de receber e transmitir ordens, tomavam-lhe o tempo
todo. O incêndio e o abandono de Smolensk representavam uma época importante
da sua vida. Um sentimento de ódio contra o inimigo fizera-o esquecer o seu
desgosto. Entregava-se inteiramente ao cumprimento das suas funções.
Preocupava-se com os soldados e os oficiais. Todos lhe chamavam o «nosso
príncipe»: orgulhavam-se dele e estimavam-no muito Mas só era bom e afectuoso
com os homens do seu regimento, como Timokine e outros, gente nova para ele,
gente de um meio desconhecido, que nada podia saber do seu próprio passado.
Nas suas relações com os seus antigos conhecimentos, com a gente do estado-
maior, tornava-se imediatamente intratável: era desagradável, irónico e altivo.
Tudo quanto lhe lembrava o passado lhe repugnava, e em relação às pessoas do
seu antigo meio limitava-se a usar da mais estrita justiça e a cumprir meramente
os seus deveres.
Em verdade, a seus olhos tudo se lhe representava sombrio e triste,
principalmente depois de 6 de Agosto, dia da rendição de Smolensk, cidade que na
sua opinião podia ter sido defendida e se devia ter defendido, e depois que seu
pai, doente, tivera de fugir para Moscovo, abandonando à pilhagem Lissia Gori,
propriedade a que tanto queria e que ele próprio construíra e povoara. Mas,
apesar de tudo, o príncipe André, graças ao seu regimento, tinha o espírito
preocupado com outras coisas, bem diferentes de todas essas tristezas, A 10 de
Agosto a coluna de que o seu regi— mento fazia parte chegou a alturas de Lissia
Gori. Dois dias antes recebera a comunicação de que o pai, o filho e a irmã haviam
partido para Moscovo. Embora, realmente, nada tivesse que fazer ali, resolveu,
movido por essa tendência especial do seu carácter que o levava a apreciar
dolorosas alegrias, visitar aqueles lugares.
Mandou selar o cavalo e dirigiu-se à aldeia de seus pais, onde ele próprionascera e onde decorrera a sua infância. Ao passar junto do tanque em que
habitualmente dezenas de mulheres lavavam a roupa chalreando, notou que não
havia vivalma e que uma tábua arrancada da borda, quase submersa, flutuava no
meio da água. Aproximou-se da casa do guarda. Junto do portão de pedra da
entrada ninguém havia e a porta da casa estava aberta, As áleas do parque
estavam cobertas de relva e os bezerros e os cavalos deambulavam pelo jardim à
inglesa. Na estufa os vidros estavam partidos e algumas plantas caídas por terra e
outras secas... Chamou Tarass, o jardineiro, mas ninguém lhe respondeu. Rodeando
a estufa pelo terraço, notou ao passar que a balaustrada de madeira entalhada
estava partida e que os ramos das ameixieiras, sem frutos, jaziam quebrados no
chão. Um velho camponês, que o príncipe de há muito conhecia, estava, junto do
portão, sentado num banco verde entrançando laptis.
Era surdo e não dera pela chegada do amo. Estava acomodado no banco em
que o velho príncipe gostava de sentar-se, e junto dele, suspensas dos ramos de
uma magnólia partida e seca, viam-se as meadas de cânhamo.
O príncipe André dirigiu-se a casa, Tinham cortado várias tílias do antigo
parque, uma égua malhada com o seu potro cirandava, por debaixo das janelas,
mesmo pelo meio dos alegretes das roseiras. As portadas das janelas estavam
fechadas. Havia apenas uma aberta, em baixo. Ao ver o príncipe André, o filho de
um criado entrou correndo em casa. Alpatitch, que mandara família para a cidade,
ficara em Lissia Gori, E ali estava a ler Vida dos Santos. Ao saber da, chegada do
príncipe André, de lunetas no nariz e abotoando o casaco, tratou logo de vir ao
encontro do amo, e sem dizer palavra rompeu a chorar enquanto se abaixava para
lhe beijar o joelho.
Depois voltou a cara, arreliado com a fraqueza que mostrara, e pôs-se a contar
ao príncipe o que se passara. Tudo o que era precioso e, de valor fora
transportado para Bogutcharovo. O trigo, cerca de cem tchetverts, fora levado
também para lugar seguro. Quanto ao feno e ao trigo, a colheita da Primavera,
excepcional, segundo ele dizia, haviam sido ceifados verdes e levados pelas tropas.
Os camponeses estavam arruinados, e parte deles fora também para
Bogutcharovo, embora a maioria houvesse ficado.
Sem o ouvir até final, o príncipe André perguntou-lhe:
— Quando se foram meu pai e minha irmã?
Queria dizer: quando saíram para Moscovo. Alpatitch, julgando que ele sereferia à partida para Bogutcharovo, respondeu terem partido no dia 7, e de novo
voltou a falar dos assuntos do domínio, pedindo instruções.
— Acha que se deve dar às tropas, contra recibo, a aveia que ficou? Ainda há
umas seiscentas tchetverts... — inquiriu.
«Que devo eu responder— lhe?», pensava o príncipe André, enquanto filava o
crânio do velho, calvo como a palma da mão, brilhando ao sol, e lhe ia lendo na
expressão que ele próprio compreendia quão inoportunas eram essas perguntas,
que ele as não fazia senão para afogar mágoas.
— Pois sim, entrega-a — replicou.
— Naturalmente reparou na desordem do jardim — prosseguiu Alpatitch. —
Não foi possível evitá-la. Três regimentos passaram aqui a noite, principalmente
dragões. Tomei nota do posto e do nome do comandante, para apresentar queixa.
— E que vais tu fazer agora? Continuarás aqui se o inimigo ocupar a quinta? —
perguntou o príncipe André.
Alpatitch virou a cara para o príncipe, fitou-o e, de súbito, num gesto solene,
ergueu os braços ao céu.
— Ele é meu protector, que seja feita a Sua vontade! — exclamou.
Um grupo de camponeses e de criados, todos de cabeça descoberta, avançava
através do campo, direito ao lugar onde estava o príncipe André.
— Bom, adeus! — disse este, inclinando-se para Alpatitch — Vai-te embora
também. Leva contigo o que puderes e diz aos camponeses que se refugiem ou na
propriedade de Riazan ou nas dos arredores de Moscovo.
Alpatitch agarrou uma das pernas do amo, soluçando. O príncipe André
desprendeu-se suavemente e, esporeando o cavalo, despediu a galope por uma
das alamedas.
No terraço da estufa, tão indiferente como uma mosca pousada no rosto de um
morto que nos é querido, continuava sentado o ancião, ocupado a pregar num
cepo os seus laptis, e duas pequenitas com as saias arregaçadas, cheias de ameixas
colhidas nas árvores da estufa, correram dando de caras com o cavaleiro. Ao ver o
patrão novo, a mais idosa, muito assustada, pegou na companheira pela mão e
ambas se foram esconder atrás de um álamo, sem terem tempo de apanhar as
ameixas verdes que deixaram cair no chão.
O príncipe André deu-se pressa em voltar a cabeça para o lado, para que elas
não vissem que ele as observara. Fez-lhe pena aquela linda garota, com o seu arassustado. Não queria olhar, mas não conseguia. Um sentimento novo, doce e
apaziguador o invadiu ao ver aquelas crianças. Compreendeu que outros
interesses havia na vida completamente alheios aos seus e tão naturais como os
que o preocupavam. Aquelas crianças não tinham evidentemente senão um
desejo: levar consigo, para comê-las, aquelas ameixas verdes e não se deixarem
apanhar, e o certo é que André, lá no fundo, lhes estava desejando que fossem
bem sucedidas na sua proeza. E não resistiu a olhar para elas uma vez mais.
Julgando passado todo o perigo saíram do seu esconderijo e, tagarelando nas suas
vozitas agudas, de saias arregaçadas, puseram-se a correr alegremente pela relva,
de pés descalços tostados pelo sol.
O príncipe André sentira-se um pouco mais fresco ao abandonar a atmosfera
poeirenta da estrada real por onde avançavam as tropas. Mas não longe de Lissia
Gori teve novamente de meter por ela e foi apanhar o seu regimento junto da
comporta de um dique. Eram duas horas da tarde. O Sol, como uma bola vermelha
no meio da poeira, escaldava, e as costas ficavam assadas através do pano preto
do uniforme. O pó continuava na mesma e mantinha-se imóvel por cima dos
soldados, que não cessavam de falar. Não havia vento. Ao passar junto da
albufeira, André sentiu nas narinas um cheiro a lodo, e do tanque subiu um pouco
de frescura. Teve vontade de se atirar à água, por mais suja que estivesse. Voltou-
se para o lado da albufeira donde vinham gritos e risadas. Aquela pequenina
extensão de água turva, cheia de juncos, parecia ter crescido mais dois palmos e
inundava já a comporta, tantos eram os corpos brancos e nus que nela
chafurdavam, de mãos, rostos e pescoços encarnados cor de tijolo. Toda essa carne
humana chafurdava entre as gargalhadas e gritos naquele pântano lamacento,
como carpas dentro de uma selha. Uma vaga tristeza se derramava daqueles
alegres folguedos. Um soldado louro, das relações pessoais do príncipe André, da
3ª companhia, com uma correia na barriga da perna, persignou-se e recuou alguns
passos para dar uma corrida e mergulhar na água; outro, um sargento, trigueiro e
cabelos sempre revoltos, metido no tanque até à cintura, agitava o busto
musculoso, resfolegando alegremente, enquanto salpicava a cabeça com os braços
queimados até ao pulso. Só se ouvia chapinhar e gritar.
Nas margens da albufeira, na comporta, no tanque, por toda a parte, só se via
carne branca, sã e musculosa. O oficial Timokine, com o seu nariz vermelhusco,
enxugava-se com uma toalha em cima da comporta, e, embora um poucoenvergonhado ao ver o príncipe André, exclamou:
— Isto faz bem, Excelência, devia fazer o mesmo!
— Está muito suja a água — replicou o príncipe André, fazendo uma careta.
— Vamos já arranjar-lhe sítio. — E Timokine, meio vestido, correu a afastar os
banhistas.
— O príncipe queria...
— Quem?, o nosso?... — exclamaram várias vozes, e todos se ajeitaram de tal
modo que o príncipe André se viu em apuros para convencê-los a que se deixassem
ficar como anteriormente. Preferia proceder as suas abluções debaixo de um
te1heiro.
«Carne, corpos, carne para canhão», pensava ele, despindo-se também, e
tremendo menos de frio que à lembrança dessa massa de corpos que chafurdava
no tanque cheio de lama: sentia ao mesmo tempo desgosto e pavor, embora não
soubesse explicar o porquê desses sentimentos.
No dia 7 de Agosto, o príncipe Bragation, do seu acampamento de Mikailovka,
na estrada de Smolensk, escrevia a carta seguinte. Endereçada a Araktcheiev,
sabia que seria lida pelo imperador, e por isso ponderou cada palavra, pelo menos
na medida em que era capaz de o fazer
Sr. Conde Alexis
Suponho que o ministro já o terá informado que
Smolensk foi abandonada ao inimigo. É doloroso e triste, e o
exército inteiro está desesperado por ver que a mais
importante das nossas praças foi perdida sem qualquer
utilidade. Pela minha parte, pedi-lhe, pessoalmente e com o
maior empenho, que o não fizesse, e até chequei a escrever-
lhe nesse sentido, mas não se demoveu. Juro-lhe pela minha
honra que Napoleão se encontrava num atoleiro e que teria
perdido metade do seu exército sem tomar Smolensk. As
nossas tropas têm-se batido e batem-se como nunca. Pela
minha parte, resisti com quinze mil homens durante mais de
trinta e cinco horas e venci-os, mas ele nem sequer catorze
horas quis resistir. É uma vergonha e uma nódoa, para o
nosso exército, e na minha opinião esse homem não temdireito a vida. Se lhe diz que as nossas perdas são muito
grandes, não é verdade. Talvez uns quatro mil homens, não
mais, e talvez menos até. Mas ainda que fossem dez mil, que
havíamos nós de fazer? É a guerra. As perdas do inimigo,
porém, essas são enormes.
Que lhe custava demorar-se mais dois dias? Ao menos o
inimigo ter-se-ia retirado por si, pois a verdade é que já
não tinha água para os homens nem para os cavalos. Dera-
me a sua palavra de honra de que não recitaria, e eis que
me envia uma mensagem dizendo que se ia embora
naquela mesma noite. Não se pode fazer a guerra deste
modo, e por este andar não tarda, que o inimigo siga ate
Moscovo.
Corre por aqui que pensa na paz. Deus nos livre! Depois
de todos estes sacrifícios e de uma retirada tão insensata,
pedir a paz? Seria fizer com que o Rússia ficasse toda contra
si, e todos nós teríamos vergonha de vestir uma farda. Já
que as coisas chegaram a este ponto é preciso que lutemos
enquanto a Rússia puder e enquanto houver homens.
É mister que o comando esteja na mão de um, e não nas
de dois. O seu ministro talvez seja excelente no exercício das
funções da sua pasta, mas como general não é apenas mau,
é mesmo péssimo. E a ele confiaram o destino da nossa
pátria... Sinceramente, estou doido de indignação. Perdoe-
me a ousadia das minhas palavras. É evidente que não gosta
do seu imperador e que não deseja outra coisa senão a
nossa perdição aquele que aconselha que se peça a paz e
quer que o ministro seja o único a comandar. Por isso lhe
digo a verdade: organize a milícia. De outra forma, o
ministro acabará, de maneira magistral, por levar consigo o
seu hóspede ale Moscovo. O senhor Vatltzofen, general
ajudante-de-campo do imperador, não é visto com bons
olhos pelo exército. Há quem diga que e mais fiel a Napoleão
que ao nosso monarca e no entanto é o maior conselheiro doministro. Quanto a mim, obedeço-lhe como um cabo, embora
mais antigo do que ele. É triste, mas é por lealdade para
com o meu benfeitor e soberano que me submeto. No
entanto, não posso deixar de lamentar que o nosso
imperador confie o seu magnífico exército a semelhante
pessoa. Imagine que na nossa retirada perdemos mais de
quinze mil homens por esgotamento e hospitalizados, coisa
que não teria acontecido se tivéssemos caminhado em
frente. Diga-lhes aí, por amor de Deus, que a nossa Rússia, a
nossa mãe, acabará por acusar-nos de termos medo e de
entregarmos a nossa boa e heróica pátria a esses canalhas:
talvez seja a maneira de despertar a vergonha, e o ódio em
cada cidadão. Que significa esta cobardia? De que ternos
medo? Não é minha a culpa se o ministro é indeciso,
medroso, absurdo, lento, e se há nele todos os defeitos
possíveis. O exército inteiro não faz senão chorar e cobre-o
de impropérios.
[VI]
Entre as numerosas subdivisões que podem estabelecer-se nos fenómenos da
vida há algumas em que predomina o fundo sobre a forma e outras em que é a
forma que prevalece. É a esta última subdivisão, e em oposição à vida no campo,
tia província, nas capitais do distrito e até mesmo em Moscovo, que pertence a
vida de Petersburgo, principalmente a vida do salão. Esta última é imutável.
Em 1805, os Russos tinham-se reconciliado e zangado com Napoleão, tinham
feito e desfeito constituições, mas os salões de Ana Pavlovna e de Helena eram
exactamente o que haviam sido sete anos antes um e cinco o outro. No salão de
Ana Pavlovna continuava a falar-se com o mesmo espanto dos êxitos de Bonaparte
e a ver-se nos seus triunfos, bem como nas convivências dos monarcas da Europa,
uma pérfida conspiração adrede preparada para enfadar e perturbar a corte russa,
que Ana Pavlovna representava. No de Helena, a que Rumiantsov, inclusivamente,dava a honra da sua presença, considerando a condessa Bezukov como uma mulher
de excepcional inteligência, em 1812, exactamente como em 1808, continuava a
falar-se entusiasticamente da grande nação e do grande homem, deplorando o
corte de relações com a França, mal-entendido que não podia deixai de terminar
com um tratado de paz.
Nos últimos tempos, depois do regresso do imperador, verificava-se uma
agitação desusada nestes mundos opostos, e houve, inclusivamente, algumas
demonstrações hostis de parte a parte, embora a tendência geral de cada
permanecesse a mesma, o salão de Ana Pavlovna, quanto a franceses, apenas
recebia os legitimistas mais empedernidos, e os seus sentimentos patrióticos
patenteavam-se no facto de incluir no índex o teatro francês cuja manutenção,
segundo se dizia, era tão dispendiosa como a de um corpo de exército. Seguiam-se
ali febrilmente os acontecimentos militares e faziam-se circular os boatos mais
lisonjeiros para o exército russo. No salão de Helena, também o de Rumiantsov e
dos franceses, desmentiam-se os rumores acerca das crueldades do inimigo e da
guerra e discorria-se sobre as tentativas levadas a cabo por Napoleão para obter
a paz. Eram censurados aí os que davam conselhos precipitados no sentido de
transferir a corte para Kazan bem como os estabelecimentos de ensino de meninas
dependentes da administração da imperatriz-mãe. Em geral, no salão de Helena a
guerra apresentava-se como uma série de demonstrações estéreis que não
tardariam a acabar com a paz, e a opinião que reinava ai era a de Bilibine, nessa,
altura um dos íntimos de Helena — pois todo o homem inteligente tinha de
frequentar o seu salão. Segundo ele, não era a pólvora que deveria resolver o
pleito, mas os que a tinham inventado. Troçava-se com muito espírito, mas sem
prudência, do entusiasmo de Moscovo, de que haviam chegado rumores a
Petersburgo, bem como da recepção do imperador na velha cidade.
No salão de Ana Pavlovna, pelo contrário, aplaudiam-se entusiasticamente
essas manifestações, dignas dos heróis de Plutarco. O príncipe Vassili, que
continuava a desempenhar as mesmas funções importantes, servia de traço de
união entre os dois grupos. Frequentava, alternadamente, a minha boa amiga Ana
Pavlovna e o salão diplomático de minha filha; como estava sempre a passar de
um lado para o outro, sucedia às vezes enganar-se e dizer no salão de Helena o
que devia dizer no de Ana Pavlovna e reciprocamente.
Pouco depois do regresso do imperador, o príncipe Vassili, ao falar da situaçãoem casa de Ana Pavlovna, criticara severamente Barclay de Tolly, mostrando-se
indeciso quanto ao nome que devia chamar-se para ocupar o lugar de general-
chefe. Um dos frequentadores do salão, de quem se dizia ser um homem cheio de
valor, e que contara ter visto nesse mesmo dia o chefe, da milícia de Petersburgo,
Kutuzov, presidir à recepção dos voluntários na câmara das finanças, permitiu-se
dizer, o mais prudentemente possível, que o homem que satisfaria a todas as
exigências podia ser precisamente Kutuzov.
Ana Pavlovna pôs-se a sorrir melancolicamente e observou que Kutuzov só
servira para causar desgostos ao imperador.
— Já disse e repeti na assembleia da nobreza — interrompeu o príncipe Vassili
— mas ninguém me ouviu. Afirmei que essa escolha para chefe da milícia não
agradaria ao imperador. Não fizeram caso. Não se perde o hábito de censurar! —
prosseguiu ele. — E tudo isto porque o que queremos é macaquear os estúpidos
entusiasmos de Moscovo. — Falando deste modo, cometia um deslize esquecendo-
se que era no salão de Helena que devia ridicularizar esses entusiasmos, e no de
Ana Pavlovna, pelo contrário, aplaudi-los. E ei-lo que corrige o seu desastramento.
Será realmente recomendável que o conde Kutuzov, o mais velho dos generais
russos, ocupe um lugar desses, valerá a pena? Será possível nomear para o cargo
de general-chefe um homem que não pode montar a cavalo, que adormece no
conselho e cujos costumes não são recomendáveis? Sim, senhor, arranjou uma rica
fama em Bucareste! E não falo das suas qualidades de general, mas será possível
que se nomeie um homem caduco e cego, sim cego, tal qual? Devia ser bonito um
general cego! Não vê coisa alguma. É bom para jogar à cabra-cega...
Completamente cego!
Ninguém fez objecção a estas palavras.
A 25 de Julho isto era exacto, mas a 29 Kutuzov recebeu o título de príncipe,
Tal distinção, que podia querer dizer haver desejos de correr com ele, não
invalidara o severo juízo do príncipe Vassili, embora obrigasse este a ser mais
prudente. A 8 de Agosto reuniu-se uma comissão, de que faziam parte o marechal-
de-campo Saltikov, Araktcheiev. Viazmitinov, Lopukine e Kotchubei, para tomar
resoluções sobre a marcha da guerra. Chegou-se aí à conclusão de que os reveses
eram provocados pela dualidade de comando e, embora os membros da comissão
estivessem inteirados de que o imperador não estava satisfeito com Kutuzov,
depois de uma curta deliberação, foi o nome dele que propuseram para o lugar degeneral-chefe. E assim, nesse mesmo dia, Kutuzov foi nomeado generalíssimo de
todas as regiões ocupadas pelas tropas. A 9 de Agosto, o príncipe Vassili
encontrou-se de novo no salão de Ana Pavlovna com o homem cheio de valor.
Este, que queria obter o lugar de curador de um instituto de meninas, fazia a corte
à dona da casa. O príncipe Vassili entrou no salão numa atitude de autêntico
triunfador, como alguém que acaba de ver realizados os seus mais ardentes
desejos.
— Então, já sabem a grande notícia? O príncipe Koutouzoff foi nomeado
marechal! Acabaram todos os dissentimentos. Estou muito contente, muito feliz!
— exclamou. — Temos enfim, um homem — acrescentou, eircunvagando um olhar
ao mesmo tempo competente e severo. O homem cheio de valor, apesar do
empenho que tinha em conseguir o almejado lugar, não pôde deixar de chamar a
atenção de Vassili para o facto de ele não ter sido sempre da mesma opinião.
Claro que isso não era uma atitude muito diplomática da sua parte quer para com
o príncipe Vassili e no salão de Ana Pavlovna, quer para com a própria dona da
casa, que se mostrara regozijadíssima ao saber a notícia. Mas não pudera
dominar-se.
— Mas diz-se que ele é cego, príncipe? — observou ele, lembrando ao príncipe
Vassili as palavras que ele próprio pronunciara.
— Ora, ora, vê o suficiente — retorquiu este na sua voz de baixo,
escamoteando as palavras e tossicando, costume seu quando em embaraços.
— Ora, ora, vê o suficiente — repetiu. — E o que me dá maior prazer é o facto
de o imperador lhe ter concedido plenos poderes sobre todo o exército e sobre
todo o território, podei, nunca antes dado a qualquer outro general, É um segundo
autocrata — concluiu com um sorriso de triunfo.
— Deus o queira! Deus o queira! — exclamou Pavlovna.
O homem cheio de valor, noviço da sociedade da corte, julgou lisonjear Ana
Pavlovna tentando justificar a sua antiga opinião, e observou:
— Dizem que o imperador só de má vontade o investiu deste poder. Dizem que
corou como uma donzela a quem lessem a história Joconde, ao dizerem-lhe: o
soberano e a pátria conferem-lhe esta honra.
— Talvez o dissesse um pouco contrafeito — comentou Ana Pavlovna.
— Oh, não, não! — exclamou Vassili, acaloradamente. Agora não podia trocar
Kutuzov por mais ninguém. Em sua opinião, não só ele era perfeito, mas toda agente o adorava. — Isso não pode ser, porque o imperador sempre apreciou muito
o seu mérito.
— Deus queira — interveio Ana Pavlovna — que o príncipe Kutuzov tome,
efectivamente, conta do Poder e não consinta que alguém lhe levante obstáculos.
O príncipe Vassili percebeu imediatamente a alusão. Disse em voz baixa:
— Sei de fonte limpa que Kutuzov impôs como condição sine qua non que o
grão-duque herdeiro não continue no exército. Sabem o que disse ao imperador?
E o príncipe Vassili repetiu as palavras que este teria dito ao soberano: «Não
posso castigá-lo se se portar mal nem recompensá-lo se se portar bem.»
— Oh, o príncipe Kutuzov é um homem de grande inteligência, conheço-o de
longa data.
— Dizem mesmo — interveio o homem cheio de valor, continuando a dar
provas de falta de tacto de cortesão — que Sua Excelência Sereníssima impôs
como condição indispensável que o imperador não compareça no exército.
Mal pronunciou estas palavras, Vassili e Ana Pavlovna voltaram a cabeça
simultaneamente e trocaram entre si um olhar triste, soltando um profundo
suspiro, impressionados com tamanha ingenuidade.
[VII]
Enquanto isto se passava em Petersburgo, os Franceses deixavam para trás
Smolensk e aproximavam-se mais e mais de Moscovo. Thiers, o historiador de
Napoleão, como todos os outros autores que se ocuparam da sua personalidade,
para justificarem c seu herói, sustentam que ele foi atraído, a pesar seu, até junto
dos muros de Moscovo. Thiers tem razão na medida em que têm razão todos
quantos procuram explicar os acontecimentos históricos pela vontade de um só
homem. Tem razão como a têm os historiadores russos que afirmam que Napoleão
foi impelido para a frente graças à habilidade dos generais russos. Nisto, além da
lei da retrospectividade, que leva a crer que o passado não é mais que a
preparação do facto consumado, existe uma certa conexão dos acontecimentos que
complica tudo. Um bom jogador de xadrez que perde uma partida fica convencido
de ter perdido por virtude de um erro em que incorreu, e vai procurá-lo noprincipio do jogo esquecendo-se de que no decurso da partida incorreu em outros
erros semelhantes e que nenhuma das suas jogadas foi perfeita, Deu conta do seu
erro apenas porque o adversário dele tirou partido.
Quão mais complicado não é o jogo da guerra, que tem lugar em determinadas
condições de tempo, em que não é uma vontade única que conduz as máquinas
inanimadas, mas onde tudo depende do entrechocar de uma infinidade de
vontades individuais e particulares!
Depois de Smolensk, Napoleão procurou dar batalha para lá de Dorogobuje,
perto de Viazma, em seguida em Tsarevo-Zaimichtche, mas, em virtude de um
grande número de circunstâncias, os Russos não puderam aceitar combate senão
em Borodino, a cento e doze verstas de Moscovo. Depois de Viazma, Napoleão deu
instruções para avançar directamente sobre a antiga capital.
Moscovo, a capital asiática deste grande império; a cidade santa do povo de
Alexandre; Moscovo, com as suas inúmeras igrejas em forma de pagode chinês.
Moscovo não deixava em paz a imaginação de Napoleão. Durante a etapa de
Viazma a Tsarevo-Zaimichtche, Bonaparte montava o seu cavalo branco inglês,
acompanhado da Guarda, de sentinelas, de pajens e de ajudantes-de-campo. O
chefe do estado-maior, Berthier, ficara para trás para interrogar um russo feito
prisioneiro pela cavalaria. Acompanhado do intérprete Lelorgne d’Ideville,
galopando, veio juntar-se ao imperador e, com alegre semblante, fez estacar o
cavalo.
— Então? — perguntou Napoleão.
— Um cossaco de Platov. Disse que o corpo de exército de Platov vai reunir-se
ao grosso do exército, que Kutuzov foi nomeado general-chefe. Inteligente e
falador.
Napoleão sorriu, mandou dar um cavalo ao cossaco e deu ordem para que lho
trouxessem. Desejava falar-lhe pessoalmente. Alguns dos ajudantes-de-campo
puseram-se a galopar e, uma hora depois, Lavruchka, o servo que Denissov cedera
outrora a Rostov, fardado de ordenança, com o seu ar astuto e jovial, um tanto
borracho, surgiu diante de Napoleão montado sobre uma sela da cavalaria
francesa. Este mandou-o seguir a seu lado e pôs-se a interrogá-lo.
— És cossaco?
— Cossaco, Sua Senhoria.«O cossaco, ignorando em presença de quem se encontrava, pois a simplicidade
de Napoleão nada podia revelar a uma imaginação oriental a figura de um
soberano, discorreu com extrema familiaridade sobre os assuntos da guerra
actual», diz Thiers no relatar este episódio. Efectivamente, Lavruchka, que na
véspera se havia emborrachado e deixara o amo sem jantar, fora vergastado e
tivera de ir à aldeia procurar galinhas. Ali entretivera-se no saque e fora feito
prisioneiro pelos Franceses. Lavruchka era um desses soldados atrevidos e
desavergonhados que tudo foram na vida, que se julgam na obrigação de praticar
todas as baixezas e todas as velhacarias imagináveis, sempre prontos a prestar
serviços a seus amos, cujos pensamentos adivinham, especialmente quando se
trata de vaidade e mesquinhez.
Ao ver-se na presença de Napoleão, a quem não tardou a reconhecer,
Lavruchka não se embaraçou, tratando desde logo de tirar o melhor partido que
pudesse dos seus novos amos. Sabia perfeitamente que era Napoleão, e Napoleão
não o intimidava mais que Rostov ou o sargento encarregado de o flagelar. Como
nada tinha, nada lhe podiam tirar.
Referiu histórias que se contavam entre as ordenanças, e muitas delas eram
exactas. Mas quando Napoleão lhe perguntou se os Russos tinham esperança de
vencer Bonaparte, franziu o sobrecenho e pôs-se a pensar.
Percebeu que a pergunta escondia uma armadilha, pois as criaturas da espécie
de Lavruchka estão habituadas a ver astúcia em tudo, e tomando um ar manhoso
calou-se.
— É como quem diz — acabou por responder —; se houvesse uma batalha
nestes dias mais chegados, os Franceses levariam a melhor. Sim, não há dúvida.
Mas se nestes quatro dias mais próximos não houver batalha, então já não digo
nada, que essa batalha não a ganhariam de pé para a mão.
Sorrindo, Lelorgne d’Ideville, traduziu deste modo para Napoleão as palavras
de Lavruchka:— «Se a batalha se travar dentro de três dias, os Franceses ganhá-
la-ão, mas, se ficar para mais tarde, só Deus sabe o que virá a acontecer.»
Napoleão, embora muito bem disposto, em vez de sorrir quando lhe traduziram o
oráculo, pediu que lho repetissem.
Lavruchka reparou no facto, e, para entreter Napoleão, prosseguiu, fingindo
sempre que não sabia a quem estava falando:
— Sim, nós cá sabemos que há um francês, a quem chamam Bonaparte, queesta farto de levar a melhor por todo o lado, as com a gente o caso é, outro... – E,
sem saber como nem porquê, as palavras saíam-lhe da boca cheias de presunção
patriótica.
O intérprete traduziu a resposta, suprimindo a ultima Napoleão sorriu. «O
moço cossaco fez sorrir o seu poderoso interlocutor», refere Thiers. Depois de
cavalgar algum tempo calado. Napoleão chamou Berthier e disse-lhe que queria
ver qual o efeito que produziria sobre aquele rapaz do Don o dizerem-lhe que o
homem com quem estivera conversando era o próprio imperador, o imperador que
tinha gravado nas Pirâmides o seu nome vitorioso e imortal.
E fez-se o que o imperador desejava.
Lavruchka deu-se conta de que o queriam atrapalhar e meter-lhe medo e foi
assim que para agradar a seus novos amos fingiu imediatamente grande espanto e
estupefacção, abriu muito os olhos e fez a mesma cara de quando o vergastavam.
«Mal o intérprete de Napoleão», escreve Thiers, «abriu a boca o cossaco, tomado
de uma espécie de estupor, não proferiu mais palavra e seguiu de olhos fitos
naquele herói cujo nome chegara até ele através das estepes do Oriente. Toda a
sua loquacidade desaparecera de repente para dar lugar a um ingénuo e silencioso
sentimento de admiração. Depois de o recompensar, Napoleão mandou que o
pusessem em liberdade, como o pássaro que se deixa voar para os campos que o
viram nascer.»
Napoleão prosseguiu o seu caminho, pensando em Moscovo, cidade que lhe
exaltava a imaginação. Quanto ao «pássaro que, deixaram voar para os campos
que o viram nascer», esse tratou de cavalgar em direcção às linhas avançadas
russas, congeminando uma engenhosa história para narrar aos camaradas. Não
estava disposto a contar-lhes as coisas tal qual se haviam passado, pois a verdade
é que a seus próprios olhos pouca importância, tinham. Reuniu-se aos cossacos,
tratou de saber onde parava o seu regimento, o qual fazia parte do destacamento
Platov, e à noitinha junto de seu amo, Nicolau Rostov, acantonado em Iankovo, e
que nesse momento montava a cavalo para, com Iline fazer um giro pelas aldeias
vizinhas. Mandou dar outro cavalo a Lavruchka e levou-o consigo.
[VIII]
A princesa Maria nem estava em Moscovo nem livre, de perigo, como André
supunha.
Depois que Alpatitch voltara de Smolensk, o velho príncipe pareceu como que
acordar de repente. Deu ordens para que se levantassem as milícias nas suas
terras e mandou que se armassem, escrevendo entretanto ao general-chefe.
Informava-o de que resolvera ficar em Lissia Gori e que pensava defendê-la até, à
última, deixando-lhe a ele a responsabilidade de saber se deveria ou não tomar
medidas para proteger um domínio onde ia ser feito prisioneiro um dos mais
antigos generais russos, Em seguida participou a todos os seus familiares que não
arredaria pé de sua casa.
Entretanto dera ordens para prepararem a partida da princesa e de Dessalles,
que acompanhariam o príncipezinho para Bogutcharovo, e dai para Moscovo. A
princesa Maria, muito preocupada com a actividade febril e as insónias do pai
depois da apatia dos últimos tempos, não quis deixa-lo só e pela primeira vez na
sua vida tornou a resolução de lhe não obedecer. Recusando partir, desencadeou
no príncipe uma tremenda tempestade de ira. Mais uma vez lhe repetiu todas as
acusações injustas com que costumava flagelá-la. Disse-lhe que passava a vida a
atormentá-lo, que o indispusera com o filho, que fizera a seu respeito suposições
abomináveis, que não pensava noutra coisa senão em envenenar-lhe a existência,
e acabou por expulsá-la do seu gabinete, acrescentando que se, de resto, estava
disposta a ficar, para ele tanto se lhe dava. Disse-lhe ainda que não queria saber
mais dela e prevenia-a de que não ousasse aparecer-lhe mais diante dos olhos. O
facto de o pai não decidir o que ela mais temia, mandá-la partir à força, limitando-
se a proibi-la de aparecer diante dele, foi para a princesa um grande alívio. Sabia
muito bem o que isso queria dizer: no fundo do seu coração, o príncipe gostava que
ela ficasse em casa e irão partisse.
No dia seguinte, após a partida de Nikoluchka, o velho príncipe apareceu logo
pela manhã de uniforme de gala, disposto a ir ao encontro do general-chefe. A sua
carruagem já estava pronto.
A princesa Maria viu-o a sair do gabinete, com todas as condecorações ao
peito, e dirigir-se para o pátio, a fim de passar revista aos camponeses e criados a
quem dera armas. Da janela, a princesa ouvia-lhe as vociferações que ressoavam
através das árvores. De súbito, um grupo de homens, muito assustado, surgiu,correndo, de uma das áleas do parque.
A princesa Maria precipitou-se para a escada e dali, pela rua bordada de
flores, direito à alameda. Ao seu encontro deparou-se-lhe um magote de milicianos
e criados, no meio dos quais, amparado por debaixo dos braços, arrastando-se,
vinha o velhinho com o seu uniforme de gala e as suas condecorações. Maria
correu para ele, mas não pôde desde logo dar-se conta da transformação que se
operara rios traços do pai em virtude das manchas de luz que na alameda das
tílias desciam através da folhagem. A única coisa que pôde ver foi que o seu rosto,
até então severo e enérgico, tinha agora uma expressão receosa e humilde. Ao
ver a filha, remexeu os lábios impotentes, deixando filtrar através deles sons
roucos e indistintos. Era impossível compreender o que ele queria dizer. Levaram-
no em braços até ao gabinete e estenderam-no no divã que tantos terrores lhe
causara ultimamente.
— O médico, chamado à pressa, nessa mesma noite sangrou-o, dizendo que ele
tinha uma paralisia do lado direito.
Como a permanência em Lissia Gori se tornava mais perigosa de dia para dia,
logo na manhã seguinte o príncipe foi levado para Bogutcharovo. O médico
acompanhou-o.
Quando ali chegaram, já Dessalles e as crianças haviam seguido para Moscovo.
Sem dar sinal de melhoras, o velho príncipe permaneceu três semanas em
Bogutcharovo na casa que André ultimamente mandara construir. Sem
conhecimento, estendido, desfigurado, mais parecia um cadáver. A todo o
momento murmurava palavras desconexas, mexendo as sobrancelhas e os lábios, e
era impossível saber se tinha consciência do que se passava à sua volta. Não havia
dúvida, porém, de que sofria e queria dizer fosse o que fosse. O quê? Impossível
saber se se trataria de qualquer capricho de doente sem tino ou de alguma coisa
relativa aos acontecimentos ou a questões de família,
O médico afirmava que aquela inquietação era apenas de ordem física, mas a
princesa Maria pensava que ele queria falar, e a confirmar a sua opinião lá estava
o facto de o desassossego do enfermo desaparecer quando ela estava presente.
De facto sofria física e moralmente. Não havia a mais pequena esperança de
cura e não estava em estado de ser transportado. Que aconteceria se ele
morresse no caminho? «Não seria preferível chegar a sua hora, a sua derradeira
hora?», dizia muitas vezes, de si para consigo, a princesa Maria. Noite e dia, quasesem dormir, ela lá estava, à cabeceira do pai, e, por mais triste que pareça, o
certo é que muitas vezes lhe espiava os mais pequenos movimentos, não na
esperança de o ver melhorar, mas desejosa de lhe descobrir sinais de morte
próxima.
Por mais estranho que o facto lhe parecesse, a princesa Maria viu-se obrigada
a reconhecer consigo mesma que era verdade. O que se lhe afigurou ainda mais
terrível foi que enquanto a doença durou e antes ainda desta doença, nos
momentos em que, sozinha com ele, dir-se-ia esperar que alguma coisa
acontecesse, sentira acordar nela o desejo e as esperanças até ai adormecidos ou
esquecidos, A ideia que durante anos nem sequer a aflorara da possibilidade de
uma vida livre, liberta do medo paterno, e que poderia vir — a amar e a casar —
tomara-lhe agora a imaginação, como se fosse uma tentação do Demónio.
Conquanto tudo fizesse para se ver livre dessa ideia, a cada passo se estava a
interrogar a si própria sobre a maneira de organizar a sua vida quando ele
deixasse de estar presente, Eram tentações do Demónio e disso estava
persuadida. Sabia que a única arma que lhe assistia era a oração e procurava
rezar. Punha-se em atitude de quem vai orar, pousava os olhos nos ícones,
articulava as fórmulas, mas a alma não a acompanhava. Sentia-se levada por um
novo mundo de vida activa, difícil e independente, em tudo absolutamente oposto
ao meio moral onde estivera fechada até aí e em que o único lenitivo era a
oração. Não podia nem rezar nem chorar, e as preocupações do dia-a-dia
assoberbavam-na.
Continuar em Bogutcharovo era perigoso. De todos os lados chegavam notícias
do avanço dos Franceses e numa aldeia a, quinze verstas dali os soldados inimigos
tinham assaltado uma propriedade.
O médico teimava em que se transportasse o doente, e o marechal da nobreza
enviou um funcionário à princesa Maria para convencê-la a partir o mais depressa
que pudesse. O ispraunik também apareceu para lhe fazer o mesmo pedido, e
disse-lhe que os Franceses estavam apenas a umas quarenta verstas, que tinham
sido distribuídas proclamações inimigas nas aldeias e que se não partissem antes
do dia 15 não podia responsabilizar-se pelo que acontecesse.
A princesa resolveu abalar no dia 15. Os preparativos e as ordens que era
preciso dar — toda a gente se dirigia agora à princesa — ocuparam-na todo o dia
14. Como de costume ultimamente, passara a noite de 14 para 15 sem se despir noquarto contíguo ao do pai. Por várias vezes acordou para ouvir a respiração
entrecortada e os gemidos do velho príncipe. A cama rangia. Tikon e o médico
mudaram-no de posição. Por várias vezes veio escutar à porta e pareceu-lhe que
nessa noite gemia mais do que o costume e, que o voltavam mais frequentemente.
Não podia dormir, e foram muitas as vezes que veio pôr o ouvido à escuta: teria
desejado entrar, mas não se resolvia a isso. Embora já não pudesse falar, Maria
via e sentia quão desagradável Hw era a vista daquele rosto angustiado. Notara
que ele voltava a cara sempre que encontrava o olhar dela obstinadamente fito
nele. Sabia que aparecer-lhe no quarto, de noite, altas horas, o irritava.
No entanto, nunca fora maior o terror e a dor de o perder, Lembrava-se de
todos aqueles anos da, sua vida ao lado do pai e em todas as suas palavras, em
todos os seus actos descobria o amor que ele lhe tinha. De longe em longe
voltavam a aparecer-lhe, no meio das suas recordações, as tentações do espírito
maligno, e pensava no que iria fazer depois da morte do príncipe, na sua existência
futura, mais livre. Porém, horrorizada, sacudia de si tais pensamentos. Para a
madrugada o pai acalmou e Maria pôde adormecer-
Acordou tarde. A lucidez que se costuma ter ao despertar fez-lhe ver
claramente qual a sua constante preocupação. Foi escutar à porta e voltou a ouvir
a respiração rouca do doente, dizendo de si para consigo, suspirando, que estava
na mesma.
«Que tem ele então? Que quero eu então? É verdade que estou à espera que
ele morra?», interrogou-se, sentindo que aquele pensamento a amargurava.
Vestiu-se, arranjou-se, disse as suas orações e veio até ao alpendre da escada.
Carros ainda por atrelar esperavam enquanto carregavam as bagagens.
A manhã estava suave e cinzenta. Maria continuava no alpendre, alanceada
de horror perante a sua cobardia moral e procurando que os seus pensamentos se
aquietassem antes de penetrar nos aposentos do pai.
Entretanto o médico desceu as escadas e aproximou-se dela.
— Está um pouco melhor hoje — disse ele. — Andava à sua procura. Entende-
se melhor o que ele diz, tem a cabeça mais fresca. Venha, está a perguntar por si...
Ao ouvir estas palavras, o coração principiou a bater-lhe apressadamente e,
empalidecendo, teve de encostar-se à porta, para não cair. Vê-lo, falar-lhe, sentir-
lhe o olhar quando tinha a alma cheia daqueles pensamentos criminosos e
medonhos provocava-lhe uma espécie de angústia misturada de alegria.— Vamos — disse o médico.
Penetrou no quarto do pai e aproximou-se da cama. O velho estava deitado de
costas, o busto soerguido apoiado em almofadas, as pequenas mãos ossudas com a
sua rede de veias azuladas assentes sobre o coberta, o olho esquerdo olhando
direito na sua frente, as sobrancelhas e os lábios imóveis. Todo ele era delgado,
pequeno, insignificante. O rosto parecia ressequido e como que, derretido, os seus
traços tinham por assim, dizer encolhido. Maria aproximou-se e beijou-lhe a mão.
A mão esquerda do príncipe apertou a dela como se a esperasse há muito.
Abanou-a mesmo, enquanto as sobrancelhas e os lábios se lhe contraíam com
impaciência.
Maria, olhou para ele assustada, tentando adivinhar o que, ele lhe queria.
Mudou de posição de modo a que o olho esquerdo do príncipe lhe pudesse ver a
cara: então ele serenou por alguns instantes, o olho fixo nela. Depois os lábios e a
língua agitaram-se-lhe, saíram-lhe sons da boca e pôs-se a falar fixando-a com um
ar tímido e súplice, como se receasse que eu o não compreendesse.
Maria olhou-o concentrando nele toda a sua atenção. Diante do esforço quase
cómico que ele fazia para mexer a língua, viu-se, obrigada a baixar os olhos e a
custo reprimiu os soluços que lhe subiam à garganta. O príncipe falava, repetindo
muitas vezes as mesmas palavras. A princesa Maria não conseguia perceber, mas
fazia tudo para adivinhar e repetia interrogativamente as palavras que supunha
entender.
O doente repetiu ainda mais algumas vezes as mesmas silabas Não era
possível encontrar-lhes qualquer sentido. O médico julgou perceber que ele
perguntava à princesa se ela tinha medo, mas, ao dizê-lo em voz alta, o velho
príncipe respondeu com um aceno negativo de cabeça e expeliu quaisquer sons.
«A alma, a alma, dói-lhe a alma», percebeu de súbito, a princesa.
O príncipe gemeu um «sim» indistinto, pegou-lhe na mão e pousou-a sobre
vários pontos do peito, como se procurasse o melhor sitio para ela.
— Penso sempre em ti... penso sempre articulou ele com muito maior nitidez,
agora que estava certo de ter sido compreendido.
A princesa Maria inclinou a cabeça contra a rirão do pai para reprimir os
soluços e as lágrimas.
Ele passou-lhe a mão pelos cabelos.
— Chamei por ti toda a noite... — murmurou.— Se eu soubesse... — replicou ela entre lágrimas. — Tinha medo de entrar.
Apertou-lhe a mão.
— Não dormiste?
— Não, não pude — disse ela, com um aceno negativo de cabeça.
Submetendo-se mais uma vez sem querer à influência do pai, pusera-se, tal
qual ele, a falar por acenos e parecia, também como ele, de língua entaramelada,
— Alma minha... minha amiga. — Maria não pôde inteirar-se de qual das duas
carinhosas palavras o pai se servira, mas como quer que fosse no seu olhar lia-se
que empregara uma palavra afectuosa nunca outrora em seus lábios quando
falava à filha. — Porque não vieste tu?
«E eu a desejar, a desejar-lhe a morte!», dizia de si para consigo a princesa
Maria.
O príncipe ficou algum tempo calado.
— Obrigado... minha filha, minha amiga... por tudo, por tudo... perdoa-me...
obrigado... perdoa-me... obrigado! — As lágrimas saltaram-lhe dos olhos. —
Chama o Andriucha — disse ele, de súbito, e, ao fazer este pedido, a sua expressão
era de timidez e incredulidade como se fosse uma criança.
Dir-se-ia compreender que tal desejo era desprovido de bom senso; isso, pelo
menos, o que a princesa Maria julgou perceber.
— Recebi carta dele — respondeu ela.
— E onde está ele?
— Na tropa, meu pai, em Smolensk.
Esteve muito tempo calado, de olhos fechados, e depois, como se respondesse
a perguntas que a si próprio dirigira, e ao mesmo tempo para mostrar que
recuperara a memória e o entendimento, fez com a cabeça um aceno afirmativo,
reabrindo os olhos.
— Sim — murmurou em voz muito baixa e distintamente — a Rússia está
perdida! Perderam a Rússia!
De novo rompeu em soluços e as lágrimas escorreram-lhe pela cara abaixo.
Maria não pode mais, e ela própria se debulhou em pranto.
O velho príncipe fechou de novo os olhos e pouco a pouco ,quietou-se. Com um
gesto de mão, apontou para as órbitas e Tikon, percebendo o que ele queria,
enxugou-lhe os olhos.
Então voltou a abrir as pálpebras e pronunciou algumas palavras que demomento ninguém percebeu e que só mais tarde Tikon apreendeu, traduzindo-as.
Maria julgou ver nelas uma alusão à ordem de ideias que o preocupava minutos
antes. Supôs que ele falava da Rússia, ou então do príncipe André, ou ainda dela
própria, do neto ou também da morte próxima. Por isso não podia adivinhar o que
ele dizia.
— Vai pôr o teu vestido branco, gosto dele — dissera o príncipe.
Ao ouvir estas palavras, as lágrimas ainda mais se lhe soltaram, e o médico,
pegando-lhe por um braço, levou-a até à varanda, pedindo-lhe que serenasse e
que tratasse quanto antes dos preparativos de partida. Depois de ela sair, o
príncipe falou ainda do filho, da guerra, do imperador, franziu as sobrancelhas com
uma expressão irritada, elevou cada vez mais a sua voz rouca e, foi então que um
segundo e último ataque o fulminou.
A princesa Maria deteve-se na varanda. O dia tinha clareado: fazia sol e
estava quente. Não dava por nada, e não podia pensar noutra coisa que não fosse
no amor apaixonado pelo pai, sentimento, pensava ela, que julgava ter ignorado
até então. Correu para o jardim e, soluçando sempre, desceu até ao tanque, ao
longo da alameda de tílias novas plantadas por André.
«E eu... e eu... que lhe desejei a morte! Sim, desejei que tudo acabasse quanto
mais depressa melhor... Tinha necessidade de descansar finalmente... E que vai ser
de mim? Para que hei-de querer eu descanso quando ele desaparecer?» Maria
murmurava estas palavras numa voz entrecortada, dando grandes passadas e
comprimindo com a mão o peito, abalado por convulsivos soluços.
Depois de ter dado uma volta em roda do jardim, tomou a direcção da casa, e
nesse momento viu Mademoiselle Bourienne, que ficara em Bogutcharovo,
recusando-se partir, que se dirigia ao seu encontro na companhia de um
desconhecido. Era o marechal da nobreza do distrito, que pessoalmente vinha
persuadir a princesa da urgência de uma rápida partida. Maria ouvia-o sem o
entender. Conduziu-o a casa, convidou-o a almoçar e pediu-lhe que se sentasse a
seu lado. Em seguida, desculpando-se, levantou-se e dirigiu-se ao quarto do velho
príncipe. O médico, que vinha ao seu encontro com uma expressão alterada,
proibiu-a de entrar,
— Não entre, princesa, não entre, peço-lhe.
Maria voltou para o jardim, e no fundo da ladeira que descia para o tanque,
num recanto onde ninguém a via, sentou-se na relva. Não podia dizer quantotempo ali esteve. Passos femininos que corriam pela alameda obrigaram-na a
despertar. Levantou-se e viu a criada de quarto, Duniacha, que a procurava, parar,
de repente, como que assustada ao ver a ama.
— Por favor, princesa... o príncipe... — disse ela, numa voz entrecortada.
Vou já, vou imediatamente articulou a princesa, que sem lhe dar tempo de
acabar o que ela queria dizer e sem olhar para Duniacha, correu para casa.
— Princesa, cumpriu-se a vontade de Deus, é bom estar preparada para tudo
— disse o marechal, que a esperava à entrada. — Deixe-me, não é possível —
exclamou ela com angústia.
O médico tentou detê-la, A princesa repeliu-o e correu para a porta. —
«Porque não me deixa esta gente com estas caras assustadas? De ninguém
preciso. Que estão todos aqui a fazer?» Abriu a porta e a viva claridade do dia que
inundava o quarto ate então na obscuridade fê-la estremecer de pavor. No quarto
viam-se várias mulheres, entre as quais a sua ama. Afastaram-se da cama para a
deixar passar. O príncipe continuava deitado, mas o ar severo e calado que se
espalhava no rosto imobilizou-a no limiar da porta
«Não, não está morto, não é possível!», dizia de si para consigo à medida que
se aproximava, e, vencendo o horror que tomava, pousou os lábios na face do pai.
Ao sentir a frieza da pele recuou instintivamente. De súbito toda a ternura que
ele acabava de lhe inspirar foi substituída pelo sentimento de horror que lhe
despertava o espectáculo que tinha diante dos olhos: «Já não existe! Já não
existe! Já não está no lugar em que estava, já não é senão uma coisa desconhecida
e horrível, um mistério terrível que me gela o sangue nas veias e me obriga a
fugir!» E, escondendo a cara nas mãos a princesa Maria caiu desmaiada nos braços
do médico.
Na presença de Tikon e do médico, as mulheres deram-se ao cuidado de lavar o
corpo do príncipe, amarraram-lhe o queixo com um lenço, para que a boca lhe não
descaísse, e para que as, pernas se lhe não afastassem amarraram-nas também.
Depois vestiram-lhe o uniforme, com todas as condecorações, e estenderam sobre
a mesa o pequeno cadáver descarnado. Só Deus sabe como tudo se fez, mas foi
como se as coisas se fizessem por si próprias. Para a noite acenderam velas em
volta do caixão e cobriu-se o ataúde com um pano mortuário. Espalharam no
sobrado bagas de zimbro, puseram debaixo da cabeça do morto uma oração
impressa e a um canto o chantre principiou a recitar os salmos.Tal como os cavalos se empinam e relincham diante do cadáver de outro
cavalo, assim veio juntar-se no salão em volta do ataúde do príncipe uma multidão
de gente da casa e de fora: o marechal da nobreza, o estaroste, as mulheres da
aldeia, todos inclinavam até ao chão, beijando a mão fria e hirta do velho príncipe.
[IX]
Bogutcharovo, antes de o príncipe André ali se haver instalado, fora sempre
uma propriedade abandonada pelo amo, e os camponeses dessa aldeia eram muito
diferentes dos de Lissia Gori. Deles se distinguiam pela linguagem, pelo trajo e
pelos costumes. Parece que eram camponeses da estepe. O velho príncipe
elogiava-lhes o amor ao trabalho quando vinham a Lissia Gori ajudar nas colheitas
ou abrir tanques ou canais, mas não gostava deles, selvagens que eram.
A última permanência do príncipe André em Bogutcharovo, apesar das
inovações que introduzira ali — hospitais, escolas e a redução de impostos — não
lhes suavizara os costumes, antes, pelo contrário, acentuara neles o traço
característico, essa selvajaria de que falava o velho príncipe. Entre os camponeses
circulavam sempre boatos estranhos ora que iam ser recrutados em massa para o
corpo de cossacos, ora que iam obrigá-los a aceitar uma nova religião, ou ainda
falavam em certas cartas do czar, do juramento prestado a Paulo Petrovitch em
1797, de quem se dizia que já então dera a liberdade aos servos, liberdade que os
senhores lhes tinham retirado de novo, ou então de Pedro Feodorovitch, que
devia vir a reinar dentro de sete anos e sob cujo reinado toda a gente seria livre e
tudo seria tão simples que acabariam as leis. O que se contava da guerra de
Bonaparte c da invasão misturava-se na imaginação desta gente a confusas ideias
sobre o Anticristo, o fim do mundo e a liberdade absoluta.
Nos arredores de Bogritcharovo havia grandes povoações, propriedade da
coroa ou de particulares, cujos camponeses viviam sob o regime de foreiros.
Poucos eram os senhores que aí residiam: muito poucos eram também os criados
ou servos que soubessem ler: daí que entre os habitantes desses lugarejos
assumissem uma força e uma intensidade apreciáveis as misteriosas correntes da
vida popular, cujas fontes costumam ser desconhecidas dos contemporâneos. Um
fenómeno deste género se verificara uns vinte anos atrás, quando se formara uma
corrente de emigração para certos rios de águas quentes. Centenas de famílias,
entre as quais as de Bogutcharovo, venderam, de um dia para o outro, o eu gado e
abalaram para sudoeste. Como aves migradoras que partem para além dos mares,
com mulheres e crianças puseram-se a caminho para regiões onde nenhum deles
jamais tinha estado. Agruparam-se em caravanas, depois de se haverem remido
individualmente uns, outros mesmo sem salvo-conduto, e a pé ou de carrometeram-se a caminho. Muitos deles foram apanhados e castigados, sendo
deportados para a Sibéria, outros morreram pelo caminho de fome e de frio e
outros ainda voltaram espontaneamente, e o movimento extinguiu-se por si, tal
qual como principiara, sem causa aparente. Uma corrente subterrânea, porém,
não deixara de continuar a disseminar-se por entre esta gente e ia ganhar novo
alento e manifestar-se estranha e inopinadamente e de maneira igualmente
simples e natural. Quem vivesse então, nesse ano da graça de 1812, em contacto
com o povo podia verificar que ele se encontrava profundamente trabalhado por
essas forças ocultas prontas a vir à superfície.
Alpatitch, que chegara a Bogutcharovo pouco tempo antes da morte do velho
príncipe, notara certa agitação entre os camponeses, observando que, ao
contrário do que acontecia na região de Lissia Gori, onde num raio de sessenta
verstas todos os habitantes abalavam, abandonando as suas aldeias aos cossacos
saqueadores, nesta zona da estepe, em Bogutcharovo, estabeleciam relações com
os Franceses, segundo se dizia, acolhendo certos papéis que circulavam entre eles
e permanecendo nas suas casas. Através de criados que lhe eram dedicados soube
que o camponês Karp, ultimamente de volta de uma jornada no carro da
administração, homem de grande influência na comuna, viera dizer que os cossacos
saqueavam as aldeias abandonadas pelos seus habitantes enquanto os Franceses
as respeitavam. Além disto, soube também que outro mujique trouxera, na
véspera, da aldeia de Vislukovo, ocupada pelo inimigo, uma proclamação do
general francês onde se dizia que se não faria mal algum aos habitantes e que se
eles se conservassem nas suas casas lhes seriam pagas a pronto todas as
requisições que se fizessem. Como prova desta afirmação exibia um assinado de
cem rublos, que ignorava ser falso, com que lhe tinham pago a palha das suas
terras.
Por último, e isto era o mais importante, Alpatitch veio a saber que no mesmo
dia em que dera ordem ao estaroste para atrelar os carros destinados ao
transporte das bagagens da princesa houvera uma reunião da assembleia da
comuna onde se resolvera não saírem dali e esperar. E o pior era que não havia
tempo a perder. No dia da morte do príncipe, 15 de Agosto, o marechal da
nobreza insistira com a princesa Maria para que abalasse imediatamente, em
virtude de a situação se apresentar perigosa, Dissera mesmo que depois do dia 12
não podia responsabilizar-se fosse pelo que fosse. E partira pela noite do dia emque o príncipe falecera, prometendo voltar no dia seguinte para assistir ao
funeral. Fora-lhe, porém, impossível regressar ao ter conhecimento de que os
Franceses operavam um movimento imprevisto e não tivera tempo senão de
mandar partir a família e o que tinha de mais precioso.
Havia trinta anos que o estaroste Drone, a quem o velho príncipe chamava
Dronuchka, administrava Bogutcharovo. Drone era um desses mujiques sólidos,
quer física quer moralmente, que à medida que envelhecem principiam a deixar
crescer as barbas, embora cheguem aos sessenta ou setenta anos com o melhor
aspecto, todos os dentes, sem um cabelo branco, tão direitos e robustos como aos
trinta anos. Drone pouco depois da emigração para as águas quentes, em que
tomara parte como os demais, fora nomeado estaroste burmistre de
Bogutcharovo, funções que desempenhava irrepreensivelmente havia mais de
vinte e três anos. Os camponeses temiam-no mais a ele que ao próprio amo. Os
amos, tanto o velho príncipe como o príncipe novo e o intendente, respeitavam-no
e chamavam-lhe ministro, por graça. Durante todo o tempo em que desempenhara
as suas funções nunca estivera nem bêbedo nem doente, nunca dera mostras do
mais pequeno cansaço, ainda mesmo quando passava as noites em claro ou tinha
que fazer qualquer trabalho extraordinário, e, sem saber ler nem escrever, nunca
tivera qualquer engano quer nas contas em dinheiro, quer nos puds de farinha que
vendia às carradas, quer na quantidade de feixes de trigo de cada desiatina dos
campos de Bogutcharovo.
Foi este homem que Alpatitch, ao chegar do devastado domínio de Lissia Gori,
mandara chamar no dia do funeral do príncipe, encarregando-o de preparar doze
cavalos para as carruagens da princesa e dezoito carroças para as bagagens que
era preciso transportar. «Embora os camponeses pagassem foro, o cumprimento
desta ordem não podia encontrar dificuldades», pensava Alpatitch, «pois
Bogutcharovo contava duzentos e trinta fogos e todos os habitantes eram
remediados.» A verdade, porém, é que o estaroste Drone, ao ouvir a ordem que
lhe davam, baixou os olhos sem dizer palavra. Alpatitch disse-lhe o nome dos
camponeses seus conhecidos que podiam encarregar-se dos transportes.
Drone replicou que os cavalos desses camponeses estavam a fazer serviço.
Alpatitch lembrou-lhe outros camponeses. E também esses não podiam, no dizer
de Drone, pois não tinham cavalos: uns andavam em serviço da administração,
outros estavam exaustos e a falta de pastos causara a morte de muitos outros.Dizia-se mesmo que não seria fácil arranjar cavalos, tanto para as carruagens
como para as carroças.
Alpatitch olhou-o fixamente, franzindo as sobrancelhas. Se Drone era um
estaroste modelar, Alpatitch, pelo seu lado, havia mais de vinte anos que
administrava as propriedades do príncipe, no que sempre se mostrara intendente
exemplar. Era apuradíssimo nele o faro necessário para compreender as
necessidades e os instintos das pessoas com quem tinha de lidar, e por isso mesmo
era um intendente verdadeiramente excepcional. Bastou-lhe um relance de olhos a
Drone para imediatamente compreender que as respostas que este lhe dava não
correspondiam ao que ele pensava, antes reflectiam as disposições da comuna de
Bogtitcharovo, a cuja influência o estaroste se não eximia. Por outro lado, não
ignorava que Drone, camponês ricaço e detestado pela assembleia da comuna,
devia estar hesitante entre dois campos, o dos senhores e o dos seus iguais. Lera
esta mesma hesitação no olhar do estaroste, e por isso se aproximou dele com
uma expressão de descontentamento.
— Escuta, Dronuchka — disse-lhe —, não me venhas com histórias da
carochinha. Sua Excelência o príncipe André Nikolaitch deu-me pessoalmente
ordens para evacuar toda a gente e para não deixar que ninguém caísse em poder
do inimigo. Há, de resto, uma ordem do czar no mesmo sentido. Aquele que ficar é
considerado traidor. Estás a perceber?
— Estou — replicou Drone, sem erguer os olhos.
Alpatich não se contentou com a resposta.
— Ah! Drone, está-me a cheirar a esturro! — exclamou ele, abanando a
cabeça.
— Faça o que entender! — murmurou Drone tristemente.
— Drone! Basta! — voltou Alpatitch, retirando a mão da carcela do colete e
apontando para o chão aos pés de Drone, com um gesto teatral. — Não sei se te
diga que não estou só a ver claramente o que se passa contigo, mas até o que se
está passando três archinas abaixo de ti.
Drone perturbou-se, lançou um olhar furtivo a Alpatitch e voltou a baixar os
olhos.
— Deixa-te de tolices e vai dizer-lhes que se preparem para partir para
Moscovo e que amanhã pela manhã tratem de trazer as carroças para a bagagem
da princesa, e quanto a ti aconselho-te a que não ponhas os pés na assembleia.Estás a perceber?
Drone deixou-se cair de súbito aos pés de Alpatitch.
— Iakov Alpatitch, dispensa-me das minhas funções! Torna lá as chaves,
dispensa-me das minhas funções, por amor de Deus!
— Basta! — exclamou Alpatitch severamente. — Estou a ver o que se passa a
três archinas abaixo de ti — repetiu. O intendente sabia que a sua grande
habilidade para tratar das abelhas, o conhecer em que momento se deve semear a
aveia e o facto de haver sabido agradar ao príncipe por mais de vinte anos de há
muito lhe tinham granjeado a reputação de bruxo, e o poder de ver três archinas
abaixo de um homem era dom de feiticeiro, dizia-se.
Drone voltou a levantar-se e quis falar, mas Alpatitch cortou-lhe a palavra:
— Que passou pela cabeça desta gente sempre quero saber? Vamos... Em que
estão vocês a pensar?...
— Que posso eu fazer com eles? — exclamou Drone. — Rebentou assim sem
mais nem menos, de repente. Eu bem lhes disse
— É isso mesmo que eu pensava, estão bêbedos, hem? — inquiriu o
intendente, rápido.
— Estão todos com a cabeça perdida, Iakov Alpatitch: já entraram na segunda
pipa.
— Bom, então ouve. Vou tratar de avisar Ipravnik, e tu vais dizer-lhes que se
deixem de histórias e que arranjem as carroças.
— Às suas ordens — volveu Drone.
Iakov Alpatitch não insistiu mais. Havia muito que governava aquela gente e
sabia que a melhor maneira de a submeter era nunca lhes dar oportunidade a que
pensassem que ele julgava que lhe não pudessem obedecer. Depois de ter
conseguido de Drone aquele dócil «Às suas ordens», isso lhe bastou, embora
duvidasse de que as carroças viessem a ser-lhes fornecidas sem o auxílio da força
pública e estivesse mesmo persuadido do contrário.
Com efeito, pela, noite nada de carroças. Houvera uma nova assembleia diante
da taberna, onde se tomara a resolução de enxotarem os cavalos para as matas e
de nada fornecerem do que se lhes pedia, Sem nada dizer à princesa, Alpatitch
mandou descarregar as suas próprias bagagens das carroças que tinham chegado
de Lissia Gori, mandou atrelar os seus cavalos às carruagens da princesa e tratou
de se dirigir às autoridades.
[X]
Depois do funeral do pai, a princesa Maria fechou-se no quarto e a ninguém
quis receber, Uma criada aproximou-se da porta para lhe dizer que Alpatitch viera
receber ordens sobre a partida — passara— se isto antes da conversa com Drone.
A princesa ergueu-se do divã onde se estendera e através da porta fechada
respondeu que não sairia dali e que a deixassem em paz.
As janelas do quarto da princesa Maria davam para o poente. Estava
estendida no divã, a cara virada para a parede e tacteava com os dedos os botões
da almofada de couro; o horizonte que tinha diante dos olhos delimitava-lho esta
almofada, e os seus pensamentos confusos concentravam-se num único objecto, a
morte irrevogável e a sua própria baixeza moral até então dela própria ignorada,
mas evidente agora durante a doença do pai. Queria rezar, mas não tinha
coragem; no estado de espírito em que se via não ousava virar-se para Deus. Por
muito tempo assim permaneceu naquela posição.
O Sol punha-se do outro lado da casa e os seus oblíquos raios vespertinos
filtravam-se pelas janelas abertas iluminando parte do aposento e parte da
almofada de marroquim em que ela fixava os olhos. O curso dos seus pensamentos
foi, de súbito, interrompido. Soergueu o busto maquinalmente, compôs os cabelos,
levantou-se e aproximou-se da janela, aspirando, a seu pesar, a fresca brisa
daquele belo entardecer.
«Sim, agora podes admirar em paz a beleza do crepúsculo! Ele já cá não está e
ninguém daqui para o futuro to poderá impedir», disse de si para consigo,
deixando-se cair numa cadeira e pousando a cabeça no parapeito da janela.
Uma voz terna e doce chamou lá debaixo do jardim e alguém a beijou na
fronte. Voltou-se. Era Mademoiselle Bourienne, vestida de luto e coberta de
crepes. Aproximara-se suavemente, e, depois de a ter beijado, principiara a
soluçar. A princesa Maria voltou-se para ela. Os atritos que tinham tido, os ciúmes
que ela lhe despertara, tudo lhe veio à memória; lembrou-se também de que
ultimamente também ele, o pai, mudara por completo na sua atitude para com a
francesa, que a não quisera tornar a ver e concluiu que, naturalmente, assuspeitas que nutrira no fundo do seu coração eram injustas. «Terei porventura o
direito, eu, que desejei a morte de meu pai, de julgar o meu semelhante?»,
murmurou para si mesma.
A princesa Maria fez passar diante dos olhos a situação de Mademoiselle
Bourienne, a quem, nos últimos tempos, mantivera a distância, embora ela vivesse
numa casa estranha e estivesse na sua dependência. E teve comiseração dela.
Fitou-a com doçura e estendeu-lhe a mão. Mademoiselle Bourienne rompeu em
soluços, beijou-lhe as mãos e falou-lhe do pesar por que estava passando e que
sentia muito. Disse-lhe que a única consolação na sua dor era o facto de a ama lhe
ter permitido que a partilhasse com ela. Todos os mal-entendidos do passado
deviam desaparecer diante daquele imenso desgosto; no que lhe dizia respeito a
ela, sentia pura a consciência, e ele, lá de cima, estava a ver quanto o estimara e
quanto lhe estava reconhecida. A princesa ouvia-a sem compreender o que ela
dizia; olhava para ela de vez em quando, deixando-se embalar pelo encanto das
suas palavras.
— A sua situação é duplamente terrível, minha querida princesa — prosseguiu
Mademoiselle Bourienne depois de alguns minutos de silêncio. — Compreendo que
não tenha podido nem possa pensar em si mesma, mas a estima que tenho por si
obriga-me a fazê-lo... Falou consigo o Alpatitch? Falou-lhe na nossa partida?
A princesa Maria não respondeu. Não percebia de que partida estava a
francesa a falar: «Poderei eu pensar nalguma coisa ou tentar seja o que for num
momento destes? Acaso me importa seja o que for?» E continuava calada, sem
responder.
— Sabe, querida Maria — disse-lhe Mademoiselle Bourienne —, sabe que
corremos perigo, que estamos cercadas pelos Franceses; é mesmo perigoso agora
metermo-nos a caminho. Se partirmos, é quase certo que seremos capturados e só
Deus sabe...
Maria olhava para Mademoiselle Bourienne sem compreender o que ela dizia.
— Ah, se soubessem como agora tudo me é completamente indiferente! —
exclamou ela. — Não sairia daqui por nada deste mundo... Alpatitch disse-me
qualquer coisa sobre essa partida... Fale com ele, por mim nada quero nem posso
fazer...
— Falei com ele. Tem esperança de que possamos partir amanhã, mas na
minha opinião acho que actualmente ainda seria mais prudente ficar aqui — disseMademoiselle Bourienne. — Tem de concordar, querida Maria, que seria horrível
sermos apanhadas na estrada pelos soldados ou pelos camponeses revoltados.
Mademoiselle Bourienne sacou da sua bolsinha uma proclamação do general
francês Rameau, impressa num papel que não era o papel russo vulgar, em que se
aconselhavam os habitantes a, não abandonarem as suas casas e em que se dizia
que as autoridades francesas lhes concederiam a protecção que lhes era devida.
Estendeu-o à princesa.
— Parece-me que o melhor que temos a fazer é dirigirmo-nos a este general —
disse Mademoiselle Bourienne —, e estou convencida de que ele nos dispensará
todas as atenções.
A princesa Maria leu o papel e o rosto contraiu-se-lhe convulsivamente.
— Quem lhe deu isto? — interrogou ela,
— Naturalmente souberam que eu era francesa, pelo meu nome — disse,
corando. Mademoiselle Bourienne.
Maria, com o papel na mão, levantou-se da janela e, muito pálida, saiu,
dirigindo-se ao antigo gabinete do príncipe André..
— Duinacha, chama Alpatitch, Dronuchka, seja quem for! — disse ela — E diz a
Amélia Karlovna que quero estar só — acrescentou, ao ouvir a voz de
Mademoiselle Bourienne. — Temos de partir o mais depressa possível, o mais
depressa possível! — sentia-se aterrada com a ideia de vir a cair rias mãos dos
Franceses.
«Ali! Se o príncipe André soubesse que ela caíra nas mãos deles, e que ela, a
filha do príncipe Nicolau Andreievitch Boikonski, implorara a protecção do general
Rameau, o qual usara para com ela da sua benevolência!» Este pensamento
enchia-a de terror, fazia-a estremecer, corar, dava-lhe acessos de cólera dela
própria desconhecida e revoltava-lhe o orgulho. Via com toda a clareza o que
aquela situação representaria de penoso e sobretudo de humilhante. «Esses
franceses vão-se instalar aqui, nesta casa; o Sr. General Rameau vai ocupar o
gabinete do príncipe André: distrair-se-á a folhear e a ler as suas cartas e os seus
papéis. Mademoiselle Bourienne far-lhe-á as honras de Bogutcharovo. A mim dar-
me-ão, por caridade, um quartinho; os soldados profanarão o túmulo de meu pai
para lhe roubarem as cruzes e condecorações: contar-me-ão as suas vitórias contra
os Russos, fingirão simpatia pela minha dor..». Assim pensava a princesa Maria,
não pessoalmente, mas sentindo-se, por assim dizer, obrigada, nestascircunstâncias, a adoptar os sentimentos que teriam animado seu pai ou seu
irmão. A ela, pessoalmente, tanto se lhe dava ficar aqui ou ali e eram-lhe
indiferentes as consequências que daí resultassem: mas para si mesma ia dizendo
ser a representante do finado e do irmão ausente. Sem querer, pensava e reagia
como eles. Sentia-se obrigada a dizer e a fazer o que eles teriam dito ou feito.
Desde que entrara no gabinete de André que passara a encarar a situação como
se estivesse possuída dos pensamentos dele.
As exigências da vida quotidiana que ela julgara desaparecidas após a morte
do pai apresentavam-se-lhe de repente com uma força nova e ainda desconhecida
e absorviam-na por completo.
Muito agitada, o rosto afogueado pela emoção, andava de um lado para o
outro, ora chamando à sua presença Alpatitch, ora Mikail Ivanovitch, ora Tikon,
ora Drone. Nem Duniacha, a ama, nem qualquer das criadas lhe puderam dizer
fosse o que fosse a respeito da veracidade das asserções de Mademoiselle
Bourienne. Alpatitch estava ausente: [ora avistar-se com as autoridades, O
arquitecto Mikail Ivanovitch apareceu à princesa meio adormecido e nada lhe
pode dizer. Foi com o mesmo sorriso de aquiescência que durante mais de quinze
anos utilizara para responder ao velho príncipe, sem nunca manifestar uma
opinião pessoal, que respondeu à princesa sem que esta pudesse concluir fosse o
que fosse das suas palavras. O velho criado do quarto, Tikon, de cara afilada pela
fadiga e uma expressão de dor inconsolável, limitou-se a dizer: «As suas ordens» a
todas as perguntas que a princesa lhe fez, rompendo em soluços sempre que
erguia os olhos para ela.
Finalmente apareceu o estaroste Drone, que, depois de profundas reverências,
se deixou ficar encostado à porta.
A princesa Maria atravessou o gabinete e deteve-se diante dele.
— Dronuchka — disse-lhe, vendo nele um amigo fiel, esse Dronuchka que lhe
trazia todos os anos, aquando da sua jornada à feira de Viazma, para lhas
oferecer, com um sorriso bom, rosquilhas de amêndoas especiais – Dronuehka,
agora, depois da nossa desgraça... — Calou-se, porém, sem animo para continuar.
— Tudo depende da vontade de Deus — replicou Drone suspirando.
— Dronuchka, o Alpatitch não está, ninguém tenho com quem me aconselhar.
É verdade que se diz que eu já não posso partir?
— Porque não há-de poder partir, Excelência? Pode partir — disse Drone.— Disseram-me que é perigoso por causa do inimigo. Meu amigo, nada posso
fazer, não percebo nada, ninguém tenho a meu lado. Quero ir-me embora sem
falta esta noite ou amanhã de manhã muito cedo.
Drone permaneceu calado. Olhava para ela de soslaio.
— Não há cavalos — articulou ele. — Foi o que eu já disse a Iakov Alpatitch.
— Não há cavalos, porquê? — inquiriu a princesa,
— É castigo de Deus — replicou ele — Os cavalos que havia uns foram levados
pelas tropas e os outros morreram. Ah! Vai um ano muito mau. E isso ainda é o
menos, a gente não ter que dar a comer aos cavalos; mas o pior é que se acaba
por morrer de fome, Não há nada de nada, estamos completamente arruinados. A
princesa Maria ouvia atentamente.
— Os camponeses estão arruinados? Não têm pão? — perguntou ela.
— Estão a morrer de fome — volveu Drone. — Não só faltam carros...
— E porque não o tinhas tu dito já, Dronuchka? Não podemos ajudá-los? Farei
tudo o que estiver na minha mão...
Parecia-lhe estranho pensar que naquele momento, naquela hora em que a dor
lhe trespassava a alma, existissem ricos e pobres e que os ricos não procurassem
ajudar os pobres. Ouvira falar vagamente do trigo dos senhores que por vezes se
distribuía aos camponeses. Sabia igualmente que nem o irmão nem o pai se teriam
negado a auxiliar os pobres. Receava apenas não vir a propósito a distribuição que
estava disposta a fazer. Sentia-se feliz por ter um pretexto digno de preocupação
capaz de lhe fazer esquecer o seu desgosto. Pediu a Dronuchka pormenores sobre
as necessidades que havia a mitigar com as reservas do celeiro de Bogutcharovo.
— Deve haver trigo dos senhores, de meu irmão, não é verdade? — perguntou
ela.
— O trigo do amo está intacto — replicou Drone com orgulho. — O príncipe
não autorizava que se vendesse,
— Distribui-o aos camponeses, distribui todo o trigo que for preciso. Estás
autorizado a fazê-lo em nome de meu irmão — acrescentou ela.
Drone não respondeu e despediu um grande suspiro.
— Dá-lhes esse trigo, se há trigo bastante para eles. Distribui-o todo. É em
nome de meu irmão que te dou esta ordem e diz-lhes que o que é nosso lhes
pertence, que nada pouparemos para os ajudar. Repete-lhes bem isto.
Drone olhava fixamente para a princesa enquanto ela falava.— Dispensa-me das minhas funções, mãezinha, em nome de Deus. Manda que
eu te entregue as minhas chaves — disse ele. — Servi durante vinte e três anos
sem nunca fazer nada de mal. Dispensa-me das minhas funções, em nome de Deus.
A princesa Maria não percebia o que ele lhe pedia e a razão por que não
queria continuar a desempenhar as suas funções. Replicou-lhe que nunca duvidara
da sua dedicação e que estava disposta a fazer tudo quanto pudesse por ele e
pelos camponeses.
[XI]
Daí a uma hora, Duniacha veio dizer à ama que Drone voltara e que todos os
camponeses, de acordo com as suas ordens, estavam reunidos ao pé do celeiro e
lhe queriam falar.
— Mas eu não os mandei chamar — disse a princesa. — Disse apenas ao
Dronuchka que lhes distribuísse trigo.
— Por Deus, então, minha mãe, por amor de Deus, dê ordens para que os
mandem embora e não vá falar com eles. Tudo isto é um grande engano — volveu
Duniacha. — Quando Iakov Alpatitch voltar, ir-nos-emos embora... mas não
consinta...
— De que engano estás tu a falar? — perguntou a princesa Maria,
surpreendida.
— Bem sei o que digo, siga o meu conselho, por amor de Deus. Pergunte à
ama. Não querem ir-se embora, como a senhora ordenou, segundo eles dizem.
— Tu não sabes o que dizes. Nunca dei ordem para que se fossem embora —
afirmou a princesa Maria. — Manda cá o Dronuchka.
Drene confirmou as palavras de Duniacha: os camponeses haviam-se reunido
por ordem da princesa.
— Mas eu nunca os mandei reunir — teimou ela. — Não lhe devias ter
transmitido essa ordem. Apenas te disse para lhes distribuíres trigo.
Drene soltou um suspiro, sem responder.
— Se a senhora manda, eles ir-se-ão embora — tornou ele.
— Não, não, irei falar com eles — atalhou a princesa.Apesar das suplicas de Duniacha e da ama, a princesa Maria assomou ao
alpendre. Dronuchka, Duniacha, a ama e Mikail Ivanovitch seguiram-na.
«Naturalmente julgam que eu lhes ofereço o trigo em troca de eles
consentirem em ficar, enquanto eu me vou embora, abandonando-os aos
Franceses», dizia ela de si para consigo. Vou prometer-lhes cama e mesa na quinta
dos arredores de Moscovo. Estou convencida de que no meu lugar André ainda
faria mais do que eu.» Pensando deste jeito, aproximou-se da multidão reunida ao
pé do celeiro no crepúsculo que descera do céu.
A turba, que principiava a dar sinais de impaciência, agitou-se quando viu a
princesa e todos se descobriram precipitadamente.
A princesa Maria, baixando os olhos e tropeçando nas pregas do vestido,
aproximou-se deles. Tantos eram os olhos de moços e velhos pousados nela e
tantas as caras diferentes para ela voltadas que lhe não era possível reconhecer
fosse quem fosse; diante da necessidade de se dirigir a todos ao mesmo tempo,
não sabia como principiar. Porém, a consciência de ser, naquelas circunstâncias, o
porta-voz do pai e do irmão deu-lhe a energia necessária e pôs-se a falar
corajosamente.
— Estou muito contente porque tenham vindo — pronunciou ela, sem sequer
erguer os olhos, enquanto o coração lhe batia descompassadamente no peito. —
Dronuchka disse-me que a guerra os arruinou. Estamos todos sujeitos à mesma
desgraça, e tudo farei para os auxiliar. Por mim, tenho de me ir embora, porque é
perigoso ficar aqui — e o inimigo não está longe... também... Enfim, meus amigos,
é tudo vosso, peço-vos que tomem conta de tudo: o trigo todo é vosso. Não quero
que haja miséria entre vós. E, se lhes vierem dizer que eu vos dou trigo para que
vocês fiquem, creiam que é mentira. Pelo contrário, suplico-lhes que partam com
tudo que é vosso para a nossa propriedade perto de Moscovo e prometo-lhes que
nada vos faltará ali, tomo essa responsabilidade. Tereis cama e mesa.
A princesa calou-se. Apenas se ouviram, entre a, multidão, alguns suspiros.
— Não sou eu quem torna esta resolução — prosseguiu ela. — Procedo em
nome de meu falecido pai, que foi vosso amo, f, de meti irmão, seu filho.
Calou-se mais uma vez. Nenhuma voz rompeu o silêncio.
— A nossa desgraça é a mesma, e dividiremos tudo a meias. Tudo quanto é
meu é vosso — prosseguiu ela, fixando desta vez os que estavam mais perto.
Todos os olhos a fitavam com uma expressão idêntica, expressão que ela nãopodia compreender. Curiosidade? Dedicação? Reconhecimento? Ou apenas medo e
desconfiança? Impossível sabê-lo. Mas em todos os rostos a expressão era uma e a
mesma.
— Estamos-lhe muito reconhecidos pela sua bondade, mas não convém que a
gente tome conta do trigo que é do amo — disse uma voz lá por trás.
— E então porquê? — interrogou a princesa Maria.
Ninguém lhe respondeu e a princesa, ao percorrer com a vista a multidão, deu-
se conta de que todos os olhos que encontravam agora os seus imediatamente se
baixavam.
— Então porque não querem? — repetiu ela. Ninguém respondeu.
Maria sentiu-se incomodada perante este silêncio: tentou fixar alguns daqueles
olhares.
— Porque não respondem? — E ao lobrigar um velho que estava diante dela
encostado a um varapau: — Vamos, fala, achas que ainda precisam de mais
alguma coisa? Estou pronta para tudo.
Mas ele, como se ficasse de súbito furioso por ver-se pelado daquela maneira,
ainda, baixou mais os olhos enquanto murmurava:
— Porque havíamos nós de aceitar? Não precisamos de trigo. «E porque
havíamos nós de abandonar tudo? Não estamos dispostos a isso... Não damos o
nosso consentimento. Lamentamos mas não consentimos. Vai-te embora sozinha,
se queres...», disseram várias vozes.
E novamente todos os rostos retomaram a, mesma expressão, e o que neles se
reflectia não era, por certo, nem curiosidade nem reconhecimento, mas antes uma
resolução enérgica.
— Naturalmente não me compreenderam bem — disse então a princesa Maria
com um sorriso muito triste. — Porque não querem partir? Já lhes disse que lhes
darei cama e mesa. Se ficarem aqui, o inimigo arruiná-los-á...
As vozes da multidão, porém, abafaram a da princesa.
«Não damos o nosso consentimento; pois que nos arruinem! Não queremos o
teu trigo não damos o nosso consentimento!» Maria tentou ainda reter um olhar
qualquer dos que falavam, mas nenhuns olhos estavam fitos nela. Todos a
evitavam, E isto fê-la sentir uma impressão estranha e penosa.
«Viste como ela recitou bem a lição? Não faltava mais. Queria levar-nos para
trabalhos forçados! Quando as nossas casas estiverem arruinadas, dá-nos trabalhode graça. Que vem a ser isso? E diz que nos dará trigo!», exclamavam no meio da
multidão
De cabeça baixa abandonou o grupo e voltou para casa. Depois de ter repetido
a Drone que eram precisos os cavalos para o dia seguinte pela manhã, retirou-se
para o seu quarto e ali permaneceu sozinha com os seus pensamentos.
[XII]
Naquela noite a princesa Maria ficou por muito tempo sentada junto da janela
aberta, ouvindo as vozes dos camponeses que chegavam da aldeia, mas sem
pensar neles. Sabia perfeitamente que quanto mais pensasse na maneira de
proceder deles menos poderia compreendê-los. Para ela só uma coisa contava: a
sua dor, a qual, agora, depois daquela diversão provocada pelas preocupações do
presente, se perdia no passado. Já não podia lembrar-se mais, já não podia chorar,
já não podia rezar, Com o pôr do Sol o vento calara-se. A noite estava serena e
fresca. Depois da meia-noite as vozes foram-se calando pouco a pouco. O galo
principiou a cantar; a lua cheia ergueu-se por detrás das tílias; neblinas frescas e
esbranquiçadas envolveram a distância e o silêncio caiu sobre a aldeia e a casa.
Passaram diante dela, uma após outra, as imagens do passado tão próximo; a
doença e os últimos momentos do pai. E era com alegria triste que ela recordava
agora essas cenas, não repelindo com horror senão uma delas, a da morte,
sentindo não ser capaz de a evocar naquela serena e misteriosa hora da noite. E
esses quadros surgiam-lhe diante dos olhos com uma tal nitidez e com tais
pormenores que se lhe afiguravam ora o presente, ora o passado, ora o futuro.
Recordou o momento em que o pai fora acometido de apoplexia, quando o
haviam trazido do jardim, amparado por debaixo dos braços, balbuciando palavras
incompreensíveis, franzindo as sobrancelhas brancas e olhando para ela com uma
expressão tímida e inquieta.
«Já então me queria comunicar o que me disse no dia da morte», dizia ela
consigo mesma. «Tinha pensado sempre no que me disse.» E eis que lhe ocorreu,
em todos os seus pormenores, aquela noite em Lissia Gori, na véspera do dia em
que ele fora acometido pelo último ataque, quando, na previsão da catástrofe, elaficara ao pé do doente contra sua vontade. Não pudera dormir e em bicos de pés
aproximara-se da porta do jardim de inverno onde o pai dormia nessa noite e
ouvira-lhe a voz. Entretinha-se a conversar com Tikon num tom fatigado e de
quem sofre. Falava da Crimeia, das noites nos países quentes, da imperatriz.
Tinha, sem dúvida necessidade de conversar. «E porque me não mandou chamar?
Porque me não deixou ocupar o lugar de Tikon?», pensava ela, como já pensara
então. «Ah! Agora já não poderá dizer a ninguém o que então lhe ia no coração.
Nem para ele nem para mim. Não mais se repetirá aquele minuto em que ele teria
dito quanto queria dizer e em que eu ali estaria presente, em vez de Tikon, para o
ouvir e o compreender. Porque não entrei eu então? É de crer que ele me tivesse
dito nesse momento o que me disse no dia da sua morte. Já então, conversando
com Tikon, perguntara duas vezes por mim. Queria falar-me, e eu ali, atrás
daquela porta. Era-lhe penoso não estar a ser ouvido senão por Tikon, que o não
podia compreender. Lembro-me de que lhe falou de Lisa como se ela ainda
estivesse viva, pois se esquecera de que ela morrera, que Tikon lhe disse que Lisa
já não era do número dos vivos e que ele se pusera a gritar: ’imbecil’» Estas
recordações eram-lhe penosas. Ouviu-o gemer através da porta quando ele se
deitou e clamava em voz alta: «’Meu Deus!’ Porque não entrei eu naquele
momento? Que me teria ele feito? Que arriscava eu então? E talvez que afinal se
tivesse consolado e me tivesse dito essas palavras.» E Maria pronunciou em voz
alta essas palavras acariciadoras que ele lhe dissera no dia da sua morte: «Alma
minha!», repetiu ela, e rompeu em soluços, que lhe aliviaram o coração. Via
agora, ali na sua frente, o rosto dele: não essa cara, que ela tão bem conhecia,
sempre distante, mas essa outra expressão tímida e receosa que ela contemplara
pela primeira vez de perto, com todas as suas rugas, nos seus mínimos
pormenores, quando se debruçou sobre os lábios dele para o ouvir melhor.
«Alma minha!», repetia ela.
«Em que pensava ele quando assim me chamou? Em que estará ele a pensar
neste momento?», perguntou ela a si própria, subitamente, e de novo lhe surgiu
diante dos olhos a expressão que ele tinha no caixão com a ligadura branca por
debaixo do queixo. E o mesmo horror que dela se apossara ao tocar no morto e ao
verificar que já não era ele quem ali estava, mas qualquer coisa de misterioso e
repelente, esse mesmo horror se apoderou dela naquele instante. Teria desejado
pensar noutra coisa, rezar; não o conseguia, porém. Erguia os seus grandes olhosmuito abertos para o disco lunar e para a sombra e esperava a cada momento
voltar a ver a cara do morto; sentia-se como que paralisada pela grande
serenidade que reinava na casa e nas vizinhanças. «Duniacha!», balbuciou ela
primeiro. «Duniacha!», clamou, em seguida, numa voz desesperada, e, arrancando-
se ao silêncio e à meditação que a tomavam, correu para o quarto das criadas, ao
encontro da ama e das mulheres, que vinham já atender ao seu chamamento.
[XIII]
No dia 17 de Agosto, Rostov e Iline, na companhia de Lavruchka, de regresso
do breve cativeiro, e de uma ordenança hússar, abalaram, para um curto passeio a
cavalo, do acampamento de Iankov, a umas quinze verstas, pouco mais ou menos,
de Bogutcharovo, Queriam experimentar um cavalo novo que Iline comprara e
investigar se haveria palha nas aldeias próximas. Há três dias que Bogutcharovo
estava entre os dois exércitos inimigos, de tal sorte que, de um momento para o
outro, podia vir a ser ocupada quer pela retaguarda dos Russos, quer pela
vanguarda dos Franceses. Eis a razão por que, Rostov, comandante de esquadrão
previdente, queria apoderar-se, antes da chegada do inimigo, dos abastecimentos
que porventura ai tivessem ficado.
Os dois amigos iam muito bem dispostos. Cavalgando em direcção a
Bogutcharovo, a propriedade do príncipe, onde esperavam encontrar basta
criadagem e lindas moças, interrogavam Lavruchka acerca de Napoleão, rindo das
suas histórias, quando não se punham a galopar ao desafio para experimentar o
cavalo de Iline.
Rostov ignorava por completo que a aldeia para onde se dirigiam era
propriedade desse Bolkonski que fora noivo de sua irmã.
Num último desafio largaram a galope pela encosta que descia para
Bogutcharovo, e Rostov, distanciando-se do amigo, foi o primeiro a atravessar a
rua da povoação.
— Deixaste-me para trás — disse Iline, afogueado pela galopada.
— Sim, chego sempre primeiro, tanto em campo raso como aqui — replicou
Rostov, afagando o seu corcel do Dom, branco de espuma.— E eu, Excelências, com a minha francesa — interveio Lavruchka, que os
seguia e era assim que chamava ao rocim em que ia montado — eu, se os não
quisesse envergonhar, já há muito que os teria apanhado,
A passo aproximaram-se de um celeiro onde havia um grande ajuntamento de
camponeses.
Alguns deles desbarretaram-se, enquanto outros se limitavam a olhar para os
recém-chegados. Dois mujiques idosos, de barbas ralas e caras sulcadas de rugas,
saíram de uma, taberna e, titubeando e cantarolando uma canção incoerente,
aproximaram-se dos oficiais.
— Aqui temos homens! — exclamou Rustov, rindo. — Eh! Tendes palha?
— Qual deles o melhor. — disse Iline.
«Alegre... com... pa... nhia...», cantarolava um dos mujiques com um sorriso
feliz.
Um camponês saiu da multidão e, aproximou-se de Rostov.
— Quem sois vós? — perguntou.
— Franceses — respondeu Iline, a rir — E aqui tens Napoleão em carne e osso
— acrescentou, apontando para Lavruchka. Então são russos? — voltou o
camponês.
— Trazem muitas forças? — perguntou outro camponês, pequenino, que se
aproximara.
— Sim, muitas, muitas — retorquiu Rostov. — E que estão vocês a fazer todos
aqui? — acrescentou. — É dia santo, porventura?
— Os velhos reuniram-se para tratar coisas lá da comuna — replicou o
camponês, afastando-se.
Nesse momento duas mulheres e um homem de gorro branco saíram da casa
senhorial e dirigiram-se para os oficiais.
— A vestida de encarnado é para mim! Ai daquele que ma roubar! —
exclamou Iline, vendo Duniacha, que caminhava para ele num passo decidido,
— É para nós! — disse Lavruchka, piscando o olho a Iline.
— Que queres tu, minha linda? — perguntou Iline, sorrindo.
— A princesa manda perguntar a que regimento pertencem como se chamam.
— Conde Rostov, comandante de esquadrão e vosso muito humilde servidor.
«Com... pa... nhia!», ia cantando o camponês bêbedo, sorrindo com ar feliz e
olhando para Iline, que conversava com a rapariga. Logo atrás de Duniachaapareceu Alpatitch, que de longe se descobrira respeitosamente.
— Atrevo-me a incomodar Vossa Senhoria — disse ele, com a mão na carcela
do colete e numa deferência em que se misturava certa displicência, atendendo à
juventude do oficial. — Minha ama, a filha do general-chefe príncipe Nicolau
Andrejevitch Bolkonski, falecido no dia 15 deste mês, encontra-se numa situação
penosa, por causa da ignorância desta gente. — E fez um gesto na direcção dos
camponeses. — Roga-lhes que tenham a bondade... Querem fazer o favor de se
afastar um pouco? Não é muito agradável na presença destes... — Apontou para
os dois camponeses que, a pequena distância, cirandavam em volta dele como
varejeiras à roda de um cavalo.
— Oh, Alpatitch... Oh, Talcov Alpatitch... Muito bem! Em nome de Cristo,
perdoa-nos. Muito bem! — diziam os camponeses, mostrando-lhe o melhor dos
seus sorrisos.
Rostov não pôde deixar de olhar para os dois borrachos e sorriu.
— A não ser que isto divirta Vossa Excelência! — observou Iakov Alpatitch,
com um ar grave, tirando a mão da carcela do colete para apontar os dois velhos.
— Não, não, isto nada tem de divertido — atalhou Rostov, afastando-se. — E
de que se trata afinal? — perguntou.
— Excelência, estes grosseiros indivíduos não querem deixar sair daqui a minha
ama e ameaçam-na de lhe desengatar os cavalos, de modo que tudo está
carregado desde manhã e a princesa não pode meter-se a caminho.
— Isso não pode ser! — exclamou Rostov.
— Tenho a honra de lhe dizer a verdade pura — confirmou Alpatitch.
Rostov apeou-se, entregou as rédeas do cavalo à ordenança e seguiu Alpatitch
em direcção à casa, enquanto lhe ia pedindo pormenores. Efectivamente, a
proposta da véspera aos camponeses para lhes distribuir o trigo e a explicação da
princesa com Drone e a assembleia campesina de tal modo desarranjaram as
coisas que Drone entregara definitivamente as suas chaves, se juntara aos
camponeses e não aparecera quando convocado por Alpatitch. E assim, quando, na
manhã seguinte, a princesa dera ordens para a partida, aquela gente reunira-se
em grande número ao pé do celeiro e mandara dizer que não deixaria partir a
princesa, que havia ordem para não abandonar as casas e que estava disposta a
desatrelar os cavalos. Alpatitch viera parlamentar com os camponeses, tentando
chamá-los à razão, mas haviam-lhe respondido — foi Karp quem falou, pois Dronenão aparecia — não ser possível deixarem partir a princesa, que havia ordem para
isso. Se ela consentisse, porém, em ficar, continuariam a servi-la como até ali e lhe
obedeceriam em tudo.
Enquanto Rostov e Iline galopavam pela estrada, a princesa Maria, apesar das
objecções de Alpatitch, da ama e das criadas, mandara atrelar os carros para a
partida. Os cocheiros, no entanto, ao verem ao longe os cavaleiros, que julgaram
franceses, fugiram e as mulheres puseram-se a gritar pela casa.
«Paizinho! Nosso paizinho! Foi Deus quem te mandou!», exclamavam vozes
suplicantes no momento em que Rostov penetrava no vestíbulo da casa.
A princesa Maria, desamparada e sem forças, estava no salão quando Rostov
entrou. Não percebia quem ele era, porque estava ali e o que estava a passar-se.
Compreendeu tratar-se de um russo, e pela maneira de andar e assim que ele
pronunciou as primeiras palavras deu-se conta de que estava diante de um homem
polido. Fitou nele os olhos fundos e luminosos e pôs-se a falar-lhe numa voz
entrecortada e trémula de emoção. Rostov sentiu imediatamente o que havia de
romanesco naquele encontro. «Esta rapariga, sem defesa, esmagada pela
desgraça, abandonada, à mercê de camponeses grosseiros revoltados! Que
estranho capricho do destino me havia de trazer aqui!», dizia Rostov com os seus
botões e, enquanto ouvia a narração que ela lhe fazia, observava-a, «E que
suavidade, que nobreza de traços, que expressão de rosto!»
Quando ela lhe disse que tudo aquilo acontecera no dia seguinte ao do funeral
do pai, a voz tremia-lhe. Voltou a cabeça para o lado, e, em seguida, receosa de
que Rostov pensasse que ela o queria comover, fitou nele uns olhares tímidos e
interrogativos. Rostov tinha os olhos cheios de lágrimas. Maria deu por isso e
agradeceu-lhe poisando nele umas pupilas luminosas que apagaram por completo
a fealdade dos seus traços.
— Não tenho palavras, princesa, para lhe expressar como me sinto feliz por
haver passado aqui por acaso e poder-me confessar à sua disposição — pronunciou
ele, levantando— se. — Pode partir. Garanto-lhe sob palavra que ninguém ousará
incomodá-la desde que me dê a honra de a escoltar. — E, inclinando-se diante dela
tão respeitosamente como se estivesse em frente de uma princesa de sangue real,
encaminhou-se para a porta.
Os modos cerimoniosos de Rostov queriam dizer clar2mente que, embora lhe
fosse muito agradável entabular com ela mais amplas relações, não queriaaproveitar aquela circunstância triste para prosseguir no seu diálogo.
A princesa Maria compreendeu e apreciou a sua discrição.
— Estou-lhe muito, muito reconhecida — disse-lhe ela em francês — espero
que tudo isto não passe de um mal-entendido e que ninguém seja culpado. — E
principiou a chorar. — Perdoe-me — acrescentou.
Rostov franziu as sobrancelhas, para esconder a emoção que o tomava, e,
inclinando-se mais uma vez profundamente, saiu da sala.
[XIV]
— Então? É bonita? Ah, rapazes, a minha, a de encarnado, é um encanto e
chama-se Duniacha...
A expressão de Rostov, porém, fez que Iline se calasse imediatamente,
Adivinhou que o seu herói e comandante estava numa disposição de espír4to
diferente da sua.
Rostov lançou-lhe um olhar irritado e sem lhe responder dirigiu-se em passos
rápidos para a povoação.
«Eu lhes ensinarei! Vão ter o que merecem, estes bandidos», dizia de si para
consigo.
Alpatitch, alargando o passo quanto podia, custou-lhe a apanhá-lo.
— Que decisão se digna tomar? — perguntou-lhe, quando conseguiu alcançá-lo.
Rostov deteve-se e, cerrando os punhos, caminhou, de súbito, ameaçador para
Alpatitch.
— Que decisão? Que decisão? Velho imbecil! — gritou-lhe. — Que andas tu
para aí a fazer? Os camponeses revoltam-se e tu não sabes metê-los na ordem,
hem! Afinal não passas de um traidor! Conheço-os a todos. Hei-de arrancar-lhes a
pele! — E como se receasse esgotar inutilmente a cólera que se apoderava dele
deixou Alpatitch no meio da rua e prosseguiu o seu caminho em passos acelerados.
Alpatitch, calando a ofensa imerecida que se lhe acabava de fazer, continuou
atrás de Rostov em passo acelerado também e teimou em pô-lo ao corrente do seu
ponto de vista. Explicava-lhe que os camponeses estavam naquele momento
absolutamente obstinados, que’ naquela altura seria insensato resistir-lhes sem oapoio da força armada, que seria muito melhor começar por pedir reforços.
— Eu lhes darei as forças armadas... Sou eu quem lhes vai fazer frente —
repetiu Nicolau, sem pensar no que dizia, sufocado por uma ira irreflectida e
animal que só queria expandir-se.
Sem medir o passo que ia dar, caminhou direito à multidão, rápido e decidido.
E à medida que ele se aproximava, Alpatitch ia dizendo de si para consigo que
talvez o seu acto insensato pudesse dar bons resultados. Eis o que os próprios
camponeses pareciam compreender também ao verem av2nçar para eles aquele
homem de passo rápido e enérgico e rosto decidido e contraído de raiva.
Mal os hússares tinham entrado na povoação, e assim que Rostov se dirigira a
casa da princesa, uma certa desorientação e um certo desacordo se verificaram
entre o povo. Alguns camponeses principiaram a dizer que os militares eram
russos e que naturalmente iam zangar-se quando soubessem que eles impediam a
partida da princesa. Drone, especialmente, era desta opinião: mas, assim que
manifestara o seu Parecer, Karp e muitos outros irritaram-se com ele.
— Quantos anos estiveste tu para aí a comer à custa da comuna? — gritou-lhe
Karp. — Para ti, tanto faz. Pegas na bolsa e por aqui me sirvo. Queres lá saber que
as nossas casas sejam saqueadas!
— Que se cumpra o que está resolvido: que ninguém saia de sua casa. Desde
que ninguém tire nada daqui, não haverá novidade! — gritou outra voz,
— O teu filho é que devia ter sido recrutado e tu, com p(ma dele, mandaste o
meu Vanka no seu lugar. Todos ternos de morrer! — exclamou, de súbito, um
velhito que se dirigia a Drone.
— Sim, sim, todos temos de morrer.
— Eu não sou delegado da comuna — observou Drone.
— Sim, sim, não és delegado da comuna, mas criaste barriga!...
Dois camponeses apalermados iam dizendo qualquer coisa. Assim que Rostov,
acompanhado de Iline Lavruchka e Alpatitch, se aproximou do grupo, Karp,
avançou para ele com os dedos no cinturão e um leve sorriso nos lábios. Drone,
pelo contrário, tratou de se esconder nas últimas fileiras do povo, agora mais
compacto do que nunca.
— Quem é aqui o estaroste? — gritou Rostov caminhando rapidamente.
— O estaroste? Que lhe quer? — perguntou Karp.
Antes que pudesse terminar a frase, o barrete voou-lhe pelo ar e a cabeçaoscilou-lhe apanhada em cheio por um violento golpe.
— Desbarretem-se, traidores! — gritou Rostov em voz alta. — Onde está o
estaroste? — acrescentou numa voz terrível.
«Está a chamar o estaroste, está a chamar o estaroste... Drone Zakaritch,
estão a chamá-lo», exclamaram várias vozes receosas, e imediatamente os
barretes desapareceram das cabeças.
Não queremos revoltar-nos, estamos apenas a cumprir as decisões que
tomámos — disse Karp. Depois, algumas vozes, lá para trás, começaram a falar
todas ao mesmo tempo:
«Foram os velhos quem resolveu... São muitos a mandar — Quem se atreve a
falar?... É uma revolta!... Cambada de ladrões! Traidores! — vociferou Rostov sem
pensar, numa voz que perdera a ressonância humana, agarrando Karp pela gola.
— Amarrem-no, amarrem-no! — gritou, embora para amarrar Karp houvesse ali
apenas Lavruchka e Alpatitch-
Lavruchka precipitou-se para ele e agarrou-lhe as mãos por detrás.
— Se quiser, vai chamar-se a nossa gente, lá ao fundo da colina — disse ele.
Alpatitch chamou dois camponeses pelo seu nome para que viessem amarrar
Karp. E os dois avançaram docilmente do meio da multidão e desataram os
cinturões.
Onde está o estaroste? — gritou Rostov.
Drone, pálido e carrancudo, deu dois passos em frente.
— Tu é que és o estaroste? Amarra-o, Lavruchka! — ordenou Rostov, como se
o cumprimento desta ordem não pudesse levantar qualquer obstáculo.
E, realmente, dois outros mujiques puseram-se a amarrar Drone, o qual, como
se quisesse auxiliá-los, arrancou o cinturão e passou-lho para as mãos.
— E vocês todos, ouçam-me bem — prosseguiu Rostov, dirigindo-se aos
camponeses. — Agora é cada um tratar de ir para sua casa e que ninguém se
lembre de abrir o bico.
— Mas então? Que mal fizemos nós? Foi tudo uma asneira. Só fizemos
asneiras. Eu bem disse que isto não estava direito — exclamaram algumas vozes,
acusando-se mutuamente.
— Eu bem vos tinha prevenido — comentou Alpatitch, recuperando a
autoridade perdida. — Não está certo, rapazes!
— Foi uma asneira nossa. Iakov Alpatitch — responderam várias vozes, e amultidão imediatamente se dispersou, espalhando-se pela aldeia.
Os dois camponeses prisioneiros foram conduzidos ao pátio da casa senhorial.
Atrás deles foram os dois bêbedos.
— Olhem para a cara deles! — disse um dos bêbedos, dirigindo-se a Karp.
— É maneira de se falar aos amos? Que julgas tu? Imbecil, sim, és um imbecil
— disse o outro.
Duas horas mais tarde estacionavam os carros no pátio de Bogutcharovo. Os
camponeses atarefavam-se a carregar as bagagens dos amos enquanto Drone,
que, a pedido da princesa, fora solto do sótão onde o haviam encerrado, ia dando
as suas ordens no meio deles.
— Que isso fique bem arrumado — dizia um homem de grande estatura, de
cara cheia e sorridente, ao receber uma caixinha das mãos da criada. — Essa caixa
vale dinheiro. Não a ponhas para aí de qualquer maneira. Vê lá se a amarras de
maneira que se estrague. Não gosto disso. É preciso que as coisas se façam com
consciência, em ordem. Assim, isso mesmo, agora cobre-a com uma serapilheira e
põe-lhe em cima um bocado de palha.
— Aqui vão livros, muitos livros — dizia outro, que transportava os livros da
biblioteca do príncipe André. — Não me toques! Caramba, que é pesado, rapazes!
Isto sim, são livros que valem quanto pesam!
— Caramba, quem escreveu estes livros não teve tempo para se coçar! —
dizia, por seu turno, piscando o olho, com ar de entendido, um rapazola gordo e
grandalhão que apontava para os dicionários que vinham em cima.
Rostov, que não queria impor-se à princesa, não voltou a casa dela e deixou-se
ficar na aldeia até ao momento da partida. Assim que as carruagens se puseram
em marcha, montou a cavalo e escoltou-as até à estrada ocupada pelas tropas
russas, a umas doze verstas dali. Na estalagem de Iankovo pediu respeitosamente
licença para se retirar, permitindo-se, pela primeira vez, beijar-lhe a mão.
— Não diga isso, princesa — protestou ele, corando diante da princesa, que lhe
agradecia ter-lhe salvo a vida, como ela dizia. — Qualquer comissário da polícia
teria feito o que eu fiz. Se estivéssemos aqui só para guerrear com os camponeses,
não teríamos deixado o inimigo chegar onde chegou. — E, para mudar de
conversa, acrescentou: — Aliás, sinto-me feliz por ter tido a oportunidade de a
conhecer. Adeus, princesa, desejo-lhe muitas felicidades e espero que ainda
venhamos a encontrar-nos em circunstâncias mais agradáveis. Se não quer que eucore, por amor de Deus, não me agradeça.
A princesa, se calava as palavras de gratidão, nem por isso deixava de traduzir
na sua resplandecente expressão de enternecido reconhecimento quanto estava
agradecida a Rostov. Não podia acreditar que nada tivesse a agradecer-lhe. A seus
olhos era indiscutível que, se Rostov ali não tivesse aparecido, teria sido vítima ao
mesmo tempo dos camponeses revoltados e dos Franceses. Era para ela um facto
que, para a salvar, se expusera aos mais evidentes e terríveis perigos. E também
se lhe afigurava incontestável que era um homem de alma alevantada e nobre,
pois soubera compreender a sua situação e ter pena da sua dor. Os olhos de
Rostov, tão bons e tão honestos, tinham-se enchido de lágrimas quando ela,
lacrimosa também, lhe falara da morte do pai e esta recordação estava gravada
na sua alma.
Quando lhe disse adeus e ficou só, Maria sentiu, de súbito, que os olhos se lhe
humedeciam, e foi então que, pela primeira vez, lhe veio ao espírito esta ideia
estranha: estaria porventura enamorada?
No decurso da jornada para Moscovo, embora a situação não fosse das mais
alegres, Duniacha, que ia ao lado da princesa, na mesma carruagem, mais de uma
vez pôde observar que ela espreitava pela portinhola com um vago e triste
sorriso.
«E se realmente eu estivesse enamorada dele?», dizia de si para consigo.
Apesar da vergonha que sentia por confessar a si própria que amava um
homem pela primeira vez, homem esse que naturalmente não tinha por ela
qualquer sentimento especial, consolava-a a ideia de que nunca alguém conheceria
o seu segredo e que não era crime gostar, sem o confessar a ninguém, e até ao
último dos seus dias, daquele que seria o seu primeiro e último amor.
De vez em quando lembrava-se do olhar dele, das suas atenções, das suas
palavras cheias de simpatia, e então a felicidade não se lhe afigurava impossível. E
era então que Duniacha lhe notava o ar feliz quando olhava pela portinhola.
«Tinha de vir a Bogutcharovo e logo naquele momento!», dizia para consigo a
princesa Maria. «E tinha sido preciso que a irmã desfizesse o casamento com o
príncipe André!» E em tudo isto não podia deixar de ver o dedo da Providência.
Quanto a Rostov, a impressão que lhe produzira a princesa
Maria era de suavidade e agrado. Sempre que falava dela sentia-se mais
alegre, e sempre que os seus camaradas, a cujos ouvidos chegara qualquer coisa arespeito da aventura do camarada em Bogutcharovo, se punham a brincar com
ele, dizendo que Rostov fora à procura de palha e achara uma das mais ricas
herdeiras da Rússia, zangava-se a bom zangar. E o facto é que se irritava porque a
ideia de um casamento com a doce e simpática princesa, possuidora aliás de uma
grande fortuna, lhe ocorrera várias vezes sem que ele desse por isso.
Pessoalmente, não podia desejar uma esposa melhor. «Aquele casamento, que
faria a felicidade da condessa e restabeleceria a situação do próprio pai, talvez
não desagradasse à própria princesa», pensava Nicolau,
E que faria de Sónia? E a palavra dada? Eis por que Rostov se, irritava quando
brincavam com ele por causa da princesa Bolkonski.
[XV]
Tendo aceitado o comando dos exércitos russos, Kutuzov lembrou-se do
príncipe André e expediu-lhe ordem para se apresentar no quartel-general
André chegou a Tsarevo-Zaimitch no dia e à hora em que Kutuzov passava a
sua primeira revista às tropas. Deteve-se na aldeia, junto da casa do pope, onde
estava a carruagem do general-chefe, e sentou-se num banco ao pé do portão para
aguardar ali o «Sereníssimo», como toda a gente o tratava agora.
Nos campos por detrás da aldeia ressoavam ora os acordes de uma banda
militar ora as formidáveis aclamações em honra do novo generalíssimo. A meia
dúzia de passos do príncipe André, duas ordenanças, um impedido e um mordomo
aproveitavam a ausência do amo e o bom tempo para tomarem o fresco. Um
tenente-coronel de hússares, homenzinho trigueiro, de grandes bigodes e patilhas,
aproximou-se do portão e, dirigindo-se a André, perguntou-lhe se era
efectivamente ali que vivia o Sereníssimo e se regressaria em breve.
O príncipe André respondeu-lhe que não pertencia ao estado-maior e que além
disso também acabava de chegar. O tenente-coronel de hússares dirigiu-se então a
uma das ordenanças de grande uniforme e este disse-lhe, com o desdém peculiar
das ordenanças dos generais-chefes pelos oficiais:
— Quem? O Sereníssimo? Sim, talvez, talvez não tarde a chegar. Que lhe
quer?O tenente-coronel pôs-se a rir do tom da ordenança retorcendo o bigode;
apeou-se do cavalo, entregou-o ao impedido e aproximou-se de Bolkonski,
inclinando-se ligeiramente. Bolkonski arranjou-lhe lugar no banco. O outro sentou-
se a seu lado.
— Também está à espera do generalíssimo? — perguntou o tenente-coronel.
— Tenho ouvido dizer que é pessoa para receber toda a gente. Graças a Deus! Se
ainda fosse um desses papa-chouriços, que grande trapalhada! Razão tinha
Ermolov quando pediu que o promovessem a alemão. Talvez agora os Russos
também tenham o direito de falar! Só o diabo é que sabe o que se tem feito até
hoje. Sempre a recuar, sempre a recuar. Esteve na frente?
— Tive o prazer — respondeu o príncipe André — não só de participar da
retirada, mas também de perder o que tinha de mais querido, meu pai, que
morreu de desgosto, sem alar rios meus bens e na casa paterna. Sou de Smolensk.
— Ah! É o príncipe Bolkonski? Muito prazer em conhecê-lo, Eu sou o tenente-
coronel Denissov, mais conhecido por Vaska — disse Denissov, apertando-lhe a
mão e fitando-o com afectuoso interesse. — Sim, eu soube... — acrescentou com
simpatia. E, após alguns momentos de silêncio, continuou: — É uma verdadeira
guerra de citas. Tudo isto está certo menos para aqueles que têm de dar o corpo
ao manifesto. Com que então, é o príncipe Bolkonski?... — Abanou a cabeça. —
Muito prazer, príncipe, muito prazer em conhecê-lo — repetiu, com um sorriso
triste, apertando-lhe de novo a mão.
O príncipe André conhecia Denissov através do que Natacha lhe dissera a
respeito do seu primeiro namorado. Esta lembrança era para ele ao mesmo tempo
agradável e penosa e fazia-o evocar recordaç5es dolorosas nos últimos tempos
muito longe das suas preocupações, embora sempre a miná-lo no fundo do seu
coração.
De então para cá experimentara já tantos abalos morais, e tão graves — o
abandono de Smolensk, a sua visita a Lissia Gori, a notícia recente da morte do pai
—, que as recordações antigas o tinham abandonado havia muito ou pelo menos
não agiam sobre ele com o mesmo poder. Para Denissov, o nome de Bolkonski
evocava toda uma série de imagens de um passado longínquo e poético, esse dia
em que, depois da ceia e da romança cantada por Natacha, lhe fizera, a essa
garota de quinze anos, nem sabia como, uma verdadeira declaração de amor.
Sorriu, lembrando-se do seu romance de então, e logo em seguida voltou aoassunto das suas constantes e apaixonadas preocupações. Tratava-se do plano de
campanha que imaginara durante a retirada estando de serviço nos postos
avançados. Apresentara-o a Barclay de Tolly e pensava agora submetê-lo à
apreciação de Kutuzov. Este plano baseava-se no facto de as linhas de operação
dos Franceses serem muito extensas. Segundo ele, o que era preciso, em vez de os
atacarem de frente e lhe cortarem o passo, ou até mantendo-se a mesma táctica,
era atacarem-lhes as linhas de comunicação. Principiou a expor este plano ao
príncipe André.
— Eles não se podem aguentar com uma linha assim. É impossível e eu sou
capaz de lha cortar: dêem-me quinhentos homens e acabo com ela, palavra de
honra! O único sistema eficaz é a guerra de guerrilhas.
Denissov levantou-se e em gestos exuberantes principiou a expor os seus
planos. Enquanto ele falava, aclamações mais indistintas e mais prolongadas, que
se misturavam com a música e os cantos, chegavam dos lados onde decorria a
parada militar. A povoação estava cheia do tropear dos cavalos e dos gritos dos
soldados,
— Aí vem ele — gritou um cossaco, à porta do pátio — aí vem ele!
Bolkonski e Denissov aproximaram-se do portão onde se perfilava uma
esquadra de soldados, a guarda de honra, e viram Kutuzov cavalgando um cavalito
balo. Atrás dele vinha uma escolta de generais assaz considerável. Barclay
cavalgava a seu lado; uma chusma de oficiais a cavalo ia e vinha, no flanco da
coluna e na retaguarda, gritando: «Hurra!»
Os ajudantes-de-campo galoparam para entrar no pátio adiante do general-
chefe. Kutuzov esporeava impacientemente o seu cavalo, que, vergando sob tão
pesado fardo, caminhava a passo. A cada momento o Sereníssimo inclinava a
cabeça e levava a mão ao gorro branco, de cavaleiro da guarda, sem pala e
agaloado de encarnado. Ao chegar junto da guarda de honra, formada por
heróicos granadeiros, a maior parte condecorados e que lhe apresentavam armas,
fitou-os por momentos em silêncio com o seu olhar penetrante de superior e
voltou-se para a chusma de generais e oficiais de outras patentes que o rodeavam.
No seu rosto surgiu de súbito uma expressão irónica: encolheu os ombros com um
gesto de surpresa.
— E recuamos, recuamos com rapazes tão valentes como estes! — exclamou
ele. — Bom, até à vista, general — acrescentou, e, dando de esporas ao cavalo,meteu pelo portão, passando diante de André e Denissov.
«Hurra! Hurra! Hurra! », gritavam atrás dele.
Desde a última vez que o príncipe André o vira, Kutuzov ainda engordara mais,
e parecia encolhido, esbarrondando-se em gordura. Mas o seu olho torto, a cicatriz
e a expressão de cansaço da sua fisionomia e de toda a sua pessoa não tinham
mudado. Vestia o redingote do uniforme, pingalim a tiracolo, suspenso de uma
correia fina, e trazia na cabeça o gorro branco dos cavaleiros da guarda.
Pesadamente escarranchado e balouçando-se em cima do selim do seu valente
cavalinho, assobiava entre dentes quando penetrou no pátio. Na sua cara via-se a
satisfação de estar finalmente em paz e de poder descansar depois de uma
estopada. Tirou o pé esquerdo do estribo, e, torcendo o corpo e franzindo as
sobrancelhas com o esforço que fazia, lá conseguiu passar a perna por cima da sela.
Depois apoiou-se no joelho e, tossindo, deixou-se cair nos braços dos cossacos e dos
ajudantes-de-campo que o amparavam.
Endireitou-se, passeou em volta o olho pisco, olhou para o príncipe André sem
o conhecer e no seu andar pesadão encaminhou-se para o alpendre.
Fu... fu... fu... !, continuava a assobiar, enquanto relanceava de novo os olhos
para o príncipe André. E alguns segundos foram precisos, como é vulgar entre os
velhos, para reconhecer aquela cara.
— Ah!, viva, príncipe! Viva, meu amigo! Vamos. — disse penosamente,
lançando um olhar à sua roda, e subiu, pesado, os degraus do alpendre, que
rangiam sob os seus pés.
Desabotoou-se e sentou-se num banco que estava no patamar.
— Teu pai como está?
— Recebi ontem a notícia do seu falecimento — disse laconicamente o príncipe
André.
Kutuzov fitou-o de olhos muito abertos e assustados. Depois tirou o gorro e
persignou-se.
— Que Deus o tenha em Sua santa glória! Que a vontade de Deus seja feita
em todos nós! — Suspirou fundo e calou-se. — Apreciava-o e estimava-o muito e
sinto sinceramente a tua dor.
Abraçou o príncipe André, apertando-o contra o peito e assim o conservou por
muito tempo. Quando dele se desprendeu, André viu que lhe tremiam os beiços
grossos e que tinha os olhos cheios de lágrimas. Suspirou e para se levantarapoiou-se no banco com as duas mãos.
— Vamos, anda daí a minha casa para conversarmos — disse ele.
Nesse mesmo instante, porém, Denissov, tão destemido diante dos superiores
como perante o inimigo, apesar de os ajudantes-de-campo terem tentado detê-lo
no alpendre, gritando-lhe qualquer coisa em voz baixa e furiosa, galgara
ousadamente os degraus, fazendo retinir as esporas. Kutuzov, com as mãos ainda
apoiadas no banco, olhou para ele com ar pouco satisfeito. Denissov declinou o seu
nome e declarou ter de comunicar a Sua Excelência uma coisa da maior
importância para bem da pátria.
O general percorreu-o com o seu olhar fatigado e num gesto cheio de enfado,
cruzando as mãos sobre o ventre, repetiu:
— Para bem da pátria? Bem, de que se trata? Fala. Denissov corou como uma
donzela, o que não deixava de ser estranho naquela velha cara de bêbedo, com
seus grandes bigodes, e principiou a expor um plano de rotura das linhas de
comunicação do inimigo entre Smolensk e Viazma. Vivera naquela região e
conhecia o sítio muito bem. O plano parecia, indiscutivelmente, de primeira
ordem, quanto mais não fosse por causa da convicção com que ele o expunha.
Kutuzov, de olhos postos no chão, erguia-os de quando em quando para mirar o
pátio da isbá vizinha, como se esperasse ver sair dali alguém indesejável. Com
efeito, enquanto Denissov falava, apareceu um general com uma pasta debaixo do
braço.
— Então? — disse Kutuzov, interrompendo a exposição de Denissov. — Esta
preparado?
— Sim, Excelência — volveu o general.
Kutuzov abanou a cabeça. Parecia dizer: «Como é possível um só homem fazer
tudo isto?» E continuou a ouvir Denissov.
— Dou-lhe a minha palavra de honra de oficial russo — prosseguia este — de
que cortarei as comunicações de Napoleão.
— Kiril Andreievitch Denissov, o intendente— geral, é teu parente? —
perguntou Kutuzov, interrompendo -o.
— É meu tio, Excelência.
— Oh, fomos amigos — continuou ele, alegremente. — Bom, bom, meu rapaz,
fica aqui no estado-maior. Voltaremos a falar disso amanhã.
Com um aceno de cabeça amistoso, voltou-se e estendeu as mãos para ospapéis que lhe trouxera Konovnitsine.
— Vossa Excelência não quer entrar? — disse o general de serviço em tom
pouco satisfeito. — Há aqui planos para examinar e alguns documentos para
assinar.
Nesse momento surgiu um ajudante-de-campo que vinha anunciar estar tudo
em ordem na casa. Mas Kutuzov não queria entrar sem se ver livre de tudo aquilo.
Franziu as sobrancelhas.
— Não, diz que tragam uma mesinha e despacharei aqui mesmo o que há a
fazer. E, tu, não te vás embora — acrescentou, dirigindo-se ao príncipe André.
André deixou-se ficar no alpendre, ouvindo o que dizia o general de serviço.
Enquanto Kutuzov despachava, André apercebeu o ciciar de uma voz feminina
e o roçagar de um vestido de seda. Atrás da porta, vestida de cor-de-rosa, com
uma fita lilás na cabeça, estava uma linda mulher, bem fornida de carnes, de belas
cores, com um tabuleiro na mão, esperando ansiosamente que o general-chefe
entrasse em casa. Um ajudante-de-campo explicou em voz baixa que era a dona da
casa, a mulher do pope, que se dispunha a oferecer o pão e o sal a Sua Excelência.
O marido já recebera o Sereníssimo na igreja, de cruz alçada, e ela ia acolhê-lo em
sua casa... «Não é qualquer peste», comentou o ajudante, sorrindo. Kutuzov, ao
ouvir isto, voltou a cabeça.
Escutava o relatório do general que se referia especialmente à crítica da
posição de Tsarevo-Zaimitch, e ouvia-o exactamente como escutara Denissov e
como sete anos antes seguira a discussão no conselho de guerra de Austerlitz. Era
evidente que ouvia pelo facto de ter ouvidos e porque, apesar do algodão que lhe
rolhava um deles, não podia deixar de ouvir. Mas também era certo que nada que
aquele general lhe dissesse seria capaz de o surpreender ou sequer interessar, a
ele, que de antemão sabia tudo quanto lhe pudessem dizer e que escutava apenas
porque assim tinha de ser, pela mesma razão que se tem de ouvir até ao fim um
ofício divino. O que Denissov expusera era prático e sensato e o que o general de
serviço dissera ainda era mais prático E, mais sensato. Mas a verdade é que
Kutuzov menosprezava tanto o saber como a inteligência e estava certo de que
havia de ser uma coisa muito diferente — uma coisa independente por completo
do saber e da inteligência — que resolveria, a questão. O príncipe André
observava cuidadosamente o jogo fisionómico do general-chefe e a única expressão
que lhe podia ler no rosto era a, de enfado, enfado esse que desapareceu quandoouviu o roçagar do vestido e se refreou para salvar as conveniências, Era evidente
que Kutuzov desdenhava da inteligência, do saber, e até dos sentimentos
patrióticos de Denissov, e se mostrava semelhante desdém não era por causa da
inteligência dele, do seu saber, do seu patriotismo, de que não fazia o mais
pequeno estendal. Era, sim, por causa da sua idade e da sua experiência da vida. A
única medida que espontaneamente tomou dizia respeito aos actos de
bandoleirismo praticados pelas tropas russas. No fim do relatório, o general
apresentou ao Sereníssimo para assinar um documento relativo a uma queixa
dirigida às autoridades militares por um proprietário a quem haviam ceifado
verde um campo de aveia.
Kutuzov deu um estalido com a língua e abanou a cabeça.
— Fogo com eles... Estufa com eles... Digo-te de uma vez para sempre, meu
caro, tudo isso para o fogo! Que ceifem o trigo, que queimem a lenha quantas
vezes quiserem. Nem o proíbo nem o consinto; o que não posso é passar o tempo a
fazer inquéritos a tal respeito. É inevitável. Quando se parte lenha. é certo e
sabido que as lascas vão pelo ar, — E relanceando de novo os olhos ao papel: —
Oh, esta meticulosidade alemã! — exclamou, abanando a cabeça.
[XVI]
— Bom, agora já está tudo! — disse Kutuzov, enquanto assinava o último
papel. Ergueu-se com esforço e, endireitando o grosso pescoço branco, dirigiu-se
para a porta de cara satisfeita.
A mulher do pope, ruborizada pela emoção, apanhou, apressadamente, o prato
que não conseguira apresentar a tempo apesar dos seus longos preparativos. Com
uma profunda reverência ofereceu-o a Kutuzov.
O general piscou o olho, sorriu e, acariciando-lhe o queixo, disse:
— Que linda que ela é! Obrigado, minha flor!
Tirando da algibeira das calças algumas moedas de ouro pô-las em cima da
bandeja. «Bom, bom, isto não vai mal!», dizia ao dirigir-se para o quarto que lhe
fora destinado. A mulher do pope, com um sorriso que lhe abria covinhas na cara
rosada, seguia atrás dele. Um ajudante-de-campo veio depois ao alpendreprocurar o príncipe André, convidando-o para almoçar. Meia hora mais tarde foi
novamente chamado para junto do general-chefe. Kutuzov estava recostado numa
poltrona com o uniforme desabotoado. Tinha na mão um livro francês, que pousou,
quando viu entrar o príncipe André, depois de o ter marcado com a faca de papel.
Era Les Chevaliers du Cygne, de Madame de Genlis, como o príncipe pôde verificar
relanceando a vista para a capa.
— Senta-te ali e conversemos — disse Kutuzov. — É triste, muito triste. Mas
quero que saibas, meu amigo, que sou para ti como um pai, um verdadeiro pai...
O príncipe André contou-lhe tudo quanto sabia sobre os últimos momentos do
pai e o que vira em Lissia Gori quando por lá passara.
— A que situação nos levaram... a que situação nos levaram! — exclamou, de
súbito, Kutuzov, numa voz comovida, ao ver, com toda a nitidez, pelo relato do
príncipe André, o estado em que a Rússia se encontrava.
— Mas paciência, paciência! — acrescentou, numa inflexão irritada, e, para
não prosseguir numa conversa que o perturbava, disse: — Mandei chamar-te para
que ficasses ao pé de mim.
— Estou-lhe muito grato, Excelência — respondeu André — mas receio já para
nada servir nos serviços do estado-maior...
Kutuzov notou o sorriso com que ele sublinhara estas palavras e interrogou-o
com os olhos.
-... E além disso — acrescentou — estou muito habituado ao meu regimento,
estimo os meus oficiais e os meus soldados, que, segundo creio, também gostam de
mim. Custar-me-ia muito separar-me deles! Se recuso a honra de ficar junto de
Vossa Excelência, pode acreditar...
Uma expressão subtil, bondosa e ao mesmo tempo ligeiramente irónica
iluminou o rosto balofo de Kutuzov. Interrompeu-o.
— Lamento, podias ser-me útil; mas tens razão, tens razão. Não é aqui que
precisamos de homens. Conselheiros não faltam, mas homens a valer são raros. Os
regimentos não seriam o que são se todos estes conselheiros que para aí há lá
estivessem a prestar serviço como tu. Lembro-me de ti em Austerlitz... Lembro-me,
lembro-me, ainda te estou a ver com a bandeira na mão. — Esta evocação fez
perpassar pelo rosto de André um fugitivo rubor.
Kutuzov puxou-lhe por um braço e apresentou-lhe a cara, e André viu de novo
que os olhos do velho estavam cheios de lágrimas, Embora soubesse que Kutuzovera homem que chorava com facilidade, e que o acolhia assim carinhosamente,
com tanta simpatia, por causa da perda que ele sofrera, o príncipe André sentiu-se
lisonjeado e feliz com o facto de o general-chefe lembrar Austerlitz.
— Continua no caminho que traçaste. Esse, sim, é o caminho da honra. — Ficou
por momentos calado. — Fizeste-me muita falta em Bucareste; não tinha em quem
confiar. — E, mudando de assunto, pôs-se a falar da guerra na Turquia e da paz
concluída. — Sim, fizeram-me muitas críticas — continuou —, tanto pela guerra
como pela paz que assinei. Sim. Mas tudo acabou bem. Quem espera sempre
alcança. E lá não havia menos conselheiros do que aqui... — acrescentou,
retomando um assunto que, pelo visto, o preocupava. — Ah! Os conselheiros, os
conselheiros! Se lhes temos dado ouvidos a todos lá na Turquia, não teríamos
assinado a paz e não teríamos posto termo à guerra. Acabar com as coisas, está
certo, mas fazer tudo a correr dá muitas vezes resultado contrário. Se Kamenski
não tem morrido, estaria perdido. Precisava de trinta mil homens para tomar as
fortalezas. Tomar uma fortaleza não é difícil; difícil é ganhar tinia campanha. E
para isso não é preciso tomar de assalto e, atacar, mas ter «paciência e tempo
diante de nós». Kamenski deu ordens aos seus soldados para tomarem Rustchnk,
mas eu, apenas com paciência e tempo, tomei mais fortalezas do que Kamenski e
fiz com que os Turcos comessem carne de cavalo. — Abanou a cabeça. — E podes
acreditar no que te digo: os Franceses também — prosseguiu com vivacidade,
batendo na arca do peito —, os Franceses também a hão-de comer. — E as
lágrimas brilharam-lhe de novo nos olhos.
— Entretanto temos de aceitar o combate? — interrompeu o príncipe André.
— Talvez, se todos quiserem. Então nada haverá a fazer... Mas acredita no que
te digo, meu caro: nada há que valha estes dois soldados: a paciência, e o tempo!
Eles farão tudo. Mas os conselheiros não vêem por esse prisma, eis o mal. Uns
querem, outros não. E então que se há-de fazer? — Calou-se, como se esperasse
resposta à sua pergunta. — Bom, que farias tu? — perguntou ele, de olhos
brilhantes, com uma expressão profunda e penetrante. — Pois bem, vou dizer-te o
que é preciso fazer — prosseguiu, vendo que André não respondia.— Vou dizer-te
o que é preciso fazer e o que eu faço. Na dúvida, meu caro, abstém-te —
acrescentou, destacando as palavras.— Bem, adeus, meu amigo: lembra-te de que
compartilho, de todo o coração, da tua dor e para ti nem sou Sereníssimo, nem
príncipe, nem general-chefe, mas muito simplesmente teu pai. Se precisares dealguma coisa, dirige-te a mim. Adeus, meu caro.
Apertou-o mais uma vez nos braços e beijou-o. E, ainda o príncipe André não
transpusera o limiar da porta, já ele, soltando um suspiro apaziguador, se
engolfava de novo na leitura do romance Les Chevaliers du Cygne.
Embora o príncipe André não soubesse explicar como nem porquê, o certo é
que voltou para o seu regimento, depois desta conversa, absolutamente
descansado quanto à marcha geral da guerra e confiante na pessoa que orientava
superiormente as operações. Quanto mais via a ausência de personalidade
naquele velho, cuja única arma era, por assim dizer, a experiência, resíduo das
paixões, e que, em lugar da inteligência que sabe associar os factos e tirar deles
conclusões, apenas tinha a capacidade de contemplar tranquilamente a marcha
dos acontecimentos. Tanto mais se persuadia de que, tudo havia de acontecer pelo
melhor. «Nada trará de seu, não inventará nem empreendera coisa alguma», dizia
de si para consigo. «mas ouvirá e lembrar-se-á de tudo, tudo colocará no seu lugar,
não impedirá nada de útil, não consentirá nada de prejudicial. Compreende que há
qualquer coisa de mais forte e de mais poderoso que a sua vontade pessoal: a
marcha inevitável dos acontecimentos. Sabe vê-los, tem o dom de lhes apreender
o valor, e sabe, para os não tolher, abster-se de intervir e anular a sua própria
vontade, dirigida deliberadamente para outro objectivo. E sobretudo», concluía
André, «inspira confiança, porque o sentimos verdadeiramente russo, apesar de
Madame Genlis e dos adágios franceses, pois a verdade é que a voz lhe tremia
quando murmurou: A que situação nos levaram!’, e, que soluçava quando garantia
que os havia de fazer comer carne de cavalo.»
Fora este sentimento, mais ou menos vagamente experimentado por todos,
que levara à aprovação unânime., num movimento de entusiasmo nacional, e ao
arrepio das intenções dos cortesãos, da escolha de Kutuzov para general-chefe dos
exércitos russos.
[XVII]
Depois da partida do imperador a vida de Moscovo retornara o seu ritmo
habitual, e tão habitual, realmente, que era difícil de conceber o entusiasmopatriótico e a exaltação dos últimos dias, e se não chegava quase a compreender
como era possível a Rússia estar em perigo e os membros do Clube Inglês poderem
ser também filhos da pátria prontos para todos os sacrifícios por ela. A única coisa
que fazia lembrar o estado de espírito dos dias em que o imperador estivera em
Moscovo era a execução do pedido de homens e de dinheiro, o qual, revestindo
aspecto legal e oficializado, se tornara desde logo inevitável.
A aproximação do inimigo não levara os Moscovitas a acre— ditar que a
situação se, tivesse tornado mais séria; examinavam-na, pelo contrário, com mais
leviandade, como costuma acontecer quando uma catástrofe se aproxima. Na hora
do perigo duas vozes, igualmente fortes, se ouvem na alma do homem: uma
aconselha sempre, prudentemente, que cada um de nós se dê conta exacta do
perigo que o ameaça e trate de procurar maneira de o evitar; a outra, ainda com
maior prudência, diz-nos ser muito penoso e dolorosíssimo pensar no perigo, visto
não estar nas possibilidades do homem prever e furtar-se à marcha dos
acontecimentos, e o melhor é não nos preocuparmos com as coisas tristes antes do
facto consumado e só pensarmos nas coisas agradáveis. O homem isolado obedece,
regra geral, à primeira destas vozes; em sociedade, pelo contrário, submete-se à
segunda. Era o que de facto estava a acontecer com os habitantes de Moscovo.
Nunca as pessoas ali se haviam divertido tanto como naquele ano.
Os cartazes de Rostoptchine representavam uma taberna, um taberneiro e um
burguês moscovita, Karpuchka Tchiriguine, que «tendo sido recrutado, depois de
beber um copo a mais, ouviu dizer que Bonaparte queria ir a Moscovo, se zangara
e proferira palavras grosseiras contra todos os franceses e, saindo da taberna, se
pusera a falar ao povo reunido debaixo da tabuleta do taberneiro». Estes cartazes
eram lidos e comentados e o mesmo acontecia às últimas rimas de Wassili Lvovitch
Puchkine.
No clube, numa das salas, reuniam-se os sócios para comentar estes cartazes, e
muitos riam-se da maneira como Karpuchka troçava dos Franceses, dizendo que
«inchariam por terem comido couves, que rebentariam com as papas que tinham
devorado, que haviam de estourar com uma indigestão de chtchi, que eram todos
anões, que bastava uma camponesa com uma forquilha para dar cabo de três
franceses». Havia outros que não estavam de acordo com estas graçolas,
qualificando-as de vulgares e de estúpidas. Contava-se que Rostoptchine expulsara
os Franceses de Moscovo, e mesmo todos os estrangeiros de maneira geral, poisentre eles havia espiões e agentes de Napoleão. Mas se se falava nisso era
sobretudo para poderem citar-se os ditos do governador. Expediam-se os
estrangeiros em barcaças para Nijni Novgorod, e Rostoptchine dizia-lhes: «Tenham
juízo, entrem no barco, e não façam dele a barca de Caronte.» Dizia-se já terem
saído de Moscovo todos os serviços administrativos e acrescentava— se,
repetindo um gracejo de Chinchine, que os Moscovitas deviam estar por este facto
muito reconhecidos a Napoleão. Contava-se também que o regimento municiado
por Mamonov lhe custaria oitocentos mil rublos, que Bezukov ainda gastara mais
do que isso com os seus soldados e que — lindo acto da sua parte — ele próprio
envergaria o uniforme, caracolando à frente dos seus homens, nada tendo de
pagar os que viessem admirá-lo nessa atitude marcial.
— A ninguém perdoa — dizia Júlia Drubetskaia, enquanto enrolava um
montinho de ligaduras entre os dedos delgados cheio de anéis.
Júlia pensava sair de Moscovo no dia seguinte e organizara uma festa de
despedida.
— Bezukov é ridículo, mas é tão bom, tão gentil! Que prazer pode ter em ser
tão cáustico?
— Multa! — exclamou um jovem de uniforme de miliciano, a quem Júlia
chamava «meu cavaleiro» e que ia acompanhá-la a Nijni Novgorod.
No salão de Júlia, como em muitos outros de Moscovo, combinara-se não se
falar senão russo, pagando multa quem pronunciasse palavras francesas, multa
essa que reverteria para a comissão de socorros.
— Outra multa pelo galicismo — interveio um literato que estava presente,
«que prazer... pode ter» não é russo.
— Ninguém poupa — prosseguiu Júlia, dirigindo-se ao miliciano, sem prestar
atenção ao que dizia o homem de letras. — Por cáustico peço desculpa e estou
pronta a pagar. Quanto ao galicismo acrescentou para o crítico —, recuso-me a
considerar-me responsável. Não tenho nem tempo nem dinheiro, como o príncipe
Galitzine, para arranjar um professor e aprender russo. Ai está ele, precisamente.
Quando... Não, não, não me apanhará desta vez — disse ela para o miliciano. —
Quando se fala do Sol, vêem-se-lhe os raios. — Sorria amavelmente para Pedro
com aquela facilidade de mentir tão característica das senhoras da sociedade. —
Acabávamos de falar de si. Dizíamos que o seu regimento devia ser com certeza
muito melhor do que o de Mamonov.— Oh! Não me fale do meu regimento! — replicou Pedro, beijando-lhe a mão e
sentando-se a seu lado.— Se soubesse os aborrecimentos que tenho com ele!
— Naturalmente vai comandá-lo, não é verdade? — inquiriu Júlia trocando um
sorriso malicioso e trocista com o miliciano. Este último, na presença de Pedro,
deixara de ser cáustico e pareceu contrariado ao ver o sorriso de Júlia. Apesar do
seu ar distraído e de pobre diabo, Pedro, graças à sua personalidade, paralisava,
na sua presença, qualquer tentativa de troça.
— Não, não — disse Pedro, rindo e mirando o rotundo corpo. — Que belo alvo
seria eu para os Franceses, e tenho cá as minhas dúvidas quanto a ser capaz de
montar a cavalo!
Entre as pessoas de quem se falou aconteceu aludir-se também à família
Rostov.
— Tenho ouvido dizer que as coisas não vão bem lá por casa — disse Júlia. —
Aquele conde é uma pessoa inútil. Os Razumovski queriam comprar-lhe a casa e a
quinta de Moscovo, mas não vejo jeito. Pedem muito dinheiro.
— Consta-me que a venda se fará por estes dias — observou alguém —, se
bem que me parece rematada loucura comprar agora qualquer coisa em Moscovo.
— Porquê? — interrogou Júlia. — Acha que Moscovo corre perigo?
— Então porque se vai embora?
— Eu? Que pergunta tão estranha. Vou-me embora porque... porque toda a
gente se retira da cidade. E além disso também não tenho jeito nem para Joana
d’Arc nem para amazona.
— Sim, sim, esta claro. Deixe-me ver mais trapos.
— Se ao menos soubessem administrar o que é seu, poderiam pagar as dívidas
— prosseguiu o miliciano, voltando a falar dos Rostov.
— Sim, é um bom velho, mas um pobre sire. Mas que estarão eles aqui a fazer
há tanto tempo? Há muito que deveriam ter regressado à aldeia. Não está já
restabelecida a Nathalie? — perguntou Júlia, dirigindo-se a Pedro com um sorriso
malicioso.
— Estão à espera do filho mais novo — replicou este. — Foi incorporado no
regimento dos cossacos de Obolenski e mandado para Bielaia Tserkov, É lá que
estão a formar o regimento. Mas os pais conseguiram transferi-lo para o meu e
aguardam a sua chegada de um dia para o outro. Há muito que o conde se queria
ir embora, mas a condessa por coisa nenhuma quis partir antes de tornar a ver ofilho.
— Encontrei-os antes de ontem em casa dos Arkarov. Nathalie está mais
bonita e outra vez alegre, cantou uma romança. Muito depressa esquecem certas
pessoas...
— Que se passa? — perguntou Pedro com certa irritação. Júlia sorriu.
— Bem sabe, conde, que cavalheiros como o senhor já não se encontram senão
nos romances de Madame Souza.
— Que cavalheiros? Que vem a ser isso? — teimou Pedro, corando.
— Então, meu querido conde, não se faça de novas, não se fala de outra coisa
em Moscovo. Admiro-o muito, palavra de honra!
— Multa! Multa! — exclamou o miliciano.
— Credo. Não pode uma pessoa abrir a boca. Que maçada!
— De que é que se trata? — perguntou Pedro, levantando-se.
— Então, conde. Como se não soubesse!
— Não sei absolutamente nada — volveu Pedro.
— O que sei é que o conde é amigo de Natacha; por isso... Eu, por mim, sempre
me dei melhor com Vera. Aquela querida Vera.
— Não, senhora — prosseguiu Pedro com a mesma voz irritada. — Não é
verdade que eu me tenha transformado em pajem de Mademoiselle Rostov e há
perto de um mês que não vou a sua casa. Não posso atingir o alcance da sua
crueldade...
— Qui s’excuse s’accuse (Provérbio francês que pode corresponder, em
tradução livre, a: «Quem muito se justifica, alguma culpa tem.» (N, dos T.) —
pronunciou Júlia, sorrindo, enquanto sacudia a ligadura que tinha na mão, e, para
ser ela a dizer a última palavra sobre o assunto, mudou repentinamente de
conversa. — Querem saber o que me constou hoje? Que a pobre Maria
Bolkonskaia chegou ontem. Já sabiam que lhe tinha morrido o pai?
— Será possível? E onde estará ela? Gostava muito de a ver! — exclamou
Pedro.
— Passei ontem a noite com ela. Deve partir hoje ou amanhã com o sobrinho
para a quinta nos arredores de Moscovo.
— E ela, como está? — inquiriu Pedro.
— Está bem, um pouco triste. E quer saber a quem deve ela a vida? É um
verdadeiro romance. Ao Nicolau Rostov. Cercaram-lhe a quinta, quiseram matá-la,havia já gente ferida. E ele foi em seu auxílio e salvou-lhe a vida...
— Mais um romance — comentou o miliciano. — Estou a ver que esta
debandada geral foi inventada para casar as solteironas. Primeiro a Catiche,
agora, a princesa Bolkonskaia.
— Aqui para nós, tenho a impressão de que ela está um pouco derretida com o
jovem.
— Multa! Multa! Multa!
— Como hei-de eu dizer isto em russo?
Capítulo XVIII
Ao chegar a casa, Pedro encontrou dois editais de Rostoptchine afixados
naquele mesmo dia.
No primeiro dizia-se não ser verdade ele ter dado ordens proibindo que se
saísse da cidade, e que, pelo contrário, com grande satisfação veria afastarem-se
as senhoras e as esposas dos comerciantes. «Se houver menos medo, dar-se-á
menos à língua», acrescentava. «Mas que esse malfeitor não entrará em Moscovo
com a minha vida o garanto-» Estas palavras levaram Pedro a acreditar pela
primeira vez que os Franceses entrariam na cidade. O segundo edital dizia que o
quartel-general russo estava em Viazma, que o conde Wittgenstein derrotara os
Franceses e que, como havia muitos habitantes desejosos de se armar, punha um
carregamento de armas à disposição de todos no arsenal — sabres, pistolas,
espingardas —, que podiam ser adquiridas por pouco dinheiro. O tom dos editais já
nada tinha de divertido como os que até ai haviam servido de pretexto para os
gracejos de Tchiriguine. Pedro ficou pensativo. Era evidente que aquela grande
nuvem tormentosa que ele tanto desejava, embora com involuntário horror, essa
feia nuvem se aproximava. «Deverei alistar-me no serviço militar e partir para a
guerra ou esperar?», perguntava Pedro aos seus botões pela centésima vez.
Pegou num baralho de cartas que estava em cima de uma mesa e pôs-se a fazer
paciências.
«Se conseguir fazer esta paciência», dizia de si para consigo enquanto ia
embaralhando as cartas de olhos fitos no tecto, «se conseguir fazer esta paciência,
quer dizer... Que quer dizer?...»
Não teve tempo de concluir. Nesse mesmo instante a voz da princesa mais
velha ressoou à porta, perguntando se podia entrar. «Quer dizer que devo partir
para a guerra», concluiu Pedro.
— Entre, entre! – gritou.
Apenas a mais velha das princesas, a do longo busto e cara inexpressiva,continuava a viver sob o tecto de Bezukov. As duas mais novas tinham casado.
— Perdoe-me, meu primo, vir incomodá-lo — disse ela, num tom repreensivo e
cheio de emoção — Temos de decidir, finalmente, qualquer coisa. Que quer isto
dizer? Está toda a gente a sair de Moscovo e o povo revoltado. Que ficamos nós
aqui a fazer?
— Ao contrário, tudo parece caminhar muito bem, minha prima — tornou
Pedro, no tom faceto que habitualmente tomava ao falar-lhe, única maneira de
esconder o embaraço que lhe causava o papel de benfeitor que representava aos
olhos dela.
— Que diz? A caminhar bem? Onde foi descobrir isso? Ainda hoje me contou a
Várvara Ivanovna que as nossas tropas se têm portado muito bem. Sim, devemos
sentir-nos orgulhosos! Mas o pior é que o povo começa a revoltar-se, não quer
obedecer. Até a minha criada tem sido grosseira para comigo. Pouco falta para
que nos batam. Não se pode já passar pelas ruas. E o pior de tudo que os
Franceses estão aí a chegar, hoje ou amanhã. Porque esperamos nós? A única
coisa que lhe peço, meu primo, é que dê as suas ordens para me levarem a
Petersburgo. Sei muitíssimo bem que não sou pessoa para acatar o domínio de
Bonaparte.
— Que está a dizer, minha Prima? Quem lhe meteu tal coisa na cabeça? Ao
contrário...
— Não me submeterei ao seu Napoleão. Os outros que façam o que quiserem...
E se o senhor não atender ao que lhe peço...
— Que ideia! Vou dar ordens imediatamente.
A princesa parecia desconcertada por ter perdido aquela oportunidade de se
zangar com alguém. Deixou-se cair numa cadeira, enquanto entre dentes ia
murmurando fosse o que fosse.
— Muito mal a informaram — continuou Pedro. — Na cidade reina o sossego e
não há perigo algum. Olhe o que eu estava a ler... — Mostrou-lhe os editais. — Diz
aqui o conde que o inimigo não entrará em Moscovo, que o garante com a sua
vida.
— Olhe, esse seu conde! — exclamou a princesa, mal-humorada. — Esse seu
conde é um hipócrita, um miserável, que está farto de incitar o povo à revolta.
Pois não foi ele quem escreveu num dos seus estúpidos editais ser preciso agarrar
fosse quem fosse pela gola do casaco e metê-lo na cadeia? Que estupidez! E aquem assim proceder promete-lhe honra e glória. Ora aí tem o, resultado de tudo
isto. Várvara Ivanovna contou-me que a iam quase matando na rua por estar a
falar francês...
— Ora... Que diabo... Tomam as coisas demasiado a sério. — murmurou Pedro,
que prosseguia com a sua paciência.
Embora a tivesse conseguido fazer, Pedro não foi para a guerra, e ficou em
Moscovo, de dia para dia mais vazia, e sempre agitada pela mesma inquietação, a
mesma incerteza, num terror a que se misturava alegria, sempre na expectativa
de terríveis acontecimentos.
No dia seguinte, ao fim da tarde, a princesa abalou e Pedro recebeu a visita do
seu administrador, que lhe vinha dizer ser impossível reunir o dinheiro necessário
para equipar o regimento sem vender uma das suas propriedades. Aliás, teve o
cuidado de lhe fazer compreender que semelhantes fantasias acabariam por
arruiná-lo, tão certo como ele ser seu administrador. Ao ouvir isto, Pedro só a
muito custo pôde esconder o riso.
— Pois venda — disse-lhe ele. — Que havemos de fazer? Agora não posso
voltar atrás com a minha palavra.
Quanto piores a situação geral e os seus negócios pessoais, tanto maior a sua
alegria, tanto mais evidente a catástrofe que esperava para breve. Na cidade já
por assim dizer ninguém das suas relações restava. Júlia abalara, a princesa Maria
também. Dos seus íntimos, apenas os Rostov continuavam em Moscovo, mas Pedro
não mais os visitara.
Nesse dia, para se distrair, foi à aldeia de Vorontzovo ver um grande balão
imaginado pelo engenheiro Leppich com vista a aniquilar o inimigo. Iam
experimentá-lo na intenção de o largar no dia seguinte. O balão ainda não estava
pronto, mas Pedro veio a saber que o imperador mostrara desejos de o ver
montado. A tal respeito, Sua Majestade endereçara a carta seguinte ao conde
Rostoptchine:
Assim que Leppich estiver preparado, arranje-lhe uniu
tripulação de homens de confiança e inteligentes para a
barquinha do balão e mande um correio prevenir o general
Kutuzov. Já o pus ao corrente do assunto.
Faça o favor de recomendar a Leppich que repare nolocal onde descer pela primeira vez, para que se não engane
e não caia nas mãos do inimigo, É indispensável que os seus
movimentos sejam combinados previamente com o general-
chefe.
No regresso de Vorontzovo, ao passar na Praça Bolotnaia, Pedro viu uma
grande multidão junto de Lobnoie Miesto. Mandou parar o carro e apeou-se.
Tratava-se da flagelação de um cozinheiro francês acusado de espionagem. O
castigo terminara e o carrasco desatava do potro um homem corpulento, de suíças
ruivas, meias azuis e colete verde, que gemia dolorosamente. Outro delinquente,
magro e pálido, esperava a sua vez. Pelo tipo, também este era francês. Assustado
e lívido, Pedro abriu caminho por entre a multidão.
— Que foi? Que fizeram eles? — perguntou.
Mas tão absorvida estava no espectáculo a turba de funcionários, burgueses,
comerciantes, mulheres de golinhas e peliças, que ninguém lhe respondeu, O
rotundo homem levantou-se, franzindo o sobrolho, encolheu os ombros e
desejando, sem dúvida, mostrar firmeza vestiu o casaco, sem olhar para a
multidão que e rodeava, embora lhe tremessem os lábios e vertesse algumas
lágrimas, furioso consigo mesmo, como acontece aos homens de temperamento
sanguíneo. «A turba falava alto para afogar talvez um assomo de piedade que
ameaçava crescer», pensou Pedro.
«É o cozinheiro de um príncipe...»
— Então, mussiu? Pelo que se vê, o molho russo é um bocado picante para o
paladar francês... Pica-te na língua — disse um manga-de-alpaca, todo
encarquilhado, que estava ao lado de Pedro, quando viu o francês chorar.
E depois olhou em volta, como à procura de aplauso para o seu gracejo,
Algumas pessoas puseram-se a rir, outras continuaram a olhar, apavoradas, o
carrasco, que ia despindo o segundo sentenciado.
Pedro resfolgou, franziu as sobrancelhas e, dando de súbito meia volta,
regressou à sua carruagem, não sem continuar a resmungar qualquer coisa entre
dentes. Durante o resto do trajecto várias vezes estremeceu e soltou exclamações
— o que levou o cocheiro a perguntar-lhe:
— Que diz, patrão?
— Aonde vais? – gritou. — Pedi-o, quando viu que o cocheiro se dirigia àLubianka.
— Então não foi para casa do general governador que me mandou seguir? —
perguntou o cocheiro.
— Imbecil! Animal! — vociferou Pedro, insultando o cocheiro, coisa que
raramente lhe acontecia. — Disse-te que me levasses para casa. Depressa! —
«Tenho de partir hoje mesmo», disse com os seus botões.
A multidão em volta dos flagelados de. Lobnoie Miesto convencera-o
definitivamente a não permanecer por mais tempo em Moscovo, seguindo nesse
mesmo dia para o campo de batalha. Julgou mesmo que o dissera já ao cocheiro ou
que este devia conhecer as suas intenções mesmo sem nada lhe dizer.
Ao chegar a casa mandou chamar Evstafievitch, o cocheiro, um homem que
tudo conhecia, sabia tudo, e era conhecido de toda a gente em Moscovo. Deu-lhe
as suas instruções, dizendo-lhe que partia naquela mesma noite para Mojaisk, a
fim de se incorporar no exército, ordenando-lhe que mandassem para ali os seus
cavalos de sela. Não era coisa que se fizesse num só dia, por isso, a conselho de
Evstafievitch, resolveu adiar a partida para o dia seguinte de modo a que ele
tivesse tempo de lhe mandar preparar as mudas.
No dia 24 o tempo melhorou, depois de uma quadra de mau cariz, e nesse
mesmo dia, após o jantar. Pedro deixava Moscovo. Já noite, ao mudar de cavalos
em Perkuchkovo, soube que nessa mesma tarde se travara uma grande batalha,
Dizia-se que até a terra tremera com o canhoneio. Perguntando Pedro quem
ganhara a batalha, ninguém lhe soubera responder. Tratava-se da batalha de 24,
em Chevardino. De madrugada chegava a Mojaisk.
Todas as casas de Mojaisk estavam ocupadas pelas tropas e na estalagem
onde o aguardavam o escudeiro e o cocheiro não havia um único quarto: estava
tudo tomado pelos oficiais.
Tanto em Mojaisk como nas vizinhanças, por toda a parte, só havia militares.
A cada canto se viam cossacos, soldados de infantaria, de cavalaria, furgões,
armões e peças de artilharia. Pedro deu-se pressa em continuar avante e quanto
mais se afastava de Moscovo e se submergia naquele mar de tropas mais se sentia
invadido por um sentimento misto de inquietação e íntima satisfação, sentimento
novo para ele. Era qualquer coisa como o que sentira no Palácio Slobodski
aquando da visita do imperador. Tratava-se de tomar uma decisão e de se
sacrificar. Agora tinha a satisfação de compreender que tudo quanto em geralconstitui a felicidade do homem, as comodidades da existência, a riqueza, a própria
vida, não passavam de coisas absurdas, a que renunciava com grande satisfação,
quando comparadas com... Com quê, eis o que Pedro não sabia dizer; o certo é que
não procurava explicar claramente por quem ou porque sen(,ia aquela satisfação
no sacrifício. Não procurava saber porque se queria sacrificar, mas era de facto o
próprio sacrifício em si que lhe dava aquela satisfação íntima e inteiramente nova.
[XIX]
No dia 24 deu-se a batalha de Chevardino: a 25 não se disparou um único tiro
quer de um lado, quer do outro, e a 26 travou-se a batalha de Borodino.
Porque se travaram estas duas batalhas? Como se deram? Porque se deu,
particularmente, a batalha de Borodino? Tal batalha não tinha o menor sentido
nem para os Franceses nem para os Russos. O seu resultado imediato foi, e tinha
de ser, para os Russos mais um passo para a perda de Moscovo, a coisa que eles
mais receavam, para os Franceses passo idêntico para a perda total do seu
exército, o que eles também temiam acima de tudo. Este resultado era evidente;
mesmo então, e apesar disso, Napoleão ofereceu batalha e Kutuzov aceitou-a.
Se os grandes capitães se deixassem guiar por considerações razoáveis, dir-se-
ia evidente para Napoleão que, depois de se afastar mais de duas mil verstas das
suas bases, travar uma batalha com a possibilidade a todo o ponto verosímil de
perder a quarta parte do seu exército era como que caminhar para uma derrota
certa. Devia ser igualmente certo para Kutuzov que aceitar o combate, arriscando
também, por seu lado, a quarta parte das suas forças, era como que jogar a perda
de Moscovo. Para este, então era tão matemático como nas damas aquele que,
tendo no fim do jogo menos uma pedra do que o adversário, a joga deixando-a
comer e perdendo, portanto, a partida.
Se um dos adversários tem dezasseis pedras e outro catorze, este é apenas
uma oitava parte mais fraco do que aquele: porém, quando ambos tiverem
perdido, cada um à sua parte, treze pedras, o primeiro será três vezes mais forte
do que o segundo.
Antes de Borodino as forças russas, em relação às francesas, encontravam-seaproximadamente na proporção de cinco para seis e, depois da batalha, na de um
para dois, o que quer dizer que antes da batalha os Russos eram cem mil contra
cento e vinte mil, e depois dela cinquenta contra cem mil. E no entanto o
experimentado e inteligente Kutuzov aceitou o combate. E Napoleão, esse génio
militar, como então se dizia, aceitou a luta, que lhe custou um quarto do seu
exército e ainda mais lhe estendeu as linhas. Ainda que se diga que, tomando
Moscovo, pensava dar a campanha por finda, como acontecera depois da tomada
de Viena, não faltam provas que demonstrem o contrário, Os próprios
historiadores de Napoleão referem que depois de Smolensk ele queria deter-se,
ele próprio se dava conta do perigo da extensão das linhas, sabendo que a
ocupação de Moscovo não seria o fim da campanha, pois desde Smolensk que
verificava o estado em que encontravam as cidades que tomava e que nenhuma
resposta obtinha às suas reiteradas tentativas de entabular negociações.
Oferecendo e aceitando a batalha, tanto Kutuzov como Napoleão agiram
contrariamente ao livre-arbítrio e de forma insensata. No entanto, os
historiadores, consumados os factos, extraíram consequências complicadas e
especiosas sobre a visão e o génio dos generais, quando a verdade é que estes, no
meio dos instrumentos inconscientes dos acontecimentos dessa época, mostraram
ser os mais servis e os mais cegos.
Os antigos deixaram-nos modelos de poemas épicos em que os heróis são o
principal interesse da história, por isso não nos podemos resignar a que a história
do nosso tempo se lhe não assemelhe.
Para a pergunta — como se deram as batalhas de Borodino e a de Chevardino,
que a precedeu? — existe também uma explicação precisa que toda a gente
conhece, embora completamente falsa. Todos os historiadores, com efeito,
descrevem essa dupla batalha da seguinte maneira:
O exército russo, na sua retirada depois de Smolensk, teria procurado a melhor
posição para travar uma batalha geral e tê-la-ia encontrado em Borodino.
Os Russos teriam fortificado previamente essa posição à esquerda da estrada
de Moscovo a Smolensk e perpendicularmente, pouco mais ou menos, a esta
estrada, entre Borodino e Utitsa, exactamente no local onde a batalha se travou.
Ante esta posição, ter-se-ia estabelecido, para observar o inimigo, um posto
avançado na encosta de Chevardino. A 24, Napoleão teria assaltado esse posto
avançado e tê-lo-ia tomado: a 26 teria atacado o grosso do exército russo,concentrado no campo de Borodino.
Eis o que os historiadores dizem e tudo isto é absolutamente inexacto, coisa de
que se convencerá facilmente quem quer que se decida a estudar com cuidado o
acontecimento.
Os Russos não escolheram a melhor posição; pelo contrário, no decurso da sua
retirada menosprezaram muitas outras melhores do que a de Borodino. Não se
detiveram em qualquer delas porque Kutuzov não queria aceitar uma posição que
não fosse escolhida por ele, e depois porque a patriótica necessidade de dar
batalha ainda irão se concretizara com suficiente força e ainda porque
Miloradovitch ali não estava com a sua milícia, além de outras razões impossíveis
de enumerar. O facto é que as outras posições eram mais fortes, e que a de
Borodino, onde se travou a batalha, não só não era a melhor como nem sequer era
uma posição, visto não passar de um lugar como qualquer outro marcado ao acaso
com um alfinete no mapa do império moscovita,
Os Russos não só não fortificaram a posição de Borodino à esquerda e
perpendicularmente à estrada, quer dizer, no local onde a batalha se travou, como
antes de 25 de Agosto nunca tinham pensado que se pudesse vir a dar um
recontro naquele local. E a prova está, em primeiro lugar, que não só a 25 não
havia ali qualquer fortificação, mas até mesmo as que se iniciaram a 25 não
estavam concluídas a 26, e, em segundo lugar, na própria situação do reduto de
Chevardino. Este reduto, na vanguarda da posição onde os exércitos se
defrontaram, era inteiramente destituído de sentido, Porque foi esse reduto mais
fortificado que todos os outros pontos? E porque é que, para defendê-lo, se resistiu
no dia 24 até alta noite, envidando tantos esforços e perdendo seis mil homens?
Para observar o inimigo, uma patrulha de cossacos chegava perfeitamente. Em
terceiro lugar, a prova de que a posição onde se travou a batalha não estava
prevista e que o reduto de Chevardino não era o seu posto avançado é que
Barclay de Tolly e Bagration estiveram convencidos até 25 de que o reduto de
Chevardino constituía o flanco esquerdo da posição, e que o próprio Kutuzov, no
seu relatório, redigido quando ainda frescas as impressões da batalha, lhe chama o
flanco esquerdo da posição. Muito mais tarde, ao descrever-se a batalha de
Borodino, naturalmente para justificar os erros do general-chefe, infalível custasse
o que custasse, emitiu-se a afirmação inexacta e estranha de que o reduto de
Chevardino era um posto avançado, quando na verdade não passava de umaposição fortificada qualquer do flanco esquerdo, e afirmando-se também que os
Russos tinham aceitado a batalha numa posição fortificada e escolhida
previamente, quando a verdade é que essa batalha se travou num local de todo
imprevisto e por assim dizei —, em fortificações.
Eis como em verdade se passaram as coisas: escolheu-se um ponto no Kolotcha,
que corta a estrada real não em ângulo recto, mas em ângulo agudo, de tal sorte
que o flanco esquerdo estava em Chevardino, o direito nas imediações da aldeia
de Novoie e o centro em Borodino, na confluência dos rios Kolotcha e Voina. Esta
posição, protegida pelo no Kolotcha, era, evidentemente, a de um exército que se
propunha deter o inimigo em marcha ao longo da estrada de Smolensk a Moscovo:
eis qualquer coisa de evidente para quem quer que examine o campo de batalha
esquecendo-se de como os factos se passaram.
Napoleão, ao dirigir-se, no dia 24, para Valuieva, não viu, segundo dizem os
historiadores, a posição ocupada pelos Russos entre Utitsa e Borodino (não podia
vê-la porque ela não existia). Tão-pouco viu a guarda avançada do exército, e só ao
perseguir a retaguarda tropeçou no flanco esquerdo dos Russos, isto é, no reduto
de Chevardino, e que, inesperadamente para os Russos, fez passar as suas tropas
para a outra margem de Kolotcha. E então os Russos, que não tinham podido
travar uma batalha geral, fizeram obliquar a ala esquerda da posição que
pensavam ocupar para se estabelecerem numa posição nem prevista nem
fortificada. Ao atravessar para a margem esquerda do no Kolotcha, portanto para
a esquerda da estrada, Napoleão transportara a futura batalha do flanco direito
para o esquerdo dos Russos, para a planície entre Utitsa. Semionovskoie e
Borodino, planície não mais vantajosa como posição que qualquer outra, e ali se
travou a batalha de 26. A traços largos, o plano da batalha, tal como a
descreveram e tal como ela realmente se travou, seria o indicado na página
seguinte.
Se Napoleão não tivesse atravessado o no Kolotcha no dia 24 à noite e não
houvesse dado ordens para não atacar o reduto nessa mesma noite, adiando o
ataque para o dia seguinte, seríamos obrigados a reconhecer que o reduto era o
flanco esquerdo da posição russa e a batalha ter-se-ia travado como os Russos
esperavam. Neste caso os Russos teriam defendido mais encarniçadamente ainda o
reduto de Chevardino, seu flanco esquerdo, atacando Napoleão no centro e à
direita, e no dia 24 travar-se-ia a batalha geral na posição fortificada e prevista.Mas como o ataque ao flanco esquerdo russo se verificou à noite, em consequência
da retirada da retaguarda russa, isto é, imediatamente após a batalha de
Gridnievo, e como os generais russos não puderam ou não quiseram desencadear
no dia 24 à noite a batalha geral, a primeira e parte principal da batalha de
Borodino estava perdida desde aquele mesmo dia, implicando, forçosamente, a
derrota do dia 26.
Depois da perda do reduto de Chevardino, na manhã de 25, os Russos viram-se
privados do ponto de apoio no flanco esquerdo, sendo forçados a restabelecer a
ala esquerda e a fortificá-la à pressa, fosse como fosse.
Mas o facto de as tropas russas no dia 28 de Agosto se encontrarem em
entrincheiramentos insuficientes nada era comparado com o facto de os generais
russos não terem atribuído a devida importância à perda da posição do flanco
esquerdo, ou seja, a mudança da orientação da batalha da esquerda para a
direita, deixando que as suas linhas continuassem a estender-se da aldeia de
Novoie a Utitsa, e viram-se obrigados à transferência de tropas da direita para a
esquerda durante o combate. E foi assim que os Russos, em plena batalha, só
puderam opor à totalidade das tropas francesas a sua ala esquerda, isto é, forças
duas vezes mais fracas. Quanto aos ataques de Poniatowski a Utitsa e de Uvarov
ao flanco direito dos Franceses, eis incidentes inteiramente alheios à marcha geral
das operações.
E foi assim que a batalha de Borodino se travou em circunstâncias
completamente diferentes daquelas por que foi descrita na intenção de ocultar os
erros dos generais, e isso apenas serviu para diminuir a glória do exército e do
povo russos.
Essa batalha não se travou numa posição escolhida e fortificada com forças
apenas um pouco mais fracas do lado russo; foi aceite, em consequência da perda
de Chevardino, numa planície aberta e quase sem fortificações, com forças
duplamente mais fracas que as dos Franceses. Isto é, em condições tais teria sido
impossível a essas tropas não já baterem-se durante dez horas seguidas e num
combate indeciso, mas até mesmo aguentarem-se três horas que fosse sem serem
vítimas de um desastre completo e sem virem a ser completamente desbaratadas.
[XX]
Na manhã do dia 25, Pedro saiu de Mojaisk. Para descer o empinado e
tortuoso caminho que levava da cidade à catedral, situada um pouco à direita, e
onde se celebrava um serviço religioso acompanhado do toque de sinos, apeou-se
da sua carruagem e fez o percurso a, pé. Atrás dele vinha um regimento de
cavalaria precedido dos seus cantores, um comboio de viaturas com feridos do
recontro da véspera caminhava em sentido contrário. Os camponeses que o
conduziam, entre gritos e chicotadas, corriam ladeando as carroças. Por cima das
pedras espalhadas no caminho à guisa de pavimento, as viaturas, cada uma delas
com três ou quatro feridos, rins sentados outros estendidos, lá iam cambaleando
ladeira acima. Lá dentro, os feridos, pernas e, braços entrapados, pálidos, de lábios
apertados e sobrancelhas franzidas, fincavam-se nos taipais, atirados uns contra os
outros. Quase todos ficavam a olhar, numa curiosidade entre infantil e ingénua, o
chapéu branco e o fraque verde de Pedro.
O cocheiro de Bezukov vociferava, colérico, contra os postilhões do comboio,
exigindo-lhes que formassem fila de um só lado da estrada. Cantando, o regimento
de cavalaria que descia a encosta, ao cruzar com a carruagem de Pedi-o,
interceptou-lhe o caminho. Pedro parou, comprimindo-se contra o talude que
marginava o caminho talhado na encosta. Tão abrupto era o local que o sol ainda
não atingira a estrada profunda.
Fazia frio e estava húmido. Lá no alto, por cima da sua cabeça, brilhava uma
bela manhã de Agosto e um jucundo carrilhão ressoava pelo espaço além. Uma das
viaturas cheia de feridos parou à beira da, estrada, mesmo ao lado de Pedro. O
postilhão de laptis, acorreu, ofegante, atirou uma pedra para debaixo das rodas
traseiras e pôs-se a ajustar os arneses do cavalicoque.
Um dos feridos, soldado idoso, com um braço ao peito que seguia a pé, atrás do
carro, agarrou-se a ele com a mão sã e voltou-se para Pedro.
— Que há, paisano? Vão deixar-nos para aqui a criar bolor ou vamos para
Moscovo? — disse ele.
Pedro tão absorto estava nos seus pensamentos que não compreendeu a
pergunta. Ora olhava para o regimento de cavalaria agora junto do comboio ora
para a viatura que se detivera ao pé dele e onde jaziam três feridos, dois sentados
e um prostrado, e afigurava-se-lhe que aqueles desgraçados lhe davam a soluçãodo problema que o preocupava.
Um dos que estavam sentados devia ter sido atingido na cara, Tinha o crânio
completamente envolto em trapos e uma das faces inchada a tal ponto que
parecia a cabeça de um recém-nascido. O nariz e a boca estavam disformes.
Relanceou o olhar para a igreja e persignou-se. O outro, um recruta jovem, louro e
de pele branca, que dir-se-ia não ter já gota de sangue na cara afilada, olhava
para Pedro com um sorriso bondoso desenhado nos lábios. O terceiro estava
deitado de bruços e não se lhe podia ver a cara. Os cantores a cavalo passavam
nesse momento diante da viatura parada.
«Oh! Liquidada... cabeça de ouriço-cacheiro... para o estrangeiro é o
caminho...» Destacavam bem nitidamente as palavras de uma canção de soldados.
Como a responder-lhes, mas num tom de uma jovialidade muito diferente,
repicavam lá no alto as notas metálicas do carrilhão. E alegres também, mas ainda
de outra alegria, os raios ardentes do Sol inundavam os píncaros dos montes que
coroavam o outro lado da estrada.
Entretanto, do lado em que estava Pedro, junto da viatura com os feridos e o
cavalicoque extenuado, continuava escuro, húmido e triste.
O soldado da cara inchada olhou furioso para os cantores.
— Olhem para eles, para estes presumidos — exclamou mal-humorado.
— Hoje em dia já lhes não bastam os soldados, recrutaram também os
camponeses! Guerra com eles! — murmurou com um sorriso triste o soldado
estacionado junto da viatura, dirigindo-se a Pedro. — Nesta altura tudo lhes
serve. Toda a gente lhes serve! Moscovo... Não se fala doutra coisa. E cada qual
que se governe! É o que eles querem.
Apesar da pouca nitidez destas palavras, Pedro compreendeu o que elas
queriam dizer e acenou com a cabeça, aprovador.
A estrada ficou desimpedida. Pedro voltou a descer a encosta e subiu para a
carruagem disposto a continuar o seu caminho ia olhando de quando em quando
ora para um ora pura outro lado da estrada. à procura de alguma cara conhecida,
mas apenas se lhe deparavam militares desconhecidos, de diversas armas, que
todos, por igual, pasmavam diante do seu chapéu branco e do seu fraque verde.
Umas quatro verstas andadas viu, finalmente, alguém conhecido, a quem
tratou de interpelar com grande satisfação. Era, um médico, militar de alta
patente, que vinha na sua britctka, em sentido contrário ao da carruagem dePedro. Acompanhava-o um médico jovem. Ao reconhecer o viajante, fez sinal ao
cossaco que lhe servia de cocheiro para que se detivesse.
— Conde! Excelência! Que faz o senhor aqui? — inquiriu o médico.
— Queria ver isto...
— Sim, sim, tem muito que ver...
Pedro apeou-se do seu carro e pôs-se a contar-lhe como resolvera assistir à
batalha.
O médico aconselhou-o a que se dirigisse directamente ao Sereníssimo.
— Só Deus sabe onde o senhor estaria bem durante a batalha sem ser
reconhecido — disse ele, trocando um olhar com o seu jovem companheiro. — No
entanto, o Sereníssimo conhece-o e estou certo de que o aconselhará de bom
grado. Sim, é o que tem a fazer, meu caro.
O médico tinha um ar fatigado e parecia ter pressa.
— Então, acha? E também lhe queria perguntar onde fica a nossa posição —
retorquiu Pedro.
— A nossa posição? — replicou o médico. — Isso não é da, minha competência.
Depois de passar Tatarinovo verá, andam aí a remover muita terra. Suba ao
cabeço. Daí poderá ver qualquer coisa.
— Então pode ver-se dali?... Se o senhor...
O médico interrompeu-o e apontou para a britchka.
— Acompanhá-lo-ia com gosto, mas, Deus meu!, estou até aqui — disse, com a
mão na garganta. — Vou, numa carreira, ao encontro do comandante do corpo. E
o senhor sabe como estas coisas são entre nós, conde... Amanhã travar-se-á a
batalha. Em cem mil combatentes temos de contar muito por baixo com vinte mil
feridos. E não temos macas, nem camas de campanha, nem enfermeiros, nem
médicos que cheguem para seis mil. Contamos com dez mil viaturas, mas ainda é
preciso mais alguma coisa. Arranja-te como puderes!
E Pedro, então, pensou que de entre aqueles milhares de homens na plenitude
da vida, de perfeita saúde, jovens e velhos, que ao passar se punham a observar-
lhe o chapéu com galhofeira surpresa, pelo menos vinte mil estavam votados ao
sofrimento e à morte e muito bem podia acontecer que a esse número
pertencessem exactamente aqueles que acabava de ver.
«Talvez morram amanhã mesmo; como podem eles pensar noutra coisa que
não seja a morte?» E de súbito, mercê de uma associação misteriosa de ideias, viudiante de si a encosta de Moiaisk e as viaturas carregadas de feridos e ouviu o
som dos sinos e entreviu os raios oblíquos do Sol e tornou a ouvir as canções dos
cavaleiros.
«O regimento de cavalaria caminha para o combate e os soldados cruzam o
comboio dos feridos e nem por um segundo lhes vem à cabeça o que os espera e ao
passarem ao lado deles piscam o olho a este e àquele. E, embora vinte mil vão ao
encontro da morte, o meu chapéu diverte-os! Que estranho!», dizia Pedro de, si
para consigo enquanto seguia direito a Tatarinovo.
Junto de uma casa senhorial, à esquerda da estrada, aglomeravam-se
carruagens, galeras e uma chusma de impedidos e sentinelas. Era ali que estava
instalado o Sereníssimo. Mas à hora em que Pedro chegava, tanto ele como quase
todo o seu estado-maior encontravam-se ausentes. Assistiam todos ao serviço
religioso. Pedro prosseguiu na direcção da Gorki.
Ao chegar ao alto da encosta, e quando atravessava a ruazinha da aldeia, viu
pela primeira vez camponeses milicianos, de cruz na barretina e camisa branca,
que falavam alto e riam, cobertos de suor, em grande animação, cavando à direita
da estrada, num cabeço coberto de relva.
Uns abriam trincheiras à picareta, outros acarretavam terra em carrinhos de
mão por cima de pranchas assentes no solo e outros ainda nada faziam.
Dois oficiais postados no cabeço dirigiam os trabalhos. Ao veios camponeses,
muito contentes na sua nova profissão de soldados, Pedro lembrou-se dos feridos
de Mojaisk e compreendeu então o que queriam dizer as palavras do militar.
«Toda a gente lhes serve!» E a vista daqueles homens barbados, trabalhando no
campo de batalha, com as suas botifarras estranhas, as nucas reluzentes de suor,
os colarinhos desabotoados, com as ossudas clavículas à mostra, produziu em
Pedro uma impressão mais forte que tudo o que observara e ouvira até então
sobre a solenidade v a importância do momento.
[XXI]
Pedro apeou-se da carruagem, e, passando diante dos milicianos entregues à
sua tarefa, trepou ao cabeço, donde, na opinião do médico, podia ver-se o campode batalha.
Eram onze horas da manhã. O Sol, um pouco à esquerda e na retaguarda de
Pedro, através do ar puro e sereno. Iluminava vivamente o imenso panorama
acidentado que diante dele se estendia como um grande anfiteatro.
A esquerda, e cortando esse anfiteatro, serpenteava, subindo, grande estrada
de Smolensk que atravessava a aldeia, com a sua branca igreja, situada junto do
cerro, a quinhentos passos dele, Era Borodino. A estrada, depois da aldeia,
transpunha uma ponte e, através de uma série de descidas e subidas,
encaminhava-se, serpeando, para o povoado de Valuieva, que se via a umas seis
verstas de distância, agora nas mãos de Napoleão. Depois de Valuieva a estrada
perdia-se no meio de uma floresta que amarelecia no horizonte. Nesta mata de
álamos e abetos, à direita da estrada, brilhava, ao sol, a cruz e o campanário
distantes do Mosteiro de Kolotcha. Nessa longínqua linha azulada, à direita e à
esquerda da floresta, surgiam, aqui e ali, o fumo das fogueiras dos acampamentos
e a massa indistinta das tropas russas e francesas. À direita, ao longo dos rios
Kolotcha e Moskva, o terreno era entrecortado de barrancos e colinas. Ao longe,
nesses barrancos, descobriam-se as aldeias de Bezubovo e de Zakarino. A esquerda
a região era menos acidentada e viam-se aí searas de trigo e as ruínas fumegantes
da aldeia de Semionovskoie, que fora incendiada.
Tudo o que Pedro dali descobria, quer à direita, quer à esquerda, era tão vago
que nem de longe correspondia ao que ele esperava. Não via em parte alguma o
campo de batalha com que contava, mas apenas campos lavrados, clareiras,
tropas, florestas, fogueiras de acampamentos, aldeias, cerros, rios e, por mais que
procurasse com os olhos, não conseguia distinguir as tropas russas das francesas
naquela paisagem buliçosa.
«Tenho de perguntar a uma pessoa competente», dizia de si para consigo, e
dirigiu-se a um oficial que, cheio de curiosidade, examinava a sua corpulenta figura
nada marcial.
— Quer ter a bondade de me dizer — principiou ele — que aldeia é aquela ali
em frente?
— Burdino, não é? — replicou o oficial, voltando-se para um dos seus
camaradas.
— Borodino — corrigiu o outro.
O oficial, que pelos vistos parecia contentíssimo daquela oportunidade de dar àlíngua, aproximou-se de Pedro.
— Ali são os nossos? — perguntou Pedro.
— Sim, e lá adiante, mais longe, os Franceses — tornou o oficial. — Lá adiante,
lá muito adiante, está a ver?
— Onde? Onde?
— Vêem-se perfeitamente à vista desarmada. Lá adiante.
O oficial apontou para os penachos de fumo que se descobriam à esquerda,
para lá do rio, enquanto se lhe pintava no rosto uma expressão preocupada e
grave, expressão que Pedro já notara em muitos outros rostos.
— Ah!, são os Franceses! E lá adiante? Pedro apontava para um monte, à
esquerda, em volta do qual se viam tropas.
— São os nossos.
— Ah!, os nossos! E lá, ali, mais adiante — apontou para outro cabeço mais
afastado, com uma grande árvore, junto de um povoado assente numa dobra do
terreno: ao lado subia no ai, fumo dos bivaques e viam-se manchas escuras no solo.
— Ali também é «ele» — disse o oficial. Tratava-se do reduto de Chevardino.
— Ontem éramos nós quem ali estava e agora é «ele».
— Então onde fica a nossa posição?
— A nossa posição! — exclamou o oficial, com um sorriso satisfeito. — Posso
descrever-lha com todos os pormenores, pois fui eu quem levantou quase todas as
fortificações. Pois, o nosso centro fica ali, em Borodino, lá adiante. — Apontava
para a aldeia da igreja branca, em frente deles. — Ali é o vau do Kolotcha. Vê, lá
adiante, onde se descobrem, ainda no horizonte, aquelas medas de palha? Ali fica
a ponte. É o nosso centro. O nosso flanco direito fica por aqui. — E apontava uma
fractura do terreno, escarpada e profunda, na extrema direita.— Acolá é o no
Moskva e ali construímos três redutos fortíssimos. O nosso flanco esquerdo... —
Neste ponto o oficial calou-se. — Sabe?, é difícil de explicar... Ontem o nosso flanco
esquerdo estava ali, em Chevardino, lá adiante, onde se divisa um carvalho. Mas
agora retirámos para a retaguarda a ala esquerda. Afirme-se naquela aldeia e
naquela fumarada. É Semionovskoie. E além — acrescentou, apontando para o
cabeço de Raievski.— Mas não é natural que a batalha venha a travar-se ali. O
inimigo fez deslocar para aqui as suas tropas por manha. É de esperar que trate de
nos envolver pela direita, em direcção ao Moskva. Mas, seja como for, o certo é
que amanhã muitos dos nossos ficarão ali!Um velho sargento, que se aproximara enquanto o oficial falava, esperava, em
silêncio, que o superior acabasse, mas quando ele chegou a este ponto,
naturalmente pouco satisfeito com o que ouvia, interrompeu o oficial para dizer,
bruscamente:
— É preciso ir buscar os cestões.
O oficial pareceu perturbado, como se compreendesse que, se podia pensar que
no dia seguinte faltariam muitos dos seus camaradas, não lhe era dado falar no
caso.
— Bem, manda outra vez a 3ª companhia — replicou o oficial imediatamente.
— E o senhor, quem é o senhor? Não é médico?
— Não, estou aqui apenas por curiosidade — retorquiu Pedro. F pôs-se de novo
a descer o cabeço, tornando a passar diante dos milicianos.
— Oh, malditos! — exclamou o oficial, que o seguia, enquanto tapava o nariz, e
apressava o passo.
— Aí estão eles! Trazem-na, lá vêm... Lá estão... Daqui a bocado estão aí... —
exclamaram, ao mesmo tempo, várias vozes, e oficiais, soldados e milicianos
correram para a estrada.
Uma procissão, que saíra da Igreja de Borodino, subia a encosta. A frente, pela
estrada poeirenta, marchava alinhada a infantaria, de barretinas na mão e
espingardas de coronha ao alto. Lá para trás ouviam-se cânticos religiosos.
Soldados e milicianos passaram por Pedro, de cabeça descoberta, ao encontro
dos que chegavam.
— Trazem a nossa Santa Mãe! A nossa protectora!... A Virgem Iverskaia.
— Não. É a Santíssima Virgem de Smolensk — corrigiu outro.
Tanto os milicianos que estavam na aldeia como os que trabalhavam na
bateria, largando as pás, correram ao encontro da procissão. Atrás do batalhão
seguia a cleresia de casula; o padre, ia velhinho, de solidéu, acompanhado dos
acólitos e dos chantres.
Atrás deles vinha um grupo de soldados e de oficiais que carregavam um
grande ícone, de rosto escuro, todo paramentado. Era o ícone que viera de
Smolensk e acompanhava agora o exército. Em volta dele, por todos os lados,
caminhava, corria, prosternava-se uma chusma de soldados de cabeça descoberta.
No alto da colina o ícone estacou. Os homens que o traziam aos ombros
revezaram-se, os acólitos tornaram a acender os incensórios e deu-se começo auma cerimónia religiosa de acção de graças, Os raios ardentes do Sol dardejavam,
mas os cabelos das cabeças descobertas e as fitas que enfeitavam a imagem
agitavam-se à brisa fresca. Os cânticos ressoavam debilmente na vasta curva dos
céus. Grande multidão de oficiais, soldados, milicianos, todos de cabeça
descoberta, rodeava a imagem. Atrás do padre e do acólito, num espaço livre,
viam-se os oficiais de alta patente. Um general calvo, com a cruz de S. Jorge ao
peito, mesmo atrás do sacerdote, sem se persignar, o que queria dizer que era
alemão, esperava, pacientemente, que as orações terminassem, sentindo-se
obrigado a assistir a elas, pois reanimavam e patriotismo do povo russo. Outro
general, que assumira uma atitude marcial, ia fazendo sucessivos sinais da cruz,
enquanto olhava para um lado e para o outro. Pedro, no meio dos camponeses,
identificou entre aquelas altas personalidades alguns conhecidos seus, mas não
lhes prestou a mínima atenção, todo entregue a observar a grave expressão dos
soldados e dos milicianos, de olhos fitos na imagem numa espécie de ávida
exaltação. Quando os chantres, fatigados, principiaram a entoar arrastadamente
— era a vigésima vez que o faziam — a invocação «Santa Mãe de Deus, salva os
Teus escravos da desgraça», e o padre e o diácono repetiram: «Todos a Ti
acorremos como a um muro inquebrantável, rogando-Te que Te amerceies de
nós», em todos os rostos se via essa mesma expressão, essa mesma
compenetração na solenidade do momento, por ele observada já na encosta de
Mojaisk e em muitas pessoas com quem se cruzara nessa manhã. As cabeças
pendiam cada vez mais para o chão, os cabelos esvoaçavam ao vento, ouviam-se
profundos suspiros e os constantes sinais da cruz ecoavam na arca do peito dos
fiéis.
De súbito, a multidão que rodeava o ícone afastou-se, arrastando Pedro.
Alguém se aproximava, sem dúvida da mais alta categoria — a avaliar pela pressa
com que todos abriam alas.
Era Kutuzov, que acabava de inspeccionar a posição. De regresso a Tatarinovo,
quisera assistir àquela cerimónia religiosa. Pedro reconheceu-o imediatamente
graças à sua figura particular, muito diferente de todas as outras.
De comprido redingote, que lhe envolvia a enorme corpulência, as costas
arqueadas, a cabeça branca descoberta, o olho vazado na face de carnes flácidas, o
passo balanceado e trôpego, chegou e deteve-se precisamente atrás do padre.
Persignou-se maquinalmente, baixou-se quase até tocar no solo com a mão e,depois de soltar um profundo suspiro, deixou pender sobre o peito a cabeça
branca. Bennigsen e a sua comitiva seguiam-no. Apesar da presença do general-
chefe, que desde logo chamara a atenção de todos os oficiais superiores, os
soldados e os milicianos, sem olharem para ele, continuavam a rezar.
Quando a cerimónia religiosa acabou, Kutuzov aproximou-se do ícone, deixou-se
cair pesadamente sobre os joelhos, prosternou-se quase até ao chão e de novo
tentou pôr-se de pé. Levou tempo a consegui-lo, mercê da sua corpulência e da
fraqueza em que estava. Os esforços que fazia para se erguer comunicavam-lhe à
cabeça branca movimentos sacudidos. Conseguiu levantar-se finalmente, e depois
de beijar o ícone, estendendo os lábios num bochecho infantil e ingénuo, de novo
se inclinou tocando a terra com a mão. Todos os generais fizeram o mesmo,
imitando-o, depois foram os oficiais e em seguida, acotovelando-se e atropelando-
se uns aos outros, no meio de exclamações e expressões comovidas, chegou a vez
dos soldados e dos milicianos.
[XXII]
Surgido pela multidão, que o atirava de um lado para o outro. Pedro ia
olhando à sua roda.
Conde Pedro Kirillitch, que está aqui a fazer? — exclamou uma voz.
Pedro voltou-se. Bóris Drubetskoi, sacudindo os joelhos que sujara no chão,
naturalmente ao prosternar-se diante do ícone. Aproximou-se dele, sorrindo. A
elegância da sua farda não excluía o ar marcial do militar em campanha. Vestia
uma longa túnica tinha um pingalim a tiracolo, tal qual como Kutuzov, Entretanto
o general-chefe regressara à aldeia e sentara-se à sombra da casa mais próxima,
num banco que um cossaco trouxera a pressa e outro cossaco cobrira com um
tapete. Rodeava-o uma brilhante e imensa comitiva.
O ícone fora levado para mais longe aos ombros da multidão. Pedro detivera-
se a uns trinta passos de Kutuzov a conversar com Bóris.
O conde Bezkikov expunha-lhe o seu desejo de assistir à batalha e examinar a
posição.
— É o que o senhor vai fazer — disse-lhe ele. — Eu faço-lhe as honras docampo. Verá, tudo melhor dali: acolá está também o conde Bennigsen. Estou
adstrito ao seu quartel. Preveni-lo-ei, E se quiser percorrer a posição, irei consigo.
Vamos agora precisamente ao flanco esquerdo, Não tardamos, e, queira aceitar o
meti tecto para passar a noite, jogaremos uma partida. Conhece não é verdade,
Dimitri Sergueievitch? Está aqui instalado — acrescentou, apontando para a
terceira casa de Gorki.
— O que eu gostava de ver era o flanco direito. Dizem que é, muito forte —
observou Pedro. — Gostava de percorrer toda a posição a partir do Moskva.
— Está bem, isso pode ser depois, o principal é o flanco esquerdo...
— Sim, sim. E onde fica o regimento do príncipe Bolkonski, poderia indicar-me
a sua posição?
— O de André Nikolaievitch? Vamos passar diante dele, levá-lo-ei lá.
— Que me diz do flanco esquerdo? — perguntou Pedro.
— Para lhe falar verdade, entre nós, o nosso flanco esquerdo está numa triste
situação — disse Bóris, baixando a voz, confidencialmente. — O conde Bennigsen
esperava uma coisa completamente diferente. Propôs que se fortificasse aquele
cabeço, lá adiante. Era outra coisa. Mas — acrescentou, encolhendo os ombros —
o Sereníssimo não quis, ou fizeram-no mudar de ideias. Porque...
E Bóris não concluiu a frase. Nesse mesmo instante aproximava-se Kaissarov, o
ajudante-de-campo de Kutuzov.
— Eh, Paissi Sergueievitch! — exclamou ele, dirigindo-se ao recém-chegado
com a maior desenvoltura.— Estou tratando de explicar ao conde a nossa posição.
É assombroso como o Sereníssimo pode, prever com tamanha exactidão as
intenções dos Franceses.
— Refere-se ao flanco esquerdo? — disse Kaissarov.
— Sim, sim, precisamente. O nosso flanco esquerdo está agora fortíssimo.
Embora Kutuzov tivesse afastado do seu estado-maior todos os inúteis, Bóris
conseguira manter-se no quartel-general, tornando-se adido ao conde Bennigsen.
Este, como todos os generais com que ele servira, considerava Drubetskoi homem
de grande valor
No alto comando do exército haviam-se formado dois partidos bem definidos: o
de Kutuzov e o de Bennigsen, chefe do estado-maior. Bóris pertencia a este último
partido e, embora mostrasse diante de Kutuzov um respeito servil pela sua
pessoa, não perdia a oportunidade de fazei, compreender que o velho não passamde um medíocre e que era Bennigsen quem tinha o supremo comando de tudo.
Chegava agora o momento decisivo da batalha que devia ou aniquilar Kutuzov,
que transmitiria a autoridade a Bennigsen, ou então, no caso de Kutuzov ganhar a
bata-lha, dar a entender que fora Bennigsen quem tudo fizera. Em qualquer caso,
no dia seguinte distribuir-se-iam importantes distinções e haveria numerosas
promoções. E não era outra a razão por que Bóris nesse dia estava tão agitado.
Depois de Kaissarov, outros conhecidos de Pedro vieram ao seu encontro, e de
tal modo o assediaram que muito dificilmente podia responder a todas as
perguntas que lhe faziam sobre Moscovo ou então dar ouvidos a todas as histórias
que lhe contavam. Em todos os rostos havia emoção e desassossego, Mas a Pedro
afigurava-se-lhe que esta, emoção era geralmente provocada por motivos de
interesse puramente pessoal e não pode deixar de se lembrar, a propósito disto,
da exaltação que vira noutros rostos, a qual não provinha do roais pequeno
interesse pessoal, mas do interesse geral relacionado com uma questão de vida ou
de morte. Kutuzov acabou por descobrir a rotunda pessoa de Pedro e o grupo que
o cercava.
— Chamem-no — ordenou.
Um ajudante-de-campo transmitiu o desejo do Sereníssimo. Pedro dirigiu-se
para o banco do general. Um miliciano, soldado raso, adiantou-se-lhe, porém. Era
Dolokov.
— Como é que este indivíduo se encontra aqui? — perguntou Pedro.
— Tipos como este têm sempre maneira de meter o nariz em toda a parte! —
responderam-lhe. — Foi degradado. Tem de se fazer valer. Parece que apresentou
diversos projectos e que de noite se introduziu rias linhas inimigas... Digam o que
disserem, é um valente!...
Pedro, descobrindo-se, saudou Kutuzov respeitosamente.
— Pensei — ia dizendo, entretanto. Dolokov — que, se expusesse este projecto
a Sua Excelência, me poderia mandar embora ou então que esta história já era
sabida... De maneira que não me consideraria diminuído se...
— Bem! Bem!
— E se tiver razão, prestarei assim um serviço à minha pátria, pela qual estou
pronto a dar a vida.
— Bem, muito bem!
— E se Sua Excelência precisar de um homem sem medo de dar o corpo aomanifesto, peço-lhe que se lembre de mim... Talvez possa vir a ser útil a Sua
Excelência.
— Bem... Muito bem... — repetia Kutuzov mirando Pedro, como em
confidência, com o seu olho risonho.
Nesse momento, Bóris, habilíssimo cortesão, aproximou-se para estar nas
proximidades de Bezukov, na vizinhança imediata do grande chefe, como se fosse a
coisa mais natural deste mundo, e, em voz baixa e como se prosseguisse uma
conversa interrompida, disse a Pedro:
— Os milicianos vestiram camisas brancas, muito limpas, para se prepararem
para a morte. Que heroísmo, conde!
Bóris pronunciara estas palavras para ser ouvido, evidentemente, pelo
Sereníssimo. Sabia que Kutuzov prestava ouvidos a todos estes pormenores, e na
verdade voltou-se para ele:
— Que estás tu a dizer da milícia? — perguntou. — Excelência, para se
prepararem para o dia de amanhã, para morte, vestiram camisas brancas.
— Oh!... Que povo admirável, que povo incomparável! — exclamou o general-
chefe, fechando os olhos e abanando a cabeça. Que povo incomparável! — repetiu,
suspirando.
— Com que então quer sentir o cheiro da pólvora? — acrescentou, dirigindo-se
a Pedro. — Sim, realmente, é um cheiro agradável. Tenho a honra de ser um
adorador da senhora sua mulher. Como está ela? O meu acampamento está à sua
disposição.
E, como amiúde acontece com os velhos, Kutuzov olhou em torno de si,
preocupado, como se já não se recordasse do que queria dizer ou fazer.
Lembrando-se, naturalmente, do que procurava, fez um sinal a André
Sergueievitch Kaissarov, irmão do seu ajudante-de-campo.
— Como são então esses versos de Marin, como são eles? Sim, os que ele
escreveu sobre Guerakov: «Serás mestre no teu regimento...» Recita lá um
bocado. E Kutuzov preparava-se para uma boa risada.
Kaissarov fez-lhe a vontade... Kutuzov, divertidíssimo, acenava com a cabeça a
compasso.
Quando Pedro se afastou do general-chefe. Dolokov veio ao seu encontro e
travou-lhe do braço.
— Tenho muito prazer em encontrá-lo aqui, conde — disse-lhe em voz alta,com o ar decidido e solene que lhe era natural e sem se preocupar com a presença
de estranhos. — Na véspera do dia em que só Deus sabe qual de rios ficará com
vicia, tenho muito gosto em aproveitar esta oportunidade para lhe dizer que
lamento o mal-entendido havido entre nós e que espero que não tenha razão de
queixa contra mim. Peço-lhe que me perdoe.
Pedro, sorrindo, olhava para ele sem saber que responder-lhe. Dolokov, com os
olhos cheios de lágrimas, abraçou e beijou Pedro. Bóris disse qualquer coisa ao seu
general e o conde Bennigsen propôs a Pedro que o acompanhasse na inspecção às
linhas.
— Será interessante para si — disse-lhe ele.
— Sim, muito — respondeu Pedro.
Meia hora depois, Kutuzov voltava para Tatarinovo e Bennigsen e a sua
comitiva, de que Pedro fazia parte, dirigiram-se para o campo de batalha.
[XXIII]
De Gorki, Bennigsen e a sua escolta desceram a estrada real até à ponte que o
oficial apontara a Pedro do alto do cabeço como sendo o centro da posição, e junto
da qual medas de feno recém-cortado embalsamavam o ar— Atravessada a ponte,
penetraram na aldeia de Borodino, voltaram à esquerda e, passando diante de
tiro grande aglomerado de tropas e peças de artilharia, chegaram à vista de um
cabeço onde milicianos revolviam a terra. Era o reduto, ainda por baptizar, mas
que depois viria a chamar-se o «reduto Raievski» ou a «bateria do cabeço».
Pedro não prestou a isto qualquer atenção especial, ignorava que aquele local
se tornaria o ponto mais memorável de todo o campo de batalha. Em seguida
atravessaram a ravina defronte de Semionovskoie, donde os soldados levavam os
restos do madeiramento das isbás e dos secadores de sementes. Final— mente,
subindo e descendo encostas e atravessando campos de centeio arrasados, como
se sobre eles tivesse caído granizo, meteram pelo novo caminho, recentemente
aberto pela artilharia ao longo dos trilhos de um campo lavrado, e chegaram às
«flechas» que se andavam ainda a abrir.
Bennigsen deteve-se ali e pôs-se a olhar em frente para o reduto deChevardino, que ainda na véspera pertencia aos Russos, e onde se viam alguns
cavaleiros. Os oficiais diziam que devia ser Napoleão ou Murat. Toda a gente
olhava avidamente o grupo de cavaleiros. Pedro fez o mesmo, tentando perceber
qual deles poderia ser Napoleão. Pouco depois, o grupo descia do cabeço,
desaparecendo.
Bennigsen, dirigindo-se a um general que se aproximava, pôs-se a explicar-lhe a
posição das tropas russas. Pedro ouvia-o, num esforço de inteligência, tentando
compreender o essencial da futura batalha, mas, a pesar seu, verificou que o não
podia acompanhar. Decididamente, não estava em condições de perceber,
Bennigsen, quando acabou de falar, notou a expressão de Pedro.
— Suponho que isto o não interessa — disse-lhe ele, bruscamente.
— Pelo contrário! É muito interessante! — repetiu Pedro, que não era
completamente sincero.
Das «flechas» tomaram mais à esquerda por um caminho que serpenteava
através de uma mata de álamos muito espessa, mas de pouca altura. No meio
dessa mata apareceu de repente, saltitando, uma lebre parda de patinhas
brancas. Assustada com o ruído das patas de tantos cavalos, de tal modo se
alarmou que por muito tempo foi correndo e pulando diante dos cavaleiros, que
riam a bom rir, e só quando alguns lhe gritaram abandonou o caminho,
embrenhando-se no mato. Depois de terem cavalgado umas duas verstas entre
folhagem, chegaram a uma floresta onde estavam reunidas as tropas do corpo de
Tutchkov, que se destinavam a apoiar o flanco esquerdo.
Neste local, no extremo do flanco esquerdo. Bennigsen ficou a falar por muito
tempo e animadamente e a Pedro afigurou-se-lhe que ele tomava nessa altura
importantes disposições do ponto de vista militar. Diante das tropas de Tutchkov
havia um monte. Esse monte não estava ocupado. Bennigsen lamentou em voz
alta este erro, dizendo ser insensato deixar assim, sem qualquer guarnição, um
ponto que dominava o terreno, colocando-lhe tropas no sopé. Alguns generais
foram da mesma opinião. Um deles, com ardor bem militar, disse que aquilo era
como mandar animais para o matadouro. E Bennigsen, de sua iniciativa, deu
ordens para que no monte fossem colocadas tropas.
Esta medida, tornada no flanco esquerdo, ainda mais concorreu para que Pedro
duvidasse da sua capacidade, para compreender os problemas estratégicos. A
respeito deste pormenor — as tropas no sopé da encosta — estava pronto a darrazão às críticas de Bennigsen e dos generais, mas eis o que o levava a
compreender ainda menos como pudera cometer um erro tão evidente quão
grosseiro aquele que as mandara colocar ali.
Não subia Pedro que aquelas tropas não tinham sido ali colocadas para defesa
daquela posição, como pensava Bennigsen, mas precisamente para preparar uma
armadilha, naquele lugar oculto, isto é, para que não fossem vistas e pudessem
assim cair de surpresa sobre o inimigo num momento determinado. Bennigsen
ignorava também este pormenor e, de acordo com os seus pontos de vista
particulares, alterava as disposições tomadas sem informar disso o general-chefe.
[XXIV]
Precisamente naquela clara noite de 25 de Agosto estava o príncipe André
deitado num telheiro desmantelado da aldeia de Kniazkovo, no extremo limite do
local destinado ao seu regimento. Apoiado sobre o cotovelo, pousava os olhos,
através das paredes desconjuntadas, numa fila de álamos dos seus trinta anos,
cujos ramos inferiores haviam sido cortados e que se perdia na distância, e nos
campos lavrados, no meio dos quais havia molhos de aveia dispersos, e nos
arbustos onde se perdia o fumo das fogueiras em que os soldados preparavam o
rancho.
Embora a vida lhe parecesse naquele momento mesquinha, inútil e penosa, tal
qual como sete anos antes, em Austerlitz, na véspera da batalha, o príncipe
sentia-se emocionado e nervoso.
Recebera e transmitira ordens para a batalha do dia seguinte. Nada mais tinha
que fazer. No entanto agitavam-no os pensamentos mais simples, mais claros, e
por consequência mais sinistros. Sabia que a batalha que se preparava seria a
mais terrível de quantas assistira até então e a possibilidade de morrer
apresentava-se-lhe pela primeira vez na sua vida com toda a simplicidade e todo o
horror, despojada de toda a espécie de relações com o que era vivo, alheia a todas
as considerações acerca do efeito que poderia causar nos outros, coisa que lhe
dizia apenas respeito a ele próprio, e a sua própria alma, numa acuidade de visão
extraordinária, quase como uma certeza. E lá do alto a que subiam os seuspensamentos tudo o que outrora o havia atormentado ou preocupado surgia-lhe
banhado numa espécie de luz fria e branca, sem sombras, sem perspectiva, sem
contornos definidos,
Toda a sua vida lhe aparecera por muito tempo como que projectada por Lima
lanterna mágica através de um vidro e a uma luz artificial. E agora via, de súbito,
sem qualquer interposição de vidros, à clara luz do dia, esses quadros
grosseiramente coloridos. «Sim, sim, aqui estão elas, essas miragens enganosas
que tanto me emocionaram, exaltaram e fizeram infeliz; dizia a si próprio, fazendo
perpassar pela imaginação toda a fantasmagoria da existência e vendo-a agora a
esta branca e fria luz do nítido pensamento da morte. Ei-las, essas figuras
grosseiramente iluminadas que então me pareciam tão belas e misteriosas. A
glória, o bem público, o amor de uma mulher, a própria pátria, quão grandes que
pareciam essas belas coisas, com que profundo sentido elas se me apresentavam!
E afinal como tudo isso é mesquinho, pálido, miserável, a clara e fria aurora desta
manhã que está nascendo em mim!», Retinham-lhe o pensamento sobretudo as
três grandes dores da sua existência: o seu romance de ai-flor, a morte do pai e a
invasão francesa, que alcançara já metade da Rússia, «O amor!... Aquela garotinha
que se me afigurava rica de forças misteriosas! Sim! E eu amava-a. Entretinha com
ela poéticos sonhos de amor, de felicidade mútua. Pobre rapaz!», exclamou, de
súbito, em voz alta, com uma amarga ironia, «E depois? Acreditava em não sei
que amor ideal que ma conservaria fiei todo o ano que estaria ausente. E ela
acabaria por se consumir, como a meiga pomba da fábula, esperando, esperando
sempre. Ai de mim! É tudo muito mais simples... Tudo é muito mais simples e
muito mais repugnante!
«Meu pai também, ao instalar-se em Lissia Gori, pensava que aquele pedaço
do mundo lhe pertencia, que a terra, o ar, os camponeses, tudo era dele. Mas
aparece Napoleão, e, sem sequer saber que ele existia, varre-o para a rua como a
um grão de poeira e a sua Lissia Gori e toda a sua existência caíram por terra, E a
princesa Maria diz que tudo são provações que vêm do alto, Para quê tais
provações se ele já não existe e nunca mais voltará a existir? Nunca mais voltará!
A pátria, a perda de Moscovo! Mas, quem sabe?, matar-me-ão, e talvez nem
sequer um francês, mas um dos nossos, como o soldado que ainda ontem
descarregou a espingarda mesmo ao pé da minha cabeça. E os Franceses chegarão
depois, e pegar-me-ão pelos pés e pela cabeça e atirarão comigo para dentro deuma vala para que eu não venha a cheirar mal. E depois novas condições de vida
surgirão tão naturais para os que vierem como as antigas, e eu já não as
conhecerei já não serei deste mundo.»
Fitou a mata de álamos, os seus ramos amarelos imóveis, as suas folhas verdes
e a sua casca branca que brilhava ao sol. «Já que temos de morrer, bom, então
que me matem... amanhã... que eu desapareça... Que tudo isto continue a existir,
mas para mim tudo acabe.» Via com toda a nitidez a vida sem que ele já lá
estivesse. E aqueles alamos brancos com a sua luz e a sua sombra, e aquelas
nuvens desgrenhadas e o fumo dos acampamentos, tudo se transformou, de súbito,
para ele, ganhando um aspecto terrível e ameaçador, Foi tomado de um arrepio.
Levantou-se, saiu do telheiro e pôs-se a caminhar.
Atrás do telheiro ressoaram umas vozes.
— Quem vem lá? — perguntou o príncipe André.
Timokine, o capitão de nariz rubicundo, ex-comandante da companhia de
Dolokov, então, por virtude da falta de oficiais, comandante de batalhão penetrou
timidamente no telheiro. Atrás dele vinham um ajudante-de-campo e o tesoureiro
do regimento.
André voltou a penetrar no telheiro e ouviu o que eles tinham a dizer-lhe
relativamente ao serviço, deu-lhes ainda algumas instruções e preparava-se para
os despedir quando ouviu lá fora uma voz sua conhecida, que resmungava.
— Irra! — dizia a voz do homem, que tropeçara em qualquer coisa.
André olhou lá para fora e viu Pedro, que ia caindo ao tropeçar numa viga que
estava no chão, encaminhando-se para ele. Em geral era com desagrado que
voltava a ver criaturas do seu meio, e Pedro especialmente, pois lhe recordava
todos os dolorosos momentos por que passara aquando da sua última estada em
Moscovo.
— Ah, és tu?! — exclamou ele. — Que te traz por aqui? Não esperava ver-te.
Ao pronunciar estas palavras, tios seus olhos e em toda a sua fisionomia havia
mais do que frieza, havia mesmo hostilidade, e Pedro deu por isso. Este vinha na
melhor disposição de espírito, mas, ao ver o ar nada acolhedor do amigo, sentiu-se
embaraçado e pouco à vontade.
— Vim... Sim... Sabe... vim porque me interessa — disse Pedro, que já repetira
nesse dia muitas vezes que aquilo o interessava. — Quis ver a batalha.
— Ah, sim? E que dizem da guerra os irmãos mações? Não a puderam impedir?— disse o príncipe André com ironia. — E que há por Moscovo? Como está a minha
família? Já chegaram, finalmente? — acrescentou em tom mais grave.
— Sim, já chegaram. Disse-me Júlia Drubetskaia. Quis visitá-los, mas não os
encontrei. Tinham partido para a quinta dos arredores.
[XXV]
Os oficiais queriam retirar-se, mas o príncipe André, como para evitar ver-se só
com o amigo, pediu-lhes que ficassem para tomar chá. Trouxeram bancos e serviu-
se o chá. Os oficiais iam observando, não sem espanto, a enorme e maciça pessoa
de Pedro, ouvindo as histórias que ele contava de Moscovo e a descrição que fazia
da posição das tropas russas, que acabava de visitar, André não abria a boca e a
sua expressão era tão desagradável que Pedro se dirigia de preferência a
Timokine, o heróico comandante de batalhão.
— Então compreendeste a disposição das tropas? — perguntou-lhe o príncipe
André, interrompendo-o de súbito.
— Compreendi! Ou antes — acrescentou Pedro — , como não sou da profissão,
não posso dizer que tenha compreendido completamente, mas apreendi o plano
geral.
— Então sabes mais que ninguém — tornou-lhe o príncipe André.
— Ah! — exclamou Pedro, estupefacto, mirando-o através dos vidros das
lunetas. — E que pensa da nomeação de Kutuzov?
— Agradou-me muito, é tudo quanto te posso dizer.
— Bom, e que opinião tem de Barclay de Tolly? Diz-se tanta coisa dele em
Moscovo, santo Deus! Que pensa dele?
— Pergunta a estes senhores — replicou o príncipe André, apontando para os
oficiais.
Pedro, com o sorriso indulgente que toda a gente tinha quando se dirigia a
Timokine, interrogou-o com os olhos.
— Foi a luz que brilhou para rios, Excelência, o aparecimento do Sereníssimo —
disse Tiryiokine, timidamente, sem deixar de olhar para o seu coronel.
— Porquê? — inquiriu Pedro.— Sim, posso falar-lhe, por, exemplo, da lenha, da forragem. Quando
principiámos a recuar, depois de Sventsiani, que ninguém se lembrasse de apanhar
um cavaco de lenha, um braçado de palha ou fosse o que fosse. E certo é que, rios
íamos embora, e o inimigo, ficava com tudo, não é verdade, Excelência? —
acrescentou dirigindo-se ao seu príncipe. – Mas ai de nós de o fizéssemos!
«Por esse motivo no nosso regimento foram julgados dois oficiais em conselho
de guerra. Quando o Sereníssimo chegou, porém, tudo se tornou muito simples.
Vimos a luz...»
— Porque é que o general proibia?
Timokine pôs-se a rebolar os olhos, muito confuso, sem saber como responder a
esta pergunta. Então Pedro dirigiu-se ao príncipe André.
— Para não arruinarmos o território que abandonámos ao inimigo — replicou
este, com uma entoação de amarga ironia. — É justo: não pode consentir-se que as
tropas saqueiem o país e os soldados se habituem a roubar. Já em Smolensk, o
pensar que os Franceses podiam vir por ai abaixo e que dispunham de forças
superiores às nossas, vira as coisas com equidade. O que ele não pode
compreender, no entanto — gritou, subitamente, fazendo vibrar a sua voz fina —
o que ele não pode compreender e que nós nos batemos pela primeira vez em
defesa da terra russa, que as nossas tropas lutam com uma coragem que eu lhes
não conhecia, que durante dois dias seguidos detivemos os Franceses e que a
nossa resistência nos duplicara, as forças. E apesar disso deu ordem de retirada e
foram baldados todos os nossos esforços e todas as nossas perdas. Naturalmente
não queria trair-nos, procurava arranjar as coisas da melhor maneira, calculara
tudo Mas exactamente por isso é que nada vale. Nada vale hoje precisamente por
tudo ter previsto, prudente e cauteloso como bom alemão que é. Como hei-de
explicar-te?... Supõe que teu pai tinha um criado alemão, um criado excelente, que
adivinhava todos os seus pensamentos melhor do que tu próprio. E, como é
natural, deixarias que ele continuasse a servi-lo. Mas supõe que teu pai adoecia
gravemente, então tratarias de o pôr de lado e serias tu, com as tuas mãos
desajeitadas e inexperientes, que cuidarias dele e muito melhor do que, um
estranho, por mais hábil que fosse. Ora foi assim que procederam para com
Barclay. Enquanto a Rússia esteve de perfeita saúde, qualquer estrangeiro podia
servi-la, e este era um excelente ministro, mas desde que a sua vida corre perigo,
é de um homem do seu sangue que ela precisa. Lá no teu meio, no teu clube,acharam que ele era um traidor. Caluniando-o dessa maneira é que depois se
envergonharão dos juízos temerários que sobre ele ousaram, acabando por fazer
dele um herói ou um génio, coisa ainda mais injusta. É um alemão honrado e
meticuloso...
— No entanto, dizem que é um cabo-de-guerra muito hábil — contraveio
Pedro.
— Não sei o que isso quer dizer — continuou o príncipe André, sorrindo.
— Um hábil cabo-de-guerra é aquele que prevê todas as eventualidades... que
adivinha as intenções do adversário.
— É impossível! — replicou André, como se não pudesse haver dúvidas a tal
respeito.
Pedro fitou-o, estupefacto.
— Há quem diga, no entanto — voltou ele — que a guerra é como que uma
partida de xadrez.
— Talvez — replicou o príncipe André —, mas com esta pequenina diferença:
que no xadrez, antes de mexeres uma pedra, te é dado pensares o tempo que
quiseres, o tempo não urge: e com esta diferença ainda: que o cavaleiro é sempre
mais forte que o peão, que dois peões são sempre mais fortes do que um,
enquanto na guerra um batalhão às vezes é mais forte que uma divisão e outras
mais fraco que uma companhia. Ninguém é, competente para conhecer a força
relativa das tropas. Acredita no que te digo: se o resultado dependesse das
medidas tomadas pelos estados— maiores, eu teria ficado no estado-maior e aí
daria as minhas ordens, mas é aqui, neste regimento, que eu e estes senhores
temos a honra de servir; é de nós, realmente, em minha opinião, que depende o
dia de amanhã e não deles... O êxito nunca dependeu, nunca dependerá, nem da
posição, nem do armamento, nem mesmo do número de tropas, sobretudo nunca
dependeu da posição.
— Então de que depende?
— Do sentimento íntimo que existe em mim, naquele — apontou para
Timokine —, no sentimento íntimo de cada soldado.
O príncipe André olhava fixamente para Timokine, que, por sua vez, fitava o
seu comandante com olhos assustados e estupefactos. Em vez de calado e
sorumbático, como habitualmente, o príncipe André parecia agora extremamente
agitado. Percebia-se que não podia deixar de exprimir os pensamentos que lheacudiam em tropel.
— Ganha a batalha quem decide firmemente ganhá-la. Porque perdemos nós a
batalha de Austerlitz? As nossas baixas eram quase iguais às dos Franceses, mas
tínhamos dito a nós próprios cedo de mais que seríamos vencidos e na verdade
fomos. E se o dissemos é porque não tínhamos porque rios bater ali: só queríamos
abandonar o campo de batalha quanto mais depressa melhor. «A batalha está
perdida, tratemos de fugir!» E demos ás de vila-diogo. Se assim não tivéssemos
falado muito antes do fim da jornada, só Deus sabe o que teria acontecido.
Amanhã não diremos a mesma coisa. Dizes tu que a nossa posição, a do flanco
esquerdo. é fraca, que o nosso flanco esquerdo é extenso de mais. Tolices, tudo
tolices, isso nada quer dizer. Que nos espera amanhã? Haverá milhões de
possibilidades diversas, infinitamente variadas, que num momento dado farão que
os deles ou os nossos homens desatem a fugir, que este ou aquele seja morto. Mas
a verdade é que tudo quanto neste momento se faça não passa, de uma
brincadeira, Na realidade, esses com quem til visitaste a posição, em vez de
ajudarem a marcha geral das operações, estão a entravá-la. Só uma coisa os
preocupa: os seus pequeninos interesses pessoais.
— Num momento destes?! — indignou-se Pedro.
— Sim, num momento destes — continuou o príncipe André. — Este momento,
para eles, é apenas o momento em que lhes é possível minar a situação de um
adversário e conseguir mais uma cruz ou mais uma palma. Quanto a mim, eis como
a situação se apresenta amanhã. Cem mil russos vão defrontar cem mil franceses.
É um facto que estes duzentos mil homens se vão bater e que sairão vencedores
aqueles que se mostrem mais encarniçados mi luta e que menos se compadeçam
de si próprios. E dir-te-ei mais: aconteça o que acontecer, sejam quais forem as
maquinações dos chefes, seremos nós quem ganhará a batalha de amanhã.
Amanhã, apesar de tudo, ganharemos a batalha.
— Excelência, essa é a pura verdade — pronunciou Timokine.— Será a altura
de poupar vidas? Pode crer, os soldados do meu batalhão não quiseram beber
vodka. «Não é dia para isso», disseram eles.
Todos ficaram calados. Depois os oficiais levantaram-se. O príncipe André
acompanhou-os para dar as últimas ordens ao ajudante-de-campo. Assim que eles
saíram, Pedro aproximou-se do príncipe André disposto a cavaquear com ele,
quando, na estrada, a pequena distância do telheiro, se ouviu o trote de trêscavalos, e o príncipe André, relanceando os olhos nessa direcção, reconheceu
Woltzogen e Clauzewitz, acompanhados de um cossaco. Tão perto passaram deles
que puderam ouvir o que diziam: falavam alemão:
— É preciso que a guerra se espalhe. Não posso exprimir-lhe a elevada
apreciação deste juízo — dizia um deles.
— Oh, sim! — replicou o outro. — Como o objectivo consiste em debilitar o
inimigo, não se podem tomar em consideração as perdas de homens.
— Evidentemente — afirmou o primeiro.
— Sim, que a guerra se espalhe (Em alemão no texto original. (N, dos T)’ —
repetiu o príncipe André, numa expressão de cólera depois de eles passarem—
Que eu tenha deixado um pai, um filho, uma irmã, em Lissia Gori, isso para eles
não importa. Era o que eu te dizia, não serão estes senhores alemães quem
ganhará amanhã a batalha: não farão outra coisa senão complicá-la em tudo que
estiver nas suas mãos; naquelas cabeças não há senão raciocínios que não valem
um ovo furado e àqueles corações falta-lhes a única coisa precisa para amanhã,
aquilo que tem Timokine. Entregaram-lhe a «ele» toda a Europa e agora vêm dar-
nos lições... Ricos mestres! concluiu numa voz áspera.
— Está então convencido de que se ganhará a batalha de amanhã? — inquiriu
Pedro.
— Sim, estou — replicou o príncipe André, distraidamente. — Uma decisão
tomaria, se tivesse poderes para tal: não fazer prisioneiros. Prisioneiros? Eis o que
é cavalheiresco! Os Franceses saquearam-me a casa e tentaram destruir Moscovo.
Ultrajaram-me e outra coisa não fazem senão ultrajar-me. São meus inimigos, e
para mim todos são criminosos. E é assim que pensam Timokine e o resto do
exército. É preciso castigá-los. Desde que são meus inimigos não podem ser meus
amigos, apesar de tudo o que disseram em Tilsitt.
— Sim, realmente — replicou Pedro, olhando para o amigo com olhos
brilhantes.— Estou completamente de acordo consigo.
Naquele momento o problema que preocupava Pedro desde a encosta de
Mojaisk afigurou-se-lhe claro e fácil de resolver, Agora compreendia inteiramente
o sentido e a importância da guerra que se travava e da batalha que ia dar-se.
Tudo o que vira durante aquele da, aquela expressão grave dos rostos que
observara ao passar pelos homens, se iluminou para ele de um novo esplendor.
Compreendeu esse calor oculto, latente, como se diz em física, o calor dopatriotismo que emanava de toda essa gente e isso explicava-lhe porque todos,
serena e por assim dizer despreocupadamente, se preparavam para morrer.
— Não fazer prisioneiros — prosseguiu o príncipe André — seria transformar a
guerra e torná-la menos cruel. Em vez disso, não fizemos outra coisa senão brincar
às guerras. E esse foi o erro: mostrámo-nos magnânimos, etc. Esta
magnanimidade, este sentimentalismo, fazem-me lembrar a senhora que desmaia
quando vê matar uma vitela. É tão boazinha que não pode ver correr sangue,
embora seja capaz de comer com apetite essa mesma vitela servida com um molho
saboroso. Falam-nos nos direitos da guerra, de cavalheirismo, de parlamentários,
de humanidade para com os desgraçados e de outras coisas no mesmo género.
Tudo isso são tolices. Eu bem vi em 1805 todas essas lindas coisas, esse
cavalheirismo, esse respeito pelos parlamentários.. Enganaram-nos, e nós, pela
nossa parte, fizemos o mesmo. Saqueiam casas que lhes não pertencem, espalham
dinheiro falso, e, coisa pior ainda, matam-nos filhos, pais, e depois vêm-nos falar
das leis da guerra e da generosidade para com o inimigo. Não fazer prisioneiros,
mas matá-los a todos e morrermos também! Aquele que chegou, como eu, a esta
convicção, depois de ter passado pelos mesmos sofrimentos...
O príncipe André ia dizer ser-lhe indiferente que Moscovo viesse a ser ou não
tomada, como o fora Smolensk, mas calou-se de chofre: um espasmo imprevisto lhe
apertava a garganta. Deu alguns passos calado, mas nos seus olhos havia um
brilho febril e os seus lábios tremiam quando retomou a palavra:
— ...Se não existisse esta falsa magnanimidade na guerra, não caminharíamos
para a morte senão quando a morte fosse certa, como acontece hoje. Não haveria
guerras com o pretexto de que Pavel Ivanitch ofendeu Mikail Ivanitch. Mas em
compensação quando houvesse uma guerra como a de hoje então seria uma
guerra a valer. E não haveria também grandes massas de tropas em acção, como
agora. Todos esses westfalianos e todos esses hessianos que Napoleão traz consigo
não o teriam seguido até à Rússia, e nós, pela nossa parte, não nos teríamos ido
bater ia Áustria e na Prússia, sem mesmo saber por que razão. A guerra não é um
divertimento, mas a coisa mais repugnante deste mundo. É preciso compreendê-la
e não nos servirmos dela como uma brincadeira. É preciso aceitar seriamente, com
austeridade, esta terrível necessidade. E daqui não há que sair, é preciso acabar
Com a mentira: a guerra, sim, a guerra é a guerra e não um divertimento. De
outro modo a guerra será um entretenimento próprio de ociosos e de espíritossuperficiais. A classe militar é das mais dignas, Mas que é a guerra? Que é preciso
para se ter êxito nas operações militares? Quais são os costumes da sociedade
militar? A finalidade da guerra é o homicídio; as suas armas são a espionagem, a
traição, a ruína dos habitantes, o saque e o roubo organizados para manutenção
do exército, a fraude e a mentira mascaradas como astúcias de guerra. Quais os
costumes da classe militar? A supressão da liberdade sob o pretexto da disciplina,
a ociosidade, a grosseria, a crueldade, a devassidão, a embriaguez, E, apesar de
tudo, é uma classe superior, respeitada por todos. Todos os reis, à excepção do
imperador da China, envergam o uniforme militar e as mais altas recompensas
reservam-se para aquele que mais gente matou. Reúnem-se os soldados, como vai
acontecer amanhã, para se chacinarem uns aos outros. Matar-se-ão e ficarão
mutilados dezenas de milhares de homens e depois haverá cerimónias religiosas
de acção de graças por se terem morto tantos homens, sem que, no entanto, se
deixe de exagerar o número dos que se mataram, proclamando-se a vitória,
dizendo que quanto maior o número de mortos mais retumbante esta será. Como
é possível que Deus os ouça e os escute lá de cima? — clamou o príncipe André na
sua voz colérica. – Oh, querido amigo, durante os últimos tempos muito penoso me
tem sido viver! Vejo que principiei a compreender coisas de mais. Não é bom
conhecer o homem os frutos da árvore do bem e do mal... Mas não será por muito
tempo — acrescentou. — Parece que estás com sono e para mim também são
horas de dormir. Bom, volta para Gorki — disse, de súbito.
— Oh! Não! — replicou Pedro, fitando André com os olhos ao mesmo tempo
assustados e enternecidos.
— Vai-te, vai-te! É preciso dormir bem antes da batalha.
Aproximou-se rapidamente de Pedro, abraçou-o e beijou-o.
— Adeus! Vai-te embora! — exclamou. — Tornar-nos-emos a ver?...
Deu meia volta rapidamente e recolheu-se ao telheiro.
Estava escuro e Pedro não pôde ver se no rosto do príncipe André transparecia
raiva ou ternura.
Pedro permaneceu um momento em silêncio sem saber se devia seguir o amigo
ou retirar-se. «Não, não precisa de mim!», decidiu. «Também eu sei que é a última
vez que nos vemos.» Soltou um fundo suspiro e regressou a Gorki.
O príncipe André, ao voltar ao telheiro, estendeu-se sobre uma manta, mas
não pôde dormir.Fechou os olhos. Imagens sobre imagens lhe perpassaram pela mente. O
pensamento deteve-se-lhe por muito tempo e comovidamente numa delas. Uma
noite, em Petersburgo. Natacha, muito animada e de rosto afogueado, contava-lhe
como se perdera, no Verão anterior, andando a apanhar cogumelos, numa grande
mata. E ia descrevendo-lhe, entrecortadamente, a floresta espessa, o que sentira,
a conversa que tivera com um apicultor que encontrara ali; de vez em quando
suspendia a narrativa para exclamar: «Não, não sei, não sei contar: não, não me
pode compreender.» E ele tranquilizava— a, dizia-lhe compreendê-la muitíssimo
bem; efectivamente sabia muitíssimo bem o que ela queria dizer. Natacha, porém,
estava desolada por não ser capaz de exprimir como desejava a emoção poética
que nesse dia lhe inundara a alma. «O velho era tão maravilhoso, estava tão
escuro na floresta... e eram tão bondosos os seus... Não, não sei como dizer-lhe!»,
exclamava de novo, muito ruborizada e numa grande excitação. E André sorria
agora com o mesmo venturoso sorriso com que então a olhara nos olhos. «Ah,
compreendia-a perfeitamente. Sim, compreendia-a, e era isso mesmo que eu
amava nela, essa alma que trasbordava, essa sinceridade, essa candura, essa alma
que parecia não lhe caber no corpo... Sim, era essa alma que eu tão intensamente
amava, que tão feliz me fazia... » E, de súbito, de novo se lembrou como terminara
aquele idílio. «Aquele homem nada disto o embaraçava. Nada via, nada
compreendia de todas estas coisas. Para ele era apenas uma garota bonita, um
botãozinho, que nem sequer considerava digna de associar ao seu destino,
Enquanto eu... no entanto, lá continua alegre e bem disposto.»
Como se se sentisse queimado por um ferro em brasa, André ergueu-se de um
salto e principiou a andar de um lado para o outro diante do telheiro.
[XXVI]
No dia 25 de Agosto, véspera da batalha de Borodino, haviam chegado ao
acampamento de Napoleão em Valuieva o prefeito do palácio imperial, Monsieurs
de Beausset, e o coronel Fabvier, o primeiro vindo de Paris e o segundo de
Madrid.
Depois de envergar o seu uniforme palaciano, Monsieur de Beausset principioupor pedir que lhe trouxessem o embrulho que devia entregar ao imperador.
Depois penetrou no primeiro compartimento da tenda imperial, e enquanto ia
conversando com os ajudantes-de-campo ai presentes pôs-se a abrir a caixa que lhe
trouxeram.
Fabvier, sem penetrar na tenda, detivera-se à entrada a cavaquear com os
generais seus conhecidos.
O imperador Napoleão ainda, não saíra do seu quarto de, dormir, onde
acabava de se arranjar. Resfolegando e espirrando, ia, voltando ora as espadaúdas
costas ora a peitaça cabeluda para a escova coro que o friccionava o criado de
quarto. Entretanto, outro criado, com o dedo no gargalo de um frasco, espargia de
água-de-colónia o corpo bem tisnado do amo e lia-se no rosto que só ele estava em
condições de saber em que sítio o devia pulverizar e quanto. Os cabelos curtos de
Napoleão, molhados, empastavam-se-lhe na testa. Mas o rosto, embora balofo e
amarelento, respirava bem-estar físico. «Vá, com firmeza, continue...», dizia ele.,
encolhendo-se e espirrando enquanto a escova o friccionava. Um ajudante-de-
campo que penetrara na tenda para lhe comunicar o número de prisioneiros feitos
no recontro da véspera, cumprida a sua missão, aguardava a ordem de se retirar
— Napoleão, franzindo as sobrancelhas, olhava-o de soslaio.
— Não há prisioneiros — repetia ele — Deixam-se matar. Tanto pior para o
exército russo. Vá, com firmeza, continue —, prosseguia ele, encolhendo o peito e
apresentando ao criado os robustos ombros.
— Bem, mande entrar Monsieur de Beausset, assim como Fabvier — disse ao
ajudante-de-campo, com um aceno de cabeça
— Sim, Sire. — E o ajudante-de-campo desapareceu.
Os dois criados vestiram num rufo o seu amo, o qual, envergando o uniforme
azul da Guarda, se dirigiu para a antecâmara em passos rápidos e firmes.
Monsieur de Beausset, entretanto, dera-se pressa em instalar sobre duas
cadeiras, mesmo em frente do focal por onde o imperador devia passar, o presente
que trouxera da parte da imperatriz. Napoleão, porém, vestira-se tão depressa e
surgira tão inopinadamente que não tivera tempo de preparar a surpresa como
queria.
O imperador percebeu imediatamente que tramavam qualquer coisa e que a
surpresa ainda não estava pronta. Não quis privar Monsieur de Beausset do
prazer que antegozava. Fingiu não dar pela sua presença e fez sinal a Fabvier paraque se aproximasse. Napoleão ouviu, de sobrecenho carregado e sem nada dizer,
os elogios do coronel à bravura e à dedicação das suas tropas que se haviam
batido em Salamanca, na outra extremidade da Europa, e cujo único desejo era
serem dignas do seu imperador, só receando uma coisa: não o satisfazer. O
resultado da batalha não fora feliz. Napoleão, enquanto Fabvier falava, dirigiu-lhe
algumas observações irónicas das quais se depreendia que, estando ele ausente,
não era outro o resultado que esperava.
— Tenho de compensar isto em Moscovo. — comentou. — Até já — disse, e
chamou De Beausset, que entretanto conseguira preparar a sua surpresa,
instalando-a em cima de rima cadeira e cobrindo-a com um pano.
De Beausset fez uma reverência à francesa, como o sabiam os antigos
servidores dos Bourbons, e aproximou-se com um sobrescrito na mão.
Napoleão colheu-o com jovialidade e puxou-lhe a ponta da orelha.
— Não perdeu tempo. Muito folgo. Então, que diz Paris? — acrescentou, ao
mesmo tempo que no rosto, grave lhe transparecia uma expressão cheia de
ternura.
— Sire, Paris inteiro lastima a sua ausência — replicou De Beausset cheio de a-
propósito,
Posto Napoleão soubesse que aquelas ou quejandas palavras eram da praxe na
boca de Monsieur de Beausset, e apesar de nos seus momentos de lucidez
perceber que tudo aquilo era falso, a frase soou-lhe bem. E de novo se dignou
puxar-lhe a orelha.
— Lastimo tê-lo obrigado a fazer uma tão longa jornada — disse ele.
— Sire, nunca esperei encontrá-lo senão às portas de Moscovo — replicou De
Beausset.
Napoleão sorriu-se e, soerguendo a cabeça, lançou um olhar indiferente a sua
direita. Um ajudante-de-campo aproximou-se rápido, e apresentou-lhe uma
tabaqueira de ouro.
Napoleão pegou na caixa.
— Sim, teve sorte — disse ele, aproximando do nariz a tabaqueira aberta —,
dentro de três dias, o senhor, que tanto gosta de viajar, vai ter ocasião de ver
Moscovo. Naturalmente não contava visitar a capital asiática. Vai fazer uma linda
viagem.
De Beausset inclinou-se reconhecido pela delicada atenção do seu soberano,que lhe atribuía inclusivamente gostos de que ele nem sequer suspeitava.
— E isto que é? — interrogou Napoleão, ao reparar que toda sua comitiva
tinha os olhos num objecto coberto com um pano.
De Beausset, com ligeireza de cortesão, recuou dois passos, sem voltar as
costas, e retirou o pano ao mesmo tempo que dizia:
— Um presente para Vossa Majestade da parte da imperatriz. — Era um
retrato, de cores vivas, pintado por Gérard, do filho de Napoleão e de Maria Luísa,
a quem toda a gente, sem que se soubesse porquê, chamava rei de Roma.
A linda criança, cujo olhar lembrava o do Menino Jesus da Madona Sistina,
jogava a emboca-bola. A bola era o globo terrestre e a forquilha que tinha na
outra mão representava um ceptro.
Embora a intenção do pintor figurando o rei de Roma a perfurar o globo
terrestre com uma forquilha não fosse muito clara, a alegoria agradara e parecera
claríssima tanto aos olhos dos que tinham visto o quadro em Paris como aos do
próprio Napoleão.
— O Rei de Roma! — exclamou ele, com um gesto gracioso. — Admirável!
Com essa facilidade tão dos italianos de mudarem de expressão a seu talante,
aproximou-se do retrato com um ar ao mesmo tempo cismador e enternecido.
Sentia que o que dissesse e o que fizesse naquele momento pertenciam à história.
Em contraste com sua magnificência graças à qual seu filho podia jogar a emboca-
bola com o próprio mundo, afigurava-se-lhe que o que de melhor tinha a fazer era
mostrar uma expressão da mais singela ternura paternal. Os olhos velaram-se-lhe
de lágrimas, aproximou-se, procurou com os olhos uma cadeira, que logo se
apressaram a chegar-lhe, e sentou-se diante do retrato. A um ligeiro gesto seu,
toda a gente saiu em bicos de pés, deixando o grande homem sozinho com os seus
pensamentos.
Depois de permanecer algum tempo naquela muda contemplação, enquanto,
sem saber porquê, percorria a rugosidade das tintas com a palma de uma das
mãos, levantou-se e chamou De Beausset e o oficial de serviço. Deu ordem para
que o retrato fosse colocado diante da tenda. Assim a velha Guarda não seria
privada da grande ventura de ver o rei de Roma, filho e herdeiro do seu adorado
imperador.
Como já o esperava, enquanto almoçava com Monsieur de Beausset, a quem
concedera essa honra, ressoaram diante da tenda os gritos entusiastas dos oficiaise dos homens da Guarda, que se haviam aproximado.
— Viva o Imperador! Viva o Rei de Roma! Viva o Imperador!
Findo que foi o almoço. Napoleão, na presença de De Beausset, ditou a ordem
do dia ao exército.
— Curta e enérgica! — disse ele quando acabou de ler a proclamação, escrita
de um só jacto, sem uma rasura.
A proclamação dizia:
Soldados! Eis aqui a batalha que tanto desejáveis! A
vitória depende de vós e é-nos indispensável; com ela
teremos abundância, bons aquartelamentos de Inverno e
um rápido regresso à pátria! Comportai-vos como vos
comportastes em Austerlitz, em Friedland, em Vitebsk e
em Smolensk e a posteridade recordara, orgulhosa, as
vossas façanhas deste dia. Que se possa dizer de cada um
de vós: este esteve na grande batalha de Moscovo.
— De Moscovo! — repetiu Napoleão, e, tendo convidado Monsieur de
Beausset, grande amador de viagens, a acompanhá-lo no seu passeio, saiu da
tenda e dirigiu-se para os cavalos, já selados.
— É muita bondade de Vossa Majestade — respondeu De Beausset ao convite
de Napoleão, conquanto muito desejasse ir dormir e não soubesse montar a
cavalo.
Napoleão acenou com a cabeça ao visitante e este não teve outro remédio
senão acompanhá-lo. Quando o imperador saiu da tenda, recrudesceram as
aclamações dos soldados da Guarda diante do retrato. Napoleão franziu o
sobrolho.
— Tirem-no daí — disse ele, apontando para o retrato com um gesto
majestoso e cheio de graciosidade. — Ainda é muito cedo para que essa criança
veja um campo de batalha.
Cerrando os olhos e inclinando a cabeça. De Beausset soltou um profundo
suspiro, como querendo significar que avaliava muito bem as palavras que o
imperador acabava de pronunciar.
[XXVII]
Os historiadores de Napoleão contam que o imperador passou toda a manhã
desse dia 25 de Agosto a cavalo, examinando o terreno, discutindo os planos que
os marechais lhe apresentavam e transmitindo pessoalmente as suas ordens aos
generais.
A linha primitiva dos Russos ao longo do no Kolotcha fora perfurada e uma
parte dessa linha, a saber, o flanco esquerdo, depois da tomada do reduto de
Chevardino, no dia 24, tivera de recuar. Essa parte não estava fortificada nem
defendida por um curso de água e diante dela havia apenas uma planície
descoberta e lisa. Era evidente, tanto para os observadores militares como para
os leigos, que por ali os Franceses atacariam. Para isso não pareciam precisas quer
tantas combinações, quer tantas preocupações e diligências da parte do imperador
e dos seus marechais, bem como parecia dispensável essa alta capacidade muito
especial a que se dá o nome de génio e que tanto gosto se exibir a Napoleão.
Porém, os historiadores que mais tarde descreveram este acontecimento, as
pessoas da sua comitiva e ele próprio pensavam de outra maneira.
Napoleão percorria o campo examinando atentamente a topografia, do local,
abanava a cabeça ora para aprovar ora para rejeitar as sugestões que lhe faziam,
sem nada dizer aos generais sobre a marcha secreta dos pensamentos que o
levavam às suas decisões, e não lhes dava a conhecer senão as suas conclusões
definitivas, já como ordens. A Davout, a quem chamava príncipe de Eckmühl, que
propusera se contornasse o flanco esquerdo do inimigo, respondera simplesmente
Napoleão que tal não devia fazer-se, e sem explicar porquê. Mas tendo o general
Compans, encarregado de, atacar as flechas, emitido a opinião de que se fizesse
marchar a sua divisão através da floresta, o imperador aprovou-o, embora o
pretenso duque de Elchingen, isto é, Ney, se tivesse permitido observar que os
movimentos através da floresta podiam ser perigosos e provocar a desordem nas
fileiras.
Depois de examinar o terreno diante do reduto de Chevardino, o imperador
quedou-se por momentos pensativo e silencioso, indicando, em seguida, os locais
onde deviam ser instaladas no dia seguinte as duas baterias destinadas a atacara,’ fortificações russas e onde, a seu lado, deveria ser instalada a artilharia de
campanha.
Depois de ter dado esta e outras ordens, regressou à sua tenda, e o dispositivo
das tropas foi redigido por escrito e, ditado por ele. Os seus historiadores falam
com grande entusiasmo e demais com grande respeito desse dispositivo.
ORDEM DE BATALHA
Dada no acampamento imperial, na retaguarda
de Mojaisk,
a 6 de Setembro de 1812
Ao amanhecer, as duas novas baterias, instaladas
durante a noite no plaino do príncipe de Eckmühl, romperão
fogo contra as duas baterias inimigas dispostas na sua
frente.
Na mesma altura, o general Pernety, comandante de
artilharia do 1º corpo, com as trinta bocas de jogo da divisão
Compans e todos os obuses das divisões Dessaix e Friant,
que avançarão, romperá fogo e inundará de granadas a
bateria inimiga, a qual, deste modo, terá contra si vinte e
quatro peças da Guarda, trinta da divisão Compans e oito
das divisões Friant e Dessaix, Total, sessenta e duas bocas
de fogo.
O general Foucher, comandando a artilharia do 3.` corpo,
colocar-se-á, com todas as baterias de obuses dos 3º e 8º
corpos, num total de dezasseis, em volta da bateria que
bombardeia o reduto da esquerda, o que perfará um
conjunto de quarenta bocas de fogo contra esta bateria.
O general Sorbier esta preparado para à primeira voz se
dirigir com todas as baterias de obuses da Guarda contra
uma ou outra das fortificações.
Durante este canhoneio, o príncipe Poniatowski dirigir-
se-á, através da floresta, em direcção à aldeia e contornaráa posição inimiga. O general Compans embrenhar-se-á na
floresta para tomar o primeiro reduto.
Uma vez a batalha começada desta sorte, as ordens
serão dadas consoante os movimentos do inimigo.
O canhoneio da esquerda iniciar-se-á assim que se ouvir
o canhoneio da direita. Os atiradores da divisão Morand e
das divisões do vice-rei, assim que virem principiado o
ataque da direita, abrirão fogo muito intenso. O vice-rei
ocupará a aldeia, transpondo as três pontes, e seguirá ao
mesmo nível das divisões de Morand e de Friant, que, sob o
seu comando, se dirigirão para o reduto e penetrarão na
linha com as demais tropas.
Tudo isto será feito com ordem e método e conservando
sempre uma boa reserva de homens.
Este dispositivo, pouco claro e assaz confuso, se assim nos é permitido
referirmo-nos, sem blasfémia, ao génio de Napoleão, encerrava quatro pontos,
quatro disposições. Nenhum deles se podia cumprir nem nenhum foi cumprido.
A ordem dizia, em primeiro lugar, que as baterias instaladas no local escolhido
pelo imperador, bem como as peças de Pernety e de Foucher, que a elas se
deveriam associar, ou seja, na sua totalidade, cento e duas bocas de fogo,
romperiam fogo e inundariam de granadas as flechas russas e o reduto. Eis o que
era impossível, visto que dos locais designados os projécteis não Podiam alcançar
as fortificações russas e estas cento e duas peças disparariam debalde até que um
comandante, procedendo contra as ordens dadas, as mandasse avançar.
A sua segunda resolução determinava que Poniatowski se dirigisse à aldeia,
através da floresta, para contornar a ala esquerda dos Russos. Eis o que não podia
executar-se, e o não foi, pois a Poniatowski deparou-se-lhe, na floresta, Tutchkov,
que lhe cortou o passo e o impediu de contornar a posição.
A terceira determinação dizia que o general Compans atravessaria a floresta
para se apoderar da primeira fortificação. A divisão Compans não pôde apoderar-
se desta fortificação e foi repelida, visto que, ao desembocar da floresta, se viu
obrigada a alinhar sob um fogo de metralha que Napoleão não previra.
E a quarta, por fim: «O vice-rei ocupará a aldeia de Borodino transpondo astrês pontes, e seguirá ao mesmo nível das divisões de Morand e Friant, que, sob o
seu comando, se dirigirão para o reduto e penetrarão na linha com as demais
tropas.»
Tanto quanto é possível interpretar esta ordem, não quanto sua confusa
redacção, mas de acordo com as tentativas feitas pelo vice-rei para a executar,
devia ele atravessar Borodino à esquerda do reduto, enquanto as divisões Morand
e Friant atacariam a frente ao mesmo tempo.
Esta ordem, assim como todos os outros pontos do dispositivo, não foi
executada nem o podia ser. Depois de ter ultrapassado Borodino, o vice-rei foi
repelido para o no Kolotcha e não pôde avançar mais: quanto às divisões de
Morand e Friant, essas não tomaram o reduto, sendo esmagadas, e o reduto
apenas foi tomado pela cavalaria no fim da batalha, circunstância que Napoleão
naturalmente não previra. Assim, nenhuma das disposições preconizadas foi
executada e não o podia ser. Lê-se ainda nesse documento que, uma vez iniciada a
batalha de acordo com o dispositivo assente, ordens ulteriores seriam dadas,
consoante os movimentos do inimigo. Era, portanto, de presumir que durante a
batalha Napoleão desse todas as ordens necessárias. Ora tal não aconteceu, o que
aliás seria impossível, visto que, como depois veio a saber-se, o imperador,
durante o combate, se manteve tão afastado que não podia ter conhecimento do
desenrolar da batalha e que nenhuma das suas ordens poderia ter sido executada.
[XXVIII]
Muitos historiadores garantem que a batalha de Borodino não foi ganha pelos
Franceses devido a Napoleão, nesse dia, estar constipado, e que, se não fosse isso,
as suas ordens anteriores à batalha e durante ela teriam sido ainda mais geniais,
a Rússia teria sido derrotada e a face do mundo teria sido outra. Para os
historiadores que admitem ser a Rússia obra da vontade de um único homem, de
Pedro, o Grande, que a França se metamorfoseou de república em império e que
os exércitos franceses penetraram naquele país graças à vontade de um só
homem, de Napoleão, aceitar que a Rússia se manteve poderosa apenas porque o
imperador estava muito constipado no dia 26 eis o que é raciocinar com toda alógica.
Se tivesse dependido da vontade de Napoleão travar ou não a batalha de
Borodino, se dele dependesse tomar esta ou aquela disposição, é evidente que
uma constipação, capaz, necessariamente, de influenciar as manifestações da sua
vontade, podia ter sido a causa da salvação da Rússia e o criado de quarto que no
dia 24 se esqueceu de dar umas botas impermeáveis ao imperador seria a esta
hora, certamente, o nosso salvador. Nesta ordem de ideias, a conclusão é
indiscutível, tão indiscutível como o gracejo de Voltaire ao atribuir a matança de
S. Bartolomeu a uma indisposição de estômago de Carlos IX. Mas, para os homens
que se recusam a admitir que os acontecimentos importantes possam ser a
consequência da manifestação da vontade de um só homem, o argumento
anterior, além de pura e simplesmente absurdo, é contrário a toda a verdadeira
lógica humana. Quando se inquire da causa dos acontecimentos históricos, outra
resposta pode dar-se, qual seja a que o caminho das coisas deste mundo está
determinado antecipadamente, dependendo do concurso do livre arbítrio de todos
os actores dos acontecimentos, não sendo senão externa e aparente a influência
que sobre eles possam exercer os Napoleões.
Por estranho que pareça à primeira vista a asserção segundo a qual a ordem
dada por Carlos IX para a matança de S. Bartolomeu só aparentemente dependeu
da sua vontade, e que a batalha de Borodino, em que oitenta mil homens
perderam a vida, não haja sido ordenada por Napoleão, embora tenha sido ele
quem deu essa ordem e quem orientou os lances da batalha, pois apenas julgou
fazê-lo, por mais ilógico que se suponha, a dignidade humana que nos diz que cada
um de nós não é mais nem menos homem do que qualquer Napoleão leva-nos a
admitir essa solução como uma hipótese, e as investigações históricas plenamente
confirmam tal ponto de vista.
Na batalha de Borodino, Napoleão não disparou um único tiro (1 não matou
quem quer que fosse. Foram os seus soldados quem tudo fez. Por consequência,
não foi ele quem matou.
Os soldados do exército francês acorreram a matar o seu semelhante não para
executarem ordens, mas de livre vontade, Todo o exército — franceses, italianos,
alemães, polacos – esfomeado, esfarrapado, morto de fadiga, ao ver-se diante
desse outro exército que lhe cortava o passo para Moscovo, teve a impressão de
que «o que não tem remédio, remediado está», Se naquele momento Napoleãotivesse proibido os seus soldados de se baterem com os Russos, tê-lo-iam matado a
ele, e teriam ido bater-se fosse como fosse, visto isso ser inevitável.
Quando ouviram ler a ordem do dia de Napoleão, na qual lhes prometia, para
os recompensar dos ferimentos e da morte, o orgulho, para a posteridade, de
terem estado na batalha de Moscovo, gritaram. «Viva o Imperador!»
exactamente como tinham gritado: «Viva o Imperador!» ao verem a criança que
trespassava o globo terrestre com um taco de emboca-bola, e tal qual como o
fariam de cada vez que lhes dissessem uma tolice do mesmo género. Outra coisa,
não podiam fazer senão gritar: «Viva o Imperador!» e marchar para a batalha. Eis
a única maneira, de virem a encontrar em Moscovo, depois da vitória, pão para a
boca e descanso para o corpo, E eis como não foi por causa das ordens do seu amo
que eles mataram o seu semelhante.
E também não foi Napoleão quem dirigiu a luta, visto nada se ter cumprido do
dispositivo que ele traçara, e que ele próprio nada soube da marcha da batalha.
Assim, pois, o facto de estes soldados terem chacinado o seu semelhante não veio
a produzir-se por vontade de Napoleão, mas deu-se, sem sua intervenção, graças à
vontade dessas centenas de milhares de homens que, intervieram no
acontecimento. Bonaparte teve apenas a ilusão de, que tudo era obra de sua
vontade. Por isso mesmo, o ter estado ,constipado ou não conta mais para a
história que a constipação de qualquer dos seus mais modestos soldados.
A constipação de Napoleão no dia 26 de Agosto ainda se torna menos
importante desde o momento em que são injustificadas as demonstrações dos
historiadores ao dizerem ter sido por causa desta indisposição que as suas
resoluções durante a batalha foram menos eficazes do que das outras vezes.
O dispositivo atrás citado não era pior do que os anteriores, era mesmo
melhor que todos os que tinham servido para ganhar outras batalhas. As supostas
ordens dadas por Napoleão durante o combate não eram piores que as
precedentes, mas exactamente iguais. No entanto esse dispositivo e essas ordens
pareceram piores porque a batalha de Borodino foi a primeira que Napoleão não
ganhou. Os mais belos e mais profundos planos parecem sempre maus e os sábios
estrategos criticam-nos com um ar proficiente sempre que acontece não terem
levado à vitória; pelo contrário, parecem excelentes as mais contestáveis
disposições, e os autores mais sérios não se cansam de lhes louvar os méritos,
enchendo sobre eles volumes e volumes, desde que levaram à vitória.O dispositivo de Weirother em Austerlitz era modelar no seu género; no
entanto, foi desaprovado e desaprovaram-no precisamente por causa da sua
perfeição, da minúcia dos seus pormenores.
Na batalha de Borodino, Napoleão desempenhou o seu papel de representante
do poder tão bem ou melhor do que em qualquer das outras batalhas. Nada fez
que prejudicasse a marcha dos acontecimentos. Tomou as medidas mais sensatas;
não perdeu a cabeça, não caiu em qualquer contradição, manteve o sangue-frio e
não fugiu do campo de batalha. Mercê do seu grande tacto e da sua experiência
guerreira, soube desempenhar com calma e dignidade o papel de personagem
fictícia de chefe supremo.
[XXIX]
Ao regressar da segunda e minuciosa inspecção das linhas, Napoleão disse:
— As pedras estão no tabuleiro, amanhã começará o jogo!
Deu ordem para que lhe servissem um ponche, e, chamando De Beausset, pôs-
se a falar-lhe de Paris, das modificações que pensava fazer no palácio da
Imperatriz, surpreendendo o prefeito com o facto de se lembrar das coisas mais
insignificantes da corte.
Interessou-se por futilidades, entreteve-se a brincar com a mania que De
Beausset tinha das viagens e a sua conversa era despreocupada como a de um
cirurgião conhecedor do seu ofício e cheio de confiança em si que vai arregaçando
as mangas e ajustando o avental enquanto colocam o paciente na marquesa.
«Tudo depende de mim e está claro e definido na minha cabeça. Quando
chegar o momento de meter mãos à obra, ninguém fará melhor do que eu; por
enquanto estou no meu direito de gracejar e quanto mais gracejo e estou sereno
tanto mais deveis sentir-vos tranquilos e confiantes e tanto mais o meu génio vos
causará admiração.»
Depois de ingerir o seu segundo copo de ponche, Napoleão foi descansar na
expectativa do grave acontecimento que, como ele pensava, iria dar-se no dia
seguinte.
O que se preparava preocupava-o de mais para o deixar dormir, e apesar da
constipação, que se lhe agravara com a humidade da noite, às três horas da
manhã entrou na grande sala da tenda assoando-se ruidosamente. Perguntou se
os Russos não se haviam retirado. Responderam-lhe que as fogueiras inimigas se
viam sempre no mesmo sítio. Bonaparte abanou a cabeça em sinal de aprovação.
O ajudante-de-campo de serviço penetrou na tenda.
— Então, Rapp, acha que faremos hoje um bom trabalho? — perguntou
Napoleão.
— Sem dúvida nenhuma, Sire — replicou Rapp. Napoleão relanceou-lhe os
olhos.
— Recorda-se, Sire, do que me deu a honra de me dizer em Smolensk? —
voltou Rapp. — «O que não tem remédio, remediado está.»
Napoleão franziu as sobrancelhas e quedou-se por muito tempo calado, com a
cabeça entre as mãos.— Pobre exército — exclamou, de súbito — diminuiu muito desde Smolensk. A
fortuna é uma verdadeira cortesã, Rapp, sempre o disse e começo a senti-lo. Mas a
Guarda, Rapp, a Guarda mantém-se intacta? — perguntou ele.
— Mantém-se, sim, Sire — respondeu Rapp.
Napoleão pegou numa pastilha e levou-a à boca enquanto consultava o
relógio. Não tinha sono; a madrugada ainda vinha longe, e para matar o tempo
nem sequer tinha ordens a dar, pois todas as medidas estavam dadas ou postas
em execução.
— Distribuíram os biscoitos e o arroz aos regimentos da Guarda? — inquiriu
com severa expressão.
— Distribuíram, Sire.
— Mas o arroz?
Rapp disse ter sido ele próprio quem transmitira pessoalmente essas ordens,
mas o imperador abanou a cabeça, com ar descontente, como se duvidasse. Um
criado entrou com o ponche. Mandou que trouxessem outro copo para Rapp e,
calado, pôs-se a saborear o ponche, bebendo gole a gole.
— Não tenho nem paladar nem olfacto — disse, cheirando o copo. — Esta
constipação é insuportável. Estão sempre a falar em medicina. Que medicina é
esta que não é sequer capaz de curar uma constipação? Corvisart deu-me estas
pastilhas, mas para nada prestam. Poderão curar? É impossível curar. O nosso
corpo é uma máquina de viver. Está organizado para isso, é da sua natureza;
deixe-se nele a vida exprimir-se livremente, que ela própria se defenda: obrará
maiores prodígios do que se a cumularmos de remédios. O nosso corpo é
semelhante a um relógio perfeito com corda para um certo tempo; o relojoeiro
não tem o poder de o abrir, mas apenas de o manusear às apalpadelas e de olhos
vendados... O nosso corpo é uma máquina de viver, eis tudo.
E embalado nas definições, coisa tão do seu agrado, logo ali deu outra.
— Sabe o que é a arte da guerra, Rapp? — perguntou. — É a arte de ser mais
forte do que o inimigo em determinado momento. Eis tudo.
Rapp não respondeu.
— Amanhã teremos de nos haver com Koutouzoff! — exclamou Napoleão. —
Vamos a ver. Lembre-se: era ele quem comandava em Braunau e nem uma só vez
em três semanas montou a cavalo para inspeccionar as fortificações. Vamos a ver!
Voltou a olhar para o relógio. Eram apenas quatro horas. Não tinha sono,bebera o ponche e não havia mais que fazer. Levantou-se, pôs-se a passear de um
lado para o outro, e, depois de vestir um redingote mais espesso, pegou no chapéu
e saiu. A noite estava escura e húmida; do céu caía uma imperceptível cacimba. As
fogueiras dos regimentos da Guarda, mesmo — ali, despediam uma luz ténue, e na
distância, através da fumarada, viam-se brilhar as fogueiras das linhas russas.
Tudo estava sossegado, ouvindo-se distintamente o ruído surdo e o tropear das
tropas francesas já em marcha a caminho das suas posições.
Napoleão deu alguns passos, observou as fogueiras, apurou o ouvido ao
tropear dos soldados e ao passar por diante de uma grande praça da Guarda, com
a sua barretina de pelo, que fazia sentinela diante da sua tenda e se imobilizara
como um poste negro assim que sentira chegar o imperador, parou diante dela.
— Há quanto tempo estás de serviço? — inquiriu nesse tom afectuoso, entre
brusco e afável, que lhe era habitual sempre que se dirigia aos soldados.
A praça respondeu.
— Ah, um dos antigos! E arroz? Receberam arroz no regimento?
— Recebemos, majestade.
Napoleão moveu a cabeça e afastou-se.
Às cinco horas e meia, o imperador dirigia-se a cavalo para a aldeia de
Chevardino.
Começava a clarear, o céu iluminava-se, havia apenas uma nuvem para este,
As fogueiras abandonadas apagavam-se na débil claridade do amanhecer.
A direita ressoou um tiro de canhão, abafado e solitário, que se Propagou e
perdeu no silêncio geral, Decorreram alguns minutos. Ouviu-se uma segunda
detonação, depois uma terceira, estremecendo o ar. Uma quarta e uma quinta
mais majestosas se ouviram mais perto, algures, para a direita.
Ainda as primeiras detonações se não haviam esbatido já outras se lhe
sucediam, fundindo-se num reboar contínuo. Napoleão chegara com o seu séquito
ao reduto de Chevardino e desmontara do cavalo. Principiara a partida.
[XXX]
Ao regressar a Gorki, depois de deixar o príncipe André, Pedro deu ordens aoescudeiro para preparar os seus cavalos e acordá-lo às primeiras horas da
madrugada, adormecendo acto contínuo, atrás de um biombo, no cantinho que
Bóris lhe cedera,
Quando acordou, no dia seguinte, ninguém mais havia na isbá. Os vidros das
janelas estremeciam, O escudeiro abanava-o.
— Excelência! Excelência!... — repetia este, obstinado, abanando-o pelos
ombros, sem o olhar, como se tivesse perdido a esperança de o acordar.
— Hem? Já principiou? São horas?! — exclamou ele, finalmente.
— Ouvem-se os tiros — disse o escudeiro, antigo soldado. — Os outros
senhores já se foram embora, e até o Sereníssimo passou há muito.
Pedro vestiu-se apressadamente e veio para o alpendre. A manhã estava clara
e alegre. Havia frio e sentia-se a humidade da cacimba da noite. O Sol, que
acabava de despontar, rompendo cortina de nevoeiro, projectava os seus raios,
ainda entre nuvens, pelos telhados em frente, pela poeira da rua humedecida de
orvalho, pelas paredes das casas, pelas aberturas da sebe, pelos cavalos de Pedro,
que o aguardavam diante da isbá. O troar do canhão tornou-se mais distinto, Um
ajudante-de-campo passou a trote acompanhado de um cossaco.
«São horas, conde, são horas!», gritou ele.
Depois de dar ordem ao criado para o seguir com o cavalo. Pedro meteu pelo
caminho que conduzia ao cabeço donde examinara na véspera o campo de batalha.
Um rancho de militares ali estava reunido, ouviam-se as conversas em francês dos
oficiais do estado-maior, no meio dos quais alvejava a cabeça branca de Kutuzov,
com a sua barretina alvadia, de banda vermelha, e a sua espessa nuca enterrada
nos largos ombros. Perscrutava o horizonte com um binóculo, para os lados da
estrada real.
Ao subir os degraus que davam acesso ao cabeço, Pedro olhou lá para baixo e
quedou extasiado diante do espectáculo que se lhe oferecia. Era o mesmo
panorama que contemplara na véspera, mas agora toda a campina estava coberta
de soldados e de fumo, e os raios oblíquos do Sol, que se erguia por detrás e à
esquerda de Pedro, inundavam-no, através da atmosfera diáfana da manhã, de
uma deslumbrante luz dourada com resplendor rosado e grandes sombras negras.
Os bosques longínquos que fechavam o panorama pareciam talhados numa pedra
preciosa verde— amarelada e as suas encostas recortavam-se em linhas
ondulosas, interceptadas por detrás de Valuieva pela estrada real de Smolensk,toda coberta de tropas. Mais perto resplandeciam campos dourados e matas
novas. Por toda a parte havia soldados: em frente, à direita, à esquerda. Tudo
aquilo estava cheio de movimento, de majestade, de imprevisto, mas o
espectáculo que mais chamou a atenção de Pedro foi o próprio campo de batalha,
Borodino e o vale de Kolotcha, numa e noutra margem do rio.
Em Borodino, em ambas as margens do rio, e sobretudo a esquerda, na
confluência de Voina, de margens alagadiças, desdobrava-se um véu de neblina,
que se dissipava e se vaporizam ao calor do sol, imprimindo cores e contornos
mágicos a tudo que deixava a descoberto. A este nevoeiro misturava-se a
fumarada da pólvora, e por toda a parte, por cima dessas nuvens, se reflectiam os
lampejos furtivos da luz matinal, dardejando a água, o orvalho e as pontas das
baionetas que se acumulavam ao longo dos rios e na povoação. Através da neblina
surgiam a branca igreja, aqui e ali os telhados das isbás, a espaços massas
compactas de soldados, e, de onde em onde, armões pintados de verde e peças de
artilharia. Tudo isto remexia, ou parecia remexer, emergindo da névoa que se
estendia sobre essa vasta área. Tanto nos lugares baixos cobertos de neblina, nas
imediações de Borodino, como fora daí, mais para cima, e sobretudo mais à
esquerda das linhas, pelas matas, pelos campos, pelos vales e nos altos dos
cabeços, apareciam a todo o momento novelos de fumo, umas vezes isolados,
outras em turbilhões, agora mais longe, logo mais perto, inchando, engrossando,
turbilhonando, misturando-se, enchendo o espaço.
Aqueles novelos de fumo e, por estranho que pareça, as detonações que os
acompanhavam constituíam a beleza principal do espectáculo.
«Paf!», e de súbito lá surgia um circulo de fumo compacto, que se tingia de
violeta, de cinzento e de um branco-leitoso. E um segundo depois «Bum!», ouvia-se
o estampido.
«Paf! Paf!» Dois círculos de fumo se projectavam no ar, se entrechocavam, se
confundiam. «Bum! Bum!» ouvia-se em seguida, e os estampidos confirmavam o
que os olhos viam.
Pedro viu a fumarada redonda, suspensa no ar como um balão compacto, e
logo, no seu lugar, mais balões que se alongavam.
«Paf!... » E daí a pouco, outra vez: «Paf! Paf!» Lá vinham mais três, quatro,
com intervalos igualmente regulares: «Buum! Buum... Buum!» ecoavam, plenas e
seguras, as majestosas detonações. Os novelos de fumo ora pareciam fugir ora dir-se-ia imóveis, e então eram as matas, os campos, as baionetas faiscantes que
fugiam. A esquerda, nos campos de lavoura e nas moitas, lá iam surgindo
continuamente estes grossos novelos de fumo, acompanhados do seu estrondear
solene, enquanto mais perto, junto das colinas e das matas, rebentava o
fumozinho das espingardas, que não tinha tempo de se estender, formando bolas,
e logo era seguido de breve crepitar. «Trá... tá, tá, tá... » matraqueava a fuzilaria,
com intervalos rápidos mas irregulares e relativamente raros comparados com a
detonação das peças de artilharia.
Pedro sentiu desejos de estar ali onde se viam esses novelos de fumo, essas
baionetas faiscando, aquele movimento, aquele ruído. Relanceou os olhos a
Kutuzov e ao seu séquito, como que a comparar as suas impressões com as deles.
Todos estavam de olhos fitos no espectáculo do campo de batalha, tal como ele, e
pensou que todos sentiam o que ele estava a sentir. Em todos os rostos
resplandecia esse calor latente, que ele já tivera ocasião de ver na véspera, e que
plenamente compreendera depois da sua conversa com o príncipe André.
«Vai, meu amigo, vai, que Cristo te acompanhe!», dizia Kutuzov, sem tirar os
olhos do campo de batalha, para um general que estava a seu lado.
O general a quem fora dada esta ordem passou diante de Pedro, dirigindo-se
para o fundo do cabeço.
«Ao vau!», exclamou fria e severamente o general a um dos oficiais do estado-
maior que lhe perguntava aonde ia.
«E eu também, eu também vou», disse Pedro de si para consigo, e foi no
encalço do general.
Este montou no cavalo que um cossaco lhe apresentou. Pedro abeirou-se do
seu escudeiro, que mantinha os cavalos pela arreata. Perguntou-lhe qual deles era
o mais manso, montou, agarrou-se-lhe às crinas, firmou-se na sela e deixou-se levar
a galope, no meio da comitiva do general, provocando sorrisos entre os oficiais do
estado-maior que o olhavam do alto do cerro.
[XXXI]
O general que Pedro seguia, depois de descer a encosta, voltou bruscamentepara a esquerda, e Bezukov, tendo-o perdido de vista. Precipitou-se no meio das
fileiras dos soldados de infantaria que marchavam na sua frente. Tratou de se
escapar no meio deles, primeiro avançando, depois voltando para a esquerda e em
seguida para a direita, Para onde quer que se voltasse, só via soldados com a
mesma expressão preocupada, entregues a um labor invisível, mas muito
importante sem dúvida, Todos olhavam para aquele homem corpulento, de chapéu
branco, que, sem necessidade, os atropelava com o seu cavalo, com um olhar ao
mesmo tempo interrogador e descontente.
«Que vens tu fazer a cavalo para o meio do batalhão?», gritou-lhe um dos
soldados.
Outro assentou uma coronhada no animal e Pedro, firmando-se no arção da
sela, dominando a custo o cavalo, que tomara e, freio nos dentes, lá conseguiu
desenvencilhar-se dos soldados, ganhando o espaço livre. Na sua frente estava
uma ponte junto da qual outros soldados disparavam. Aproximou-se. Sem saber,
estava na ponte do no Kolotcha, entre Gorki e Borodino, ponte que os Franceses,
depois de tomarem esta última povoação durante a primeira fase da batalha,
acabavam de atacar. Viu na sua frente a ponte e os soldados que faziam fosse o
que tosse, de ambos os lados do no e na campina, no meio da fumarada, por entre
as medas de palha em que não reparara na véspera. No entanto, não obstante o
tiroteio intenso, não lhe veio à mente que se encontrava em plena batalha. Não
ouvia as balas que assobiavam de todos os lados nem as granadas que lhe
passavam por cima da cabeça; não via o inimigo na outra margem do rio, e levou
tempo a perceber que eram mortos e feridos que caíam a seu lado. Olhava para
tudo com o sorriso que lhe não saía dos lábios.
«Que anda aquele a fazer no meio das linhas?», gritou uma voz.
«A direita, à esquerda!», exclamaram outras vozes.
Pedro meteu pela direita e viu-se inopinadamente diante de um ajudante-de-
campo do general Raievski, seu conhecido. O oficial mirou-o colérico e ia cobri-lo de
injúrias quando o reconheceu, dirigindo-lhe um aceno de cabeça.
— Que está aqui a fazer? — interrogou ele, e continuou galopando.
Pedro, que sentia estar ali deslocado e que para nada servia, receoso de
embaraçar ainda mais aquela gente seguiu a galope o ajudante-de-campo.
— Que aconteceu? Posso acompanhá-lo? — perguntou.
— Espere, espere! — replicou o ajudante-de-campo, e, depois de se dirigir aum coronel gordanchudo parado no meio da campina, transmitiu-lhe uma ordem e
voltou para junto de Pedro.
— Que veio aqui fazer, conde? — disse-lhe, sorrindo. — Por simples
curiosidade?
— Pois, pois — disse Pedro.
O ajudante-de-campo fez meia volta e seguiu o seu caminho,
— Graças a Deus, isto aqui não é nada — disse ele —, mas no flanco esquerdo,
o de Bagration, a coisa está feia.
— Realmente? — exclamou Pedro. — Onde é isso?
— Venha comigo ao cabeço. Lá de cima vê-se tudo muito bem, Na nossa
bateria as coisas não vão mal. Bom, quer vir?
— Vou, vou consigo — replicou Pedro, olhando à volta a procura do escudeiro.
Foi então que pela primeira vez viu soldados feridos arrastando-se por seu pé
ou levados em padiolas. Naquele mesmo prado, com as suas cheirosas medas de
palha, por onde ele passara na véspera, jazia um soldado imóvel, com a cabeça
voltada de forma estranha e cuja barretina rolara por terra.
«Porque não levaram este?», ia ele dizer, mas calou-se, reparando na severa
expressão do ajudante-de-campo, que olhara para o mesmo sítio,
Não foi capaz de descobrir o escudeiro, e na companhia do ajudante-de-campo
meteu pelo talude para atingir a encosta de Raievski. O seu cavalo, no rasto do do
companheiro, balouçava-o cadenciadamente.
— Bem se vê que não está habituado a montar, conde — disse o ajudante-de-
campo.
— Estou, mas este cavalo tem um trote muito duro — tornou Pedro,
embaraçado.
— Oh!, espere... Está ferido na perna direita, acima do joelho. Naturalmente
foi uma bala. Os meus parabéns, conde: o baptismo do fogo.
Ultrapassaram o sexto corpo no meio da fumarada, na retaguarda da
artilharia, que, instalada na vanguarda, disparava ininterruptamente, com um
matraquear ensurdecedor. E assim penetraram numa matazinha. Estava fresco ali,
havia uma grande serenidade e sentia-se no ar esse cheiro especial do Outono.
Pedro e o ajudante-de-campo desmontaram e subiram a pé a encosta.
— Está o general? — perguntou o ajudante-de-campo ao chegar ao cabeço.
— Ainda há pouco aí estava, mas foi para aquele lado — responderam-lhe,apontando para a direita,
O ajudante-de-campo voltou-se para Pedro, como se não soubesse que destino
dar-lhe.
— Não se preocupe — disse-lhe este — Se não há inconveniente, vou instalar-
me lá em cima, no cabeço.
— Está bem, vá. Dali vê-se tudo e não é muito perigoso. Depois irei buscá-lo.
Pedro encaminhou-se para a bateria e o ajudante-de-campo prosseguiu o seu
caminho, Nunca mais se viram e muito tempo depois Pedro veio a saber que nesse
mesmo dia o seu companheiro ficara sem um braço.
O cabeço a que Pedro trepou veio a ser um lugar célebre — mais tarde
conhecido entre os Russos pela «bateria de Raievski» e entre os Franceses por o
grande reduto, o reduto fatal, o cabeço do centro —, e a sua volta tombaram
dezenas de milhares de homens, considerando-o os Franceses como tendo sido a
chave da posição.
O reduto era formado por trincheiras abertas nos três lados do cabeço. Dentro
dessas trincheiras disparavam dez peças de artilharia que cuspiam metralha pelas
canhoneiras abertas no parapeito.
Alinhadas de cada lado do cabeço havia outras peças que não cessavam de
disparar. Um pouco à retaguarda estavam as tropas de infantaria. Quando Pedro
ali chegou, nem por sombras lhe passou pela cabeça que aquelas trincheiras com
aquele punhado de peças de artilharia representavam o ponto mais importante de
toda a batalha.
Pelo contrário, precisamente porque ele ali se encontrava, pensava que devia
ser uma das posições mais insignificantes. Assim que chegou instalou-se na
extremidade da trincheira que contornava a bateria e pôs-se a observar, sorrindo,
entre inconsciente e divertido, o que se passava à sua volta. Levantava-se, de
tempos a tempos, sem deixar de sorrir. Fazia por não incomodar os soldados que
carregavam as peças e as punham em posição, continuamente passando diante
dele com sacos e projécteis. E por ali andava de passeio no meio da bateria. Os
canhões continuavam a disparar, uns atrás dos outros, com um ronco ensurdecedor
e enchendo tudo de fumo. Enquanto entre as tropas de infantaria encarregadas de
proteger aquela posição se sentia uma espécie de mal-estar, ali, onde um pequeno
número de homens, separados por um fosso de todos os demais, se entregava à
sua tarefa, a animação era geral e comum, como se se tratasse de uma família.A aparição de Pedro. à paisana e de chapéu branco, principiou por causar
desagradável impressão naquela gente. Ao passarem diante dele olhavam-no de
soslaio, com grande espanto e até com uma espécie de receio. Um oficial de
artilharia, homem alto, trangalhadanças, aproximou-se de Pedro, fingindo querer
verificar o funcionamento da peça do extremo, e fitou-o cheio de curiosidade.
Outro oficialzito, de cara redonda, pouco mais que uma criança, sem dúvida
acabado de sair da escola militar, que andava a inspeccionar, cheio de zelo, as
duas peças que lhe haviam sido confiadas, dirigiu-lhe a palavra, muito severo:
«Faça o favor de se afastar daqui. Não é permitido.»
Os soldados continuavam a abanar a cabeça, pouco satisfeitos. A verdade,
porém, é que quando se convenceram de que aquele indivíduo de chapéu branco
não estava ali a fazer mal algum, que apenas queria estar muito sossegado,
sentado no barranco ou a passear na bateria com um sorriso tímido nos lábios,
afastando-se delicadamente dos soldados para os não embaraçar, e tão calmo sob
a metralha como se estivesse numa avenida, o sentimento de hostilidade que
sentiam principiou a transformar-se numa simpatia afectuosa e levemente
prazenteira, como a que os militares costumam mostrar por todos os animais Que
aparecem junto do campo de batalha: cães, galos e bichos quejandos.
Imediatamente os soldados acolheram Pedro como um dos seus e até desde logo
lhe puseram uma alcunha, chamando-lhe «Nosso Senhor» e troçando dele
amigavelmente.
Um projéctil rasgou o solo a dois passos de Pedro, o qual, sacudindo a poeira
que lhe manchara o fato, olhou em volta de si, sorrindo.
— Com que então o senhor não tem medo? — exclamou um soldado, de
ombros largos e cara vermelha, mostrando os seus grandes dentes brancos.
— E tu, tens medo, tu? — volveu-lhe Pedro.
— Mas é que... — tornou o soldado. — As balas não trazem endereço. Quando
caem, até as tripas se nos arrepanham.
— Ninguém há que não tenha medo — acrescentou, rindo. Alguns soldados, de
alegre e prazenteiro parecer, tinham-se-lhes juntado. Dir-se-ia esperarem que
aquele senhor não falasse como toda a gente, e ao darem pelo engano
rejubilavam.
«Nós, é a nossa obrigação. Mas ele, o senhor, caramba! Isto é que é um
cavalheiro!»— Para os seus postos —, gritou o oficialzito para os soldados que se tinham
juntado em volta de Pedro.
Via-se que era a primeira ou a segunda vez que desempenhava as funções de
oficial, por isso estava a ser tão exacto e formalista com as suas praças e diante
dos seus superiores.
O troar dos canhões e a fuzilaria iam crescendo em todo o campo de batalha,
especialmente à esquerda, onde ficavam as flechas de Bagration, mas do local
onde Pedro estava quase nada se via por causa do fumo da pólvora que pairava no
ar, Além disso, aquele pequeno grupo dos homens da bateria, por assim dizer uma
pequena família isolada do resto das tropas, absorvia-lhe por completo a atenção.
A primeira emoção, entre inconsciente e alegre, que lhe provocara o troar do
canhão e o espectáculo que tinha diante dos olhos desaparecera e o que sentia
agora era completamente diferente, sobretudo depois de ter visto aquele soldado
solitário prostrado no meio do terreno. Do talude onde estava sentado deixava-se
agora absorver de todo na contemplação dos seres humanos que o rodeavam.
Pelas dez horas, duas dezenas de homens tinham sido levados da bateria; duas
peças haviam sido desmanteladas; e eram cada vez em maior número os projécteis
que caiam ali e as balas perdidas que passavam zumbindo e assobiando. Os
artilheiros, porém, dir-se-ia não darem por coisa alguma, continuando a trocar
entre si ditos e zombarias.
«Aí vem uma de arromba!», gritou um deles ao ver aproximar-se um obus, que
passou sibilando.
«Não é para nós, é para os da infantaria!», exclamava outro, soltando uma
gargalhada, ao ver que o obus lhes passara por cima da cabeça e ia cair no meio
das tropas de cobertura.
«Hem! Parece das tuas relações!», acrescentou um terceiro, dirigindo-se a um
camponês que se atirara para o chão quando o projéctil se aproximou.
Alguns soldados vieram debruçar-se no parapeito perscrutando o que se
passava diante deles.
«Estás a ver? Romperam as linhas. Recuaram!», diziam eles. «Tratem das
vossas obrigações, rapazes!», gritou-lhes um velho sargento. «Se andaram para
trás, é porque têm lá qualquer coisa que fazer.»
E o sargento, agarrando um deles pelo ombro, despediu-lhe uma joelhada.
Romperam gargalhadas.«Quinta peça! A postos!», soou uma voz de comando.
«Todos à uma! Arriba!», gritaram alegremente os que punham a peça em
posição.
«Caramba! Por pouco lá ia o chapéu do Nosso Senhor!», gracejou o farsista de
ventas coradas, mostrando os dentes brancos, ,Aquilo é que é um animal!»,
acrescentou, furioso, dirigindo-se a uma bala que acabava de atingir ao mesmo
tempo uma roda e a perna de um homem.
«Eh!, cachorros!», vociferou outro ao ver os milicianos todos curvados que
penetravam na bateria para levar o ferido.
«As papas não estão de apetecer, hem? Eh, caguinchas, isso é que são dores de
barriga!», gritavam para os mujiques especados diante do soldado com a perna
decepada.
«Em que estado te puseram, meu rapaz!», acrescentavam, arremedando-os.
«Disto é que eles não gostam!»
Pedro notava que quanto mais balas caíam e quanto maior o número de
mortos e feridos mais crescia a excitação dos artilheiros.
Como se a tempestade se aproximasse, todos aqueles rostos estavam cada vez
mais iluminados, num desafio de raios e coriscos, por um fogo oculto e
esbraseante.
Pedro deixara de olhar para o campo de batalha e parecia não se importar já
com o que se estava ai a passar. Aquela chama cada vez mais viva que lhe ia
queimando a alma, a ele também, mais e mais se assenhoreava dele.
Às dez horas a infantaria que alinhava diante da artilharia nas bouças e nas
margens do Karnenka bateu em retirada. Lá de cima, daquele posto, via-se toda
aquela gente fugir, levando consigo os soldados feridos em cima das espingardas
ensarilhadas. Então um general, acompanhado da sua comitiva, apareceu no
cabeço. Disse qualquer coisa ao coronel e, lançando um olhar irritado a Pedro,
voltou a retirar-se depois de ter dado ordem às tropas de cobertura, alinhadas
atrás da bateria, para que se deitassem de barriga no chão, única forma de
estarem menos expostas à fuzilaria. Pouco depois ouviu-se rufar o tambor nas
fileiras da infantaria, à direita da bateria. Vozes de comando ressoaram e a coluna
pôs-se em marcha para a frente.
Pedro lançou os olhos por cima do parapeito. Impressionou-o sobretudo a
expressão de uma das caras: a do oficial que marchava de costas para os seushomens, o rosto imberbe muito pálido, a espada baixa, olhando inquieto à sua
volta.
A infantaria desapareceu no meio da fumarada e nada mais se ouviu além de
prolongados clamores e tiroteio intenso, Alguns minutos depois surgiram dali
muitos feridos, uns a pé, outros em padiolas. Os projécteis cada vez caíam mais
numerosos sobre a bateria. Havia homens por terra, abandonados. Os artilheiros
não tinham mãos a medir em volta das peças. Ninguém dava já pela presença de
Pedro. Por duas ou três vezes vozes coléricas lhe gritaram que se afastasse. O
comandante, de sobrancelhas franzidas, em grandes passadas precipitadas, ia de
uma peça para outra.
O oficialzito, cada vez mais corado, dava ordens, ainda mais zeloso. Os soldados
passavam com os projécteis, carregavam as peças, cumprindo a sua tarefa com
admirável bravura, para um lado e para o outro, dir-se-ia impelidos por molas.
A nuvem tempestuosa aproximava-se e em todos os rostos ardia esse fogo
intenso que Pedro via crescer, Estava ao lado do comandante. Entretanto, o
oficialzito, com a mão na pala da barretina, aproximou-se do superior:
— Tenho a honra de o prevenir, meu coronel, de que apenas dispomos de oito
cargas. Devemos continuar a fazer fogo? «Metralha!», gritou o coronel, que
continuou a olhar para o parapeito, sem responder directamente ao subordinado.
Subitamente, qualquer coisa de inesperado aconteceu. O oficialzito soltou um
gemido rodopiando sobre si mesmo e caiu no chão como uma ave atingida em
pleno voo, Diante dos olhos de Pedro correu uma cortina estranha, vaga e
sombria.
Os projécteis assobiavam uns atrás dos outros, crivando o parapeito, os
artilheiros e as peças. Pedro, que até ali não prestara a mais pequena atenção a
esse ruído, agora não podia ouvir outra coisa. De um dos lados da bateria. à
direita, corriam soldados gritando: «Hurra!», mas não marchavam em frente,
antes retrocediam, segundo se afigurava a Pedro.
Um projéctil atingiu o rebordo do parapeito onde ele estava, cobrindo-o de
terra. Uma bola negra lhe passou diante dos olhos e no mesmo instante ouviu-se
uma pancada mole, Os milicianos que penetravam na bateria debandaram.
«Metralha em todos os canhões!», gritou o oficial,
Um sargento aproximou-se dele a correr e murmurou-lhe ao ouvido, cheio de
pânico, que as munições tinham acabado. Dir-se-ia um mordomo anunciando aodono da casa, no meio de um banquete, não haver mais vinho para os convidados.
«Bandidos! Que estão eles aqui a fazer?», gritou um oficial, virando-se para
Pedro.
Tinha o rosto corado e coberto de suor; os olhos, cavados nas órbitas,
cintilavam-lhe.
«Corre às reservas, Que tragam as caixas de munições!», acrescentou,
dirigindo-se a um artilheiro, enquanto relanceava a Pedro um olhar iracundo.
«Eu vou», disse este.
Sem lhe responder, o oficial afastou-se a passos largos. «Cessar fogo!
Esperem!», ordenou o oficial.
O artilheiro que recebera ordem para ir buscar munições tropeçou com Pedro.
«Eh, senhor! O seu lugar não é aqui!», gritou-lhe, enquanto descia a encosta a
correr.
Pedro seguiu-o contornando o local onde tombara o oficialzito.
Um, dois, três projécteis lhe passaram por cima da cabeça, caindo à sua volta.
Pedro galgou o parapeito. «Aonde vou eu?», disse, de súbito, de si para consigo,
ao chegar junto das caixas pintadas de verde. Parou, indeciso, sem saber se havia
de voltar para trás ou prosseguir no seu caminho— De súbito uma pancada por
detrás o atirou para o chão. Acto contínuo uma grande labareda o envolveu,
enquanto o estampido de um trovão ensurdece— dor, à mistura com agudos
silvos, lhe abalava os tímpanos.
Quando voltou a si, encontrou-se sentado no chão, as mãos apoiadas no solo.
Do armão junto do qual ele se encontrava não havia vestígios. Apenas se viam,
aqui e ali, pranchas verdes, calcinadas, e sobre a erva requeimada alguns trapos.
Um cavalo arrastando atrás de si uns varais em estilhas partiu a galope: outro
jazia por terra, como ele próprio, soltando prolongados relinchos de dor.
[XXXII]
Pedro, aterrorizado, sem saber o que fazia, pôs-se de pé e correu para a
bateria, como se fosse aquele o único refúgio contra todos os horrores de que
estava rodeado.Ao penetrar na trincheira notou, surpreendido, que se não ouviam as peças e
que outros soldados ocupavam a bateria. Não teve tempo de se dar conta de
quem era aquela gente. Viu o velho coronel de barriga contra o parapeito, como
se estivesse debruçado a ver o que se passava em baixo, e um soldado, que já
notara antes, debatendo-se no meio de uns homens que o seguravam pelos braços
e gritava: «Irmãos!» E ainda viu mais coisas estranhas. Não teve tempo de
compreender que o coronel estava morto, que o soldado fora feito prisioneiro e
que outro homem, diante dos seus olhos, acabava de ser trespassado pelas costas
por uma baioneta.
Assim que penetrara no reduto, um homem, de uniforme azul, magro, amarelo,
coberto de suor, veio sobre ele, de espada na mão, gritando, Pedro,
instintivamente, furtou o corpo, para evitar o embate, já que ambos corriam um
para o outro sem se terem visto. Estendeu os braços e agarrou esse alguém, que
era um oficial francês, lançando-lhe uma mão a um ombro e a outra à garganta. O
oficial, deixando cair a espada, apanhou-o pelo pescoço.
Por instantes cravaram os olhos um no outro, assustados, perplexos, sem saber
o que tinham feito nem o que deviam fazer. Cada um deles se perguntava a si
próprio: «Sou eu ou ele quem está prisioneiro?» O oficial francês parecia mais
inclinado para primeira hipótese, pois a mão vigorosa de Pedro, compelida por um
terror involuntário, cada vez lhe apertava mais a garganta. Afigurou-se-lhe que
ele queria dizer qualquer coisa quando uma bala lhes passou rente ao crânio,
deixando atrás de si um silvo sinistro, e tão perto que Pedro julgou que a cabeça
do francês lhe fora decepada, tão rapidamente ele a abaixara.
Também Pedro, por sua vez, se agachou ao soltar o desconhecido, Sem se
preocupar em saber qual deles era o prisioneiro, o oficial correu para a bateria e
Pedro rolou do cabeço, tropeçando nos mortos e nos feridos com a sensação de
eles se lhe agarrarem às pernas. Ainda não chegara, porém, ao fundo do barranco
quando se viu no meio de uma massa compacta de russos que corriam direitos à
bateria, soltando gritos de alegria e atropelando-se uns aos outros. Era o ataque
de que Ermolov se vangloriou, dizendo que fora graças à sua bravura e boa sorte
que pudera dar-se aquele prodígio e acrescentando que distribuíra às mãos-cheias,
no alto do cabeço, quantas cruzes de S. Jorge levava na algibeira.
Então os franceses que ocupavam a bateria debandaram. E os russos, soltando
hurras, lançaram-se atrás deles com tal entusiasmo que muito a custo osdetiveram na perseguição.
Na bateria fizeram-se alguns prisioneiros, entre os quais um general francês
ferido, que logo se viu rodeado por oficiais russos. Um nunca acabar de feridos,
russos e franceses, conhecidos e desconhecidos de Pedro, de feições transtornadas
pelo sofrimento, passavam, arrastando-se penosamente pelo seu pé ou levados em
padiolas. Voltou a subir ao reduto, onde permaneceu mais de uma hora, e nem um
só dos homens daquele grupo de amigos que momentaneamente o tinham
chamado a si restava com vida, No monte de mortos havia alguns seus conhecidos.
O oficialzito lá estava, todo contorcido, sobre o parapeito, num lago de sangue. O
soldado de cara afogueada ainda fazia alguns movimentos convulsivos, mas ali o
tinham deixado ficar.
Pedro abalou a correr pelo talude abaixo.
«Ah, agora vão acabar com isto, naturalmente. Já devem estar satisfeitos com
o que fizeram!», pensava ele, seguindo sem destino a fileira interminável de
padiolas vindas do campo de batalha.
O Sol, porém, velado pela fumarada, ainda ia alto no céu, e lá adiante,
principalmente à esquerda, dos lados de Semionovskoie, qualquer coisa se agitava
por entre o fumo. Não só se não aplacavam, antes pareciam mais
desesperadamente intensos o ribombar das peças e a fuzilaria das espingardas.
Dir-se-ia um homem que quase sem forças solta o seu ultimo grito.
[XXXIII]
A acção principal da batalha desenrolou-se numa área de mil sagenas, entre
Borodino e as linhas de Bagration. Para além deste espaço, por um lado, a
cavalaria de Uvarov, à volta do meio-dia, fez uma demonstração e, pelo outro,
para os lados de Utitsa, houve um recontro entre Pomatowski e Tulchkov, nada
mais, porém, que insignificantes operações parciais quando compara— das com o
que acontecera no centro. Foi entre Borodino e as linhas junto da floresta, num
espaço livre e aberto dos dois lados, que se travou a verdadeira batalha, da
maneira mais simples e sem qualquer ardil.
De princípio apenas houve o canhoneio recíproco de centenas de bocas de fogo.Depois, quando a fumarada principiou a, encobrir todo o campo de batalha,
puseram-se em marcha, à direita, do lado francês, as duas divisões Dessaix e
Compans, que avançaram sobre as linhas, e, à esquerda, os regimentos do vice-rei,
que inflectiram sobre Borodino. Do reduto de— Chevardino, onde se encontrava
Napoleão, até às linhas distava apenas uma versta, mas daí a Borodino, em linha
recta, seriam pouco mais de duas. Eis porque o imperador não podia ver o que se
passava aí, tanto mais que o fumo, de mistura com a neblina, se estendia por cima
de todo o terreno. No que diz respeito às tropas da divisão Dessaix, essas só foram
visíveis quando apareceram por detrás da ravina que as separava das flechas.
Assim que entraram aí, o fumo dos canhões e da fuzilaria tão densamente cobriu
as flechas que ocultou toda a vertente da ravina oposta, Através da espessa
nuvem apenas se divisava qualquer coisa com a vaga configuração de soldados e
de longe em longe o faiscar de uma baioneta. Mas de Chevardino era
completamente impossível saber se se moviam ou permaneciam imóveis, se se
tratava de franceses ou de russos.
O Sol erguia-se brilhante no céu e os seus raios vinham banhar directamente o
rosto de Napoleão, que para observar as linhas se via obrigado a proteger os
olhos com a mão. A fumarada cobria o terreno e ora parecia deslocar-se ora dava
a impressão de que eram as tropas que se moviam. As vezes, entre as detonações,
ouviam-se gritos, mas não era possível saber-se o que se passava.
Napoleão, de pé, no cômoro, estava de óculo assestado, e o limitado campo da
objectiva deixava-lhe ver fumo e soldados, ora o fumo e os soldados franceses ora
o fumo e os soldados russos. Assim que observava, porém, o terreno à vista
desarmada já lhe não era possível situar exactamente o que acabara de ver.
Desceu do cabeço e começou a passear de um lado para o outro.
A verdade é que nem do lugar em que estava Napoleão nem do alto da
eminência onde tinham ficado vários dos seus generais, nem mesmo das próprias
linhas agora ocupadas umas vezes pelos Franceses, outras pelos Russos, soldados
mortos, feridos, vivos, aterrorizados ou meio loucos, em parte alguma podia saber-
se o que se estava a passar naquele local. Durante muitas horas, naqueles sítios,
no meio do ininterrupto troar das peças de artilharia e da fuzilaria das
espingardas, tão depressa apareciam os Russos como os Franceses e ora eram
soldados de infantaria ora de cavalaria que caíam, disparavam, tropeçavam uns
nos outros, gritando e fugindo sem saber o que deviam fazer.Dos diversos pontos do campo de batalha estavam sempre a chegar ajudantes-
de-campo expedidos ao imperador, oficiais de ordenança dos marechais
encarregados de trazer informações sobre a marcha da batalha, mas tudo o que
diziam era falso, pois no calor da batalha não se podia dizer o que estava a passar-
se num determinado momento e, aliás, muitos destes oficiais não Podiam atingir
sequer os pontos designados, limitando-se a repetir o que ouviam. Além disso,
enquanto eles percorriam as duas ou três verstas que os separavam de Napoleão,
as coisas modificavam-se e as notícias por eles trazidas deixavam de corresponder
à situação. Assim, um ajudante-de-campo do vice-rei veio anunciar que Borodino
fora tomada e que a ponte do Kolotcha estava nas mãos dos Franceses,
perguntando a Napoleão se dava ordem para as tropas atravessarem o rio, ao que
lhe foi respondido que se mandassem alinhar as tropas na outra margem e que
esperassem aí. No momento, porém, em que era dada esta ordem, melhor ainda,
mal o ajudante-de-campo saíra de Borodino, a ponte fora retomada e queimada
pelos Russos, feito a que Pedro assistira no princípio da batalha.
De regresso das flechas, um ajudante-de-campo, muito pálido, o terror pintado
no rosto, anunciou ao imperador que o ataque fora repelido, que Compans estava
ferido e Davout fora morto. Enquanto, todavia, ele comunicava estas notícias, as
fortificações haviam sido de novo ocupadas por outras tropas e Davout continuava
vivo, pois apenas fora ligeiramente ferido.
Guiando-se por estas informações, evidentemente falsas, Napoleão dava
ordens já cumpridas ou que teriam sido impossíveis de executar.
Os marechais e os generais que se encontravam mais perto dos
acontecimentos, mas que, tal como Napoleão, não participavam da batalha e
raramente penetravam na zona de fogo, tomavam as suas disposições sem
consultar o imperador e transmitiam as suas ordens sobre onde devia incidir o
fogo e como a cavalaria e a infantaria deveriam intervir. Mas estas ordens, bem
como as do imperador, só em pequena escala eram executadas e muito raramente,
a maior parte das vezes ao contrário das circunstâncias. As tropas que recebiam
ordem para avançar, surpreendidas pela metralha, debandavam; aquelas que
recebiam ordem para permanecer no seu lugar, ao verem surgir o inimigo
inopinadamente, punham-se em fuga ou então atacavam-no, e a cavalaria, sem ter
recebido ordem para isso, lançava-se na perseguição dos russos em debandada.
Assim, dois regimentos de cavalaria que atravessaram a ravina de Semionovskoie,mal atingiram o cume viraram de rédea, regressando ao mesmo sítio a galope. E
outro tanto aconteceu com a infantaria, que muitas vezes se precipitou sobre
pontos que não estavam prescritos. Todas as ordens relativas às deslocações das
peças de artilharia, dos batalhões de fuzileiros e das tropas montadas, com o
objectivo de carregar sobre a infantaria russa, quem as deu foram os comandantes
mais próximos das fileiras, sem pedirem conselho nem a Ney, nem a Davout, nem a
Murat, quanto mais a Napoleão. Não receavam ser castigados por não haverem
executado o que estava prescrito ou por terem agido de moto próprio, pois a
verdade é que numa batalha ninguém pensa senão no que tem de mais precioso,
ou seja, na própria vida, e o que pode acontecer é Que umas vezes a salvação
esteja na fuga para a retaguarda e outras na marcha avante.
Estes homens, no calor da refrega, agiam segundo as circunstâncias. Na
verdade, todos estes movimentos para a frente ou para trás não aliviavam nem
modificavam a posição das tropas. Esses ataques, quer a pé, quer a cavalo, não
produziam grande mortandade; o que semeava os ferimentos, as mutilações e a
morte eram os projécteis, as balas que voavam por todos os lados na área onde se
moviam as tropas. Logo que os homens atingiam a zona a que os projécteis não
chegavam, os comandantes, na retaguarda, obrigavam-nos a cerrar fileiras,
restabelecendo a disciplina, e, graças a esta disciplina, voltavam a expedi-los para
aquele círculo de fogo onde o medo da morte os fazia perder de novo o sangue-
frio, entregando-os ao cego instinto das multidões.
[XXXIV]
Os generais de Napoleão, Davout, Ney, Murat, encontravam-se perto da linha
de fogo e inclusivamente chegaram até ela algumas vezes conduzindo massas
enormes de tropas bem disciplinadas. Mas, ao contrário do que acontecera
invariavelmente nas precedentes batalhas, em vez da esperada notícia da fuga do
inimigo, as tropas formadas voltavam da linha de fogo em massas desorganizadas
e tomadas de pânico. De novo reorganizadas, cada vez era menor o número dos
seus efectivos.
Cerca do meio-dia, Murat mandou o ajudante-de-campo pedir reforços aNapoleão.
O imperador estava sentado no sopé do cabeço bebendo ponche quando o
ajudante-de-campo chegou com a notícia de que os Russos seriam esmagados se
Sua Majestade enviasse mais uma divisão,
— Reforços?! — exclamou Napoleão, entre severo e surpreso, como se não
compreendesse o sentido das palavras, enquanto fitava aquele moço bonito com
os cabelos negros, compridos e encaracolados, à maneira de Murat.
«Reforços!», pensou, «Que reforços querem eles quando têm na mão metade
do exército para atacar uma ala russa fraca e nem sequer fortificada?»
— Diga ao rei de Nápoles — articulou ele severamente — que ainda não é
meio-dia... que ainda é cedo para eu calcular com clareza a minha jogada. Ide...
O ajudantezinho-de-campo dos lindos caracóis, sem retirar a mão da pala da
barretina, despediu um profundo suspiro e galopou de novo em direcção ao local
onde os homens se matavam. Napoleão ergueu-se e, chamando Caulaincourt e
Berthier, principiou a falar-lhes de coisas absolutamente estranhas à batalha.
No meio desta conversa, que principiava a interessar o imperador, os olhos de
Berthier dirigiram-se para um general com a sua comitiva, que, montado num
cavalo coberto de suor, se encaminhava para o cabeço. Era Belliard. Logo que
desmontou, dirigiu-se em passo rápido para o imperador e com firmeza e em voz
alta começou a expor-lhe a necessidade que havia de reforços. Jurava pela sua
honra que os Russos estariam perdidos se o imperador lhes desse mais uma
divisão.
Napoleão encolheu os ombros e continuou a passear sem responder.
Belliard, sempre em voz alta e com veemência, prosseguiu falando para os
generais que o cercavam.
— O senhor é muito impetuoso, Belliard — disse Napoleão, aproximando-se do
general. — Qualquer se pode enganar no meio da luta. Examine outra vez a
situação e volte a aparecer por aqui.
Mal se afastara Belliard, um novo enviado chegava, por outro lado, vindo do
campo de batalha.
— Então? O que há? — disse o imperador no tom de quem se sente
exasperado por só ver obstáculos diante de si.
— Sire, o príncipe... — principiou o ajudante-de-campo.
— Pede reforços?! — exclamou Napoleão com um gesto colérico.O oficial disse que sim com a cabeça e pôs-se a transmitir a sua mensagem. O
imperador afastou-se, deu dois ou três passos, depois voltou a aproximar-se e
mandou chamar Berthier.
— Temos de lhes dar as reservas — decidiu, com gesto enérgico. — Que lhes
devemos mandar? Que acha? — perguntou a Berthier, a esse «ganso que
transformei em águia», como disse mais tarde.
— Sire, mandemos a divisão Claparède — respondeu Berthier, que conhecia
como os seus dedos todas as divisões, todos os regimentos e todos os batalhões.
Napoleão, com um aceno de cabeça, aprovou,
O ajudante-de-campo galopou ao encontro da divisão Claparède. Alguns
minutos mais tarde, a Guarda nova, concentrada, na retaguarda do cabeço, punha-
se em movimento. Napoleão olhava silenciosamente naquela direcção.
— Não — ordenou, subitamente, voltando-se para Berthier. — Não quero a
Claparède. Mandem a divisão Friant.
Embora não houvesse qualquer vantagem especial em mandarem a 2ª em vez
da 1ª e existisse, pelo contrário, o inconveniente da perda de tempo que resultava
do facto de se ter de deter a divisão que se pusera em movimento para a
substituir pela Friant, a ordem foi executada fielmente. Napoleão não se dava
conta de que estava a proceder para com as suas tropas como o médico cujos
remédios resultam mais perniciosos que a doença, maneira de agir aliás que ele
muito bem sabia ver e criticar nos outros.
A divisão Friant, como sucedera com as demais, desapareceu no meio da
fumarada do combate. Os ajudantes-de-campo continuaram a afluir de vários lados
e todos eles, como se passassem palavra, repetiam a mesma coisa. Todos pediam
reforços, todos diziam que os Russos não abandonavam as suas posições e
mantinham as tropas francesas sob um fogo infernal. Napoleão, sentado no seu
banco portátil, estava pensativo.
Monsieur de Beausset, o amador de viagens, que morria de fome desde
manhã, aproximou-se do imperador e respeitosamente lembrou a Sua Majestade o
almoço.
— Espero poder felicitar Vossa Majestade desde já pela vitória sobre o inimigo
— disse ele.
Napoleão, em silêncio, moveu negativamente a cabeça. Interpretando esse
gesto como referindo-se à vitória, e não ao almoço, Monsieur de Beaussetpermitiu-se, num tom ao mesmo tempo frívolo e respeitoso, observar-lhe que nada
neste mundo o podia impedir de almoçar desde que houvesse oportunidade para
isso.
— Olhe, vá... — exclamou, de súbito, o imperador, carrancudo, voltando-lhe as
costas.
Um sorriso hipócrita, ao mesmo tempo de compaixão, desdita e admiração,
perpassou pelo rosto de Monsieur de Beausset, que se dirigiu, sorrateiro, para
junto dos outros generais.
Napoleão estava sentindo essa penosa sensação de jogador venturoso que
atirou para a mesa de jogo, num desvario, todo o seu dinheiro, habituado que
estava a ganhar sempre, e de súbito, precisamente quando calculou todos os
azares da partida, pressente que quanto mais reflectir sobre a jogada tanto mais
certa será a perda.
As suas tropas eram as mesmas, os mesmos os seus generais, análogas as
medidas tomadas, o plano de batalha era o mesmo, mesmíssima a sua
proclamação breve e enérgica. Ele próprio não mudara, tinha a certeza. Pensava,
até, dispor de muito mais experiência e habilidade que outrora. O inimigo, por sua
vez, também era o mesmo de Austerlitz e de Friedland. E, não obstante a
marretada tremenda que lhe dera, resultava impotente. Parecia bruxedo.
Empregou todas as suas medidas outrora invariavelmente coroadas de êxito —
concentração do fogo das baterias sobre um mesmo ponto, ataque das reservas
para romper as linhas, assalto da cavalaria dos homens de ferro —, todas
empregara agora e não só não conseguia a vitória, como eram sempre as mesmas
as notícias que continuamente vinham até ele: generais mortos ou feridos,
necessidade urgente de reforços, impossibilidade de vencer a resistência dos
Russos, desorganização das tropas francesas.
Anteriormente, duas ou três disposições que tomasse, duas ou três frases que
pronunciasse, logo apareciam, de riso feliz nos lábios e alegria no rosto, marechais
e ajudantes-de-campo que anunciavam como troféus grandes massas de
prisioneiros, feixes de bandeiras e de «cíquias» inimigas, canhões e comboios de
abastecimentos, contentando-se Murat em pedir autorização para enviar a sua
cavalaria pilhar os carros. Assim acontecera em Lodi, em Marengo, em Arcole, em
Iena, em Austerlitz, em Wagram, etc, Mas agora estavam a passar-se, realmente,
coisas estranhas.Apesar da notícia que correra de que as trincheiras haviam sido tomadas,
Napoleão dava-se conta de que não era a mesma coisa, que se não passava agora
o que acontecera em todas as batalhas anteriores. E as impressões que sentia, via-
o perfeitamente, eram as que estavam sentindo todos os da sua comitiva, homens
experimentados na guerra. Havia tristeza em todos os rostos, os olhos evitavam
encontrar-se. Só Beausset não podia compreender a gravidade do que se passava.
O imperador, por virtude da sua grande experiência, sabia de sobra o que
significava uma batalha de oito horas, batalha em que empregara todos os
esforços e em que o atacante ainda não levara a melhor. Para ele era quase uma
batalha perdida e, no ponto instável em que a luta se encontrava, o mais pequeno
incidente podia perdê-los — a ele e ao exército.
Ao rememorar toda aquela estranha campanha da Rússia em que não obtivera
qualquer vitória, onde, em dois meses, não tomara nem bandeiras, nem canhões,
nem qualquer corpo de exército, ao evocar as expressões que o cercavam,
secretamente preocupadas, ouvindo as referências à resistência obstinada do
inimigo, sentia-se tomado de uma angústia no género das que se sentem nos
pesadelos, e ao espírito acorriam-lhe, de súbito, todas as circunstâncias infelizes
que o podiam perder. Os Russos podiam atacar a sua ala esquerda; podiam
perfurar-lhe o centro; um projéctil perdido podia matá-lo. Tudo era possível. Em
todas as batalhas anteriores apenas pensara nas possibilidades de êxito: agora só
esperava e pressentia circunstâncias funestas. Sim, parecia um pesadelo em que
um homem, atacado por um malfeitor, por mais esforços que faça para brandir
uma arma e atingir o adversário, sente que a mão lhe cai, mole e impotente, como
um trapo, enquanto o sentimento horrível de uma morte inevitável se apodera do
desventurado indefeso.
A notícia de que os Russos atacavam o flanco esquerdo do exército francês
acordou em Napoleão idêntico horror. Ali estava, calado, sentado no seu banco
portátil, no sopé do cabeço, com a cabeça entre as mãos. Berthier aproximou-se
dele e propôs-lhe uma visita às linhas para ter uma noção exacta da situação.
— Quê? Que está a dizer?! — exclamou o imperador. — Sim, mande que me
tragam um cavalo.
Montou e dirigiu-se a Semionovskoie.
Por entre o fumo da pólvora que lentamente se ia dissipando, jaziam, no meio
de poças de sangue, cavalos e soldados, ora isolados ora aos montes. NemNapoleão nem nenhum dos seus generais vira ainda espectáculo tão horroroso,
tanto cadáver em tão pequeno espaço. O troar dos canhões que ribombavam
havia dez horas ininterruptamente martelava os tímpanos, formando como que
um acompanhamento sinistro desse espectáculo, como a música nos quadros vivos.
Ao atingir o alto de Semionovskoie, e através da fumarada, Napoleão viu
diante de si fileiras densas de soldados com uniformes cujas cores lhe não eram
familiares. Eram os Russos.
Formando filas compactas, concentrados por detrás da povoação e do cabeço
que tem o mesmo nome, as suas bocas de fogo despejavam metralha sem
desfalecimento, cobrindo de fumo toda a, sua linha. Já não era uma batalha. Era
uma chacina, e esta chacina já não podia dar a vitória nem aos Russos nem aos
Franceses. O imperador deteve-se e recaiu na meditação a que o arrancara
Berthier. Não estava nas suas mãos fazer parar o que via desenrolar-se diante dos
seus olhos, embora passasse por iniciador e responsável de semelhante obra, e
pela primeira vez, perante o seu fracasso, essa obra lhe parecia inútil e horrível.
Um dos generais que se aproximara de Napoleão permitiu-se propor-lhe que
autorizasse a velha Guarda a entrar em acção. Ney e Berthier, que estavam junto
do imperador, trocaram um olhar entre si e sorriram desdenhosamente ao
ouvirem tão insensata proposta.
Napoleão baixou a cabeça e permaneceu por muito tempo silencioso.
— A oitocentas léguas de França não sacrificarei a minha Guarda — disse ele,
e, dando meia volta, regressou a Chevardino.
[XXXV]
Kutuzov estava sentado, a cabeça branca inclinada e todo ele prostrado sob o
peso do corpo, num banco coberto com um tapete, exactamente no mesmo sítio
onde Pedro o vira pela manhã. Não dava qualquer ordem, contentando-se em
anuir ao que lhe vinham propor ou simplesmente discordar.
«Sim, sim, faça isso», respondia ele. «Sim, sim, vai ver», dizia ,u este ou àquele
dos seus subordinados. Ou então: «Não, é inútil, é melhor esperar.» Ouvia as
informações que lhe davam, não dando ordens senão quando os subordinados lhaspediam. Apurava o ouvido, sem parecer interessar-se pelo sentido das palavras
que lhe diziam, embora observasse atentamente a expressão e o tom da voz das
pessoas que lhe falavam. A sua larga experiência da guerra, a sua prudência de
velho, diziam-lhe não ser possível a um só homem dirigir centenas de milhares de
outros homens que lutam com a morte. Kutuzov sabia que o que decide do destino
das batalhas não eram nem as medidas tomadas pelo general-chefe, nem as
posições ocupadas pelos soldados, nem o número dos canhões e dos mortos, mas
essa força inapreensível que se chama «o moral das tropas» e que ele procurava
descobrir e dirigir na medida do possível.
O rosto de Kutuzov denunciava uma atenção concentrada e serena, contenção
que só a custo dominava a fadiga de um corpo enfraquecido e gasto pela idade.
As onze horas vieram dizer-lhe que as flechas ocupadas pelos Franceses tinham
sido retomadas, mas que o príncipe Bagration estava ferido. Kutuzov soltou uma
exclamação e abanou a cabeça.
— Vai imediatamente procurar o príncipe Piotre Ivanovitch e informa-te por
miúdo do que se passa — disse ele a um dos seus ajudantes-de-campo; depois
voltou-se para o príncipe de Wurtemberg, que estava por detrás dele:
— Quererá Vossa Alteza assumir o comando do 2º exército?
Pouco depois da partida do príncipe, antes mesmo de ter podido chegar a
Semionovskoie, aparecia o seu ajudante-de-campo, que vinha comunicar ao
Sereníssimo que o príncipe precisava de reforços.
Kutuzov franziu as sobrancelhas e transmitiu imediatamente ordem a
Dokturov para assumir o comando do 2º exército, rogando ao príncipe, ao qual
dizia ser-lhe indispensável nas graves circunstâncias de momento, que voltasse
para junto de si. Quando lhe disseram que Murat fora feito prisioneiro e lhe
transmitiram as felicitações do estado-maior, Kutuzov sorriu.
— Esperem, meus senhores — observou. — Que a batalha esteja ganha e
Murat tenha sido feito prisioneiro não acho coisa extraordinária. Mas parece-me
melhor não nos alegrarmos antes de tempo.
Entretanto expedia um ajudante-de-campo com esta, notícia para as tropas.
Quando Tcherbinine chegou do flanco esquerdo para comunicar que os
Franceses haviam retomado as flechas e Semionovskoie, Kutuzov, adivinhando,
pelos gritos que vinham do campo de batalha e pela expressão do emissário, que
as coisas não estavam a caminhar bem, levantou-se, como se quisessedesentorpecer as pernas, e, travando do braço do oficial, afastou-se com ele.
— Vai, meu amigo — disse então a Ermolov. — Vai ver se não haverá maneira
de fazer mais alguma coisa.
Kutuzov estava em Gorki, no centro das posições do seu exército. O ataque de
Napoleão contra o flanco esquerdo dos Russos fora repelido por várias vezes. No
centro, os Franceses não tinham ido além de Borodino. No flanco esquerdo a
cavalaria de Uvarov obrigava o inimigo a fugir.
As três horas os ataques dos Franceses cessaram. Na expressão dos que
chegavam do campo de batalha, bem como na das pessoas da sua comitiva, podia
ler o general-chefe uma tensão que atingira o mais alto grau. Estava satisfeito
com o êxito da jornada, que ultrapassara o que ele esperava. Mas àquele velho
faltavam as forças físicas. Por várias vezes já o tinham visto deixar descair a
cabeça no peito e dormitar. Trouxeram-lhe o almoço.
O ajudante-de-campo do imperador, Woltzogen, o mesmo a quem o príncipe
André ouvira dizer ser preciso que a guerra se estendesse, e a quem Bagration
odiava, apresentou-se a Kutuzov quando ele estava a comer. Vinha em nome de
Barclay dar-lhe contas da situação no flanco esquerdo. O prudente Barclay, ao ver
a vaga de feridos que afluía e a desorganização da retaguarda, e depois de pesar
os prós e os contras, concluíra que a batalha estava perdida e enviara o seu oficial
favorito levar a notícia ao general-chefe.
Kutuzov mastigava nesse momento, não sem dificuldade, um pedaço de frango
assado; fixou em Woltzogen o seu olho pisco, que se tornara alegre.
Este, em passo negligente, um sorriso assaz desdenhoso nos lábios, aproximou-
se, a mão algo frouxa na pala da barretina. Tratava o Sereníssimo com uma
afectação descortês, como que a mostrar que ele, militar de altos méritos, deixava
para os Russos o considerarem um ídolo aquele velho inútil, pois a verdade é que
ele sabia muitíssimo bem com quem estava a lidar.
«Der alte Herr», («do velho senhor» (N, dos T.) assim o tratavam os Alemães
entre si, e «macht sich ganz bequern» («O velho senhor instalou-se
comodamente.» (N, dos T.), pensou Woltzogen, lançando um olhar de reprovação
aos pratos que Kutuzov tinha diante, e principiou o seu relatório sobre a situação
do flanco esquerdo nos termos em que Barclay lhe ordenara que a expusesse e tal
como ele próprio a vira e observara com os seus próprios olhos.
— Todos os pontos da nossa posição estão nas mãos do inimigo e não temospossibilidades de os rechaçar por falta de tropas. Os nossos soldados debandam e é
impossível detê-los — disse ele.
Kutuzov pousou o talher e fixou Woltzogen, surpreendido, como se não
compreendesse o que lhe estava a dizer. O oficial, ao notar a emoção «des alten
Herr» («do velho senhor» (N, dos T.), disse-lhe, sorrindo:
— Não me julgava no direito de ocultar o que vi a Vossa Excelência. As tropas
estão completamente desorganizadas.
— Foi o que o senhor viu? Foi o que o senhor viu?! exclamou Kutuzov,
franzindo as sobrancelhas, erguendo-se rapidamente e avançando para Woltzogen.
— Como se atreve?!... Como se atreve?!... — exclamou, fazendo gestos
ameaçadores com as mãos trémulas, a voz embargada pela cólera. — Como se
atreve, meu caro senhor, a falar-me a mim nesses termos? O senhor nada sabe. Vá
dizer ao general Barclay, da minha parte, que as suas informações são falsas e que
eu, general-chefe, conheço melhor do que ele o desenvolvimento da batalha.
Woltzogen quis replicar, mas Kutuzov interrompeu-o:
— O inimigo foi repelido no flanco esquerdo e vencido no direito. Se o senhor
viu mal, não é razão para dizer o que ignora. Faça favor de voltar para junto do
general Barclay e transmitir-lhe a minha ordem absoluta de atacar amanhã o
inimigo acrescentou num tom severo.
Todos os presentes se conservavam calados e ouvia-se apenas a respiração
ofegante do velho general.
— Os Franceses foram repelidos em toda a parte, e disso dou graças a Deus e
ao nosso valoroso exército. O inimigo está vencido e amanhã expulsá-lo-emos do
sagrado solo da Rússia — prosseguiu Kutuzov, persign4ndo-se, e de súbito as
lágrimas inundaram-lhe os olhos.
Woltzogen encolheu os ombros, esboçou uma careta e afastou-se, surpreendido
com uber die Eigenommenheit des alten Herr («...essa obstinação do velho
senhor.» N, dos T.).
— E aqui tem o meu herói — disse Kutuzov, apontando para um general, um
belo e entroncado mancebo de cabelos pretos que acabava de chegar ao cabeço.
Era Raievski, que passara o dia inteiro no ponto principal da batalha.
Raievski informou o Sereníssimo de que as tropas se mantinham firmes nas
suas posições e que os Franceses não se atreviam a atacá-las de novo.
Ao ouvir estas palavras. Kutuzov exclamou em francês:— Então não pensa como os outros que somos obrigados a retirar?
— Ao contrário, Alteza, nos assuntos indecisos é sempre o mais tenaz que sai
vitorioso — replicou Raievski. — E na minha opinião...
— Kaissarov! — chamou Kutuzov. — Assenta-te ali e redige a ordem do dia
para amanhã. E, tu — acrescentou, dirigindo-se a outro ajudante-de-campo vai
percorrer as linhas e comunicar que amanhã atacaremos.
Entretanto, Woltzogen regressava, enviado por Barclay, para dizer que este
desejava uma confirmação por escrito da ordem que o marechal acabava de dar.
Kutuzov, sem se dignar olhar para ele, mandou redigir a ordem que o ex-
general-chefe exigia com razão para se ilibar de qualquer responsabilidade.
E graças a essa cadeia indefinida e misteriosa que mantinha em todo o exército
o mesmo estado de espírito a que se costuma chamar «moral das tropas» e que
constitui o nervo vital da guerra, as palavras de Kutuzov e a sua ordem do dia
anunciando a batalha para a manhã seguinte imediatamente se transmitiram a
todos os pontos do corpo do exército.
Não foram os termos da própria ordem que se transmitiram até aos últimos
anéis dessa cadeia. No que cada um contava ao vizinho nada havia mesmo que se
parecesse com o que Kutuzov dissera, mas pelo menos era o sentido das suas
palavras que se transmitia, pois essas palavras emanavam, não de considerações
mais ou menos astuciosas, mas dos sentimentos profundos que animavam a alma
do general-chefe, como, aliás, a alma de todos os russos.
Ao inteirar-se de que no dia seguinte atacaria o inimigo, ao ouvir nas esferas
superiores do exército a confirmação daquilo em que queria crer, toda aquela
gente extenuada e hesitante se sentiu consolada e ganhou confiança.
[XXXVI]
O regimento do príncipe André conservou-se entre as reservas inactivas na
retaguarda de Semionovskoie, debaixo de um intenso fogo de artilharia, até cerca
das duas horas. A essa hora o regimento, que já perdera mais de duzentos
homens, avançara, por um campo de aveia espezinhada, para o espaço que
mediava entre Semionovskoie e a bateria do cabeço, aquela em que durante amanhã haviam caído milhares de soldados e para onde precisamente às duas horas
acabava de ser dirigido o fogo violento e convergente de muitas centenas de
peças inimigas.
Sem se mover do mesmo lugar e sem haver disparado um único tiro, o
regimento perdeu ali um terço dos seus efectivos. Mesmo em frente, e sobretudo
à sua direita, no meio da fumarada que se não dissipava, os canhões metralhavam-
no, e dessa misteriosa região envolta em fumo que se estendia ao longo de todo o
terreno que lhe fazia face, sem tréguas, acompanhados de assobios rápidos e
prolongados, chegavam as granadas, voavam os obuses. Por vezes, como para
conceder um breve descanso, durante um quarto de hora, balas e obuses iam cair
mais adiante, mas outras vezes não se passava um minuto sem que vários homens
caíssem atingidos e continuamente se retiravam cadáveres ou se levavam feridos.
A cada nova descarga os que ainda estavam vivos menos probabilidades
tinham de se salvar. O regimento formava em colunas de batalhão, com trezentos
passos de intervalo entre cada batalhão. No entanto, todos os homens se
encontravam no mesmo estado de espírito. Todos estavam igualmente silenciosos
e taciturnos. Poucas palavras se trocavam entre eles, e essas mesmas eram
interrompidas de cada vez que caía um projéctil e ressoava o grito: «Padiola!» A
maior parte do tempo os homens, por ordem dos comandantes, estavam sentados
no chão. Este, tirando a barretina, entretinha-se, com toda a minúcia, a fazer e a
desfazer a corrediça; aquele limpava a baioneta com argila seca que se lhe
esfarelava nas mãos: havia os que desmanchavam o correame e voltavam a
afivelar os seus equipamentos; e ainda os que desenrolavam as grevas e voltavam
a enrolar. Alguns construíam abrigos com caniços ou entrançavam esteiras com
palha dos campos, Todos pareciam absortos nestas ocupações. Quando os seus
camaradas caíam mortos ou feridos e eles viam passar as padiolas, quando os
Russos recuavam, ou através da fumarada se desenhavam as massas compactas
dos soldados inimigos, ninguém entre eles prestava a mais pequena atenção a
qualquer dessas coisas. Em compensação, desde que a artilharia, ou a cavalaria
russas se punham em marcha, de todos os lados rompiam gritos de encorajamento.
Mas a verdade é que eram os incidentes absolutamente acessórios e que nada
tinham com a batalha que mais chamavam a atenção geral. Dir-se-ia que aquela
gente, moralmente esgotada, encontrava repouso nas ocupações habituais da vida
quotidiana. Uma bateria de artilharia passou diante do regimento. Um cavalo devaras enredou os arreios num dos armões. «ó tu! Não vês? Olha o cavalo!... Vai
cair... Parece impossível... Então não vês?...» E por toda a parte no regimento se
soltaram idênticas exclamações, De outra vez todas as atenções se fixaram num
cãozito amarelado, de rabo arqueado, que, aparecendo ali por acaso, se pôs a
correr, cheio de medo, por entre as fileiras dos homens. Só Deus sabe donde viria!
De súbito, ao rebentar um obus ali perto, soltou um ganido e com o rabo entre as
pernas desapareceu por um dos lados. Gritos e risos se ouviram por toda a parte,
Mas essa, espécie de distracções durava apenas alguns minutos e havia já mais de
oito horas que estavam inactivos e sem nada comer sob o contínuo horror da
morte. Os seus rostos pálidos e taciturnos cada vez empalideciam e se carregavam
mais.
O príncipe André, como todos os homens do seu regimento, pálido e de
sobrancelhas franzidas, ia e vinha, no prado que confinava com o campo de aveia,
de um rego a outro, a cabeça baixa e as mãos atrás das costas. Nada tinha a fazer
nem nenhuma ordem a dar. Tudo se fazia por si mesmo. Os mortos eram
arrastados para detrás das linhas, os feridos levados, as fileiras voltavam a
refazer-se. Se os soldados se afastavam, não tardavam a voltar apressadamente.
De princípio julgara de seu dever excitar a coragem dos soldados e dar-lhes o
exemplo passando por entre as fileiras, mas em breve reconheceu que nada tinha
a ensinar-lhes. Todas as forças da sua alma, como as forças da alma de cada um dos
seus soldados, não tendiam inconscientemente a outra coisa senão a não pensar
no horror da situação em que estavam. E lá ia passeando no prado, arrastando os
pés, pisando a erva, examinando a poeira que lhe cobria as botas. Ora dava
grandes passadas, tentando pôr os pés nos trilhos deixados pelos ceifeiros, ora
contava os seus passos, calculando o número de vezes que teria de ir de um rego
ao outro para perfazer uma versta. Outras vezes ainda arrancava, ao passar, as
artemisas que cresciam nos regos, esfregava-as entre as mãos e respirava o seu
aroma forte e amargo. Nada restava do labor dos seus pensamentos da véspera.
Em nada pensava. Com seus ouvidos cansados ouvia sempre os mesmos sons,
procurando distinguir no ar o silvo dos projécteis, do estampido das descargas, e
examinava os rostos, que bem conhecia, dos soldados do primeiro batalhão, e
esperava. «Lá vai mais um... Ainda para nós», dizia de si para consigo ao perceber
o assobio, que se aproximava, de um projéctil que emergia da zona de fumo. «Lá
vem outro! Agora! Já está.» Calou-se e olhou as fileiras dos soldados. «Não,aquele passou longe. Mas agora é a nossa vez.» E de novo se pôs a passear,
procurando alargar o passo de molde a alcançar o rego em dezasseis passadas. De
súbito um silvo e depois uma pancada; ali, a cinco passos, um projéctil faz voar a
terra seca de todos o, lados e enterra-se no chão, Um arrepio involuntário
percorre-lhe as costas. De novo lança um olhar aos seus soldados. Há muitos
atingidos, naturalmente: no segundo batalhão ouve-se tumulto.
— Senhor ajudante-de-campo — grita ele — irão permita que se formem
ajuntamentos.
Este executa a ordem e aproxima-se do príncipe André. De outro lado chega a
cavalo o comandante do batalhão.
— Cuidado! — grita um soldado, espavorido, e silvando, num rápido voo, uma
granada caiu a dois passos do príncipe André, próximo do cavalo do comandante
do batalhão. O cavalo empina-se relinchando, com risco de jogar por terra o
cavaleiro, e recua. O terror do animal apodera-se dos homens.
— Deitem-se! — grita a voz do ajudante-de-campo que se atirara ao chão.
O príncipe continuava de pé, irresoluto. O obus, fumegando, girava no solo
como um pião entre ele e o ajudante-de-campo no limite da seara de aveia e do
prado, junto de uma pernada de artemisa.
«Será a morte?», pensou, olhando, com um olhar absoluta— mente novo e
como que invejoso, a erva, a pernada de artemisa, o fio de fumo que se desprendia
da bola negra em movimento.
«Não posso, não quero morrer, gosto da vida, gosto desta erva, desta terra,
do ar que respiro...» Dizia isto de si para consigo e ao mesmo tempo pensava nos
que estavam a olhar para ele.
— Não tem vergonha, senhor oficial? — disse para o ajudante-de-campo. —
Que...
Não pôde concluir. Nesse mesmo instante ressoou a explosão, houve um
retinir, como de vidros quebrados, uma baforada de fumo e o príncipe André,
projectado de lado, ergueu um braço ao ar e foi cair de cara contra o chão.
Alguns oficiais acorreram. Do flanco direito escorria-lhe pela erva um grande
rego de sangue.
Os milicianos, logo chamados, detiveram-se com a sua padiola na retaguarda
dos oficiais. André estava estendido sobre o ventre, o rosto na erva, e estremecia
com grandes soluços.— Vamos, que estão aí a fazer, aproximem-se!
Os camponeses chegaram, pegaram-lhe pelos ombros e pelas pernas, mas ele
gemia dolorosamente e, depois de se entreolharem, voltaram a pô-1o no chão.
— Peguem-lhe, ponham-no na padiola, pouco importa! — gritou uma voz.
— Oh. Deus!, oh, Deus! Será possível?... No ventre. É a morte! Oh!, meu Deus!
— exclamaram vários oficiais. — Roçou-me por uma orelha — disse o ajudante-de-
campo. Os camponeses, depois de terem posto a padiola aos ombros, meteram a
toda a pressa pelo atalho que conduzia à ambulância.
— A passo! — Eh, camponeses! — gritou-lhes um oficial detendo pelo ombro
um dos milicianos, que caminhavam em passo irregular e agitavam a maca,
— Tem cuidado, hem, Kvedor! Eh, Kvedor! — exclamou o que ia à frente.
— Assim está bem! — respondeu, jovial, o que ia atrás, acertando o passo.
— É Sua Excelência? É o príncipe? — disse Timokine em voz trémula, correndo
para a padiola.
O príncipe André abriu os olhos e do alto da padiola onde a cabeça lhe descaíra
lançou um olhar àquele que lhe falava, voltando a cerrar as pálpebras,
Os milicianos levaram o príncipe André para a mata onde estavam os carros e
a ambulância. Esta era formada por três tendas de campanha separadas, e de
lonas abertas, na orla de uma inata de álamos. Os carros e os cavalos estavam
debaixo das árvores. Os animais comiam a sua aveia nos respectivos sacos e os
pardais cirandavam em volta deles na esperança de apanhar os grãos espalhados.
Corvos, atraídos pelo sangue, grasnavam, impacientes, por entre os álamos. Em
volta das tendas, numa área de umas duas dessiatinas, viam-se deitados, sentados
ou de pé soldados ensanguentados, envergando os mais diversos uniformes. Na
vizinhança dos feridos estacionava uma multidão de maqueiros de expressões
tristes e atentas, que os oficiais encarregados de manter a ordem procuravam
debalde afastar dali. Sem lhes dar ouvidos, estes soldados ali continuavam,
encostados às suas padiolas, olhando fixamente tudo que se passava à sua volta,
como que a procurarem compreender o terrível significado de semelhante
espectáculo. Ouviam-se nas tendas ora gritos lancinantes e selvagens ora gemidos
dolorosos. De tempos a tempos saíam de lá correndo enfermeiros que iam buscar
água e designavam os feridos que deviam ser transportados. Estes, que
esperavam a sua vez à entrada das tendas, gemiam, choravam, gritavam,
proferiam injúrias, pediam que lhes dessem vodka, sentia-se-lhes o estertor.Alguns deliravam. Deixando para trás os feridos que ainda não tinham sido
pensados, levaram o príncipe André, na sua qualidade de comandante de
regimento, até à entrada de uma das tendas e aí se detiveram os seus maqueiros,
aguardando ordens. André abriu os olhos e esteve assim muito tempo sem ser
capaz de compreender o que se passava, O prado, as artemisas, o campo de aveia,
a bola negra, girando e o seu arrebatamento de amor pela vida, tudo isto lhe veio
ao espírito. A dois passos da sua padiola um sargento alto e moreno, a cabeça
atada, encostado ao tronco de uma árvore, falava em voz alta, chamando a
atenção de toda a gente, Fora ferido na cabeça e numa perna. A sua volta
agrupava-se uma chusma de feridos e de maqueiros que escutava, avidamente o
que ele dizia.
«Quando corremos com eles dali, deixaram lá tudo, e até o rei deles fizemos
prisioneiro», gritava o sargento, com os seus olhos negros resplandecentes e
miradas de orgulho à sua roda. «Se ao menos naquele momento as reservas têm
chegado, podem crer, rapazes, não tinha escapado um, tão certo como eu estar
aqui.. »
O príncipe André, como todos os que rodeavam o narrador, olhava para ele
com os olhos brilhantes, e um sentimento de alívio o percorria. «Mas que me
importa agora», dizia de si para consigo, «que tenho eu a ver com o que
acontecerá ali e com o que aconteceu aqui? E porque será que me custa tanto
deixar esta vida? Há de facto nela qualquer coisa que eu não compreendia e que
continuo sem compreender.»
[XXXVII]
Um dos médicos saiu da tenda de campanha. Tinha um avental ensanguentado,
e nos seus pequenos dedos, também cheios de sangue, entre o polegar e o anelar,
equilibrava um charuto que procurava não sujar, Ergueu a cabeça e olhou para os
dois lados por cima dos feridos. O que ele queria, evidentemente, era respirar um
pouco de ar puro. Depois de olhar à direita e à esquerda, suspirou e baixou a
cabeça.
«Sim, é já», respondeu ao enfermeiro que lhe apontava o príncipe André, eordenou que o levassem para a tenda. «Pelos vistos até no outro mundo a vida é
melhor para estes senhores», disse um dos feridos.
Transportaram o príncipe André para dentro da tenda e colocaram-no sobre
uma, mesa que acabava de ficar livre e que um enfermeiro limpava. André não
pôde distinguir coisa por coisa o que havia dentro da tenda. Os gemidos
lancinantes que se ouviam por todos os lados, as dilacerantes dores que sentia na
anca, no abdómen e nas costas tomavam-no por completo. O espectáculo que tinha
diante dos olhos confundia-se numa única impressão geral de corpos humanos nus
e ensanguentados que pareciam encher por completo toda aquela tenda de tecto
baixo, exactamente como, semanas atrás, num cálido dia de Agosto, os corpos que
vira dentro do tanque lodoso na estrada de Smolensk. Sim, era a mesma carne,
precisamente essa carne para canhão, cujo espectáculo então, como se previsse o
que estava a ver agora, o enchera de horror.
Na tenda havia três mesas. Duas delas já estavam ocup4 das: puseram o
príncipe André na terceira. Deixaram-no só por instantes e pôde então, mesmo
sem querer, ver o que se passava nas outras. Na que lhe ficava mais próxima
estava sentado um tártaro, cossaco, sem dúvida, a avaliar pelo capote a seu lado.
Quatro soldados o agarravam. Um médico de óculos retalhava-lhe as costas
trigueiras e musculosas.
«Ai, ai, ai!», berrava o tártaro, como um cevado no matadouro, e de súbito,
retesando a cara bronzeada, de malares salientes e nariz chato, rangendo os
dentes brancos, principiou a estrebuchar, a soltar gritos prolongados e pungentes.
Na outra mesa, à volta da qual havia muitas pessoas, estava deitado de costas
um homem forte e de grande estatura, com a cabeça caída para trás. Os seus
cabelos encaracolados, a cor do cabelo e a forma da cabeça não pareceram
desconhecidos ao príncipe André. Vários enfermeiros mantinham-no imobilizado,
segurando-o fortemente. Uma das suas pernas, branca e gorda, era
constantemente agitada por estremecimentos convulsivos. O homem soltava
soluços entrecortados e sufocava. Dois médicos, silenciosos, um deles muito pálido
e trémulo, ocupavam-se da outra perna, muito vermelha. O médico dos óculos,
depois de dar por finda a sua tarefa junto do tártaro, a quem cobriram com um
capote, aproximou-se do príncipe André enxugando as mãos.
«Dispam-no! Que estão aí a fazer?», gritou, furioso, para os enfermeiros.
O príncipe André recordou-se da sua longínqua e tenra infância, quando oenfermeiro, de mangas arregaçadas, o desabotoara rapidamente e o despira. O
médico debruçou-se sobre o seu ferimento, e depois de o palpar suspirou
profundamente. Em seguida fez um sinal a alguém. A dor atroz que sentiu no
abdómen fez perder os sentidos ao ferido. Quando voltou a si, haviam-lhe extraído
os fragmentos do fémur quebrado, tinham-lhe cortado grandes pedaços de carne e
a ferida fora envolta em ligaduras. Espargiam-lhe a cara com água. Assim que
abriu os olhos, o médico debruçou-se para ele, beijou-o nos lábios, sem dizer
palavra, e afastou-se precipitadamente.
Depois do sofrimento que suportara, André sentiu um bem-estar que
desconhecia há muito. Pela imaginação perpassavam-lhe todos os melhores e mais
felizes momentos da sua vida, especialmente a sua mais longínqua infância,
quando o despiam e o deitavam na sua caminha, e a sua ama, embalando-o,
cantava para o adormecer ou, quando, a cabeça pousada na almofada, era feliz por
se sentir viver. E todas estas impressões não se lhe afiguravam passadas, mas uma
realidade presente. Os médicos continuavam de volta do ferido cujos traços lhe
não pareceram desconhecidos. Solevavam-no e esforçavam-se por acalmá-lo.
«Mostrem-ma!... Ai!, ai!, ai!», gemia ele, numa voz entrecortada de soluços,
apavorada e como que quebrada pelo sofrimento.
Ao ouvir esses gritos, André sentia vontade de chorar. Seria por ver-se morrer
sem glória? Seria por causa das recordações de infância para sempre
desaparecida? Ou seria por ver sofrer os outros e ouvir aquele homem soltar
diante dele gemidos tão lamentosos? Fosse como fosse, tinha vontade de chorar,
de chorar lágrimas de criança, por assim dizer lágrimas suaves de alegria.
Mostraram ao ferido a perna cortada, com sangue coagulado e ainda com a
bota calçada.
«Ai! Ai!», gemeu, rompendo a chorar como uma mulher.
O médico que estava diante do ferido e lhe ocultava a cara afastou-se.
«Meu Deus! Que é isto? Que está ele aqui a fazer?», disse para si mesmo o
príncipe André.
Naquele desgraçado que chorava, sem forças, e a quem acabavam de amputar
uma perna, reconhecera Anatole Kuraguine. Amparavam-no por debaixo dos
braços e chegavam-lhe um copo de água, que ele não conseguia atingir com a
extremidade dos lábios tumefactos e trémulos. Continuava a soluçar. «Sim, é ele;
aquele homem está ligado a mim por laços íntimos e dolorosos», disse de si paraconsigo o príncipe André, sem ter ainda uma ideia nítida, do que lhe estava a
acontecer. «Que laços ligam aquele homem à minha infância, à minha existência?»,
perguntava sem conseguir obter resposta, E de súbito despertou-o um novo apelo
inesperado: uma figura desse mundo da infância, cheia de pureza e de amor.
Lembrou-se de Natacha, tal como ela lhe aparecera pela primeira, vez nesse baile
e 1810, com o pescoço e os braços delgados, a sua expressão assombrada e feliz,
tão pronta a entusiasmar-se, e o seu amor e a sua ternura por ela acordaram-lhe
no fundo do coração mais vivos e fortes do que nunca. Compreendia agora o laço
que existia entre ele e aquele, homem que através das lágrimas que lhe
embaciavam os olhos o fitava com o seu olhar nublado. André lembrou-se de tudo,
e uma imensa piedade, um apaixonado amor por aquele homem lhe encheu o
coração feliz, Não podendo conter-se por mais tempo, pôs-se a chorar mansas
lágrimas de amor pelos outros em geral, por ele próprio, pelos desvarios dos
homens e pelos seus próprios desvarios.
«Sim, a piedade, o amor dos nossos irmãos, daqueles que nos amam, o amor
dos que nos odeiam, o amor dos nossos inimigos, sim, esse amor que Deus veio
pregar sobre a Terra, esse amor de que me falava a princesa Maria e que eu não
compreendia, eis o que me faz ter pena da vida, eis a única coisa que me restaria
se ainda tivesse vida para viver. Mas agora é tarde, tarde de mais, Eu bem sei.»
[XXXVIII]
O aspecto aterrador do campo de batalha, coberto de mortos e moribundos, o
peso que sentia na cabeça e a nova de que vinte dos ,seus generais tinham sido
mortos ou postos fora de combate, tudo isto e o reconhecimento, a que se via
obrigado, da impotência do seu pulso, outrora todo poderoso, produziu um efeito
inesperado em Napoleão, que ordinariamente gostava de ver os mortos e os
feridos no intuito de pôr à prova a sua força moral, como costumava dizer.
Naquele dia o pavoroso aspecto do campo de batalha vencera a sua força moral,
coisa em que estribava o seu mérito e a sua grandeza, Retirou-se
precipitadamente e regressou ao reduto de Chevardino. Sentado no banco
portátil, amarelento, inchado, pesado, os olhos embaciados, o nariz vermelho e avoz rouca, ouvia o tiroteio involuntariamente, de cabeça baixa. Era com febril
inquietação que aguardava o fim daquela obra em que participava embora sem a
poder dar por finda. Por momentos prevalecia nele, sobre a miragem em que
vivera e de que por tanto tempo fora escravo, um puro sentimento de
humanidade. Sentia pesar-lhe na alma o sofrimento e as mortes de que tivera a
visão ao percorrer o campo de batalha. O peso na cabeça e a opressão que lhe
tomava os pulmões faziam-no pensar que também podia sofrer e morrer. Naquele
momento não desejava nem Moscovo, nem a vitória, nem a glória. Para que
queria a glória? Nada mais desejava naquele momento além do repouso, da
serenidade e da liberdade. Quando estivera, porém, no cabeço de Semionovskoie,
o comandante da artilharia propusera-lhe instalar ali algumas baterias para
reforçar o fogo sobre as tropas russas concentradas diante de Kniazkovo. Napoleão
concordara, determinando que lhe comunicassem o resultado obtido.
Um ajudante-de-campo veio anunciar-lhe que duzentas peças de artilharia
tinham aberto fogo contra os Russos, mas que estes continuavam a resistir.
— O nosso fogo ceifa-os, fileira a fileira, e apesar disso permanecem firmes —
disse o ajudante-de-campo.
— Ainda querem mais! — exclamou Napoleão com voz rouca.
— Sire? – perguntou o oficial, que não ouvira bem.
— Querem mais — repetiu ele, com a mesma rouquidão na voz e franzindo as
sobrancelhas. — Dêem-lhes o que estão a pedir.
E sem que disso tivesse a iniciativa, o que ele realmente não queria realizava-
se, não dando ordens senão por pensar que esperavam que ele as desse. De novo
se deixou mergulhar nesse mundo fictício, povoado de visões de grandeza, e de
novo, como um cavalo que, movendo uma nora, julga realizar uma tarefa útil para
si, cumpria, docilmente, o cruel, doloroso, inumano e penoso Papel para que
estava predestinado.
E não foi só naquela hora e naquele dia que o espírito e a consciência se lhe
obscureceram, àquele homem sobre quem pesava mais do que sobre qualquer
outro ser humano a responsabilidade do que se estava a passar. Nunca, até ao
último dos seus dias, pôde compreender o que era o bem, o que era a beleza, o
que era a verdade, nem jamais compreendeu a significação dos seus próprios actos
por de mais opostos à verdade e ao bem para que ele pudesse compreender-lhes o
significado. Nunca pôde renegar os seus próprios actos, tão louvados por meiomundo, e assim se viu forçado a renegar a verdade e o bem e tudo o que era
verdadeiramente humano,
Não foi só naquele dia que ele, percorrendo o campo de batalha juncado de
soldados mortos ou mutilados — por obra e graça da sua vontade, assim pensava
—, pôde calcular quantos eram os mortos russos por cada morto francês, e,
enganando-se a si próprio, achara razões para rejubilar, pois, segundo ele, por
cada um dos seus tinham caído cinco do inimigo. Não foi só naquele dia que ele
disse, como escreveu numa carta para Paris: «O campo de batalha estava
soberbo», por haver mais de cinquenta mil cadáveres. Também na ilha de Santa
Helena, no silêncio da solidão, onde, segundo declarara, pensava consagrar os seus
ócios a relatar as obras que levara a cabo, escreveria:
A guerra da Rússia devia ter sido a guerra mais popular
dos tempos modernos: era a guerra do bom senso e dos
verdadeiros interesses, a guerra do repouso e da segurança
geral; era puramente pacífica e conservadora.
Era pela grande causa, pelo fim dos acasos e pelo
princípio da segurança. Um horizonte novo, novos
trabalhos iam, desenrolar-se, cheios do bem-estar e da
prosperidade de todos. Estava fundado o sistema europeu;
restava apenas organizá-lo.
Satisfeitos que fossem estes grandes objectivos e
tranquilo que me visse em toda a parte, teria tido também
o meu Congresso e a minha Santa Aliança. Ideias que me
roubaram. Nessa reunião de grandes soberanos teríamos
tratado dos nossos interesses em família e contaríamos
então, de amo a servidor, com todos os povos.
Deste modo teria chegado a ser a Europa
verdadeiramente um único povo e toda a gente por onde
quer que viajasse encontrar-se-ia sempre na pátria comum.
Teria obtido o livre trânsito em todos os rios navegáveis, a
comunidade dos mares, e que os grandes exércitos
permanentes fossem reduzidos daí para o futuro à escolta
dos soberanos.De regresso a França, no seio da pátria, grande, forte,
magnífica, tranquila, gloriosa, teria proclamado os seus
limites imutáveis; teria declarado todas as guerras futuras
puramente defensivas e qualquer engrandecimento novo
antinacional. Teria associado meu filho ao império, a minha
ditadura acabaria, e teria começado um reinado
constitucional...
Paris teria sido a capital do mundo e os Franceses a
inveja das nações!...
Os meus ócios e os dias da minha velhice teriam sido
consagrados, na companhia da imperatriz e enquanto
durasse o aprendizado real de meu filho, a visitar,
vagarosamente, e como um verdadeiro casal de aldeões,
com os nossos próprios cavalos, todos os recantos do
Império, ouvindo as queixas, fazendo justiça, semeando por
toda a parte monumentos e boas obras. (Em francês no texto
original. (N, dos T.)
Destinado pela Providência para desempenhar o papel lamentável e servil de
carrasco das nações, queria convencer-se de que o seu objectivo era o bem dos
povos e que podia orientar o destino de milhões de seres fazendo a sua felicidade.
Dos 400 mil homens que atravessaram o Vístula — escreveria mais adiante a
propósito da campanha da Rússia — metade eram austríacos, prussianos, saxões,
polacos, bávaros, wurtem, burgueses, espanhóis, italianos, napolitanos. Um terço
do exército imperial propriamente dito era formado por holandeses, belgas,
naturais das margens do Rena, piemonteses, suíços, genebrinos, toscanos,
romanos, componentes da 32ª divisão militar, habitantes de Brémen, Hamburgo,
etc.; nele apenas 140 mil homens falavam francês. A expedição da Rússia custou
menos de 50 mil homens à França actual; o exército russo, na retirada de Vilna
para Moscovo e nas diversas batalhas que se travaram perdeu quatro vezes mais
homens que o exército francês; no incêndio de Moscovo perderam a vida 100 mil
russos, mortos de frio e de fome nas florestas; e por último, na sua marcha de
Moscovo até ao Óder, o exército russo foi também castigado pelas intempéries da
estação; quando chegou a Vilna, apenas contava 50 mil homens e em Kalisch tinhamenos de 18 mil!.
Napoleão pensava, pois, que esta guerra contra a Rússia era obra sua, e o
horror do que acontecera não lhe causava a mais pequena emoção. Assumia toda
a responsabilidade dos acontecimentos e a sua mente ofuscada achava justificação
no facto de entre as centenas de milhares de homens sacrificados haver menos
franceses do que bávaros ou habitantes do Hesse.
[XXXIX]
E eis como algumas dezenas de milhares de homens dos mais diversos
uniformes jaziam mortos, à mistura, naqueles campos e pradarias, propriedade de
um tal Sr. Davydov e dos mujiques da coroa, campos e pradarias onde, durante
centenas de anos, os habitantes de Borodino, Gorki, Chevardino e Semionovskoie,
todas as estações, invariavelmente, procediam às suas colheitas e levavam os seus
rebanhos a pastar. Nas ambulâncias, na área de uma dessiatina, erva e terra
estavam empapadas de sangue. Multidões de soldados de diversas armas, feridos
ou válidos, o pânico escrito na cara, iam refluindo, uns sobre Mojaisk, outros sobre
Valuieva. Massas de homens esgotados de fadiga e mortos de fome, conduzidos
pelos seus chefes, continuavam a marchar. E por último outros havia que se
mantinham no seu lugar disparando sempre.
Por cima do campo de batalha, tão formoso e alegre algumas horas antes,
quando resplandeciam as baionetas ou se esgarçavam os vapores do sol matinal,
estendia-se agora um nevoeiro húmido à mistura com fumo donde se desprendia
um cheiro estranho e acre a salitre e a sangue. Enevoara-se o céu e uma chuva
fina caía sobre os mortos, sobre os feridos, sobre aqueles homens extenuados,
tornados de pânico, que principiavam a duvidar. Parecia gritar-lhes: «Basta, basta,
infelizes! Cessai... Tomai tento! Que estais a fazer?»
Os soldados de ambos os exércitos, cansados e esfomeados. Principiavam a
perguntar-se a si próprios se valeria a pena continuarem a matar-se uns aos
outros, e rios seus rostos lia-se a hesitação e em cada alma surgia esta pergunta:
«Porquê, por quem devo eu matar ou deixar-me matar? Matai, vós, a quem
quiserdes; fazei o que quiserdes; por mim, não quero mais!» Ao entardecer estaideia amadurecera em todas as almas. De um momento para o outro estes homens
podiam vir a sentir horror pelo que estavam a fazer e abandonar tudo e fugir fosse
para onde fosse.
Sem embargo, ainda que no final da batalha estes sentimentos tivessem
surgido na alma de todos os combatentes, ainda que todos se tivessem sentido
felizes por acabar, uma força incompreensível e misteriosa obrigava-os a,
continuar, e, cobertos de suor, negros de pó, sujos de sangue, reduzidos a um
terço, extenuados e sem poderem mais, os artilheiros continuavam a transportar
as cargas, a carregar as peças, a apontá-las, a inflamar as mechas, e os projécteis,
com a mesma velocidade e a mesma crueldade, voavam quer de um lado, quer do
outro, rasgando os corpos humanos, continuando a mesma terrível tarefa que se
cumpre não graças a vontade do homem, mas graças à vontade d’Aquele que rege
os destinos do mundo inteiro.
Quem quer que tivesse visto as fileiras desorganizadas da retaguarda do
exército russo teria pensado que bastava um pequenino esforço dos Franceses
para esmagar esse exército. E quem quer que tivesse visto a desorganização dos
Franceses teria podido raciocinar da mesma maneira. Mas a verdade é que nem os
Franceses nem os Russos faziam esse esforço e o fogo da batalha ia-se apagando
pouco a pouco,
Os Russos não faziam esse esforço porque não tinham sido eles quem atacara.
De princípio haviam-se limitado a ocupar a estrada de Moscovo, interceptando-a
ao inimigo, e nesse posto continuaram até ao fim. Aliás, ainda que o seu objectivo
fosse derrotar os Franceses, eram incapazes deste último esforço, uma vez que
todo o seu exército estava desorganizado, que todos sofreram com a batalha e que
para se manterem nos seus postos tinham perdido metade dos seus efectivos.
Os Franceses, amparados pela recordação de quinze anos de vitórias, certos de
que Napoleão era invencível, cientes de que se tinham apoderado de uma parte
do campo de batalha, que não haviam perdido senão a quarta parte dos seus
homens e que atrás deles ainda, intactos, estavam os vinte mil homens da Guarda,
teriam podido facilmente fazer esse esforço. Eram os Franceses, que tinham
atacado o exército russo com o objectivo de o desalojar das suas posições, quem
devia fazer esse esforço, uma vez que enquanto os Russos continuassem, como no
princípio da batalha, a interceptar-lhes a estrada para Moscovo, o seu alvo não
fora atingido e inúteis deviam considerar-se todos os seus esforços e todas as suasperdas. A verdade, porém, é que não fizeram esse esforço. Alguns historiadores
foram de parecer de que bastaria, Napoleão ter mandado avançar a sua velha
Guarda para a batalha ser ganha. Mas quem assim se exprime parece supor que o
Outono pode de súbito transformar-se em Primavera, coisa impossível. Se
Napoleão não ofereceu a sua Guarda, não foi porque o não quisesse, mas por lhe
ser impossível. Tanto os generais, como os oficiais, como os soldados, sabiam que
assim era: o estado de desmoralização do exército não o permitia.
Não foi só Napoleão quem sentiu que o seu braço terrível tombava sem força:
todos os generais, todos os soldados do exército francês, quer combatentes, quer
não combatentes, depois do que tinham visto nas batalhas precedentes, em que o
inimigo costumava debandar após uma resistência de um contra dois, haviam sido
tomados de um pavor geral na presença de adversário que, após haver perdido
metade dos seus efectivos, ali continuava tão ameaçador no fim como no princípio
da batalha. A força moral do exército francês atacante estava exausta. A vitória
que os Russos obtiveram em Borodino não foi uma dessas vitórias que se
proclamam com trapos hasteados em paus, à maneira de troféus, uma dessas
vitórias que se medem pela extensão do território conquistado, mas uma vitória
moral, uma dessas vitórias que convencem o adversário da superioridade moral
que se lhe opõe e da inutilidade dos seus próprios esforços. A invasão francesa. à
semelhança de uma fera enraivada mortalmente ferida na sua carreira, pressentia
estar perdida, mas assim como o exército russo, duas vezes mais fraco, não podia
ceder, a invasão não podia deter-se. Graças à velocidade adquirida, os Franceses
ainda iriam até Moscovo, mas seria aí, sem que as forças russas tivessem de fazer
novos sacrifícios, que soçobrariam, perdido que fora todo o seu sangue pela ferida
mortal que receberam em Borodino, Uma das consequências directas da batalha
foi obrigar Napoleão, sem qualquer motivo definido, a fugir de Moscovo, a bater
em retirada pela velha estrada de Smolensk, suportando a perda de um exército
invasor de quinhentos mil homens e assistindo à destruição da França napoleónica,
sobre a qual, pela primeira vez, em Borodino, se abatera o braço de um adversário
com força moral superior.
TERCEIRA PARTE
[I] [II] [III] [IV] [V] [VI] [VII] [VIII] [IX] [X] [XI] [XII] [XIII] [XIV] [XV] [XVI]
[XVII] [XVIII] [XIX] [XX] [XXI] [XXII] [XXIII] [XXIV] [XXV] [XXVI] [XXVII] [XXVIII]
[XXIX] [XXX] [XXXI] [XXXII] [XXXIII] [XXXIV]
[I]
A inteligência humana não compreende a continuidade absoluta do
movimento. As leis de um movimento qualquer só são inteligíveis ao homem
quando lhe é dado examinar separadamente as unidades que o compõem. A
verdade porém é que é desta divisão arbitrária do movimento ininterrupto em
unidades isoladas que resulta ao mesmo tempo a maior parte dos erros humanos.
Quem há aí que não conheça o sofisma dos antigos segundo c! qual Aquiles
nunca apanharia a tartaruga ainda que caminhasse dez vezes mais depressa do
que ela? Enquanto Aquiles percorre a distância que o separa da tartaruga, esta
ter-se-lhe-á adiantado a décima parte desse espaço e quando Aquiles tiver
percorrido essa décima parte, a tartaruga ter-se-lhe-á adiantado a centésima e
assim por diante até ao infinito. Este problema afigurava-se insolúvel aos antigos,
quando o absurdo da conclusão dada resulta apenas do facto de se decompor o
movimento arbitrariamente em unidades, quando o certo é que o movimento de
Aquiles e o da tartaruga se produzem ininterruptamente.
Ao tomarmos as unidades de um movimento nas suas parcelas cada vez mais
pequenas, não fazemos mais do que aproximarmo-nos de uma solução sem nunca a
podermos atingir. Só admitindo as grandezas infinitesimais e a sua progressão
ascendente até à décima e depois somando esta progressão geométrica podemos
obter a solução do problema. O novo ramo das matemáticas, que é a ciência dos
infinitesimais, como sucede com os mais complicados problemas do movimento,
resolve agora questões outrora consideradas insolúveis.
No exame destes problemas, admitindo os números infinitesimais, esta nova
ciência restabelece as condições fundamentais do movimento, isto é, a sua
continuidade absoluta, e por essa razão corrige o erro que a inteligência humana
não pode evitar quando estuda as unidades parcelares do movimento em vez do
movimento contínuo.No que diz respeito ao estudo das leis do movimento histórico, a mesma coisa
acontece.
O movimento da Humanidade, consequência de inúmeras vontades humanas
parcelares, não sofre interrupções. A finalidade da História é a compreensão das
leis deste movimento. Mas, para compreender as leis do movimento contínuo
resultante da sorna de todas as vontades humanas, a inteligência tem de admitir
unidades parcelares e arbitrárias, O primeiro processo usado pelos historiadores
consiste em tornar uma série de acontecimentos que se sucedem e examiná-los
separadamente, quando é certo que não há e não pode haver princípio para
nenhum acontecimento, pois todos dependem invariavelmente uns dos outros. O
outro processo consiste em se considerarem os actos de um homem, rei ou grande
general, como a soma das vontades de todos, quando o que acontece é que essas
vontades nunca se traduzem na actividade de uma só personagem histórica, seja
ela qual for.
A ciência histórica, na sua evolução, admite unidades cada vez menores,
procurando deste modo aproximar-se da verdade. Mas, por mais pequenas que
elas sejam, chegamos à conclusão de que conceber uma unidade separada das
outras, aceitar o começo de um fenómeno qualquer, admitir que a vontade de
todos se exprima nos actos de uma só pessoa, é caminho errado.
Toda a conclusão histórica se desfaz em pó, sem deixar rasto atrás de si, sob a
pressão de qualquer ínfimo esforço crítico, desde que esta crítica eleja como
medida de observação uma unidade maior ou mais pequena, coisa a que tem
inteiro direito, visto ser sempre arbitrária a unidade histórica. Só podemos
esperar compreender as leis históricas tomando para base das nossas observações
a unidade infinitesimal, os diferenciais da História, quer dizer, as tendências
uniformes dos homens, e integrando-as, isto é, somando-as umas às outras.
Nos quinze primeiros anos do século XIX milhões de homens se movimentam na
Europa. Todos abandonam as suas preocupações habituais, deslocando-se de um
lado para o outro do continente, e é vê-los saquear, matar, vencer e
desesperarem. Durante estes anos a vida muda, arrastada num movimento de
princípio intenso, para depois declinar, Qual a causa de semelhante fenómeno ou
quais as leis que o produziram? — pergunta a razão humana.
Os historiadores respondem a esta pergunta expondo-nos os actos e os
discursos de uma dezena de homens reunida num edifício da cidade de Paris, e dãoa esses actos e a esses discursos o nome de «revolução». Depois oferecem-nos a
biografia, em todos os seus pormenores, de Napoleão e de várias outras
personalidades simpáticas ou hostis para com essa revolução, referindo-nos as
influências que exercem uns sobre os outros, para nos dizerem em seguida: eis aqui
a causa desse movimento, e ali as suas leis.
A verdade, porém, é que a nossa razão não só se recusa a admitir esta
explicação como declara abertamente ser errónea, uma vez que as causas
apresentadas são demasiado débeis para explicar semelhante fenómeno. Foi a
soma das vontades humanas que fez a revolução e que tornou possível Napoleão,
e só ela os manteve e aniquilou.
«No entanto», dirá o historiador, «sempre que houve conquistas houve
conquistadores; sempre que houve rima revolução houve grandes homens.» De
facto, responde a razão, onde houve conquistadores houve guerras, o que não
quer dizer que os conquistadores fossem a causa das guerras e que seja possível
descobrirem-se as leis a, que essas guerras obedecem nos actos individuais de um
único homem. Sempre que olho para o mostrador do meu relógio, quando o
ponteiro se aproxima das dez, ouço badalar os sinos da igreja vizinha. Não tenho,
porém, o direito de concluir que a posição do ponteiro do meu relógio seja a causa
do badalar dos sinos.
Sempre que vejo deslocar-se uma locomotiva, sempre que lhe ouço o apito e
vejo mover-se-lhe o êmbolo, não tenho o direito de concluir que o silvo e o
movimento das rodas sejam a causa da marcha da locomotiva. Os camponeses
estão convencidos de que o vento gelado que sopra no fim da Primavera é
provocado pelo rebentar dos renovos do carvalho, e efectivamente, quando na
Primavera começam a rebentar os renovos do carvalho, sopra um vento frio. E
conquanto eu ignore a razão desse fenómeno, não me é permitido estar de acordo
com os camponeses, pois é evidente que o vento não pode depender dos renovos
do carvalho.
O fenómeno que observo é o resultado da coincidência de dois factos, o que
aliás se verifica em numerosas manifestações naturais, e sou levado a concluir que,
por mais que eu estude atentamente a marcha dos ponteiros do meu relógio, o
movimento do êmbolo e das rodas da locomotiva ou os renovos do carvalho, não
me é possível reconhecer nisso a razão do badalar dos sinos, do movimento da
máquina ou do vento da Primavera. Para chegar a uma conclusão aceitável sinto-me na obrigação de modificar inteiramente o meu ponto de vista de observador,
estudando as leis do vapor, as leis do som e as do vento. Eis o que o historiador
tem de fazer. E o certo é que já se empreenderam ensaios nesse sentido.
No estudo das leis da história é o objecto das nossas observações que precisa
de ser modificado, É preciso deixar em paz os reis, os ministros e os generais e
procurarem-se os elementos homogéneos e infinitesimais que dirigem as massas.
Ninguém pode dizer até que ponto por esse meio se podem chegar a conhecer
essas leis, mas não lia duvida de que apenas por esse lado elas se podem
apreender e que nesse caminho o espírito humano não fez a milésima parte dos
esforços que empregou para descobrir os actos de tantos reis, de tantos chefes
militares e de tantos ministros e desenvolver as considerações que esses actos
sugerem.
[II]
Exércitos de «doze povos diferentes» da Europa se tinham lançado sobre a
Rússia. As tropas e as populações russas batem em retirada, evitando o contacto
com o inimigo, em direcção a Smolensk e de Smolensk a Borodino. Os Franceses,
animados por uma força propulsora cada vez maior, lançam-se sobre Moscovo,
objectivo de todo o seu esforço. Esta força, à medida que, se aproxima do fim,
aumenta de volume, de acordo com as leis que regem o movimento de aceleração
na queda dos corpos. Na retaguarda do exército, milhares de verstas de um país
devastado e, inimigo; na sua vanguarda, dezenas de verstas separando-o do seu
destino. Eis o que cada soldado francês pensa, e a invasão continua por si mesma,
graças à força deste impulso.
No exército russo, quanto mais se recua mais se inflama nos corações o ódio
contra o inimigo: a retirada concentra e exaspera esse ódio. Em Borodino dá-se o
choque. Nenhum dos exércitos cede terreno diante do outro, mas, após o embate,
os Russos têm, fatalmente, de continuar a recuar. Como acontece a uma bola, que,
jogada contra outra, animada de maior velocidade, tem forçosamente de recuar,
assim a bola da invasão, conquanto haja perdido a sua força no embate, tem
necessariamente de continuar a rolar por algum tempo.Os Russos recuam para cento e vinte verstas além de Moscovo, os Franceses
avançam até Moscovo e detêm-se aí. Nas cinco semanas seguintes, todos os
combates cessam. Os Franceses não se mexem. A semelhança de uma fera
mortalmente ferida que vai perdendo sangue enquanto lambe os seus ferimentos,
ei-los ali imóveis durante cinco semanas, sem tentarem seja o que for, até que por
fim, de súbito e independentemente de qualquer motivo, retrocedem. Precipitam-
se pela estrada de Kaluga, e embora vitoriosos, pois no combate que se trava em
MaloIaroslavetz ficam senhores do campo de batalha, sem travar qualquer
combate sério, debandam cada vez mais depressa em direcção a Smolensk e de
Smolensk direitos a Vilna, atravessando o no Beresina e assim por diante.
Na noite de 26 de Agosto, Kutuzov, bem como todo o exército russo, estavam
persuadidos de que a batalha podia considerar-se ganha. O Sereníssimo
comunicou-o mesmo, por escrito, ao imperador. E ordenou que se preparassem
para um novo combate com o propósito de dar o golpe de morte ao adversário,
não por ser intenção sua enganar quem quer que fosse, mas apenas por estar
persuadido de que o inimigo podia considerar-se vencido, persuasão, aliás,
partilhada por todos os actores do drama.
Mas naquela mesma noite e no dia seguinte receberam-se notícias de perdas
incríveis: podia considerar-se perdida quase metade do exército, e uma nova
batalha era, praticamente, impossível.
Impossível pensar noutra batalha enquanto se não reunissem todas as
informações necessárias e os feridos não estivessem recolhidos, as munições
renovadas, contados os mortos, os novos comandantes nomeados para substituir
os desaparecidos e os homens fortalecidos e devidamente refeitos. E, no entanto,
imediatamente após a batalha, na manhã seguinte, o exército francês, accionado
por uma força propulsora na razão inversa do quadrado da distancia, põe-se por si
mesmo em marcha contra o exército russo. Kutuzov teria querido atacar logo na
manhã seguinte e esse era o desejo unânime das suas tropas. Mas para tal se
conseguir o desejar não bastava, era preciso o poder também, e essa possibilidade
não existia. Era impossível não retroceder uma etapa, depois outra e outra ainda,
e, por fim, no dia 1º de Setembro, quando as tropas chegaram a Moscovo — e
apesar do animo que se apoderara dos soldados —, o estado das coisas exigiu que
retirassem ainda mais. E o exército recuou mais uma etapa, a, última, e a capital
rendeu-se ao inimigo.Aqueles que estão persuadidos de que os chefes militares traçam os seus
planos de guerra e a disposição das batalhas, como qualquer de nós, sentado
diante de um mapa, pode decidir das medidas a tomar nesta ou naquela
circunstância, esses não deixarão de perguntar porque não procedeu Kutuzov, na
sua retirada, desta ou daquela maneira, porque não ocupou posições antes de Fili,
porque não recuou de uma vez só pela estrada de Kaluga, ao deixar Moscovo, etc.
Esquecem ou ignoram as circunstâncias inevitáveis nas quais qualquer chefe
militar tem de agir.
O comandante de um exército é obrigado a proceder em condições
absolutamente diferentes daquelas que concebemos no silêncio de um gabinete ao
elaborarmos, com o mapa diante de nós, os planos de uma campanha, dispondo
aqui e ali de forças determinadas e dando início às nossas operações num
momento definido. O general-chefe nunca pode estar no «princípio» de um
acontecimento, como acontece connosco, teóricos que somos. Vê-se sempre
colocado no meio de uma série móvel de circunstâncias, de tal modo que nunca,
em momento algum, é capaz de encarar exactamente o valor dos acontecimentos.
O facto realizado toma, insensivelmente, pouco a pouco, o relevo que corresponde
à importância que tem, e durante o tempo necessário para assim se desenvolver e
colocar-se em evidência encontra-se o chefe mergulhado num jogo complicado de
intrigas, de preocupações, de conflitos de poder, de projectos, de conselhos, de
ameaças, de fraudes, tendo de responder, a todo o momento, a uma infinita
quantidade de perguntas, sempre contraditórias.
Os entendidos em assuntos militares dizem-nos, muito a sério, que Kutuzov
teria podido evacuar as suas tropas pela estrada de Kaluga muito antes de Fili e
que até mesmo alguém lhe propôs esta solução. Efectivamente, sobretudo nos
momentos cri— ticos, o general-chefe tem sempre à sua disposição, em vez de um,
dúzias de projectos, E cada um desses projectos, conquanto baseados na estratégia
e na técnica, está em contradição com os outros. Dir-se-ia que lhe bastava escolher
um deles. Mas até isso lhe é impossível. Tanto os acontecimentos como o tempo
não esperam. Propuseram-lhe, suponhamos, no dia 28, seguir pela estrada real de
Kaluga, mas eis que ao mesmo tempo chega um ajudante-de-campo de
Miloradovitch, que vem perguntar-lhe se se devem atacar imediatamente os
Franceses ou se é melhor recuarem, É preciso logo, naquele mesmo instante,
transmitir ordens. Ordenar a retirada será condenar-se a um desvio para atingir aestrada de Kaluga. Depois do ajudante-de-campo chega o intendente, que pede
instruções sobre o local para onde deve encaminhar os abastecimentos, enquanto
o comandante das ambulâncias pergunta para onde deve dirigir os feridos.
Entretanto chega um correio de Petersburgo com uma carta do imperador, em que
se diz não admitir que se possa abandonar Moscovo. Em seguida, um dos rivais de
Kutuzov, que move contra ele uma intriga — há sempre pessoas para tal e muitas
vezes mais do que uma —, propõe um novo projecto, diametralmente oposto ao
da retirada pela estrada de Kaluga. Aliás, o general-chefe tem necessidade de
dormir para reparar as suas forças, mas eis que um digno general se lhe vem
queixar de ter sido preterido na atribuição das condecorações, que uns civis lhe
vêm implorar protecção, que um oficial enviado para examinar o terreno chega
com informações absolutamente opostas às do oficial que o precedera. Um espião,
um prisioneiro, bem como o general que fez o reconhecimento, descrevem de
maneira completamente diferente posição do exército inimigo. As pessoas que
fingem não compreender ou que esquecem as condições em que deve trabalhar o
general-chefe desenham-nos um quadro, por exemplo, da posição das tropas em
Fili e supõem então que Kutuzov teria podido no dia 1º de Setembro resolver
livremente o problema do abandono ou da defesa de Moscovo, quando com o
exército a cinco verstas da capital semelhante questão não era de formular. E
quando foi essa questão resolvida? Em Drissa, em Smolensk e mais claramente do
que nunca no dia 24, em Chevardino, e em 26 , em Borodino, e depois, dia a dia,
hora a hora, minuto a minuto, na retirada de Borodino para Fili.
[III]
Quando Ermolov, enviado por Kutuzov para a posição, lhe veio dizer ser
impossível travar batalha naquele local, em frente dos muros de Moscovo, e que
era preciso recuar, o marechal olhou silencioso para ele.
— Dá cá a tua mão — disse-lhe, ele relendo-a entre as suas para lhe tomar o
pulso, acrescentou: — Estás doente, meu amigo. Pensa bem no que dizes.
Ainda não podia compreender ser possível abandonar Moscovo sem combate.
Apeou-se do carro, na colina de Poklonaia, a seis verstas da barreira deDorogomilov, e sentou-se num banco à beira da estrada. A sua volta juntaram-se
muitos generais. O conde Rostoptchinp, chegado de Moscovo, juntara-se-lhes. Esta
brilhante reunião, dividida, em vários grupos, discutia as vantagens e os
inconvenientes da posição, o estado das tropas, os planos propostos, o espírito que
reinava na cidade e outras questões militares. Embora ninguém o dissesse, e
conquanto não tivessem sido convocados para isso, todos sentiam tratar-se de um
conselho de guerra. As conversas mantinham-se à volta de problemas de ordem
geral. Se se comunicava ou se se tomava conhecimento de casos particulares era
em voz baixa e logo se voltava aos assuntos de ordem geral. Não havia nem
conversas, nem gracejos, nem risos, nem sequer sorrisos. Era evidente todos
procurarem estar à altura das circunstâncias. E conquanto cada um dos grupos se
entretivesse em conversas entre os seus componentes, todos procuravam
conservar-se não muito longe do general-chefe, cujo banco constituía o ponto de
mira geral, todos falando de modo que ele os ouvisse. Kutuzov ouvia e por vezes
informava-se sobre o que se estava a dizer perto dele, sem intervir nas conversas
nem emitir qualquer opinião. Geralmente, depois de apurar o ouvido, desviava a
atenção, desapontado por não ter podido ouvir aquilo que queria saber. Uns, a
propósito da posição escolhida, criticavam menos essa posição em si mesma que a
competência de quem a escolhera. Outros sustentavam que o erro vinha de mais
longe e que já na antevéspera se devia ter aceitado a batalha. Havia ainda quem
se referisse à batalha de Salamanca, cujos pormenores haviam sido conhecidos
através de um francês de uniforme espanhol que dava pelo nome de Crossart. Este
Crossart discutia com um príncipe alemão que prestava serviço no exército russo o
cerco de Saragoça, na previsão de a defesa de Moscovo lhe seguir as pisadas. Num
quarto grupo. Rostoptchine declarava estar pronto a morrer com a milícia
moscovita defendendo a capital, embora acrescentasse que não podia deixar de
lamentar a ignorância em que o tinham conservado e que, noutras circunstâncias,
as coisas teriam corrido de outra maneira...
Num quinto grupo, num alarde de profundo conhecimento estratégico, falava-
se da direcção que as tropas deviam ter tomado. E havia ainda quem não dissesse
senão tolices.
Kutuzov cada vez parecia mais preocupado e mais triste, Em todo aquele
linguajar apenas via uma coisa: tamanha era a impossibilidade material de
defender Moscovo, no sentido literal da palavra, que, se houvesse um general-chefe tão louco capaz de dar ordem de combate, em vez de uma batalha apenas se
veria uma desordem tremenda. Essa batalha não se travaria, pois todos os altos
postos eram unânimes em considerar a posição impossível e não falavam noutra
coisa senão no que viria a dar-se depois do abandono inevitável daquela posição.
Como haviam aqueles generais de dirigir o exército num campo de batalha que
eles próprios consideravam impraticável? Os oficiais subalternos f— os próprios
soldados, pois todos discutiam o caso, reconheciam também a posição
insustentável: não podiam bater-se de antemão certos de que se daria um
desastre. É certo que Bennigsen teimava em que se defendesse essa posição,
quando outros a criticavam, mas isso não linha importância alguma em si: não
passava de pretexto para discussões e intrigas. Kutuzov compreendido
perfeitamente.
Bennigsen, que escolhera a posição em causa, vangloriava-se do seu
patriotismo, e Kutuzov não o podia ouvir sem franzir o sobrolho. Teimava na
defesa de Moscovo. O general-chefe percebia claramente o seu estratagema. Se
houvesse um desastre, alijaria sobre ele, que teria conduzido as tropas sem darem
batalha até aos montes Vorobi, toda a responsabilidade: no caso contrário, teria o
cuidado de chamar a si toda a glória: e, se se recusassem a ouvi-lo, lavaria as suas
mãos do crime de ter abandonado a cidade. Estas intrigas, porém, não
apoquentavam por então o velho general. Só um problema terrível se lhe
formulava e ninguém estava em condições de lhe proporcionar uma solução. Esse
problema era o seguinte.
«Teria sido eu quem deixou chegar Napoleão até às portas de Moscovo? E
quando o teria feito? Quando? Ontem, quando enviei a Platov ordem de recuar,
ou anteontem à noite, quando, meio adormecido, disse a Bennigsen que tornasse,
as suas disposições? Ó teria sido ainda antes... Quando, quando é, que se decidiu
esta coisa tremenda: Moscovo ter de sido abandonada?
O exército tem de bater em retirada e essa ordem tem de ser transmitida. Dar
uma tal ordem afigurava-se-lhe tão espantoso como demitir-se do comando do
exército. Além de amar o poder, a que estava habituado, tivera inveja das honras
tributadas ao príncipe Prozorovski, de cujo quartel-general foi agregado na
Turquia, e estava convencido de que o destino o escolhera para salvar a Rússia,
pois, contra a vontade do imperador, e apenas por virtude da vontade do povo,
fora escolhido para o comando supremo. De facto, estava persuadido de que sóele, naquelas críticas circunstâncias, podia encontrar-se à frente do exército, e só
ele neste mundo seria capaz de enfrentar o invencível Napoleão, sentindo-se
horrorizado com a ideia da ordem que tinha de dar. A verdade, porém, é que era
preciso tomar uma decisão: era mister pôr ponto final às conversas daquela gente,
que principiavam a adquirir um tom demasiado livre.
Chamou os generais mais antigos.
— Boa ou má, a minha cabeça só comigo pode contar – disse, levantando-se
para se dirigir a Fili, onde estavam as carruagens.
[IV]
As duas da tarde reuniu-se o conselho de guerra na espaçosa e confortável isbá
do camponês André Savostianov. Os homens, as mulheres e as crianças daquela
numerosa família tinham-se ido acolher na dependência sem estufa do outro lado
do vestíbulo. Apenas ficara empoleirada na estufa uma pequenita de seis anos, a
filha de André, Malacha, a quem o Sereníssimo conquistara, quando tomava chá,
oferecendo-lhe um pedaço de açúcar, Malacha, tímida e risonha, ia olhando do alto
do seu observatório aquelas figuras, aqueles uniformes, aqueles generais, com o
peito constelado de medalhas, que entravam uns atrás dos outros e se instalavam
no recanto sagrado, nos grandes bancos, debaixo dos ícones. O «avô», como
Malacha, mentalmente, chamava a Kutuzov, estava sentado sozinho no recanto
escuro da estufa. Esbarrondado numa poltrona, não fazia senão gemer, passando a
mão pela gola do dólman, o qual, embora desabotoado, parecia afogar-lhe o
pescoço. Os que iam entrando aproximavam-se dele, um de cada vez: a uns
apertava a mão, a outros limitava-se a fazer-lhes um aceno com a cabeça.
Kaissarov, o ajudante-de-campo, fez menção de afastar a cortina da janela que lhe
ficava diante, mas o marechal teve um gesto de impaciência e ele compreendeu
que o Sereníssimo não queria que lhe vissem a cara.
Em torno da rústica mesa de pinho, cujo tampo estava coberto de mapas,
planos, lápis, papéis, tanta gente se juntou daí a pouco que as ordenanças se
viram obrigadas a trazer outros bancos. Neles se sentaram os recém-chegados,
Ermolov, Kaissarov e Toll. Precisamente debaixo dos ícones, no lugar de honra,estava Barclay de Tolly, com a cruz de S. Jorge ao peito, o rosto pálido e enfermiço
e a grande testa que lhe prolongava a cabeça calva. Estava com febre há dois dias
e naquele momento, precisamente, arrepios o faziam estremecer, sentindo-se
prostrado. A seu lado. Uvarov, com gestos bruscos, contava-lhe qualquer coisa em
voz baixa. Todos, aliás,, falavam da mesma maneira. Dokturov, baixinho e
reboludo, de sobrancelhas franzidas e mãos cruzadas sobre o ventre, ouvia em
toda a atenção. Do outro lado, o conde Ostermann-Tolstoi apertando entre as
mãos a sua grande cabeça de ousada expressão e olhos brilhantes, parecia
mergulhado nos seus pensamentos. Raievski, impaciente, alisando os frisados
cabelos com um gesto habitual, ora olhava para Kutuzov ora para a porta de
entrada. O belo rosto firme e bondoso de Konovnitsine abria-se num sorriso terno
e malicioso. Os seus olhos e os de Malacha tinham-se encontrado e fazia-a rir com
trejeitos.
Todos esperavam por Bennigsen, que, a pretexto de examinar novamente a
posição, se estava refazendo com um bom repasto. Entre as quatro e as seis horas
conversou-se, em voz baixa, sobre assuntos particulares, sem se dar início à
discussão.
Só quando Bennigsen apareceu na isbá Kutuzov saiu do seu canto e se
aproximou da mesa, mas de modo a que a luz das velas trazidas entretanto lhe
não desse em cheio no rosto.
Bennigsen abriu imediatamente a sessão, perguntando se «se ia abandonar
sem combate a santa e antiga capital da Rússia ou se, pelo contrário, se ia
defendê-la». Seguiu-se um longo e absoluto silêncio. Em todos os rostos surgiu uma
expressão carregada, e ouviu-se Kutuzov tossir, resmoneando, irritado, fosse o que
fosse. Todos os olhares convergiam para ele. Até Malacha olhava para o «avô».
Era ela quem, de mais perto, podia ver contrair-se-lhe o rosto: parecia ir chorar.
Foi coisa de segundos.
— A santa, a antiga capital da Rússia! — exclamou, subitamente, repetindo,
colérico, as palavras de Bennigsen, como a frisar quanto essas palavras
destoavam. — Permita que lhe diga, Excelência, que esta pergunta não tem o mais
pequeno sentido para um coração russo. — E enquanto assim falava, o corpo
maciço inclinava-se-lhe para a frente. — Não se pode fazer semelhante pergunta e
uma pergunta dessas não tem o mais pequeno sentido. Foi por motivos de ordem
puramente militar que eu convoquei estes senhores. Ei-los: «A salvação da Rússiaestá no exército. Qual será mais vantajoso, arriscarmo-nos a perdê-lo, e com ele
Moscovo, aceitando a batalha, ou entregar Moscovo sem combate?» Eis o ponto
sobre que eu quero conhecer a vossa opinião.
E voltou a enterrar-se na sua poltrona.
A discussão tomou calor. Bennigsen ainda se não considerava vencido.
Admitindo a opinião de Barclay e de outros, segundo a qual era impossível travar
uma batalha defensiva em Fili, propunha, dominado, dizia, por sentimentos
patrióticos e de amor a Moscovo, fazer passar as tropas, durante a noite, do flanco
direito para o esquerdo, lançando-se na manhã seguinte sobre a ala direita
francesa, As opiniões estavam divididas; discutiram-se os prós e os contras.
Ermolov, Dokturov e Raievski estavam com Bennigsen. Ou guiados pela ideia de
que era necessário um sacrifício antes do abandono da cidade ou por outra
qualquer razão de ordem pessoal, fosse pelo que fosse, pareciam não compreender
que aquela reunião não podia alterar a marcha inevitável dos acontecimentos e
que Moscovo já estava de facto abandonada. Eis o que compreenderam muito bem
os demais, que, deixando de lado a questão de Moscovo, apenas discutiram a
direcção que os exércitos deviam seguir na retirada.
Malacha que seguia atentamente o espectáculo, interpretava de maneira
muito diferente o que estava a passar-se. Para ela tratava-se apenas de uma luta
pessoal entre o «avô» e o «homem das grandes abas», como chamava a
Bennigsen. Via muitíssimo bem que se dirigiam um ao outro iracundos e lá no
fundo do seu coraçãozinho tornava o partido do «avô». No decorrer da conversa
surpreendeu o olhar rápido e malicioso que este lançara a Bennigsen, e
imediatamente percebeu, com grande satisfação, que o «homem das grandes
abas» fora posto no seu lugar: Bennigsen corara, subitamente e, furioso, pusera-se
a andar de um lado para o outro. As palavras que sobre ele tinham produzido tão
grande efeito eram as que Kutuzov pronunciara, numa voz mansa e tranquila,
acerca das vantagens e dos inconvenientes da proposta relativa ao ataque da ala
direita dos Franceses.
— Não posso, meus senhores — dissera Kutuzov —, aprovar o plano do conde.
Movimentos de tropas nas vizinhanças do inimigo são sempre perigosos e a
história militar aí está para confirmar o facto. Assim, por exemplo... — Pareceu
querer reflectir e lançou um olhar ingénuo e claro ao antagonista, como se
procurasse um exemplo ali bem próximo. — É o caso da batalha de Friedland, que,como o conde se deve lembrar muito bem, assim o espero, não foi... o que se pode
dizer um êxito, apenas porque as nossas tropas se tinham reagrupado a uma
distancia demasiado próxima do adversário...
Seguiu-se um breve silêncio que a todos pareceu muitíssimo longo.
A discussão recomeçou, entrecortada de frequentes interrupções: sentia-se
que, já não havia matéria para mais dissertações.
Durante uma destas interrupções, Kutuzov soltou um grande suspiro: parecia
querer falar. Todos voltaram para ele os olhos.
— Bem, meus senhores, já vi que eu é que tenho de pagar os vidros partidos!
— disse ele. E, erguendo-se com dificuldade, aproximou-se da mesa. — Meus
senhores, ouvi o que cada um pensa. Alguns dos senhores não são, com certeza, da
minha opinião. Mas eu — acrescentou, depois de uma ligeira pausa — mercê dos
poderes que me foram conferidos pelo imperador e pela Pátria, ordeno a retirada.
Pouco depois os generais separavam-se, com essa circunspecção solene e
calada com que se costumam separar as pessoas que assistiram a um funeral.
Alguns deles, em voz baixa, e num tom muito diferente daquele que tinham
durante o conselho, dirigiram algumas palavras ao general-chefe.
Malacha, que esperava havia muito pelo jantar, deixou-se deslizar do seu
miradouro, cautelosamente, de costas, fixando os seus pèzinhos descalços nas
saliências da estufa, e desapareceu pela porta, esgueirando-se por entre as pernas
dos militares.
Depois de se despedir dos generais, Kutuzov deixou-se ficar, por muito tempo,
sentado, com os cotovelos em cima da mesa, pensando sempre na mesma
tremenda pergunta: «Quando é que se decidiu então que Moscovo seria
abandonada? Quando ficou isso resolvido e quem era o responsável?»
— Ah! Não era isto que eu esperava! — disse para o ajudante-de-campo,
Schneider, que viera vê-lo já noite adiante. — Não esperava isto! Nunca julguei
que se desse uma coisa destas!
— É melhor ir descansar, Excelência — disse-lhe Schneider — Pois bem, já que
assim querem, obrigá-los-ei a comer carne de cavalo, como aos Turcos — exclamou,
de súbito, sem responder ao ajudante-de-campo, deixando cair o grosso punho em
cima da mesa— Sim, também a hão-de comer, ou então...
[V]
Entretanto, e num caso ainda mais grave que o da retirada do exército sem
combate, o do abandono e incêndio de Moscovo, Rostoptchine, que aparece como
o agente executor desse acontecimento, agia de forma muito diversa de Kutuzov.
Este grave acontecimento — o abandono e o incêndio de Moscovo — era tão
inevitável como a retirada das tropas para além de Moscovo depois da batalha de
Borodino.
Nenhum russo houve, não por dedução lógica, mas em virtude desse
sentimento que lhe enchia o coração, como já acontecera com os seus
antepassados, que não previsse o que ia suceder.
Depois da tomada de Smolensk, em todas as cidades e povoações russas, sem
ser precisa a intervenção do conde Rostoptchine nem das suas proclamações,
aconteceu precisamente o mesmo que em Moscovo. O povo esperou calmamente o
inimigo, sem se revoltar, sem se agitar, sem atentar contra a vida de ninguém:
esperou tranquilamente a sua hora, certo de que, nas circunstâncias mais trágicas,
saberia achar a decisão que convinha. A medida que o inimigo se aproximava, as
classes mais abastadas retiravam-se, abandonando os seus haveres; as mais
pobres ficaram e incendiaram e destruíram o que restava.
Todos os russos sentiam que tinha de ser assim e que assim seria sempre. Esta
convicção, sobretudo o pressentimento de que Moscovo seria tomada, espalhara-
se por toda a sociedade moscovita de 1812. Aqueles que, a partir de Julho e do
começo de Agosto, largaram da cidade mostraram esperar isso mesmo. Os que
abalaram levando consigo o que podiam e abandonando as suas casas e grande
parte dos seus haveres agiram desse modo impelidos por um patriotismo latente
que se não traduz nem em frases nem no assassínio dos filhos em nome da
salvação da Pátria ou quejandos actos antinaturais, mas se exprime sem alarde,
simplesmente, de maneira natural, e que por isso mesmo dá sempre os melhores
resultados.
«É uma vergonha fugir do perigo, só os cobardes procedem assim», diziam-lhes.
Rostoptchine, nas suas proclamações, dava-lhes a entender que esse procedimento
era uma desonra. Apesar de mortificados por se verem tratados como poltrões e
lhes custar partirem, mesmo assim abalavam, pois sabiam que tinha de ser. Eporque se iam embora? Não, com certeza, por se sentirem alarmados pelo que
dissera Rostoptchine sobre as atrocidades que Napoleão praticava nos países
conquistados. Abalavam, e os ricos, as pessoas cultas, eis quem partia primeiro,
eles, que sabiam perfeitamente que Viena e Berlim estavam intactas e que
durante a ocupação os habitantes passavam o seu tempo muito divertidos na
companhia desses franceses, gente sedutora, de quem os Russos tanto gostavam,
especialmente as mulheres.
Partiam porque, para os Russos, não se punha a pergunta de se seria bom ou
mau viver sob a administração francesa, Não era possível ali ficar: para eles, seria
o pior que lhes podia acontecer. Partiam mesmo antes de Borodino e ainda mais
depressa depois desta batalha, sem quererem saber das proclamações relativas à
defesa da cidade, apesar de o governador de Moscovo ter anunciado a «saída» da
Virgem Iverskaia e a sua intenção de se alistar, e dos balões que deviam matar
todos os franceses, e, de todos os despautérios que Rostoptchine proclamava nos
seus editais. Sabiam muitíssimo bem que era o exército que devia bater-se e que
se este se mostrava incapaz não era com as filhas dos criados que eles podiam
enfrentar Napoleão em Tri Gori, e que o que havia a fazer era partir, por mais que
lhes custasse abandonar os seus haveres. E lá iam, sem se deterem a pensar na
majestade daquela enorme e rica capital abandonada pelos seus habitantes e
destinada, sem dúvida, a ser pasto das chamas, pois não destruir ou reduzir a cinza
casas vazias eis coisa extraordinária para a gente russa. Iam por iniciativa
individual e, apesar disso, graças ao facto de partirem, cumpria-se esse acto
magnífico que ficará para todo o sempre com a maior gloria do povo russo. Até
aquela senhora que já no mês de Junho, seguida dos seus negros e dos seus bobos,
abandonava Moscovo, para se refugiar nas suas propriedades de Saratov, sentia
confusamente que nunca poderia ser criada de Bonaparte. E apesar do receio de
ser presa às ordens de Rostoptchine, realizava simples e naturalmente a grande
obra que salvaria a Rússia. E o conde Rostoptchine, que tão depressa
envergonhava os que fugiam como ordenava que se fechassem as repartições
públicas; que umas vezes distribuía entre o povo embriagado armas que para nada
serviam, organizando procissões pelas ruas, outras proibia o metropolita Augustin
de o fazer: que requisitava agora todos os carros particulares existentes na cidade
e logo utilizava cento e trinta e seis carroças para transportar o famigerado balão
de Leppich; que tanto declarava ir deitar fogo a Moscovo como que incendiara asua própria casa enquanto numa proclamação aos Franceses os censurava
solenemente por haverem saqueado o asilo de crianças por ele fundado; que ora,
se vangloriava do incêndio de Moscovo ora o reprovava; que ora dava instruções
ao povo para deitar a mão aos espies e trazer-lhos ora o condenava por o ter
feito: que ora expulsava de Moscovo todos os franceses ora deixava em paz
Madame Aubert-Chalmé, sob cujo tecto se reunia toda a colónia daquele país,
quando, sem qualquer motivo especial, mandava prender e deportar o velho e
venerando director dos correios, Kliutcharev; que ora mandava convocar o povo
para se reunir em Tri Gori e marchar contra os Franceses ora, para se ver livre da
multidão, lhe entregava um homem para que ela o liquidasse enquanto ele
próprio fugia pela porta das traseiras; que ora dizia que não sobreviveria às
desgraças de Moscovo ora escrevia num álbum, em francês, uma quadra sobre o
pape’ que então estava a desempenhar (1), esse homem nada percebia dos
acontecimentos que estavam a dar-se, apenas queria fazer fosse o que fosse, pôr-
se em evidência, realizar um feito patriótico, brincando como uma criança
enquanto se cumpria esse acto formidável e fatal que foi a, evacuação e o incêndio
de Moscovo. Com os seus bracinhos de criança, ora tratava de espicaçar ora de
deter essa imensa torrente popular que tudo arrastava no seu curso.
(1)
Je suis ne Tartare
Je voutus étre Romain.
Les Français m’appelèient barbare,
Les Russes. Georges Dardin,
(Nasci tártaro
Quis ser romano.
Os Franceses chamaram-me bárbaro
Os Russos, Georges Dandin.)
(Nota de Tolstoi.)
[VI]
Helena, que regressara de Vilna a Petersburgo com a corte, encontrava-se
numa situação embaraçosa.
Em Petersburgo gozava da protecção muito especial de um magnate que
ocupava um dos mais altos postos do Estado. Em Vilna tornara-se íntima de um
jovem príncipe estrangeiro. No seu regresso encontrou-se com o príncipe e o
magnate, e ambos quiseram fazer valer os seus direitos, o que a obrigou a
resolver um problema inédito na sua carreira: manter relações intimas com os dois
sem ofender qualquer deles.
Isto, que teria parecido difícil e até impossível a qualquer outra, não obrigou a
condessa Bezukov a um momento sequer de reflexão, ou não tivesse ela fama de
mulher superior. Se tem dissimulado o seu procedimento, servindo-se de
subterfúgios para evitar complicações, teria deitado tudo a perder, pois seria
como confessar-se culpada. Pelo contrário, procedendo como um grande homem
capaz de conseguir tudo o que quer, imediatamente se colocou na situação de
quem tem razão, razão em que ela, aliás, acreditava sinceramente, atribuindo a
culpa aos outros.
A primeira vez que o mancebo estrangeiro se permitiu censurá-la, ela ergueu
altivamente a sua bela cabeça e, meia voltada para ele, disse-lhe:
— Aqui têm o egoísmo e a crueldade dos homens! Não contava com outra
coisa. Sacrifica-se uma mulher, e aqui têm a recompensa. Que direito tendes vós,
monsenhor, de me pedirdes contas das minhas amizades, dos meus afectos? Esse
homem foi um verdadeiro pai para mim.
O príncipe quis dizer fosse o que fosse, mas ela interrompeu-o:
— Sim, está bem — prosseguiu — pode ser que ele alimente por mim
sentimentos que não são propriamente de um pai, mas isso não é razão para eu
lhe dar com as portas na cara. Não sou homem para ser ingrata. Fique sabendo,
monsenhor, que em tudo que diz respeito aos meus sentimentos íntimos só a Deus
e à minha consciência presto contas.— E dizendo o que, pousou a mão sobre o seu
belo seio, que se soerguia emocionado, ao mesmo tempo que levantava os olhos
para o céu.
— Mas ouça-me, por amor de Deus. Case comigo, e eu serei sua escrava.
— Mas é impossível.
— Não quer descer até mim, bem vejo... — E rompeu a chorar.O príncipe procurou consolá-la. Helena, chorando sempre, disse-lhe— como se,
não desse conta das suas palavras, que nada a podia impedir de se casar, pois
havia casos de divórcio (não eram muitos os que então havia, mas Helena citou o
de Napoleão e outras grandes personalidades), que nunca fora mulher do seu
marido, que era, apenas a sua vítima.
— Mas as leis, a religião... — replicou o moço, que principiava a transigir.
— As leis, a religião... Mas para que teriam elas sido feitas se, não servissem
para isso?
O príncipe, surpreendido com o facto de ainda não ter pensado no caso, coisa
tão simples e razoável, foi dali pedir conselho aos reverendos padres da
Companhia de Jesus, com quem mantinha estreitas relações.
Alguns dias depois, numa dessas encantadoras festas que Helena costumava
oferecer na sua residência de Kamenn! Ostrov, apresentaram— lhe uma
personagem de certa idade, de cabelos brancos como neve e brilhantes olhos
pretos, o sedutor Monsieur de Jobert, um jesuíta de sotaina curta. No jardim
iluminado e enquanto a orquestra tocava, por muito tempo este padre falou a
Helena do amor de Deus e de Cristo, do Sagrado Coração de Maria e do consolo
que nesta vida e na outra promete a religião católica. Helena comoveu-se, por
várias vezes sentiu as lágrimas nos olhos, como, aliás, o próprio Monsieur de
Jobert, e a voz tremeu-lhe. Alguém se aproximou de Helena convidando-a para
dançar e interrompeu esta conversa com o seu futuro director espiritual; mas no
dia seguinte Monsieur de Jobert passou o serão em casa de Helena e daí para o
futuro tornou-se íntimo da condessa.
Um dia acompanhou Helena à igreja católica e Helena ajoelhou diante do altar
que ele lhe indicara. O insinuante velho pousou-lhe as mãos na cabeça e ao sentir
este contacto, assim ela o contaria mais tarde, foi como se um sopro de ar fresco
lhe Perpassasse pela alma. Explicaram-lhe que era a graça.
Depois enviaram-lhe um sacerdote de sotaina comprida, que a confessou e lhe
deu a absolvição. No dia seguinte trouxeram-lhe a comunhão numa caixa que lhe
deixaram em casa à disposição. Alguns dias depois veio a saber, com grande
alegria sua, ter dado entrada na verdadeira igreja católica, que o próprio papa ia
ser posto ao corrente desse facto e que lhe enviaria, tal propósito, um documento
autêntico.
Tudo o que estava a acontecer por esse tempo, a atenção que lheconsagravam pessoas tão inteligentes, exprimindo-se de uma forma tão agradável
e tão distinta, e a sensação de se sentir pura como uma pomba — por então usava
vestidos brancos enfeitados com laços da mesma cor —, tudo isso lhe dava um
grande prazer, mas a verdade é que, apesar de tudo, nem por um só momento
desistia do seu objectivo. E como sempre acontece quando entra em cena, a
malícia, que é o mais néscio quem vergar, o mais inteligente, percebendo que o
objectivo de todas aquelas palavras e preocupações consistia principalmente em
arrancarem-lhe dinheiro em benefício dos Jesuítas, depois de a terem convertido
ao catolicismo, insinuação que já lhe fora feita. Helena, antes de entregar a
importância, insistiu em submeter-se a todas as operações que pudessem libertá-la
do marido. Segundo ela, a religião devia servir para manter certas conveniências
na satisfação dos desejos humanos. E foi assim que numa das suas conversas com o
confessor exigiu que ele lhe dissesse formalmente até que ponto ela estava ligada
pelo matrimónio.
Estavam ambos sentados no salão, ao pé da janela, Caía a tarde. O perfume
das flores penetrava pela vidraça aberta. Helena tinha um vestido branco que não
lhe tapava o colo e os ombros. O padre, bem alimentado, as faces cheias,
barbeadas de fresco, a boca agradável e firme, as brancas mãos cruzadas sobre os
joelhos, em atitude beata, estava sentado ao lado de Helena, e com um fino
sorriso nos lábios olhava para ela de tempos a tempos, embriagado pela sua
beleza, enquanto lhe expunha o seu ponto de vista sobre a questão que a
interessava. A condessa, sorrindo, com inquietação, ia olhando para aquele
homem de cabelo encaracolado, faces cheias e sombreadas depois da recente
passagem da navalha, esperando a todo o momento que a conversa tornasse um
rumo novo. O sacerdote, porém, embora visivelmente perturbado com os encantos
da interlocutora, abandonava-se ao prazer de expor com arte o seu pensamento.
O director espiritual raciocinava nestes termos: «Ignorando os deveres que
assumia, jurou fidelidade a um homem que, pela sua parte, contraindo o
matrimónio sem pensar na importância religiosa desse sacramento, cometeu um
verdadeiro sacrilégio. Este casamento não teve o carácter recíproco que lhe é
próprio. Não obstante, o seu juramento conta. Se amanhã o vier a quebrar, qual
será o seu pecado? Um pecado venial ou um pecado mortal? Um pecado venial,
pois não houve da sua parte má intenção ao praticá-lo. Se agora viesse a contrair
novo casamento, na esperança de ter filhos, o seu pecado podia ser-lhe perdoado.Mas o problema assume agora duplo aspecto, o primeiro...»
— Eu pensava — disse, de súbito, Helena, enfadada com todos aqueles
discursos, e com o mais sedutor dos seus sorrisos —, eu pensava que, desde o
momento em que abracei a verdadeira religião, deixaria de estar ligada pelas
obrigações impostas pela falsa religião.
Surpreendeu-se o director espiritual ao ver apresentar-se-lhe com tanta
simplicidade o problema do ovo de Colombo. Entusiasmado com os rápidos e
imprevistos progressos da discípula, não quis, porém, renunciar à exposição dos
seus argumentos sérios e bem fundamentados.
— Entendarno-nos, condessa — exclamou, sorrindo, e pôs-se relutar os
raciocínios da sua filha espiritual.
[VII]
Helena compreendeu que a questão do ponto de vista religioso era muito fácil
e simples, mas que os seus guias espirituais apenas levantavam dificuldades
receosos da maneira como as autoridades laicas acolheriam estes projectos.
E nestas condições decidiu ser preciso preparar a opinião pública. Provocou
ciúmes no seu velho protector, dizendo-lhe pouco mais ou menos o mesmo que
dissera ao primeiro pretendente, isto é, apresentou-lhe as coisas de tal modo que
a conclusão a tirar era que para ter sobre ela quaisquer direitos seria preciso
desposá-la. No primeiro momento, a surpresa do ancião perante a proposta de se
casar com uma senhora que tinha marido foi tão grande como a do jovem, mas a
imperturbável segurança de Helena, dizendo-lhe que o caso era tão simples e
natural como se se tratasse de uma donzela, acabou por influenciá-lo da mesma
maneira. Se ela tivesse tido a menor hesitação, se tivesse mostrado a mais ligeira
vergonha ou o mínimo escrúpulo, a partida estaria perdida para ela. Mas foi com
toda a sinceridade e a mais cândida bonomia que contou aos seus amigos íntimos,
isto e, a Petersburgo inteira, que o príncipe e o magnate se lhe tinham declarado
os dois e que ela não queria magoar nem um nem o outro.
Instantaneamente, espalhou-se por Petersburgo que Helena pensa divorciar-
se. Semelhante notícia teria provocado reparos se se não tivesse sabido ao mesmotempo que a infeliz e interessante Helena estava perplexa sem saber qual dos dois
pretendentes escolher. Não se tratava já de saber se isso seria possível, mas
apenas qual seria o partido mais vantajoso e como encararia a corte o casamento.
É certo que, havia pessoas de ideias retrógradas, incapazes da elevação de
espírito suficiente para estarem à altura da questão, pois encaravam esse projecto
como uma verdadeira profanação do sacramento do matrimónio, mas eram poucas
e não faziam comentários, enquanto a maioria não pensava senão na felicidade de
Helena e na escolha que ela faria. Nem uma palavra, porem, no que dizia respeito
a considerar-se legítimo ou reprovável o facto de ela se casar estando vivo o
marido, pois, dizia-se, o assunto já fora resolvido por pessoas «mais instruídas do
que qualquer ele nós», e por em dúvida a sensatez de uma tal resolução seria
arriscarmo-nos a fazer figura de parvos ou descorteses.
Só uma pessoa ousou pronunciar francamente a sua opinião, contrária à de
todos os demais: Maria Dmitrievna Akrossimova, que viera a Petersburgo visitar
um dos seus filhos. Tendo encontrado Helena num baile, deteve-a no meio do salão
e, na sua voz rude disse-lhe em voz alta, quando à roda o silêncio era geral: «Com
que então cá por estes sítios é costume agora as pessoas casarem com os maridos
vivos? Julgas que inventaste, alguma coisa nova? Estás atrasada, minha amiga.
Há muito que isso se inventou. Fazem-no todas...» E dizendo o que. Maria
Dmitrievna arregaçou as largas mangas do seu vestido, num gesto ameaçador que
lhe era habitual, e, depois de a olhar severamente, continuou o seu caminho.
Conquanto a temessem, Maria Dmitrievna em Petersburgo gozava da fama de
meio doida e foi assim que da sua algaraviada apenas ficou no ouvido dos que
assistiram à cena a palavra grosseira que ela empregou no fim. Repetiam-na em
voz baixa e só nessa palavra lhe saboreavam o sal da peroração
O príncipe Vassili, que nos últimos tempos se esquecia muito e estava sempre
a repetir a mesma coisa, dizia sempre a filha quando acontecia encontrá-la:
— Helena, tenho ama palavra a dizer-te. — E, travando-lhe do braço, afastava-
se com ela para um canto. — Chegaram-me aos ouvidos certos projectos relativos
a... Sabes. Pois bem, minha querida filha, fica sabendo que o meu coração de pai se
regozija de te saber... Tens sofrido tanto... Mas, querida filha, só deves ouvir o teu
coração. É tudo quanto tenho a dizer-te.
E, escondendo a emoção de encomenda, esfregava a cara de encontro à da
filha, afastando-se.Bilibine, sempre com a reputação de homem extremamente espirituoso e
amigo desinteressado de Helena, amigo no género costumado entre as mulheres
da moda, um amigo que nunca se enamora da sua amiga, Bilibine exprimiu um dia,
numa pequena reunião, à sua íntima, tudo quanto pensava do seu caso.
— Ouça, Bilibine — disse-lhe Helena, que tratava sempre os seus amigos desta
categoria pelo apelido de família; e enquanto ia falando pousava a sua branca mão
cheia de anéis na manga do fraque de Bilibine. — Diga-me como se fosse a uma
irmã, que devo eu fazer? Qual dos dois?
Bilibine franziu a testa e com um sorriso nos lábios pôs-se a reflectir.
— Não me apanha desprevenido, sabe — replicou ele.— Como seu verdadeiro
amigo, estou farto de pensar no seu caso, Aqui tem, se casar com o príncipe —
(isto é, o rapaz) e principiou a contar pelos dedos —, perderá para sempre a
possibilidade de casar com o outro, e depois descontentará a Corte. (Como sabe,
há uma espécie de parentesco.) Mas, se casa com o velho conde, fará a felicidade
dos seus últimos dias, e depois, como viúva do grande... o príncipe já não faz um
casamento desigual casando consigo. — E Bilibine desfranziu a testa.
— Chama-se a isto um verdadeiro amigo — exclamou Helena, radiante,
pousando de novo a mão na manga do fraque do amigo. — Mas eu gosto de um e
de outro, não queria causar-lhes pena. Dava a vida pela felicidade dos dois.
Bilibine encolheu os ombros, com o que queria dizer que nada podia contra
semelhante dor.
«Uma mulher às direitas! Chama-se a isto pôr as cartas na mesa. Gostaria de
casar com os três ao mesmo tempo», pensou ele com os seus botões.
— Mas, diga-me uma coisa, como vai o seu marido encarar o problema? —
interrogou ele, partindo do princípio de que a sua sólida reputação lhe permitia
formular uma tão ingénua pergunta. — Consentirá ele?
— Ah, ele gosta tanto de mim! — exclamou Helena, que se julgava também
amada por Pedro.— Fará tudo por mim.
A testa de Bilibine sulcou-se de rugas, o que queria dizer que estava
preparando um mot.
— Até divorciar-se — comentou, Helena soltou uma gargalhada.
A mãe de Helena, a princesa Kuraguina, pertencia ao número das pessoas que
se permitiam duvidar da legalidade do casamento projectado. Sempre tivera
ciúmes da e agora, sobretudo, não podia resignar-se à ideia de que os desejosdesta se realizassem plenamente. Foi junto de um sacerdote russo aconselhar-se e
perguntou-lhe até que ponto seria possível uma mulher divorciar-se e voltar a
casar estando vivo o marido— O padre, respondeu-lhe que tal coisa não era
possível e com grande satisfação sua mostrou-lhe o texto do Evangelho que nega
terminantemente toda a viabilidade do casamento em semelhantes condições.
Munida destes argumentos, que se lhe afiguravam irrefutáveis, a princesa
apresentou-se em casa da filha logo pela manhã muito cedo, de modo a encontrá-
la só.
Após ter ouvido as objecções da mãe, um sorriso tranquilo e zombeteiro lhe
perpassou pelos lábios.
— Sim, está lá escrito formalmente: «Aquele que casar com mulher
divorciada...» — repetia a velha princesa.
— Oh, mãezinha, não diga tolices. Não percebe nada. Na minha posição tenho
deveres. — retorquiu-lhe Helena, transpondo a conversa do russo para o francês,
pois, quando falava russo, afigurava-se-lhe sempre que havia fosse o que fosse de
pouco claro naquela história.
— Mas, minha amiga
— Oh, mãezinha, como assim? Então não compreende que o Santo Padre tem o
direito de conceder dispensas...
Nesse momento, a dama de companhia de Helena veio anunciar-lhe que Sua
Alteza o príncipe estava no salão e desejava vê-la.
— Não, diga-lhe que o não quero ver, que estou furiosa com ele, porque faltou
à sua palavra.
— Condessa, todo o pecado tem perdão — exclamou um jovem louro, alto,
esguio e de grande nariz, que aparecera a porta.
A velha princesa ergueu-se e fez uma respeitosa reverência. O recém-chegado
nem mesmo se dignou reparar nela. Com um aceno de cabeça à filha, a princesa
dirigiu-se para a porta.
«Sim, ela tem razão», dizia de si para consigo, pois, ao ver surgir Sua Alteza,
todos os seus escrúpulos haviam desaparecido. «Tem razão. Como foi possível que
ignorássemos isto quando éramos novas? E no entanto é tão simples...», pensava
ela, ao subir para a carruagem.
No princípio de Agosto, o caso de Helena estava inteiramente concluído e estaescreveu ao marido, que a amava tanto, como ela pensava, a participar-lhe estar
na intenção de se casar com N. N, e que se convertera à única religião verdadeira.
Pedia-lhe que satisfizesse todas as formalidades necessárias para o divórcio
consoante a indicação do portador da carta.
«Posto isto, rogo a Deus que o tenha sob a Sua poderosa e santa guarda. Sua
amiga, Helena.»
Esta carta chegou a casa de Pedro quando ele se encontrava no campo de
Borodino.
[VIII]
Para o fim da batalha, depois de abandonar pela segunda vez a, bateria de
Raievski, Pedro dirigiu-se, entre massas de soldados, através de um barranco, para
Kniaskovo, chegando ao posto de socorros, Porém, ao ver sangue e ao ouvir
gemidos, deu-se pressa em continuar o seu caminho, misturando-se à soldadesca,
que lhe embaraçava os movimentos.
Só desejava uma coisa e com toda a sua alma: afastar-se o mais depressa
possível das terríveis impressões de todo aquele dia, retomar a sua vida normal e
dormir tranquilamente na sua cama. Dava-se conta de que só depois de regressar
às condições de vida normal seria capaz de se compreender a si mesmo e tudo o
que vira e experimentara, Mas ainda não obtivera essas condições de vida.
Embora as granadas e as balas houvessem deixado de sibilar no caminho que
tomara, por toda a parte se via o que observara no campo de batalha. Viam-se as
mesmas caras dolorosas, extenuadas de cansaço e por vezes com uma expressão de
estranha indiferença, havia sangue por toda a parte, por toda a parte se viam os
mesmos capotes de soldados e se ouviam descargas, que, embora longínquas,
causavam medo, e por cima de tudo isto pairava uma poeira e uma fumarada
asfixiantes. Depois de ter andado cerca de três verstas ao longo da estrada de
Mojaisk. Pedro sentou-se à beira do caminho.
Escurecia e deixara de se ouvir o troar do canhão. Apoiando-se num braço,
Pedro estendeu-se e por muito tempo assim permaneceu, seguindo com a vista as
sombras que passavam diante dele no meio das trevas. A cada momento tinha asensação de que uma granada lhe ia cair em cima com um silvo tremendo.
Estremecia então e punha-se direito. Não teria sido capaz de dizer quanto tempo
ali estivera. Lá pela noite adiante, apareceram três soldados com braçadas de
ramos secos e sentaram-se perto dele para acenderem uma fogueira.
Depois de terem olhado desconfiados para Pedro, acenderam o lume, puseram-
lhe em cima uma panela e migaram-lhe dentro biscoitos e um pedaço de toucinho.
O cheiro agradável daquela sopa gordurosa espalhou-se no ar, misturando-se ao
do fumo. Pedro levantou-se com um suspiro. Os três soldados começaram à comer
sem olhar para ele, conversando entre si.
— E tu, a que regimento pertences? — perguntou-lhe, de súbito, um deles,
com o que queria dizer, assim o pensou Pedro: «Se queres comer, conta connosco,
mas, antes, diz-nos se és pessoa de bem.»
— Eu? Eu? — murmurou Pedro, sentindo que devia descer até ao nível
daqueles soldados para mais perto estar deles e mais facilmente se fazer
compreender. — Eu, por agora, sou oficial das milícias, mas o meu destacamento
não está para estes lados. Estive no campo de batalha e perdi-me dos meus
homens.
— Caramba! — exclamou um deles.
O outro abanou a cabeça.
— Bom, come, se te apetece, gostas de kavardak? — voltou e primeiro,
oferecendo a Pedro a colher de pau, depois de a ter lambido.
Pedro foi sentar-se junto da fogueira e pôs-se a comer. Parecia-lhe nunca ter
comido coisa tão boa! Enquanto se agachava junto da panela, engolindo
avidamente, umas atrás das outras, grandes colheradas de sopa, tinha o rosto
iluminado pela fogueira e os soldados olhavam-no em silêncio.
— E para onde vais agora? Hem? — perguntou ainda um deles.
— Vou para Mojaisk.
— És um senhor, não és?
— Sou.
— E como te chamas?
— Piotre Kirilovitch.
— Pois bem, Piotre Kirilovitch, anda daí. Nós te acompanharemos.
No meio da mais negra escuridão, os soldados e Pedro meteram pés a caminho,
na direcção de Mojaisk.O galo já tinha cantado quando eles chegaram a esta cidade e se puseram a
subir a íngreme ladeira que a ela conduz. Pedro, seguindo os soldados, esquecera-
se por completo de que a sua estalagem ficava lá no fundo da encosta e que a
ultrapassara já. Não teria dado mesmo por isso, tão preocupado ia, se a meio da
ladeira não se lhe tivesse deparado o escudeiro, que andara à procura dele pelas
ruas da cidade e regressava à estalagem. Reconhecera o amo no meio das trevas
graças ao chapéu alvadio.
— Excelência — exclamou ele —, tínhamos perdido as esperanças de o
encontrar. Vem a pé? Venha daí!
— Pois sim — murmurou Pedro.
Os soldados estacaram.
— Bem, pelo que vemos, encontraste a tua gente! — exclamou um deles. —
Então, adeus! Piotre Kirilovitch, não é?
— Adeus, Piotre Kirilovitch! — repetiram os outros.
— Adeus! — disse Pedro. E, acompanhado do escudeiro, dirigiu-se para a
estalagem.
«É preciso dar-lhes qualquer coisa!», pensou, levando a mão à algibeira. «Não!
É melhor não o fazer!», respondeu-lhe uma voz interior.
Na estalagem não havia lugar: todos os quartos estavam ocupados. Pedro
dirigiu-se ao pátio e deitou-se na carruagem, cobrindo a cabeça com o capote.
[IX]
Mal pousara a cabeça na almofada, sentiu que ia cair no sono, mas, de súbito,
com uma nitidez que parecia real, pôs-se a ouvir os «buum, buum» dos canhões, os
gemidos, os gritos, o estampido das granadas, sentia o cheiro da pólvora e do
sangue derramado e um terrível sentimento de horror e medo da morte se
apossou dele. Apavorado, abriu os olhos e levantou a cabeça. Tudo estava em
sossego à sua volta. Apenas, no alpendre, um impedido falava com o estalajadeiro,
para cá e para lá, patinhando na lama. Debaixo do telheiro, por cima da sua
cabeça, abrigados no escuro do tecto ripado, um bando de pombos agitou-se
assustado com o ruído que ele fizera ao levantar-se. Todo e pátio rescendia àquelearoma de que Pedro tanto gostava a essa hora, a esse cheiro das estalagens,
misto de palha, de estrume e alcatrão. Pelo intervalo de duas tábuas negras via-se
o céu límpido picado de estrelas.
«Louvado seja Deus por tudo ter acabado», disse ele para si mesmo, tornando
a cobrir a cabeça. «Oh! É horrível uma pessoa ter medo! Que vergonha não me ter
sabido dominar! Enquanto eles... eles, até ao fim, ali firmes e tranquilos.»
«Eles» eram os soldados, os da bateria e também os que lhe tinham dado de
comer e os que rezavam diante do ícone. «Eles» era aquela gente estranha que
desconhecera até então e que no seu pensamento fazia esquecer agora todas as
demais pessoas que conhecia.
«Ser soldado, soldado raso», pensava enquanto pegava no sono. «Aderir com
todo o nosso ser a esta vida comum, penetrar nos sentimentos que assim os
fizeram, Como hei-de eu ver-me livre de todo este fardo supérfluo, diabólico, que é
a vida exterior? Houve tempo em que teria podido consegui-lo, em que teria
podido vir a ser um simples soldado. Podia ter fugido de casa de meu pai, como era
meu desejo. E também me podiam ter mandado assentar praça depois do duelo
com Dolokov.» E pela imaginação perpassaram-lhe o jantar no clube, em que
provocara Dolokov, e a imagem do Benfeitor em Torjok. E ei-lo que se põe a ver a
sessão solene na loja maçónica. Por acaso é no clube inglês. Alguém que ele muito
bem conhece, um amigo querido e íntimo, está sentado no extremo da mesa. Mas
é ele! É o Benfeitor. «Mas então não morreu?», pergunta-se a si próprio. «Sim,
morreu. E não sabia que ele estava vivo. Que pena eu tinha que ele tivesse
morrido e que grande alegria sinto ao ver que ressuscitou!» A um dos lados da
mesa sentavam-se Anatole, Dolokov, Nesvistski, Denissov e outras pessoas mais, e
os traços de cada um pareciam-lhe tão nítidos em sonho como os dos soldados em
que acabara de pensar. E aquela gente, Anatole, Dolokov, gritava muito alto e
bebia. Sobrepujando as suas vozes ouvia-se, porém, do Benfeitor, que se não
calava, e a sua palavra era tão potente e contínua como o fragor do campo de
batalha, embora agradável e consoladora. Pedro não compreendia o que ele dizia,
mas, porque no sonho os pensamentos eram de uma grande nitidez, estava certo
de que falava do bem, da possibilidade de se ser o que «eles» eram, esses
soldados. E «eles», com as suas caras, bondosas e firmes, rodeavam o Benfeitor.
Conquanto fossem, porém, muito bons, não olhavam para Pedro, não o conheciam.
Quis chamar-lhes a atenção para si e dirigir-lhes a palavra. Ergueu-se, e no mesmoinstante sentiu frio nas pernas descobertas. Perpassou-o uma impressão
desagradável e puxou o capote: efectivamente, o capote escorregara-lhe para o
chão. Por um momento, enquanto o ajeitava, abriu os olhos e viu as mesmas
tábuas, os mesmos barrotes, o mesmo pátio, mas agora tudo azulíneo, claro,
palhetado de gotas de orvalho ou de geada.
«Está a amanhecer», disse Pedro de si para consigo, «mas não se trata disso.
Tenho de ouvir até ao fim e compreender as palavras do Benfeitor.» Voltou a
embrulhar-se no capote, porém a sessão na loja e o Benfeitor tinham
desaparecido. Nada mais lhe restava além de pensamentos claramente formulados
em palavras que alguém pronunciara ou que ele próprio imaginara.
Quando mais tarde se recordou destes pensamentos, embora eles lhe tivessem
sido sugeridos pelas impressões do dia, foi como se alguém estranho lhos tivesse
segredado. Afigurava-se-lhe que em estado de vigília nunca teria sido capaz de
conceber semelhantes pensamentos e exprimi-los daquela maneira.
«A guerra», dizia-lhe uma voz, «é a sujeição mais penosa que pode conceber-se
da liberdade humana às leis de Deus. A simplicidade é a obediência a Deus; tudo
depende d’Ele. E ‘eles’ são simples. Eles não dizem o que fazem. A palavra é de
prata, mas o silêncio é de ouro. O homem nada pode possuir enquanto temer a
morte. Só quem não teme a morte é senhor de tudo. Se u dor não existisse, o
homem não conheceria os seus limites, não se conheceria a si mesmo. Nada mais
difícil», pensava ele, continuando a sonhar, «que cada um saber reunir na sua
própria alma o significado de todas as coisas. Reunir tudo? Não, não é essa a
palavra. Não é possível unir todas as ideias, mas, sim, pô-las de acordo!», repetia,
com uma espécie de entusiasmo interior, como se sentisse que essas palavras, e só
elas, exprimiam perfeitamente o que ele queria dizer, resolvendo a questão que o
atormentava.
«Sim, é preciso pô-las de acordo, é tempo de harmonizar as coisas.»
— É preciso atrelar, são horas de atrelar, Excelência! Excelência! — repetiu
uma voz. — É preciso atrelar, são horas de atrelar...
Era o escudeiro a acordá-lo. O sol batia-lhe em cheio na cara. Lançou um olhar
para o pátio sujo da estalagem no meio da qual, num poço, os soldados davam de
beber aos esqueléticos cavalos, enquanto carroças transpunham o portão. Pedro
afastou os olhos, enojado, e, voltando a cerrar as pálpebras, deu-se pressa em se
enterrar nas almofadas da sege.«Não, não quero ver isto, não quero ver nem compreender coisa alguma; só
quero compreender o que me foi desvendado durante o meu sonho. Mais um
bocadinho e teria compreendido tudo. Que hei-de fazer então? Harmonizar, sim,
mas como harmonizar tudo?» E Pedro apercebeu-se, com espanto, de que o
sentido profundo do que vira e concebera durante o sono desaparecera para
sempre.
O escudeiro, o cocheiro e o porteiro contavam-lhe que chegara um oficial com a
notícia de que os Franceses se aproximavam de Mojaisk e os Russos batiam em
retirada.
Pedro levantou-se e, dando ordem para que logo que atrelassem viessem ter
com ele, seguiu a pé ao longo das ruas da cidade.
As tropas tinham-na evacuado, deixando na sua retaguarda perto de dez mil
feridos. Havia feridos por toda a parte, nos pátios, nas janelas das casas, em
grupos pelas ruas. Em volta das viaturas que os deviam levar só se ouviam gritos,
injúrias, estrondear, Pedro ofereceu a sua sege, que viera ao seu encontro, a, um
general ferido seu conhecido e ambos seguiram viagem até Moscovo. No caminho,
Pedro soube da morte do cunhado e da perda do príncipe André.
[X]
Pedro chegou a Moscovo no dia 30. Perto das muralhas encontrou o ajudante-
de-campo do conde Rostoptchine.
— Andámos à sua procura por toda a parte — disse-lhe este. — O conde
precisa, sem falta, de falar consigo. Pede-lhe Que o vá ver imediatamente por
causa de um assunto urgente.
Pedro, sem mesmo pensar em dirigir-se a casa, meteu-se num carro e dirigiu-se
à residência do governador.
O conde Rostoptchine acabava de chegar nessa mesma manhã da sua casa de
campo de Sokolniki. A antecâmara e o salão de recepção estavam cheios de
funcionários convocados ou que vinham receber ordens. Vassiltchikov e Platov já
tinham visto o conde e já lhe haviam explicado ser impossível defender a cidade,
que capitularia. Embora houvessem ocultado estas resoluções aos habitantes, osfuncionários, os chefes das diferentes administrações, sabiam que Moscovo ia cair
nas mãos do inimigo, e o próprio Rostoptchine também o sabia. No intuito de
alijarem responsabilidades, todos tinham vindo perguntar ao governador o que
deviam fazer nos seus respectivos serviços.
No momento em que Pedro penetrava no salão, um correio chegado do
exército saía do gabinete do conde.
Foi com um gesto pouco encorajador que respondeu às perguntas que lhe
dirigiam no momento em que atravessava a sala. Enquanto esperava, Pedro pôs-
se a olhar com os seus olhos fatigados para as diversas personalidades, novas ou
velhas, militares ou civis, que estavam presentes, Em todos os rostos se via uma
expressão inquieta e descontente. Aproximou-se de um grupo onde vira conhecidos
seus. Depois de o cumprimentarem, prosseguiram nas suas conversas.
— Demiti-lo e chamá-lo em seguida não seria mau, embora na actual situação
ninguém possa responder por coisa alguma,
— Sim, mas ele escreve... — acrescentou outro, exibindo um papel impresso
que tinha na mão,
— Ah! Isso é outra questão. Essas coisas são precisas para o povo — replicou o
primeiro.
— Que é isso? — perguntou Pedro.
— Uma nova proclamação.
Pedro pegou nela e pôs-se a lê-la:
O Sereníssimo Príncipe, para se reunir mais depressa às
tropas que vêm ao seu encontro, atravessou Mojaisk e
instalou-se numa posição fortificada onde o inimigo não
poderá atacá-lo facilmente. Foram-lhe enviadas daqui
quarenta e oito peças de artilharia, com as respectivas
munições, e o Sereníssimo afirma que defenderá Moscovo
até à última gota de sangue e que está mesmo disposto a
bater-se nas ruas. Não vos preocupeis, irmãos, com o facto
de as repartições estarem fechadas: era preciso transferi-
las para lugar seguro. Quanto a nós, nós cá estamos para
ajustar contas com esse bandoleiro! Quando a hora soar,
precisaremos de rapazes sólidos, tanto da cidade como docampo. Lançarei um apelo dentro de dois ou três dias, mas
de momento, como é inútil, não falo nisso. É bom que cada
um venha armado do seu varapazi e do seu machado e não
será mau que traga o seu chuço, e se trouxer a sua
forquilha de três dentes ainda melhor: um francês não pesa
mais que um, feixe de centeio. Amanhã, depois do jantar,
sairei em procissão com a Virgem Iverskaia para visitar os
feridos do Hospital Catalina. Proceder-se-á à bênção da
água: os feridos curar-se-ão assim mais depressa. Eu
também estou curado. Tinha um olho doente, mas agora
vejo com os dois.
— Disseram-me uns militares — objectou Pedro — que era impossível lutar na
cidade e que a posição...
— Sim, era disso mesmo que nós estávamos a falar — disse o primeiro
funcionário.
— Que quer ele dizer com isto? — perguntou Pedro — «Tinha um olho doente,
mas agora vejo com os dois»?
— Tinha um terço! — respondeu o ajudante-de-campo, sorrindo — e mostrava-
se atormentado quando eu lhe dizia que o povo vinha saber da sua saúde. E a
propósito, conde — acrescentou, de súbito, dirigindo-se a Pedro —, ouvimos dizer
que está sofrendo desgostos de família, que sua esposa, a condessa...
— De nada, ouvi falar — replicou Pedro com indiferença. — Que se diz?
— Ah! Bem sabe, às vezes as pessoas inventam. Repito o que ouvi dizer.
— E que ouviu o senhor dizer?
— Diz-se — prosseguiu o ajudante-de-campo, sempre com o mesmo sorriso —
que a condessa sua esposa pensa partir para o estrangeiro. É natural que não
passe de má-língua...
— Naturalmente — repetiu Pedro, lançando à sua roda um olhar indiferente.
— E aquele, quem é aquele? — perguntou, apontando para um velho pequenino,
com um longo cafetã azul, a barba e as sobrancelhas brancas como neve e as
bochechas rosadas.
— Aquele? É um comerciante, ou antes um taberneiro, um tal
Verechtchaguine. Se calhar, já ouviu falar nessa história da proclamação.— Ah!, sim! É realmente Verechtchaguine?! — exclamou Pedro, observando a
fisionomia firme e serena do velho comerciante e procurando ver nela debalde a
máscara de um traidor.
— Não foi ele precisamente. É o pai do que escreveu a proclamação —
continuou o ajudante-de-campo. — Esse, o filho, está na cadeia, e, se me não
engano, as coisas não lhe vão correr bem.
Um velhinho, com uma condecoração ao peito, e um alemão, velho também,
funcionário com uma cruz pendente, aproximaram-se dos interlocutores.
— É uma história muito complicada — dizia o ajudante-de-campo — A
proclamação apareceu há uns meses. Vieram dizer ao conde, que mandou fazer um
inquérito. Encarregaram disso Gravila Ivanitch. A proclamação tinha passado
precisamente por sessenta e três mãos. Procuraram um dos detentores. «Quem
lha deu?» Este diz que foi Fulano. Interrogam esse Fulano. «Quem lha deu?» E
assim por diante. Até que chega a vez de Verechtchaguine... um comerciantezito,
sem grande malícia, como vêem, um comerciantezito — acrescentou sorrindo —
Interrogam-no. «Quem te deu isto?» E, note-se, nós sabíamos muitíssimo bem
quem lha tinha dado. Só podia ter sido o director dos correios. Mas, está claro,
estavam coniventes. Responde: «Ninguém. Fui eu quem a fez.» Ameaçam-no,
insistem. Continua na sua: fora ele quem a escrevera. Apresentam o relatório ao
conde. Este interroga-o: «Quem te deu a proclamação?» «Fui eu quem a fez.»
Conhecem o conde! — prosseguiu, sorrindo, com um sorriso orgulhoso e divertido
— Deu por paus e por pedras, como calculam, diante de tanta insolência, tanta
mentira, tanta casmurrice.
— Sim, já percebo, o conde queria que ele denunciasse Kliutcharev! —
exclamou Pedro.
— Não era preciso — deu-se pressa em responder o ajudante-de-campo —,
Kliutcharev já tinha às costas outras acusações, por isso foi deportado. Mas o
conde estava exaltadíssimo, «Como pudeste escrevê-la?», disse-lhe ele. Em cima
da mesa estava a Gazeta de Hamburgo. Pegou nela, «Aqui a tens, Tu não a
escreveste, traduziste-a, e traduziste-a muito mal, percebes, imbecil, pois não
sabes uma palavra de francês.» Que acham? «Não», replica. «não a li em jornal
algum, fui eu quem a escreveu.» — «Então, se assim é, és um traidor e vou
entregar-te à justiça, que te mandará enforcar, Vamos, diz lá, quem ta deu?» —
«Não vi jornal algum. Fui eu quem a escreveu.» E as coisas ficaram assim. O condemandou citar o pai: mas este não arreda pé. Foi levado ao banco dos réus e
condenaram-no, segundo creio, a trabalhos forçados. E o pai ali está agora para
interceder pelo filho. É má rês, o rapaz! É um desses filhos de comerciante,
presumido e sedutor, que lá por ter frequentado umas aulas julga que sabe tudo.
Sempre me saiu um menino! O pai tem uma taberna na Ponte Kaminii. Pois não
querem saber? Na taberna havia uma grande imagem de Nosso Senhor com o
ceptro numa das mãos e o globo terrestre na outra. Levou o quadro para casa, por
uns dias, e sabem o que fez? Arranjou um pintor sem vergonha...
[XI]
Nesta altura, Pedro foi chamado à presença do governador. Penetrou no
gabinete do conde Rostoptchine, quando este, de sobrancelhas franzidas, passava
a mão pela testa e pelos olhos. Falava-lhe nesse momento um homenzinho de
somenos estatura, que se calou e saiu.
— Bons dias, ilustre guerreiro — disse Rostoptchine, assim que o homenzinho
desapareceu — Ouvi falar das suas proezas! Mas não é disso que se trata. Meu
caro, entre nós, diga-me uma coisa, é mação? — prosseguiu ele no mesmo tom
severo, como se isso fosse motivo para censura, embora não quisesse ser
impiedoso para com ele. Pedro ficou calado. — Meu caro, estou bem informado,
mas sei perfeitamente que há mações e mações e espero que o senhor não
pertença à categoria daqueles que a pretexto de salvar a Humanidade querem
perder a Rússia.
— Sim, sou mação — replicou Pedro.
— Bem, meu amigo, suponho que não ignora que os senhores Speranski e
Magnitski foram expedidos para onde pode calcular, e o mesmo aconteceu ao
senhor Kliuteharev e ainda a outros, que, a pretexto de levantarem o templo de
Salomão, tratavam de deitar abaixo o templo da Pátria. Como pode calcular,
houve motivo para proceder assim e que eu não teria mandado deportar o
director dos correios se este não fosse um homem perigoso. Acabo de saber agora
que o senhor lhe mandou a sua carruagem para ele sair da cidade e que aceitou,
inclusivamente, papéis que ele lhe confiou. Estimo-o e não lhe quero mal, mas,como tenho o dobro da sua idade, aconselho-o, na minha qualidade de mais velho,
a que deixe de ter relações com essa gente e a que abandone Moscovo o mais
depressa possível.
— Mas de que acusam Kliutcharev? — perguntou Pedro.
— Esse assunto é a mim que diz respeito, e não é o senhor que me deve fazer
perguntas! — exclamou Rostoptchine.
— Acusam-no de ter espalhado as proclamações de Napoleão, mas isso não
está provado — prosseguiu Pedro, sem olhar para o seu interlocutor — e
Verechtchaguine...
— Cá estamos — exclamou o governador numa voz cada vez mais alta,
franzindo as sobrancelhas e interrompendo Pedro. — Verechtchaguine é um
traidor da pior espécie, que receberá o castigo que merece. — Nas suas palavras
ressoava uma tal cólera que dir-se-ia terem-no ofendido pessoalmente.— Mas não
foi para discutir os meus actos que o chamei aqui, foi para lhe dar um conselho,
uma ordem, se assim quer. Peço-lhe que corte as suas relações com pessoas como
Kliutcharev e que saia de Moscovo. Sim, estou disposto a acabar com todas estas
tolices, sejam eles quais forem. — E ao notar, naturalmente, que elevava
demasiado a voz para falar a Bezulcov, que ainda não era acusado de qualquer
crime, acrescentou, pegando-lhe por um braço com maneiras amistosas: —
Estamos em vésperas de um desastre público, e não tenho tempo para dizer coisas
amáveis a todos os que se dirigem a mim. Há momentos em que sentimos a cabeça
à roda. Pois bem, meu caro, que faz o senhor, sim, o senhor, pessoalmente?
— Mas nada — replicou Pedro, que continuava de olhos baixos e que tinha um
ar cismador.
O conde franziu as sobrancelhas.
— Um conselho de um amigo, meu caro. Desapareça, e quanto mais depressa
melhor, é tudo quanto tenho a dizer-lhe. A bom entendedor! Adeus, meu caro. Ah!
A propósito — gritou-lhe, quando Pedro já estava no limiar da porta — será
verdade a condessa ter caído nas garras dos Santos Padres da Companhia de
Jesus?
Pedro não respondeu e saiu do gabinete de Rostoptchine com uma expressão
preocupada e irritada: nunca estivera tão irado na sua vida.
Quando regressou a casa, já era noite. Umas oito pessoas o aguardavam: o
secretário da comissão, o coronel do seu batalhão, o intendente, o mordomo evários solicitadores. Todos tinham assuntos a expor-lhe, que ele precisava de
resolver. Nada compreendia do que lhe diziam nem se interessava por aqueles
assuntos e, a todas as perguntas que lhe faziam respondia de molde a ver-se livre
de tudo aquilo o mais depressa possível. Finalmente, quando ficou só, abriu e leu a
carta da mulher.
«Eles, os soldados da bateria... o príncipe André morto... O velho... a
simplicidade de espírito consiste na submissão a Deus... É preciso saber sofrer... O
sentido de todas as coisas... É necessário harmonizá-las... A minha mulher vai
tornar a casar... Tenho de desistir de compreender...» Aproximou-se da cama e
sem se despir deixou-se cair sobre ela, adormecendo imediatamente. Quando
acordou, na manhã seguinte, o mordomo veio informá-lo de que um polícia,
enviado especialmente pelo conde Rostoptchine, viera informar-se sobre se o
conde Bezukov partira ou ia partir.
Duas dezenas de pessoas com assuntos a tratar com ele esperavam já no salão.
Vestiu-se, arranjou-se à pressa e, em lugar de as receber, meteu pela escada de
serviço e saiu pela porta das traseiras.
Desde aquele momento e até ao fim da destruição de Moscovo nenhum dos
seus familiares conseguiu tornar a vê-lo nem soube o que era feito dele, apesar de
o terem procurado por toda a parte.
[XII]
Até ao 1º de Setembro, isto é, até à véspera da entrada do inimigo em
Moscovo, os Rostov conservaram-se na cidade.
Desde que Pétia fora incorporado nos cossacos de Obolenski e partira para
Bielaia Tserkov, onde o regimento estava em formação, que a condessa vivia no
maior terror. A ideia de que os seus dois filhos estavam na guerra, que ambos
precisavam da sua protecção maternal, que hoje ou amanhã qualquer deles podia
morrer, como acontecera aos três filhos de uma senhora das suas relações, eis a
ideia que se lhe impunha pela primeira vez naquele Estio com uma nitidez cruel.
Tentara fazer regressar Nicolau para junto de si, quisera ir ela própria buscar
Pétia, mas tudo debalde, Pétia não podia vir senão quando voltasse o seuregimento ou pedindo transferência para outro regimento no activo. Nicolau
estava algures no campo de batalha e desde a sua última carta, em que contara
pormenorizadamente o seu encontro com a princesa Maria, nunca mais dera sinal
de vida. A condessa deixara de dormir e quando porventura fechava os olhos era
só para ver os filhos mortos. Depois de muito se ter aconselhado e de sobre o
assunto ter trocado muitas impressões, o conde acabou por conceber uma maneira
de a serenar. Conseguiu transferir Pétia do regimento Obolenski para o regimento
de Bezukov, que estava a organizar-se nas imediações de Moscovo, Pétia
continuava, claro está, ao serviço, mas a condessa tinha a satisfação de conservar
perto dela pelo menos um dos seus filhos, na esperança de o instalar de tal
maneira que ele não se afastasse mais e de lhe arranjar situações que lhe
permitissem conservá-lo longe dos campos de batalha. Enquanto só Nicolau
estivera em perigo, afigurava-se-lhe, a ela, e assim o dizia, querer ao seu filho
mais velho acima de todos, mas quando o benjamim, esse garoto endiabrado, que
estudava, pouco, partia tudo em casa, se metia com toda a gente, esse Pétia de
nariz arrebitado, olhinhos pretos cheios de malícia, tez rosada e fresca, a cara
coberta de penugem, quando ele partiu, também, para o meio desses homens
corpulentos, terríveis e cruéis, que gostavam de lutar, pareceu-lhe querer-lhe mais
a ele que a todos os seus outros filhos. A medida que se aproximava o momento do
regresso de Pétia a Moscovo, maior era a inquietação da condessa. Afigurava-se-
lhe que nunca esse momento venturoso chegaria. A presença não só de Sónia, mas
até de Natacha, sua preferida, ou do próprio marido, apenas servia para irritá-la.
«Que tenho eu que ver com eles? Não preciso de mais ninguém senão de Pétia!»,
pensava ela,
Nos últimos dias de Agosto, os Rostov receberam uma segunda carta de
Nicolau. Era datada da província de Voroneje, aonde fora em serviço de remonta.
Essa carta não sossegou a condessa. Depois de saber que um dos seus filhos não
estava em perigo, os seus cuidados cresceram por causa do outro.
Desde 20 de Agosto que quase todas as pessoas conhecidas dos Rostov tinham
deixado Moscovo e, embora todos insistissem com a condessa para abalarem o
mais cedo possível, ela não queria ouvir falar em tal enquanto o seu tesouro, o seu
Pétia adorado, não estivesse de volta. No dia 28, finalmente, chegava Pétia. A
ternura apaixonada e doentia com que a mãe o recebeu não foi das coisas que
mais agradaram a esse jovem oficial de dezasseis anos. Conquanto ela escondessea sua intenção de o conservar junto de si, o moço adivinhou-lhe os desejos e com
receio instintivo de se deixar comover, de se efeminar, como ele dizia, junto da
mãe, mostrava-se frio com ela, evitava-a, e durante todo o tempo da sua estada
na capital manteve-se quase exclusivamente na companhia de Natacha, a quem
sempre dedicara uma ternura fraternal muito sua.
A negligência do conde era sempre a mesma e no dia 28 nada estava
preparado para a partida: os carros que deviam chegar, vindos das suas
propriedades de Riazan e dos arredores de Moscovo, e que se utilizariam no
transporte dos móveis, só apareceram a 30.
De 28ª 31 de Agosto toda a cidade andou numa agitação febril. Todos os dias
entravam em Moscovo, pela porta de Dorogomilov, carros e carros cheios de
milhares de feridos provenientes do campo de batalha enquanto pelas outras
barreiras saíam caravanas e caravanas de viaturas carregadas de gente e de
bagagens. Apesar das proclamações de Rostoptchine, ou precisamente por causa
delas, corriam os boatos mais contraditórios e estranhos. Uns diziam que ninguém
tinha licença de sair da cidade; outros, pelo contrário, faziam correr que os ícones
das igrejas haviam sido todos retirados e que as pessoas eram afastadas à força de
Moscovo. Este dizia que depois de Borodino houvera uma batalha em que os
Franceses tinham sido derrotados: aquele anunciava, em contrapartida, que o
exército russo fora completamente desbaratado. Havia quem dissesse que a milícia
moscovita e o clero iriam bater-se em Tri Gori, e também se dizia à boca pequena
que o metropolita Augustin fora proibido de sair da cidade, que tinham sido presos
alguns traidores e que os camponeses, revoltados, assaltavam os que
abandonavam Moscovo, etc— etc. Tudo falsos boatos. Na realidade, tanto os que
partiam como os que ficavam, sem o dizerem a ninguém, embora ainda se não
tivesse reunido o conselho de guerra de Fili, onde veio a decidir-se o abandono da
cidade, todos sentiam que Moscovo teria de capitular e que o que havia a fazer
era cada um tratar de se salvar e ao que era seu. Reinava o pressentimento de
que tudo se desmoronaria e se transformaria de um momento para o outro. No
entanto, até ao dia 1º de Setembro nada se modificara. Assim como o condenado a
morte que é conduzido ao local do suplício, mesmo sabendo que vai morrer, olha à
sua volta e compõe o boné, Moscovo, conquanto soubesse que a hora da sua
perdição era chegada e que as condições de vida a que até então se submetera
iam sofrer uma transformação, continuava, maquinalmente a sua vida de todos osdias.
Durante os três dias que precederam a catástrofe andou a família Rostov
atarefada nos preparativos da partida. O chefe da família, o conde Ilia Andreitch,
corria de um lado para outro da cidade, sempre à cata de notícias, e as disposições
que tomava para a partida eram vagas e precipitadas.
Sempre descontente, procurando Pétia por todo o lado, o qual fazia o possível
por evitá-la, cheia de ciúmes de Natacha, com quem o rapaz passava os dias, a
condessa vigiava os preparativos de partida. A única pessoa pratica no seu
trabalho era Sónia, embora rios últimos tempos andasse triste e silenciosa, A
carta de Nicolau que falava da princesa Maria levara a condessa, que via nesse
encontro o dedo da Providência, a fazer algumas alegres reflexões diante dela,
— Nunca senti grande satisfação com o noivado de Bolkonski e de Natacha —
dizia a condessa —, mas sempre sonhei ver Nikolenka casado com a princesa, e
tenho o pressentimento de que é o que vai acontecer, Bom seria!
Sónia, via-se obrigada a reconhecer que a única maneira de remediar o estado
da fortuna dos Rostov seria um casamento rico e que a princesa era um bom
partido. Eis o que era doloroso para ela.
Apesar da sua tristeza, ou talvez até para esquecê-la, chamava a si todas as
pesadas tarefas da mudança e tinha os dias todos ocupados. O conde e a condessa,
quando se tratava de alguma ordem, a ela recorriam. Pelo contrário, Pétia e
Natacha não só não ajudavam os pais como embaraçavam e enfadavam toda, a
gente em casa. Andavam o dia inteiro em correrias loucas, rindo e gritando a todo
o propósito. Não tinham, realmente, qualquer razão especial para rir ou para
estar satisfeitos, mas, como ambos se sentiam alegres, tudo lhes servia para se
divertirem. Pétia estava contente porque, tendo saído de casa garoto, voltara
transformado, como toda a gente dizia, num homem e num herói. Sentia-se feliz
por estar com a sua família e também porque, deixando Bielaia, Tserkov, onde lhe
não seria fácil assistir tão depressa a qualquer batalha, viera para Moscovo e aí,
dentro de pouco, teria oportunidade de entrar na luta. De resto estava alegre
porque Natacha, que muito influía no seu estado de espírito, o estava também.
Quanto a Natacha, essa sentia-se alegre porque estivera triste durante muito
tempo e nada lhe lembrava agora a causa das suas penas, tendo recuperado a sua
óptima saúde. E sentia-se alegre ainda porque alguém a adorava e a admiração
dos outros lhe era um estimulante indispensável à sua actividade normal, sendoPétia esse alguém. Além disso ambos andavam em grande exaltação porque a
guerra se travava agora às portas de Moscovo, ia haver luta nas barreiras da
cidade, distribuíam-se armas, os habitantes fugiam por todos os lados, numa
palavra, davam-se factos extraordinários, coisa sempre muito divertida para quem
é novo.
[XIII]
Sábado. 31 de Agosto, ia grande confusão em casa dos Rostov. As portas
estavam abertas, os móveis haviam sido tirados do seu lugar ou levados, os
quadros e os espelhos tinham sido apeados. Havia malas, palha, papéis de
embrulho, fios por todo o lado. Os camponeses e os criados andavam de um lado
para o outro pisando os parquets pesadamente, carregados de embrulhos. No
pátio estacionavam as carroças, unias já cheias até cima e amarradas, outras
ainda vazias.
Só se ouviam por toda a parte os passos e as vozes da criadagem e dos
camponeses que tinham vindo com os carros, chamando-se uns aos outros. O conde
desaparecera logo pela manhã. A condessa, a quem o ruído e a agitação faziam
dores de cabeça, estava deitada na sua nova alcova com compressas de vinagre na
testa. Pétia saíra: fora visitar um camarada com quem queria transferir-se da
milícia para o exército activo, Sónia assistia no salão de festas ao trabalho de
empacotamento das porcelanas e dos cristais. Natacha estava no seu quarto,
sentada no sobrado, no meio de um montão de vestidos, de fitas, de xales, os olhos
fitos num trajo de baile, fora de moda, que tinha nas mãos. Era o vestido que
levara ao seu primeiro baile em Petersburgo.
Natacha sentia-se envergonhada por nada fazer quando toda a gente estava
ocupada, e por várias vezes já, desde manhã, tentara exercer qualquer actividade.
Mas aquilo não a atraía. Era incapaz de se dedicar fosse ao que fosse desde que o
não fizesse com toda a sua alma. Ali estava, ao pé de Sónia, que embrulhava as
porcelanas, querendo ajudá-la, mas logo abandonando tudo para voltar ao seu
quarto a emalar as suas coisas. Entreteve-se, primeiro, a distribuir pelas suas
criadas de quarto vestidos e fitas, mas, quando chegou o momento de guardar oque restava, sentiu-se aborrecida.
— Duniacha, anda, trata de guardar tudo isto, minha querida! Hem?
E como Duniacha lhe prometeu ocupar-se de tudo. Natacha, sentou-se no chão,
pegou no velho vestido de baile e pôs-se a pensar em coisas que nada tinham com
as suas preocupações actuais. Despertou-a deste devaneio uma conversa das
criadas na sala contígua e passos precipitados na escada de serviço. Levantou-se e
foi espreitar pela janela. Um grande comboio de feridos estacionava na rua.
Ao portão apinhavam-se as criadas, os lacaios, a governanta, a ama, os
cozinheiros, os cocheiros, os postilhões, os moços da cozinha, que assistiam à
passagem dos carros.
Natacha amarrou um lenço branco à cabeça e apanhando-o nas pontas com as
mãos desceu a escada.
A antiga governanta, a velha Mavra Kuzminitchna, afastou-se da multidão dos
curiosos e aproximou-se de um carro com um toldo de serapilheira, pondo-se a
conversar com um jovem oficial, muito pálido e que nele ia deitado, Natacha deu
alguns passos e deteve-se intimidada, segurando sempre as pontas do lenço, a
escutar o que dizia a governanta.
— Então ninguém conhecido tem em Moscovo? — perguntava Mavra
Kuzminitchna.— Ficaria mais sossegado numa casa particular — Por exemplo, na
nossa, Os amos vão partir.
— Não sei se nos deixariam — respondeu o oficia, numa voz apagada. — Está
ali o comandante. Pergunte-lhe. — E apontou para um major gordo que se dirigia
para a retaguarda do comboio, ladeando a fila dos carros.
Natacha olhou assustada para o rosto do ferido e encaminhou-se
imediatamente para, o major.
— Os feridos podem ficar em nossa casa? — perguntou.
O comandante levou a mão, sorrindo, à pala da barretina.
— Em que posso servi-la, menina? — disse, piscando os olhos e sorrindo.
Natacha repetiu serenamente a sua pergunta: o seu rosto, todos os seus
modos, conquanto continuasse a segurar o lenço na cabeça, ganharam uma
expressão tão séria que o major deixou de sorrir e, depois de perguntar a si
próprio se lhe seria lícito dar essa autorização, respondeu afirmativamente,
— Porque não? Acho que sim – disse.
Natacha inclinou ligeiramente a cabeça e aproximou-se, em passos rápidos, deMavra Kuzminitchna, que se debruçava para o ferido e conversava com ele cheia
de comiseração.
— Diz que sim, disse que podia ser! — murmurou Natacha em voz baixa,
O carro do oficial penetrou no pátio dos Rostov e dezenas de outros carros,
cheios de feridos, entraram igualmente nos pátios das casas da Rua Povarskaia.
Este incidente, tão estranho ao que ela estava habituada, via-se que agradava
muitíssimo a Natacha. Ajudada por Mavra Kuzminitchna, procurou fazer entrar no
pátio da casa o maior número possível de feridos.
— Era bom, no entanto, dizer alguma coisa ao pai — disse Mavra
Kuzminitchna,
— Não, não, não tem importância! Por um dia, mudar-nos-emos para o salão.
Podemos ceder-lhes os nossos quartos.
— Veja lá, menina, veja o que está a fazer. Até mesmo para os alojamentos
nas camaratas, nos quartos de arrumação ou na dependência dos criados é melhor
pedir licença.
— Está bem, eu peço.
Natacha entrou pela casa dentro e em bicos de pés, pela porta, que estava
aberta, penetrou na alcova onde cheirava muito a vinagre e a gotas de Hoffmann.
— Está a dormir, mãezinha?
— Como queres que eu possa dormir? — exclamou a condessa, num
sobressalto, pois acabava de passar pelo sono.
— Mãezinha, mãezinha querida — disse Natacha, ajoelhando diante da mãe e
juntando a sua cara à dela.— Perdoe, desculpe-me, não volto a fazê-lo. Acordei-a.
Foi a Mavra Kuzminitchna quem me mandou cá. Estão lá fora feridos, oficiais. Dá
licença? Eles não têm para onde ir. Tenho a certeza de que a mãezinha consente...
— Falava muito depressa, sem tomar fôlego.
— Que oficiais? De que estás tu a falar? Não percebo nada.
Natacha pôs-se a rir, e aos lábios da mãe também aflorou um pálido sorriso.
— Tenho a certeza de que a mãe consente... Vou dizer-lhes. Natacha beijou a
mãe, levantou-se e precipitou-se para a porta.
No salão encontrou o pai, que trazia más notícias.
— Fizemo-la bonita esperando até à última hora! — disse contrariado. — O
clube fechou e a polícia vai-se embora.
— Paizinho, não te importas que eu tenha mandado entrar uns feridos? —perguntou Natacha.
— Claro. Não faz mal — respondeu ele, distraidamente. — Mas não se trata
disso. É melhor deixares-te de patetices e ajudares a arranjar as coisas para nos
irmos embora, para nos irmos embora amanhã...
O conde deu a mesma ordem ao mordomo e aos criados. Durante o jantar
chegou Pétia, que contou também as novidades que sabia. Disse que àquela hora o
povo estava a armar-se no Kremlin e que, não obstante os editais de Rostoptchine,
em que este comunicava à população de Moscovo que soltaria o grito de alarme
dois ou três dias antes, com certeza já se haviam tomado medidas para, a partir
do dia seguinte, se reunirem armados em Tri Gori, onde se esperava uma grande
batalha.
A condessa mirava com um misto de timidez e horror o rosto excitado e jovial
do filho enquanto ele falava. Tinha a certeza de que se dissesse uma palavra que
fosse para pedir a Pétia que não tomasse parte nessa batalha — e esse combate
iminente devia ser para ele uma grande alegria, pensava ela — teria de o ouvir
falar na coragem, na honra, na pátria. Diria as coisas mais absurdas com uma
decisão viril e obstinada, e ela nada poderia dizer contra isso, estragando tudo. Bis
porque nada disse, na esperança de conseguir arranjar tudo para partir antes,
levando Pétia como seu protector, e, findo que foi o jantar, chamou o conde de
parte, a quem implorou, soluçando, que a levasse dali o mais depressa que
pudesse, nessa mesma noite se fosse possível, Com a astúcia involuntária e bem
feminina que lhe dava o amor maternal, ela, que até aí se mostrara
completamente indiferente ao perigo, dizia agora que morreria de medo se não
saíssem da cidade nessa mesma noite. E efectivamente a partir daquele momento
o medo apossara-se dela.
[XIV]
Madame Schoss, que tinha ido visitar a filha, ainda agravou mais os terrores
da condessa contando-lhe o que vira na Rua Miasilitskaia, diante de um depósito
de bebidas. No regresso, não tinha podido passar por ali, tantos eram os bêbedos
que alvoroçavam as vizinhanças. Viu-se obrigada a tornar um carro e a seguir porruas transversais, tendo-lhe o cocheiro contado que o povo arrebentara com as
pipas de álcool, de acordo com as ordens que recebera para isso.
Depois do jantar, todos se puseram a embalar as coisas com uma rapidez febril
para acelerar a partida. O velho conde, que subitamente se pusera também a
trabalhar, passava a vida para cá e para lá, ora no pátio ora em casa, arengando,
a propósito e despropósito, à criadagem, para que as coisas se fizessem depressa.
Pétia dirigia os trabalhos no pátio. Sónia perdia a cabeça com as recomendações
contraditórias do conde e não sabia o que havia de fazer. A criadagem gritava,
discutia, zaragateava correndo e esfalfando-se. Natacha, animada daquela paixão
que ela sabia pôr em todas as coisas, deitou também mãos à obra. De princípio a
sua intervenção foi acolhida com desconfiança. Não esperavam dela senão
travessuras e ninguém queria dar ouvidos ao que ela dizia, mas ela exigiu com
obstinação e ardor que lhe obedecessem, zangou-se, quase chorou porque a não
queriam ouvir e acabou por conseguir o que queria. A primeira medida que tomou,
e que grandes esforços lhe custara, assentando de vez a sua autoridade, foi o
enrolar dos tapetes. O conde tinha preciosas tapeçarias de Gobelin e tapetes
persas. Quando Natacha pôs mãos à obra, duas caixas estavam abertas no salão:
uma quase cheia até cima de porcelanas, a outra, de tapetes. Ainda havia muitas
peças de porcelana espalhadas pelas mesas e continuavam a trazer mais dos
armários. Era preciso encher uma nova caixa e os criados foram por ela.
— Sónia, espera. Podemos meter todo o resto ali — disse Natacha.
— Não há forma, menina; já tentámos de todas as maneiras — replicou o moço
da copa.
— Qual quê? Querem ver?
E principiou a tirar da caixa travessas e pratos embrulhados em papel.
— Temos de pôr as travessas aqui, no meio dos tapetes — voltou ela.
— Só para os tapetes serão precisas pelo menos três caixas — comentou o
moço da copa.
— Espera. Vais ver. — E Natacha pôs-se a extrair os objectos da caixa com toda
a presteza — Estes não — dizia, mostrando os pratos de Kiev. — Estes, sim, ali,
com os tapetes — acrescentava, apontando para as travessas de Saxe.
— Deixa isso, Natacha, não te preocupes, nós conseguiremos tudo, seja como
for — resmoneava Sónia.
— Deixe, menina... — dizia o mordomo.Natacha não desistia. Desmanchou todos os embrulhos e principiou outra vez a
fazê-los com grande celeridade, dizendo ser inútil levarem os tapetes usados e a
louça suplementar. E quando chegou ao fim, voltou outra vez ao princípio. De
facto, assim que retiraram tudo que era ordinário, que não valia a pena levar, as
coisas de valor tiveram lugar nas duas caixas. No entanto, as tampas teimavam
em não fechar. Era natural que ainda se pudesse encontrar qualquer coisa
susceptível de ser posta de lado, mas Natacha não queria desistir do seu intento.
Fazia, desfazia as caixas, enchia, dizia ao moço da copa e a Pétia, que arrastara
consigo para a ajudarem, que comprimissem o tampo... ela própria fazia
desesperados esforços.
— Bem, pronto, Natacha — acabou por dizer Sónia. — Sim, bem veio que tens
razão, mas no entanto tira esse tapete de cima.
— Não quero — gritava Natacha, apartando da cara, coberta de suor, com
uma das mãos, os cabelos desgrenhados, enquanto com a outra batia em cima dos
tapetes. — Anda, Petka, força! Vassilitch, carrega!
Os tapetes acabaram por se comprimir e a tampa fechou-se. Natacha bateu
palmas, gritando de alegria, e lágrimas de satisfação orvalharam-lhe os olhos. Mas
foi obra de segundos. Imediatamente se consagrou a outra tarefa, embora tivesse
agora confiança em si. E o conde não se zangou quando lhe disseram que Natacha
Ilinitchna desrespeitara as ordens que ele dera. E a ela é que os criados vieram
pedir instruções para amarrar os embrulhos e carregar os carros. Graças a
Natacha, o trabalho progrediu. As coisas banais foram postas de parte e as mais
preciosas colocadas umas contra as outras.
No entanto, quando a noite chegou, apesar do empenho de todos, ainda não se
pudera emalar tudo. A condessa adormecera e o conde, adiando a partida para o
dia seguinte, foi deitar-se. Sónia e Natacha estenderam-se vestidas na alcova.
Nessa noite passou um carro com mais um ferido pela Rua Povarskaia e Mavra
Kuzminitchna, que estava ao portão, mandou-o entrar para casa dos Rostov. Esse
ferido, pelo que dissera Mavra Kuzminitehna, devia ser pessoa importante. Era
transportado num carro fechado e ao pé do cocheiro sentava-se um criado velho
de aspecto venerável. Atrás, noutro carro, vinham o médico e dois soldados.
— Entrem aqui, para nossa casa, se fazem favor. Os patrões vão-se embora, a
casa está vazia — disse a velha para o criado.
— Ah! — suspirou o criado. — Julgámos que não chegasse até aqui. Temos anossa casa em Moscovo, mas é longe e não está lá ninguém.
— Tenham a bondade de entrar. Na casa dos nossos amos há tudo que é
preciso. Entrem. Está muito mal? — acrescentou ela.
O criado fez um gesto vago.
— Julgámos que não chegasse até aqui. Pergunte ao médico.
O criado apeou-se e aproximou-se da carruagem.
— Está bem — disse o médico.
O criado voltou a primeira carruagem, espreitou para dentro e agitou a
cabeça. Depois disse ao cocheiro que entrasse no pátio e veio de novo para junto
de Mavra Kuzminitchna.
— Meu Senhor Jesus Cristo! — exclamou ela. — Passem por aqui, os senhores
nada dirão... — afirmou ela.
Era preciso evitar que o ferido fosse transportado pela escada, por isso o
levaram para o pavilhão. Instalaram-no no antigo quarto de Madame Schoss. O
ferido era o príncipe André Bolkonski.
[XV]
Chegou a derradeira hora de Moscovo. Estava um dia de Outono claro e
alegre. E, sendo domingo, como em todos os domingos, os sinos repicavam para a
missa em todas as igrejas. Dir-se-ia que ninguém compreendia ainda o destino que
aguardava a capital.
Só dois barómetros acusavam a situação da cidade: a atitude da populaça, isto
é, do grosso da arraia-miúda, e a alta dos preços. Os operários das fábricas, os
criados e os camponeses, em magotes, à mistura com funcionários, seminaristas e
fidalgos, tinham ido de madrugada para Tri Gori. Chegada que foi aí, toda aquela
gente ficou à espera de Rostoptchine; mas, depois de muito esperar e convencida
de que Moscovo seria entregue ao inimigo, acabou por regressar à cidade,
dispersando-se por ruas e tabernas. Os preços das coisas também diziam muito, As
armas, o ouro, os carros, os cavalos, aumentavam constantemente de preço
enquanto baixava continuamente o valor do Papel-moeda e dos objectos de luxo, e
de tal maneira que por volta do meia-dia os panos, por exemplo, valiam menos demetade do seu preço habitual. Em compensação, um cavalo de aldeão chegava a
pagar-se por quinhentos rublos. E os móveis, os espelhos, os bronzes, cediam-se
por qualquer preço.
Na velha e respeitável residência dos Rostov pouco se fizera sentir esta
subversão das antigas condições da vida. Durante a noite apenas haviam
desaparecido três dos numerosos criados da casa, que nada tinham roubado, e os
trinta carros chegados da aldeia acharam-se de um momento para outro
transformados numa verdadeira riqueza, riqueza invejada por muitos. Por eles
ofereciam aos Rostov chorudas somas. Não só lhes vinham propor semelhantes
ofertas, como desde essa noite, e logo muito cedo na manhã do dia 1 de Setembro,
o pátio da residência se viu cheio de ordenanças e criadagem dos oficiais feridos ali
instalados ou nas casas vizinhas que vinham implorar do pessoal do conde que lhes
arranjasse meios de transporte para sair da cidade. O mordomo, a quem se
dirigiam, embora lamentasse a situação dos feridos, recusava-se categoricamente
a conceder o que lhe pediam, dizendo não ter coragem sequer de falar nisso ao
amo. Por mais dignos de piedade que fossem todos aqueles desgraçados, a
verdade é que se se transigisse com um ter-se-ia de transigir com todos, e nesse
caso não haveria razão para se não cederem inclusivamente as próprias
carruagens reservadas para os donos da casa. Trinta carros não bastavam para
salvar todos os feridos e no meio de toda aquela desgraça era impossível não se
pensar em si próprio e na família. Eis o que pensava o mordomo por conta do seu
patrão.
Quando acordou, na manhã do dia 1, o conde Ilia Andreitch saiu nos bicos dos
pés do seu quarto de dormir para não acordar a condessa, que só então passara
pelo sono, e ainda de roupão, o seu roupão de seda lilás, veio até ao alpendre. A
fila de carros, prontos a partir, estava alinhada no pátio. O mordomo conversava
com um velho impedido e um moço oficial, muito pálido, que tinha um braço ao
peito. Ao ver o conde, pôs-se a fazer gestos muito graves, como a dar-lhes a
entender que seria melhor retirarem-se.
— Então, Vassilitch, está tudo pronto? — disse o conde passando a mão pela
calva, com um aceno de cabeça cordial ao militar e ao seu impedido, pois muito
gostava de ver caras novas. — Podemos atrelar imediatamente, Excelência.
— Bom, magnífico, logo que a condessa acorde, abalamos! Que há, meus
senhores? — exclamou, dirigindo-se ao oficial. — Está em minha casa.O oficial aproximou-se. O sangue subiu-lhe ao rosto pálido.
— Conde, peço-lhe, consinta... é por Deus que lhe peço... consinta que eu me
instale em qualquer parte entre as suas malas. Não trago nada comigo... Vou
numa das carroças, pouco me importa...
Ainda o oficial se não calara, já o impedido dirigia ao conde pedido idêntico
para o seu amo.
— Naturalmente, naturalmente — deu-se pressa em dizer o conde. — Tenho
muito gosto, tenho muito gosto. Vassilitch, anda, diz que lhe arranjem lugar aí
numa das carroças... Olha... Ali... O que for necessário acrescentou, vago, como
sempre que dava uma ordem.
O oficial desfez-se em agradecimentos tão calorosos que o conde se sentiu
compelido a dar ainda maiores provas de bom coração. Olhou em torno de si: no
pátio, junto da porta de serviço, à janela do pavilhão, só havia feridos e
impedidos. Todos o fitavam, aproximando-se do local onde ele estava.
— Quererá V. Ex, vir até à galeria? — disse o mordomo. — Que manda V. Ex.a
quanto aos quadros?
O conde retirou-se com o mordomo, voltando a insistir para que satisfizessem o
pedido dos feridos que desejassem ser evacuados.
— A verdade é que podemos dispensar algumas destas bagagens —
acrescentou, em voz baixa e misteriosa, como se receasse ser ouvido de alguém.
A condessa acordou às nove horas, e Matrena Timofeievna, sua ex-criada de
quarto, espécie de comissário de polícia a ela agregada, veio dizer-lhe que Maria
Karlovna estava muito aborrecida, pois não podia deixar ali abandonada a roupa
das crianças. A condessa quis saber porque estava Madame Schoss aborrecida e
disseram-lhe que a mala dela fora retirada de uma das carroças descarregada para
se arranjar lugar para os feridos que o conde, apiedado, dera ordens de
transportar. Mandou chamar o marido.
— Que aconteceu, meu amigo, estão outra vez a descarregar as malas?
— É que, minha querida, fazia tenção precisamente de te prevenir... minha
querida condessinha... Um oficial veio pedir-me que cedesse alguns carros para os
feridos... Tudo isto, as nossas coisas, tudo pode ser substituído, mas eles, coitados!
Havemos de os deixar aqui?... E estão em nossa casa, fomos nós quem os convidou,
a esses oficiais... Então pensei, realmente, minha querida, que diabo!... Podíamos
levá-los... Temos assim tanta pressa?O conde tomara uma atitude muito tímida, como sempre que Linha de referir-
se a interesses materiais. A condessa conhecia-lhe muito bem o tom que ele
tomava quando se metia em empresas prejudiciais aos interesses dos filhos: a
construção de uma galeria ou de uma estufa, a instalação lá em casa de um teatro
ou de uma orquestra, e entendia obrigação sua opor-se-lhe sempre que o conde se
mostrava assim.
Com uma expressão de vítima resignada, resolveu dizer:
— Sim, conde, colocaste-nos numa situação em que já nos não dão nada pela
casa e ainda queres perder todos os nossos bens, isto é, os bens dos nossos filhos.
És o primeiro a dizer que em nossa casa há para cima de cem mil rublos de mobília.
Com o meu consentimento não, conde, eu não consinto, não consinto. Faz o que
quiseres, mas a verdade é que o Governo é que deve tratar dos feridos. Eles bem
sabem o que hão-de fazer. Olha, aqui mesmo defronte, os Lopukine, antes de
ontem, já tinham a casa vazia. Se me não queres poupar a mim, ao menos poupa
os teus filhos.
O conde esboçou um gesto evasivo, e, sem responder, saiu.
— Paizinho, que foi? — perguntou Natacha, que entrara atrás dele nos
aposentos da mãe.
— Nada. Não é coisa que te diga respeito! — exclamou o conde, desabrido.
— Mas se eu ouvi tudo — replicou ela. — Porque não há-de a não consentir?
— Não és para aqui chamada! — vociferou o conde, Natacha aproximou-se da
janela e aí ficou pensativa.
— Paizinho, vem ali o Berg! — exclamou, olhando através das vidraças.
[XVI]
Berg, o genro dos Rostov, já era coronel e condecorado com as Ordens de S.
Vladimiro e de Santa Ana. Continuava a desempenhar as quietas e agradáveis
funções de ajudante-de-campo do comandante da primeira secção do estado-maior
do segundo corpo de exército.
Chegara a Moscovo no dia 1º de Setembro, procedente do seu quartel, Nada
tinha que fazer em Moscovo, mas, ao notar que todos os seus camaradas pediampara seguir para a capital por esta ou por aquela razão, julgou-se obrigado a
solicitar uma licença por motivos de ordem familiar.
Chegara a casa do sogro no seu elegante drojkis tirado por uma parelha de
magníficos cavalos iguais aos que vira atrelados à carruagem de um príncipe das
suas relações. Ao penetrar no pátio, olhou atentamente para os carros que aí
estavam e enquanto subia as escadas do alpendre puxou de um lenço de assoar
muito limpo, dando-lhe um nó numa das pontas.
Atravessou o vestíbulo e precipitou-se para o salão, onde abraçou o conde,
beijou as mãozinhas de Natacha e de Sónia e logo ali pediu notícias sobre a saúde
da mãe.
— Como queres que uma pessoa se sinta bem por uns tempos destes? —
exclamou o conde. — E tu, conta qualquer coisa. Onde estão as tropas?
Retrocedem ou vai haver alguma batalha?
— Só Deus sabe, pai — replicou Berg. — Só Deus pode decidir do destino da
nossa pátria. O exército está cheio de entusiasmo, mas os chefes, por agora,
mantêm-se reunidos em conselho. O que vai sair dali ninguém sabe. Mas sempre
lhe direi, pai, que não há palavras para descrever o heroísmo, a valentia à moda
antiga, dos nossos soldados no combate de 26... Dir-lhe-ei francamente, meu pai —
disse Berg, que entretanto batia na arca do peito, como o general a quem ouvira
discurso idêntico, embora o seu gesto, retardado, não tivesse coincidido, como era
mister, com as palavras «nossos soldados». — Dir-lhe-ei com toda a franqueza: nós,
os seus comandantes, não só não precisámos de incitar os homens a marchar para
a frente ou a animá-los de qualquer maneira como tínhamos até dificuldade em
impedir esses... esses... Sim, é o que lhe digo, cometeram actos de bravura dignos
da antiguidade — acrescentou, volúvel. — O general Barclay de Tolly a cada passo
jogava a vida à testa dos seus soldados, digo-lho eu. E o nosso corpo estava
mesmo no alto do cabeço. Imagine!
Neste ponto, Berg pôs-se a contar o que se lembrava de ter ouvido nas
histórias de guerra que então circulavam. Natacha, sem apartar dele os olhos,
parecia tentar descobrir-lhe no rosto resposta para uma pergunta que a si mesma
fazia, e isso perturbava o narrador.
— Não pode imaginar-se o heroísmo que mostraram os nossos soldados. É
digno de todos os elogios! — prosseguiu, fixando os olhos em Natacha e tentando,
com um sorriso, conquistar-lhe as boas graças. — «A Rússia não está em Moscovo,está no coração dos seus filhos!», não é verdade, meu pai?
Neste momento a condessa saiu do seu quarto: parecia cansada e descontente.
Berg correu para ela, beijou-lhe a mão, perguntou-lhe como ia de saúde e fazendo-
a compreender, por um movimento de cabeça, quanto se condoía do seu estado,
permaneceu a seu lado.
— Sim, mãe, não há dúvida de que estes tempos que correm são realmente
penosos e tristes para todos nós. Mas porque há-de inquietar-se assim? Tem
tempo de partir...
— Não percebo o que estão a fazer os criados — disse a condessa, dirigindo-se
ao marido. — Ainda agora me vieram dizer que nada está pronto. É preciso que
alguém lhes dê ordens. Agora é que sinto a falta de Mitenka. Nunca mais sairemos
daqui.
O conde quis dizer qualquer coisa, mas deteve-se. Levantou-se e encaminhou-se
para a porta.
Berg puxou então do lenço, como se fosse assoar-se, e, ao ver o nó numa das
suas pontas, quedou-se pensativo, abanando tristemente a cabeça.
— É verdade, pai, tenho uma coisa muito importante a pedir-lhe — disse ele.
— Hem! — exclamou o conde, detendo-se.
— Passei há pouco pela casa de Iussupov — disse Berg, pondo-se a rir. — O
intendente, meu conhecido, veio a mim e perguntou-me se eu não queria comprar
qualquer coisa. Fui ver, como calcula, por mera curiosidade: tinha lá uma cómoda
com um toucador. Bem sabe quanto a Vera gostava de ter um móvel assim, várias
vezes falámos nesse assunto. — E no tom que punha nas suas palavras ao referir
estas coisas denunciava a satisfação que sentia por dispor de uma bela casa. —
Que maravilha! É cheia de gavetinhas e tem uma fechadura inglesa de segredo,
sabe? Há tanto tempo que a Verotchka sonha com uma cómoda assim! Queria
fazer-lhe uma surpresa. Vi lá em baixo no pátio muitos campónios. Permita que
disponha de um deles, peço-lhe, pagar-lhe-ei decentemente e...
O conde franziu a sobrecenho e tossicou nervoso. Peça à condessa, não sou eu
quem dá ordens.
— Se é coisa muito difícil, então não falamos mais nisso — acrescentou Berg. —
Se o fiz, foi por lembrar-me da Vera.
— O diabo que os leve, a todos, a todos!... — vociferou o conde. — É de uma
pessoa perder a cabeça.Saiu da sala com fragor enquanto a condessa se desfazia em pranto.
— É verdade, mãe, os tempos estão duros! — comentou Berg. Natacha saíra
atrás do pai, mas, como se uma ideia súbita lhe tivesse ocorrido, desceu a escada
correndo.
Pétia estava no alpendre muito ocupado a distribuir armas pelos homens que
deviam escoltar os carros. As viaturas, todas atreladas, continuavam estacionadas
no pátio. Duas delas haviam sido descarregadas e sobre uma empoleirara-se um
oficial com o seu impedido.
— Sabes porque foi? — perguntou Pétia à irmã.
Esta percebeu que ele queria referir-se à discussão entre o pai e a mãe, mas
não deu troco.
— Pois fica sabendo que foi porque o pai queria pôr todos os carros à
disposição dos feridos — disse Pétia. — Foi o Vassilitch quem me contou. Por
mim...
— Por mim — desembuchou Natacha, subitamente, volvendo para o irmão a
sua face indignada — por mim... acho tão feio, tão reles, tão... Realmente, não sei
que dizer... Acaso seremos nós uns alemães quaisquer?...
Soluços embargaram-lhe a voz, e para que a ira que se apossara dela não fosse
em pura perda, virou costas ao irmão e subiu escada a correr.
Berg continuava ao lado da condessa e ia-lhe dirigindo respeitosas frases de
consolação. O conde, de cachimbo na mão, passeava de um lado para o outro.
Nesse momento Natacha, o rosto transtornado, agressiva, entrou na sala e correu
para a mãe.
— É uma vergonha, uma infâmia! — gritou. — Não posso crer que tenha dado
semelhantes ordens.
Berg e a condessa olhavam-na entre surpreendidos e assustados. O conde
deteve-se junto de uma janela, atento ao que ia passar-se,
— Mãezinha, não é possível, olhe para o pátio. — gritou ela. — Vão ficar ali!...
— Que tens tu? Quem? Que queres?
— Os feridos, quem havia de ser? É impossível, mãezinha, uma coisa dessas
não tem classificação... Mãe, mãezinha, perdoe-me se lhe falo nestes termos,
minha querida mãezinha... Então, para que queremos nós todas essas coisas que
levamos connosco? Olhe, se faz favor, para o que está a passar-se lá em baixo...
Mãezinha!... Isto não pode ser!...O conde conservava-se junto da janela e ouvia a filha sem se voltar para
dentro. De súbito, resfolgou e aproximou-se dos vidros.
A condessa leu nos olhos da filha a reprovação que a conduta dela lhe
inspirava, viu a excitação que a tomava, percebeu porque o marido desviava dela
os olhos e uma expressão de absoluto desamparo se estampou no seu rosto.
— Façam o que quiserem! Porventura os impeço? — murmurou ela, sem
renunciar de todo à sua atitude.
— Mãe, mãezinha, perdoe-me!...
A condessa afastou-a de si e aproximou-se do conde. — Meu amigo, dá as tuas
ordens como entenderes... Como podia eu saber? — articulou, baixando os olhos,
como se se sentisse culpada.
— São os pintos, são os pintos que dão lições à galinha... — exclamou o conde,
com as lágrimas nos olhos, recebendo a condessa nos braços, contente por poder
assim esconder no peito do marido a confusão que lhe ia na alma.
— Pai, mãe! Pode então dar as ordens? Não e verdade? — perguntava
Natacha. — Assim mesmo podemos levar tudo de que ternos necessidade.
O conde assentiu com um gesto de cabeça e a filha, rápida como quando jogava
às escondidas, precipitou-se no vestíbulo e desandou escada abaixo.
Os criados acercaram-se de Natacha, rodearam-na, e não acreditaram nas
estranhas ordens que ela lhes dava enquanto as não viram confirmadas pelo conde
em nome da condessa, Tratava-se de pôr todos os carros à disposição dos feridos e
de transportar os caixotes para a arrecadação. Assim que se certificaram das
ordens dadas, com alegria e entusiasmo meteram mãos à obra. Já não lhes parecia
estranha agora a resolução dos anos afigurava-se-lhes naturalíssimo que se
recolhessem os feridos e se abandonassem as bagagens, quando é certo que um
quarto de hora antes o contrário é que lhes parecia razoável.
Toda a gente da casa, como para compensar o tempo perdido, se consagrou a
instalar os feridos nos respectivos carros. Estes, pálidos, mas contentes,
arrastaram-se para fora de casa e rodearam as viaturas. A boa nova não tardou a
correr pelas casas próximas e o pátio dos Rostov encheu-se de feridos.
Muitos deles pediram que os deixassem estar onde estavam as bagagens e
instalaram-se em cima delas, Uma vez, porém, que se tinham principiado a
descarregar os carros já se não podia voltar atrás. Aliás, que fazia abandonar tudo
ou só parte das coisas? O pátio estava juncado de caixotes cheios de louças, debronzes, de quadros, tudo quanto fora cuidadosamente encaixotado na noite
anterior, e ainda se arranjava maneira de descarregar mais coisas para deixar
livres os carros,
— Ainda se podem arranjar mais quatro. — disse o intendente — Cedo o meu
carro. De outra maneira, como havemos de os instalar a todos?
— Dêem-lhes o carro onde vai o meu guarda-roupa. Dutilacha virá comigo no
meu.
Esta ordem foi executada, e mandaram a carruagem recolher feridos duas
casas mais adiante. Uma jovial animação impelia toda a criadagem. Natacha há
muito tempo que se não sentia tão animada e feliz.
— Como havemos de a amarrar? — diziam os criados que içavam uma mala
para o acanhado estribo de uma das viaturas. — Deviam ao menos reservar um
dos carros,
— Que tem a mala lá dentro? — perguntou Natacha. — Os livros CIO conde.
— Deixem. O Vassilitch trata disso. Não se preocupem.
O carro não podia levar mais gente. Onde havia de sentar-se Piotre Ilitch?
— Irá no banco do cocheiro. Não é assim, Pétia? Irás ao lado do cocheiro —
gritou-lhe Natacha.
Também Sónia agia como podia, mas ao contrário do que fazia Natacha.
Ordenava cuidadosamente as coisas que ficavam, inventariando-as, como queria a
condessa, procurando levar o que fosse possível.
[XVII]
As duas horas da tarde, as quatro carruagens dos Rostov, carregadas e
atreladas, estavam diante da porta principal. Os carros com os feridos tinham
saído uns atrás dos outros, abandonando o pátio. A sege que transportava o
príncipe André, ao passar diante do alpendre, chamara a atenção de Sónia,
ocupada então, com o auxílio de uma criada, a arranjar um bom lugar para a
condessa na sua alta e grande carruagem parada diante da porta.
— De quem é aquela sege? — perguntou ela, metendo a cabeça pela
portinhola.
— Não sabe, menina? — disse a criada. — É do príncipe fendo que passou aqui
a noite e vai partir ao mesmo tempo que nós.
— Quem é? Como se chama?
— É o noivo antigo, o príncipe Boliconski — replicou a criada tristemente. —
Parece que está perdido.
Sónia saltou do estribo do carro e correu em busca da condessa.
Esta, já em trajo de jornada, com o xale pelos ombros e o chapéu na cabeça,
andava de um lado para o outro do salão, cansada, aguardando que todos saíssem
para se sentar um instante, com as portas fechadas, como era seu costume,
fazendo as suas orações antes da abalada. Natacha não estava presente.
— Mãezinha! — exclamou Sónia. — O príncipe André está aqui, ferido, e à
morte. Vai partir connosco.
A condessa olhou para ela de olhos arregalados e pegando-lhe por um braço:
— Porventura Natacha...? — articulou ela.
Tanto a ela como a Sónia aquela notícia principiara por despertar-lhes um
único pensamento. Ambas conheciam muitíssimo bem Natacha e horrorizava-as a
ideia do efeito que nela produziria uma tal nova, o que as levava a esquecer a
simpatia que o príncipe lhes despertava.
— Natacha nada sabe por ora, mas o príncipe vai connosco. — voltou Sónia.
— Disseste que está a morrer?
Sónia abanou a cabeça afirmativamente, A condessa apertou-a contra si,
soluçando,
«Os caminhos de Deus são insondáveis!», disse para si mesma. E pensou que
em tudo que estava a acontecer havia a mão da Providência, oculta até aí.— Bem, mãezinha, está tudo pronto. Que tem? — perguntou Natacha, que,
muito animada, acabava de entrar na sala. — Nada — replicou a condessa. — Se
tudo está pronto, vamo-nos embora.
E, para esconder a perturbação que a tomava, pôs-se a remexer na maleta.
Sónia estreitou Natacha nos seus braços e beijou-a na face.
Esta fitou-a surpreendida.
— Que tens tu? Que aconteceu?
— Nada... nada...
— Alguma má notícia para mim? Que foi? — inquiriu Natacha, tomada de um
pressentimento.
Sónia despediu um suspiro sem responder. O conde, Madame Schoss, Mavra
Kuzminitchna, Vassilitch, entraram no salão. De— pois de fecharem as portas,
sentaram-se, e assim ficaram por algum tempo sem dizerem palavra e sem
olharem uns para os outros.
O primeiro a levantar-se depois foi o conde, e, suspirando fundo, persignou-se
diante dos ícones. Todos os demais o imitaram. Em seguida beijou Mavra
Kuzminitchna e Vassilitch, que ficavam em Moscovo, e enquanto eles lhe pegavam
na mão e o beijavam no ombro, o conde batia-lhes nas costas, pronunciando
algumas palavras carinhosas e consoladoras. A condessa recolheu-se ao seu
oratório e ajoelhou diante das imagens ainda nas paredes, pois as mais preciosas,
recordações de família, haviam sido retiradas para seguir também.
No alpendre e no pátio, os criados que acompanhavam os amos, armados de
sabres e punhais que Pétia lhes distribuíra, as calças metidas nos canos das botas,
o torso bem cingido em correias e cinturões, despediam-se dos que ficavam.
Como sempre acontece à hora da partida, muitas coisas tinham esquecido,
outras estavam mal arrumadas nos carros. Eis porque os dois lacaios
estacionaram, por muito tempo, dos dois lados das portinholas abertas e dos
estribos da carruagem, prontos a ajudar a condessa a subir, enquanto as criadas
andavam de um lado para o outro com as almofadas e os embrulhos, correndo da
casa para a berlinda, e da sege para a britchka.
— Sempre se hão-de esquecer de alguma coisa! — exclamava a ama. — Mas
bem sabem que eu me não posso sentar assim.
Sem responder de dentes cerrados e uma expressão de censura. Duniacha
precipitou-se para a carruagem a fim de ajeitar as almofadas.— Oh, que gente! — murmurava o conde, abanando a cabeça.
O velho cocheiro Efim, o único em que a condessa confiava, sentado, lá no alto
da boleia, pouco parecia preocupar-se com o que se passava atrás. Graças à
experiência que adquirira em mais de trinta anos de serviço, estava certo de que
não seria tão cedo que lhe diriam «Vamos! » e que depois de o dizerem ainda o
mandariam parar mais duas ou três vezes, para buscar coisas esquecidas, e que em
seguida o fariam parar ainda uma vez e que a condessa meteria a cabeça pela
portinhola para lhe pedir, em nome de Deus, que descesse as ladeiras devagar.
Tudo isto ele o sabia, e, muito mais pacientemente que os seus próprios cavalos,
sobretudo o da esquerda, o alazão Sokol, que relinchava e remordia o freio,
aguardava os acontecimentos. Finalmente, toda a gente se instalou: recolheram-
se os estribos, as portinholas fecharam-se, mandaram ainda procurar um
cofrezinho esquecido, e a condessa, metendo a cabeça pela portinhola, pronunciou
as palavras sacramentais. Então Efim, lentamente, desbarretou-se e fez o sinal da
cruz. O postilhão e os criados imitaram-no. «Que Deus nos proteja!», exclamou
Efim, cobrindo-se. O postilhão fez rodar a carruagem. O cavalo de lança da direita
fez força sobre o arnês, as molas rangeram e a caixa da sege estremeceu. O lacaio
saltou para o assento depois do carro em marcha. Aos solavancos, este entrou na
rua empedrada, as outras carruagens, por sua vez, agitaram-se também e todos se
puseram em marcha. Um por um, todos os viajantes, ao passarem diante da igreja
que ficava defronte da casa, se persignaram. Os criados que ficavam na cidade
acompanhavam a pé, de cada lado, os carros que partiam.
Poucas vezes Natacha estivera tão alegre como no momento em que, sentada
diante da mãe, via desfilar, lentamente, o casario da cidade de Moscovo, inquieta
e abandonada. De quando em quando metia a cabeça pela portinhola e
contemplava o grande comboio de feridos que os seguia. À frente de todos lá
vinha a capota da sege do príncipe André. Ignorava quem ali ia, e no entanto, do
lugar em que se encontrava, era sempre essa capota que procurava com a vista,
pois precedia todas as outras carruagens.
Em Kudine desembocaram das Ruas Nikitskaia, de Priesni e de Podriovinski
vários comboios do mesmo género, e ao passarem por Sodovaia todos os carros
formaram duas filas.
Diante da Torre Sukariev, Natacha, entretida a observar a multidão e as
carruagens, exclamou, de súbito, com jovial surpresa:— Santo nome de Deus! Mãe, Sónia, olhem. é ele!
— Quem? Quem?
— Olhem! O Bezukov. — E debruçou-se da portinhola, apontando para um
homenzarrão, envergando um cafetã de cocheiro, evidentemente, como podia
depreender-se do seu porte e do seu andar, um senhor disfarçado. Acompanhado
por um velhinho de rosto amarelento e imberbe, de capote de lã, caminhava
direito ao arco da Torre.
— Garanto-lhes que é o Bclzukov, de cafetã, e vai com um velho. Podem ter a
certeza, olhem, olhem!
— Não pode ser. Não é ele. Como podes dizer semelhante tolice?
— Mãezinha, corto o pescoço: é ele. Garanto-lhe. Pára! Para! — gritou para o
cocheiro,
O cocheiro, porém, não podia parar, pois da Rua Miechtchanskaia
desembocavam mais comboios e mais carros e os cocheiros gritavam aos Rostov
que não embaraçassem a circulação.
Efectivamente, embora já longe, todos os Rostov reconheceram Pedro, ou, pelo
menos, um homem que com ele se parecia extraordinariamente, caminhando, de
cabeça baixa e expressão grave, com um cafetã de cocheiro, ao lado de um
velhinho imberbe, com aspecto de lacaio. O velho, notando a cabeça que se
debruçava da portinhola, tocou respeitosa m ente no cotovelo do companheiro e
disse-lhe qualquer coisa, apontando para a carruagem. De tão mergulhado que ia
nos seus pensamentos, Pedro tardou em compreender o que o velho lhe dizia.
Tendo, por fim, compreendido, ergueu os olhos, reconheceu Natacha e, num
primeiro impulso, correu para o carro. Alguns passos andados, contudo, parou
indeciso.
A cabeça de Natacha, toda debruçada da portinhola, resplandecia de irónica
doçura.
— Piotre Kirilitch, venha daí! Não vê que já o conhecemos? Que engraçado que
é! Que anda a fazer? Para que se disfarçou?
Pedro apertou a mão que se lhe estendia, e sempre a andar, pois o carro
continuava a rodar, beijou-a desajeitadamente.
— Que anda a fazer, conde? — perguntou a condessa, numa voz repassada de
espanto e compaixão.
— Eu? Mas nada, nada. Não me faça perguntas — replicou ele, sentindo que oolhar alegre e luminoso de Natacha o atraía com o seu encanto.
— Que anda a fazer? Fica em Moscovo?
Pedro manteve-se calado.
— Em Moscovo? — perguntou ele.
— Sim, em Moscovo. Adeus! Oh! O que eu daria para ser um homem! Ficaria
consigo. Oh! Seria magnífico! — exclamou Natacha. — Mãezinha, se dá licença, eu
também ficarei.
Pedro olhou para ela distraidamente e quis dizer qualquer coisa, mas a
condessa interrompeu-o.
— Esteve na batalha, não é verdade? Foi o que nos disseram.
— Estive — respondeu ele. — Amanhã haverá outra batalha...
Natacha interrompeu-o.
— Mas que tem, conde? Não é o mesmo...
— Oh! Não me faça perguntas. Nada lhe posso dizer. Amanhã... Mas não.
Adeus, adeus! Que tempos terríveis! — acrescentou.
E, afastando-se da carruagem, dirigiu-se para o passeio.
Por muito tempo ainda Natacha se conservou à portinhola, seguindo-o com o
seu sorriso alegre e afectuoso em que havia fosse o que fosse de irónico.
[XVIII]
Desde que desaparecera de sua casa, dois dias antes, Pedro vivia no andar
abandonado do falecido Bazdeiev. Eis o que se passara:
Quando acordou, no dia seguinte ao do seu regresso a Moscovo e da sua
entrevista com Rostoptchine, levou tempo a compreender onde se encontrava e o
que queriam dele. Depois, ao dizerem-lhe que entre as pessoas que o aguardavam
na antecâmara estava o francês que lhe entregara a carta da mulher, tornou-o, de
súbito, um desses acessos de desânimo e aturdimento a que era atreito. Consigo
mesmo disse que tudo estava acabado, que só havia confusão e ruínas, que
ninguém tinha culpa nem ninguém tinha razão, que nada esperava do futuro e que
a sua vida era um beco sem saída. Rindo com um riso artificial e articulando
palavras sem nexo, ora se deixava cair, inanimado, num divã, ora se levantava, seaproximava da porta e espreitava para a antecâmara pelo buraco da fechadura,
ora ainda, com um gesto desesperado, voltava a sentar-se, tentando ler. O
mordomo veio dizer-lhe, pela segunda vez, que o tal senhor insistia em falar-lhe,
por pouco tempo que fosse, e acrescentou que alguém viera pedir-lhe que
aceitasse uns livros pertencentes à viúva Bazdeiev, a qual também deixara a
cidade.
— Sim, vou já, espera... ou melhor... Diz-lhes que vou Imediatamente —
respondera ele.
Assim que o mordomo saíra, Pedro agarrara no chapéu e desaparecera por
uma porta detrás. Não havia ninguém no corredor. Seguiu ao longo desse corredor
até à escada e, uma vez aí, absorto e apertando a cabeça entre as mãos, desceu
até ao primeiro patamar. O porteiro estava junto da porta principal. No patamar
onde Pedro se detivera havia outra escada que conduzia à porta de serviço. Por aí
passou e desceu para o pátio. Ninguém o vira. Na rua, porém, ao transpor o
portão, os cocheiros que aí estacionavam e o próprio porteiro, vendo-o,
descobriram-se. Ao sentir que os olhos deles o seguiam, Pedro fez como e,
avestruz, que esconde a cabeça debaixo da asa para passar despercebido. Baixando
os olhos, acelerou o passo.
A coisa que se lhe afigurara mais urgente naquela manhã era recolher os livros
e os papéis de Osip Alexeievitch Bazdeiev. Tomou o primeiro carro que se lhe
deparou e mandou bater para os Tanques Patriartchi, onde residia a viúva
Bazdeiev.
Ia observando a grande fileira de carros que saíam da cidade enquanto se
firmava o melhor que podia na velha carruagem desconchavada que ameaçava
atirá-lo à rua.
Sentia a alegria de uma criança que faz gazeta à escola e todo o caminho
tagarelou com o cocheiro.
Este contou-lhe que no Kremlin estavam a distribuir armas pelo povo e que no
dia seguinte toda aquela gente se concentraria na barreira de Tri Geri, onde iria
travar-se uma grande batalha. Quando chegou aos Tanques Patriartchi, pediu que
lhe indicassem a casa de Bazdeiev, onde há muito não vinha. Aproximou-se da
cancela. Guerassime, aquele velhinho imberbe e amarelento que ele vira em
Torjok, há cinco anos, na companhia do falecido amo, acorreu a recebê-lo.
— A senhora está? — perguntou Pedro.— Saiba Vossa Excelência que a senhora e os meninos foram para as suas
terras de Torjok. — Informou ele.
— Mesmo assim entro. Tenho de seleccionar os livros. — volveu Pedro.
— Bem-vindo seja. O irmão do falecido, que Deus tenha em descanso. Makar
Alexeievitch, está aí. Mas, como sabe, é tontinho — tornou o velho criado.
Makar Alexeievitch, como Pedro sabia, era meio doido e passava a vida a
beber.
— Sim, sim, bem sei. Vamos... vamos... — disse Pedro, entrando.
No vestíbulo, de pé, com os pés, sem meias, metidos nuns chinelos, estava um
corpulento velho, calvo, embrulhado num roupão. Quando viu Pedro, murmurou
algumas palavras, furibundo, e saiu para o corredor.
— Era inteligentíssimo, mas agora, como vê, está tontinho — disse
Guerassime. — Quer entrar para o escritório?
Pedro assentiu com um aceno de cabeça.
- Tem estado sempre fechado. Sofia
Danilovna deu ordens, caso alguém viesse da sua parte,
para entregarmos os livros.
Pedro penetrou no escritório escuro onde nunca entrara em vida do Benfeitor
sem um estremecimento.
Agora, coberto de pó e intacto desde que morrera Osip Alexeievitch, ainda
parecia mais triste.
Guerassime, depois de abrir as portadas das janelas, desapareceu em bicos de
pés. Pedro, assim que percorreu a dependência, aproximou-se do armário onde
estavam os manuscritos e pegou num deles, um dos mais preciosos para a história
da Ordem. Eram as actas originais das lojas escocesas, anotadas e explicadas pelo
Benfeitor. Sentou-se diante da mesa de trabalho coberta de pó e, colocando o
manuscrito diante de si, folheou-o, voltou a fechá-lo, e, por fim, esquecido dele,
quedou-se, mergulhado nos seus pensamentos, de cabeça entre as mãos. Por
várias vezes Guerassime, relanceando um olhar discreto ao escritório, viu Pedro
na mesma postura. Passadas mais de duas horas, permitiu-se remexer qualquer
coisa junto da porta para chamar a atenção de Bezukov: este, porém, não deu por
coisa alguma. — Quer que mande embora o cocheiro?
— Ah! Sim — replicou Pedro, voltando a si e levantando-se precipitadamente.
— Ouve — prosseguiu, detendo Guerassime por um botão da blusa enquanto omirava dos pés à cabeça com os seus olhos brilhantes, húmidos e cheios de
entusiasmo. — Ouve, sabes que amanhã vai haver uma batalha?
— É o que dizem — volveu Guerassime.
— Peço-te que a ninguém digas quem eu sou. E agora faz o que eu te disser...
— Às suas ordens, Quer comer alguma coisa?
— Não, é de outra coisa que preciso. Quero que me arranjes um fato de
camponês e uma pistola — disse Pedro, corando.
— Às suas ordens — replicou Guerassime após um momento de reflexão.
Pedro levou o resto daquele dia no escritório do Benfeitor, passeando,
nervosamente, de um lado para o outro, como Guerassime o pôde ver, e falando
sozinho. À noite dormiu numa cama ali mesmo armada.
Guerassime, que na sua longa vida de criado vira muita coisa estranha, aceitou
sem relutância que Pedro se instalasse em casa dos seus amos e sentiu-se mesmo
contente por ter tido ocasião de lhe prestar um serviço. Nessa noite, sem
perguntar sequer para que isso lhe serviria, arranjou um cafetã e um boné para
Pedro, prometendo-lhe para o dia seguinte a pistola pedida. Makar Alexeievitch,
por duas vezes, durante o dia, a arrastar os chinelos, veio postar-se à porta,
olhando para Bezukov com um olhar carinhoso. De uma das vezes, tendo-se Pedro
voltado para, ele, o idiota embrulhou-se no roupão, com ar tímido e enfadado, e
afastou-se pressuroso. Foi então que Bezukov, vestido com o trajo de cocheiro que
Guerassime conseguira para ele, na companhia deste, e quando ia tentar arranjar
uma pistola na Torre Sukariev, se cruzou na rua com os Rostov.
[XIX]
Na noite do dia 1 de Setembro, Kutuzov deu ordem às tropas russas para
retirarem sobre Moscovo pela estrada de Riazan, As primeiras tropas puseram-se
a caminho durante a noite. Nessa marcha nocturna ninguém se apressava, todos
caminhavam lenta e ordenadamente; quando raiou, porém, a madrugada, ao
chegarem à ponte de Dorogomilov, os soldados viram diante de si, do outro lado,
massas de homens armados que se atropelavam para passar a ponte, acumulando-
se na outra margem, bloqueando ruas e quelhas, comprimidos por outros quevinham atrás deles. Nas colunas de tropas deu-se então uma grande desordem.
Toda a gente se precipitou para a ponte, para os vaus e para as barcas. O próprio
Kutuzov ordenou que os transportassem para a outra margem por caminhos
desviados.
As dez horas da manhã do dia 2 de Setembro havia apenas tropas de
retaguarda nos arrabaldes de Dorogomilov. O grosso do exército atravessara o
Moskva e estava já muito para além de Moscovo.
À mesma hora encontrava-se Napoleão, no meio das suas tropas, no monte
Poklonaia e contemplava o espectáculo que se lhe oferecia aos olhos. Entre 26 de
Agosto e 1 de Setembro, da batalha de Borodino à entrada do inimigo em
Moscovo, durante aquela semana memorável e inquieta, fizera um tempo
extraordinário, motivo de surpresa em pleno Outono. O Sol, já muito baixo no
horizonte, era mais ardente que na Primavera; pela atmosfera, levíssima e pura,
irradiava uma luz que deslumbrava os olhos; o peito dos homens dilatava-se feliz
por aspirar os capitosos aromas outonais; as próprias noites, escuras e mornas,
eram suaves, e durante elas caía do céu como que uma chuva de estrelas de ouro
que, espalhando alegria, ao mesmo tempo assustava as pessoas.
No dia 2 de Setembro, às dez horas da manhã, o tempo estava assim.
A luz matinal irradiava um brilho feérico. Do alto do monte Poklonaia via-se
em baixo Moscovo, com o seu rio, os seus jardins, as suas igrejas. Dir-se-ia que a
cidade tinha vida própria, com as suas cúpulas cintilando, sob os raios do Sol, como
se fossem estrelas.
Ante a arquitectura extraordinária daquela capital.— Napoleão sentiu essa
curiosidade inquieta e cobiçosa que costuma despertar o contacto com uma
existência de que nada sabemos e que nos é completamente estranha. Via-se bem
que aquela cidade tinha vida própria e intensa. Graças a esses sinais indefiníveis
que nos permitem distinguir a distância um ser vivo de um cadáver, Napoleão, do
alto do monte Poklonaia, apercebia o palpitar da vida daquela capital como se
sentisse a respiração desse grande e magnífico corpo.
Ao contemplar Moscovo, todos os russos sentem que ela é como que uma mãe
para eles. O estrangeiro, embora desprovido deste sentimento filial, não pode
deixar de se sentir impressionado pelo carácter feminino da cidade. Eis a
impressão que Napoleão sentia também.
— Esta cidade asiática das mil igrejas, Moscovo, a Santa. Aqui está ela,finalmente, a famosa cidade. Já era tempo! — exclamou ele, e, apeando-se do
cavalo, mandou abrir diante de si a planta da cidade e chamou o intérprete,
Lelorgne d’Ideville. «Uma cidade ocupada pelo inimigo faz lembrar uma virgem
que Perdeu a virgindade», pensava, repetindo para si próprio o que dissera em
Smolensk a Tutchkov. E animado por estes sentimentos contemplava, estendida a
seus pés, a beleza oriental que via pela primeira vez. Ele próprio achava
extraordinário que, se realizasse enfim aquele sonho que havia tanto acarinhava e
que se lhe afigurara irrealizável. Aquela clara luz matinal, ora fixava os olhos na
cidade ora no mapa que tinha diante, confirmando pormenores, e a certeza
daquela posse ao mesmo tempo que o perturbava causava-lhe medo,
«Teria porventura podido ser de outra maneira?», interrogava-se a si próprio.
«Ei-la aqui, a grande capital, ei-la a meus pés, aguardando o destino. Onde estará
agora Alexandre? E que pensará ele? Cidade estranha, soberba, magnífica! Que
momento raro e solene! Sob que aspecto me verão eles?», prosseguia pensando
nos seus soldados. «Aqui a têm, a recompensa que dou a esses homens de pouca
fé.» E percorria com os olhos a comitiva e as tropas que marchavam em perfeita
ordem! «Basta uma palavra minha, um só gesto da minha mão, e esta antiga
capital dos czares converter-se-á num monte de ruínas. Mas a minha clemência
está sempre pronta a descer até aos vencidos. Devo ser magnânimo e
verdadeiramente grande... Não! Será possível que eu esteja em Moscovo?»,
interrogava-se, de súbito. «Mas a verdade é que ela aqui está, deitada a meus
pés, com as suas cúpulas douradas e as suas cruzes cintilando à luz do Sol. Saberei
poupá-la. Na fachada destes antigos monumentos, símbolo da barbaria e do
despotismo, mandarei escrever grandiosas palavras inspiradoras de justiça e
misericórdia — Tenho a certeza de que Alexandre o há-de apreciar acima de todas
as coisas...» Afigurava-se-lhe que tudo aquilo era resultado da rivalidade pessoal
entre ele e Alexandre. «Do alto do Kremlin — sim, aquilo é o Kremlin— ditar-lhes-
ei leis justas, mostrar-lhes-ei a verdadeira civilização; as futuras gerações dos
boiardos hão-de pronunciar amorosamente o nome do seu conquistador. Direi à
delegação que me enviarem que não quis e não quero a guerra, que a que me v
forçado a fazer visava a política mentirosa da sua corte, que amo e respeito
Alexandre e que estou pronto a aceitar em Moscovo uma paz digna de mim e dos
meus povos. Não quero aproveitar-me de uma guerra vergonhosa para humilhar o
soberano a quem venero. ’Boiardos!’, dir-lhes-ei, ’não quero a guerra, quero a paze o bem-estar de todos os meus súbditos.’ Aliás, tenho a certeza de que a presença
dessa gente me há-de inspirar e que lhes hei-de falar como sempre falo, com
clareza, com solenidade e com grandeza. Mas será possível que eu esteja em
Moscovo? Estou, Moscovo, ei-la ali.»
— Tragam-me os boiardos! — exclamou, voltando-se para a comitiva.
Um general, seguido de um séquito brilhante, partiu imediatamente a galope
em busca dos boiardos.
Duas horas decorreram. Napoleão almoçou e voltou para o mesmo local do
monte Poklonaia a aguardar a delegação. O discurso que lhe dirigiria desenhava-
se-lhe já claro na imaginação. Era um modelo de dignidade e grandeza de acordo
com a concepção napoleónica.
A magnanimidade desse discurso, que ele esperava agisse poderosamente
sobre Moscovo, enchia-o de entusiasmo. Assentava já na data em que
reconvocaria a reunião no palácio dos czares, reunião essa em que as altas
personalidades russas deveriam encontrar-se com as da sua corte. E nomearia
previamente um governador capaz de conquistar para ele, Bonaparte, a simpatia
da população. Sabendo que Moscovo dispunha de grande número de instituições
de caridade, estava decidido a cumulá-las de benesses. «Assim como, em África»,
pensava, «devemos envergar um albornoz para entrar numa mesquita, em
Moscovo convém sermos generosos para com os czares.» E para definitivamente
conquistar o coração dos Russos, como todo o bom francês, incapaz de conceber
seja o que for de sentimental sem falar da minha querida, da minha terna, da
minha pobre mãe, ei-lo que decide que na fachada de todas as instituições
mandaria inscrever em grandes letras: — Estabelecimento dedicado à minha
querida mãe. Ou, não, antes, simplesmente: Casa de minha mãe. «Mas estarei eu,
realmente, em Moscovo?», repetia de si para consigo, mentalmente. «Sim, ei-la
aqui diante de mim. Então porque leva a delegação tanto tempo a aparecer?»
Entretanto, nas últimas fileiras da sua comitiva, generais e marechais
discutiam a meia voz. Os que haviam sido enviados pela delegação tinham voltado
e informavam que a cidade estava deserta, todos os seus habitantes a tinham
abandonado. A palidez e a consternação estamparam-se em todos os rostos. Não
era propriamente a notícia que os atemorizava, embora fosse de vulto, mas a
maneira de a comunicarem ao imperador sem colocar Sua Majestade numa
situação ridícula, para os Franceses a mais grave de todas, fazendo-lhe saber quedebalde aguardaria os boiardos e que em Moscovo apenas se viam bandos de
bêbedos. Havia quem fosse de parecer que apesar de tudo devia arranjar-se uma
delegação; outros, pelo contrário, sustentavam ser preciso, com todo o cuidado, e
prudência, preparar o imperador e dizer-lhe a verdade.
— É preciso dizer-lho, seja como for... — diziam. — Mas, meus senhores...
A situação era tanto mais penosa quanto era certo o imperador, todo
entregue aos seus sonhos de generosidade, andar de um lado para outro,
pacientemente, diante do mapa da cidade, olhando de tempos a tempos para a
estrada de Moscovo e sorrindo triunfante.
— Mas é impossível... — diziam os membros da comitiva, encolhendo os
ombros, sem se decidirem a pronunciar a palavra terrível — «ridículo» — Que
cada um tinha nos lábios.
Entretanto o imperador, cansado de esperar, e sentindo, graças ao seu instinto
de actor, que o instante sublime tardava de mais, perdendo, portanto, a sua
grandeza, acenou com a mão. Um tiro de peça deu o sinal e as tropas que
cercavam a cidade por todos os lados marcharam em direcção a Tverskaia, através
da Calçada de Kaluga, e romperam pela barreira de Dorogomilov. Em passo cada
vez mais acelerado, adiantando-se uns aos outros, soldados de infantaria e
cavalaria avançavam, levantando grandes nuvens de poeira e atroando os ares
com os seus gritos ensurdecedores.
Arrebatado pelo entusiasmo dos seus soldados, Napoleão chegou ao mesmo
tempo do que eles à barreira de Dorogomilov. Uma vez aí, parou, apeando-se do
cavalo, e por muito tempo aí ficou a passear junto da esplanada de Kamer-
Koleskovo, sempre espera da delegação.
[XX]
Moscovo estava deserta, Embora lá se encontrassem alguns habitantes, a
quinta parte, pouco mais ou menos, da sua população habitual, nem por isso
estava menos deserta. Na colmeia o que falta a rainha, não há vida, embora a um
olhar superficial continue tão animada como antes.
Sob os ardentes raios de sol do meio-dia, as abelhas dessa colmeia zumbem emtorno dela como em torno das demais. Também aí se sente o cheiro a mel, e as
abelhas entram e saem. Um pouco de atenção, porém, e compreender-se-á que
nessa colmeia já não há vida. As abelhas não lhe zumbem em redor como em redor
das colmeias vivas, e não têm nem o mesmo cheiro nem o mesmo zumbido.
Quando se bate na parede de uma colmeia doente, em vez da resposta
instantânea e unânime de dezenas de milhares de insectos que alçam,
ameaçadores, o ferrão, agitando no ar as asas rápidas, apenas se ouvem zumbidos
isolados em certos pontos da colmeia quase vazia. A entrada já se não aspira,
como antes, o perfume alcoolizado e forte do mel e do veneno cios seus
habitantes; já não sai lá de dentro o calor de um lugar habitado. Ao perfume
adocicado de outros tempos junta-se agora um cheiro a podridão e abandono. Já
não há guardas prontas a dar sinal de alarme e a morrer em defesa da colmeia. Já
se não ouve esse som regular e tranquilo. índice de um trabalho activo, que faz
lembrar o cachão da água a ferver, mas zumbidos irregulares e dispersos, indício
de desordem. Entram e saem da colmeia, tímidas e astuciosas, salteadoras negras,
de corpo alongado e coberto de mel. Desprovidas de ferrão, fogem quando as
perseguem. Antigamente as obreiras chegavam com o seu quinhão e partiam sem
nada; agora, pelo contrário, cada uma leva a sua parte. O apicultor abre a parte
inferior da colmeia e examina o que se passa aí. Em vez das abelhas negras e
gordas, entregues ao seu trabalho, pendendo em cacho até à parte inferior,
fincadas umas nas outras pelas patas, e segregando cera num zumbido
ininterrupto, abelhas sonolentas erram de um lado para o outro no fundo e nas
paredes da colmeia. Em lugar de um pavimento bem fornido de cera vermelha e
cuidadosamente varrido pelas asas dos habitantes, juncam o chão migalhas de
cera, excrementos e abelhas semimortas, que agitam as patas molemente, ou
estão mortas de todo.
O apicultor abre agora a parte superior da colmeia e examina c, que lá vai
dentro. Em vez dos intervalos das prateleiras bem calafetados, para que os
insectos estejam aconchegados, vê um trabalho artístico, complicado e hábil, mas
já não no seu estado virgem de outrora. Tudo está sujo e deserto. As abelhas
salteadoras introduzem-se, rápidas e subtis, pelo meio das obreiras: estas, secas,
encolhidas, murchas, como se fossem velhas, deslocam-se lentamente, sem impedir
a pilhagem das salteadoras, sem nada quererem, sem gosto pela vida. Zângãos,
larvas, borboletas, batem de encontro às paredes da colmeia. Aqui e ali, entre ostabuleiros com abelhas mortas e mel, ouve-se, de quando em quando, um zumbido
irritado. Algures, duas abelhas, impelidas Pelo instinto e o antigo hábito, limpam o
interior da colmeia e arrastam para o exterior, num esforço que excede o seu
poder, cadáveres de abelhas mortas ou de zangãos, sem se darem conta do que
estão a fazer. Noutro canto, duas velhas abelhas lutam Preguiçosamente ou
lavam-se ou nutrem-se uma à outra, sem consciência de ser hostil ou amistosa a
sua atitude. Noutro ponto ainda um grupo de abelhas, esmagando-se
mutuamente, ataca uma vítima qualquer, e sufoca-a. E a vítima, impotente ou
morta, cai lentamente, leve como uma pena, sobre o monte de cadáveres. O
apicultor retira dois tabuleiros do meio para ver o ninho. No centro de milhares de
abelhas que formam um círculo negro e apertado, costas com costas, ali colocadas
para vigiar os altos mistérios da eclosão, vê agora apenas alguns centos de
abelhas esqueléticas, tristíssimas, quase mortas e entorpecidas. Pela maior parte,
estão efectivamente semimortas e Ignoram, na sentinela que fazem àquele
santuário, que já não existe o que elas tinham de guardar. Despedem um fedor a
podridão e a morte. Apenas algumas remexem ainda, esvoaçam e
preguiçosamente vêm pousar na mão do inimigo, já sem forças para perder a vida
picando-o. As outras, mortas, caem no fundo, leves, como escamas de peixe. O
apicultor fecha a colmeia, marca-a a giz e na altura precisa quebra-a para queimá-
la.
Assim era Moscovo, enquanto Napoleão, inquieto, fatigado, carrancudo,
andava de um lado para o outro na esplanada de Karner-Koleskovo, aguardando a
chegada da delegação: cerimónia puramente convencional, mas que ele
considerava indispensável.
Nos diversos bairros de Moscovo apenas restavam algumas pessoas movendo-
se sem saberem o que faziam, por simples hábito.
Acabaram, com as precauções devidas, por comunicar a Napoleão que Moscovo
estava vazia. O imperador fitou, colérico, aquele que lhe deu a notícia e continuou
a andar de cá para lá em silêncio.
— A minha carruagem! — ordenou por fim.
E subindo para o carro, na companhia do ajudante-de-campo de serviço, dirigiu-
se para os arrabaldes da cidade. «Moscovo deserta! Que acontecimento
inverosímil!», dizia de si para consigo.
Não chegou a entrar na cidade e deteve-se numa estalagem dos arrabaldes,em Dorogomilov.
O golpe de teatro falhara.
[XXI]
As tropas russas tinham desfilado em Moscovo das duas horas da madrugada
às duas horas da tarde, levando consigo os últimos habitantes e os últimos feridos.
Durante o desfile das tropas a maior confusão se verificou nas pontes de Pedro,
do Moskva e do Iauza.
Enquanto as tropas se cindiam em duas partes para contornarem o Kremlin
pelas pontes do Moskva e de Pedro, numerosos soldados, aproveitando a paragem
e a precipitação, voltaram para trás. Passando sub-repticiamente pela porta
Borovitski e pela Igreja do Bem— Aventurado Basílio, dirigiram-se à Praça
Vermelha, onde pressentiam que lhes seria possível apoderarem-se facilmente dos
bens alheios. Uma, multidão que fazia lembrar a de um dia de feira encheu todas
as entradas e ruelas de Gostinii Dvor. Não se ouviam, porém, as vozes melífluas e
falsamente acolhedoras dos feirantes e bufarinheiros. Não se via a turbamulta
garrida dos habituais compradores. Por toda a parte eram fardas e capotes de
soldados sem armas que entravam nas lojas de mãos vazias e delas saíam a
abarrotar. Alguns comerciantes, poucos, com os seus empregados, atarefavam-se
pelo meio dos militares, abrindo e fechando as lojas, tentando levar os seus
artigos para sítio seguro. Na Praça de Gostinii Dvor rufavam tambores. Mas o som
dos tambores já não reunia os militares, como antigamente. Pelo contrário,
dispersava-os ainda mais. A mistura com os soldados viam-se nas lojas e ruelas
homens de cafetã sujo e de cabeça rapada (Os malfeitores que tinham sido postos
em liberdade. (N, dos T.). Dois oficiais, um montado num cavalicoque cinzento-
escuro, uma faixa a tiracolo sobre a farda, e, outro, de capote e a pé,
estacionavam, conversando, à esquina da Rua Ilinka, quando outro se acercou
deles.
— O general ordena que se corra imediatamente daqui com as praças custe o
que custar. Isto não tem classificação! Metade dos homens debandou.
— Aonde vais tu? Aonde vão vocês?... — gritou a três soldados de infantaria,que, sem armas, as abas dos capotes levantadas, se introduziam numa loja ali
mesmo. — Agarrem-nos! Canalha!
— Trate lá de os reunir! — comentou um dos oficiais. — Não há maneira de os
juntar. É preciso irmo-nos daqui, quanto mais depressa melhor para que os que
ainda restam não desapareçam também. Não há outra coisa a fazer!
— E como havemos de avançar? Fizeram alto lá adiante, a ponte está
atulhada e não há maneira de se sair daqui. O melhor era cerrar fileiras para
impedir a fuga dos que ainda nos restam,
— Pois trate disso! Corra com eles daqui! — gritou o comandante.
O oficial da faixa desmontou do cavalo, chamou um tambor e, dirigiu-se com ele
para as arcadas. Alguns grupos de soldados debandaram. Um comerciante, com as
bochechas cobertas de borbulhas em volta do nariz, aproximou-se do oficial num
passo rápido e um tanto amaneirado, gesticulando muito. Na sua expressão havia
uma resolução serena e inabalável.
— Excelência – disse — faça-nos a mercê de nos conceder a sua protecção. Não
regateamos ninharias. Será para nos um grande prazer que queira escolher
qualquer coisa. Aqui tem um bom pano. Mesmo duas peças, para um cavalheiro
como o senhor, não faz mal. Nós compreendemos. Mas que vem a ser isto? É um
saque. Peço-lhe, mande a guarda para aqui; ao menos que possamos fechar as
lojas...
Vários comerciantes se acercaram do oficial.
— Ora, deixem-se de palavreado inútil! — disse um deles, magro, de expressão
severa. — Quando nos cortam a cabeça, não vale a pena chorar a perda dos
cabelos. Pois que levem o que quiserem. E fez com a mão um gesto enérgico, meio
voltado para o lado do oficial.
— Sim, sim, Ivan Sidoritch, para ti é, o mesmo — replicou o primeiro. — Queira
vir por aqui, Excelência!
— Que dizes? Eu sei o que digo — exclamou o magricela. — Aqui, nas minhas
três lojas, tenho para cima de cem mil rublos de mercadoria. Quem vai guardar
isto depois de as tropas partirem? A gente bem os conhece. Contra a vontade de
Deus nada pode o braço do homem.
— Por favor. Excelência. — repetia o primeiro comerciante, todo mesuras.
O oficial continuava indeciso e a sua atitude traía irresolução.
— E que tenho eu com isso? — exclamou, de súbito, dirigindo-se a passosrápidos para as arcadas.
Numa das lojas cuja porta estava aberta ouviam-se socos e invectivas e, na
altura em que o oficial se aproximava, saía lá de dentro, correndo, um homem de
armiak (Trapo próprio dos cocheiros russos. (N, dos T.) sujo e cabeça rapada.
Encolhendo-se, esgueirou-se por entre o oficial e os lojistas. Aquele lançou-se
sobre os soldados que estavam dentro da loja. Nesse momento, contudo,
ressoaram espantosos clamores da imensa multidão aglomerada na ponte do
Moskva, e o oficial correu para a praça.
— Que se passa? Que foi? — perguntou, mas o seu camarada já se precipitara
para onde vinham os gritos, metendo ao longo da Igreja do Bem— Aventurado
Basílio.
O oficial montou a cavalo e seguiu-o. Ao chegar à ponte, viu duas peças
retiradas das carretas, a infantaria em marcha, carroças voltadas, rostos
esgazeados e soldados rindo a bandeiras despregadas. Junto das peças de
artilharia estava uma carroça tirada por dois cavalos. Atrás das rodas da carroça,
amarrados uns contra os outros, havia quatro galgos. Na carroça amontoavam-se
muitos objectos e lá no alto, junto a uma cadeirinha de criança, de pés para o ar,
sentava-se uma mulher, que soltava gritos agudos e desesperados. O oficial soube
pelos seus camaradas que os gritos eram devidos ao facto de o general Ermolov,
ao ter conhecimento de que os soldados se tinham dispersado pelas lojas e que os
habitantes se acumulavam junto à ponte, mandar retirar as peças das carretas e
gritar que ia mandar fazer fogo, para exemplo.
Então a multidão derrubara as carroças e empurrando-se esmagando-se, em
grandes gritos, acabara por desimpedir a ponte, podendo as tropas prosseguir na
sua marcha.
[XXII]
No centro da cidade, porém, tudo estava deserto. Nas ruas não havia quase
vivalma. As portas dos prédios e das lojas estavam fechadas. Aqui e ali, em volta
das tabernas, ouviam-se gritos isolados ou cantorias de bêbedos. Ninguém
circulava de carruagem, raramente de ouviram os passos de um peão. Na RuaPovarskaia, vazia, o sossego era completo. No imponente pátio do palácio dos
Rostov, além de restos de palha e excrementos de cavalo, não se via mais nada
nem ninguém. De resto, lá dentro, em casa, onde ficara todo o mobiliário, havia
apenas duas pessoas, que estavam instaladas no salão nobre: o porteiro Ignate e o
cossaco Michka, neto de Vassilitch, que ficara em Moscovo com o avô. Michka
abrira o cravo e tocava só com um dedo.
O porteiro, de mãos à cinta e sorriso nos lábios, mirava-se a um grande
espelho.
— Não é verdade que toco muito bem? Hem! Tio Ignate! — exclamou o rapaz,
pondo-se, de súbito, a bater com as duas mãos em cima das teclas.
— Não há dúvida! — replicou Ignate, maravilhado com a imagem que o
espelho lhe reflectia, cada vez mais risonha.
— Não tem vergonha! Sim, não tem vergonha nenhuma! — disse, por detrás
deles, Mavra Kuzminitchna, penetrando na sala — sem fazer ruído. — Olhem como
ele arreganha os dentes! Não servem para mais nada. Tudo está ainda por
arranjar, e o Vassilitch não pode mais. Eu te direi!
Depois de ajeitar o cinturão, Ignate, que deixara de sorrir, baixou os olhos e
saiu da sala.
— Tiazinha, só mais um bocadinho — suplicou o pequeno. — Deixa estar que eu
te dou «mais um bocadinho», maroto! — exclamou Mavra Kuzminitchna, erguendo
para ele a mão. — Trata de arranjar depressa o samovar para o teu avô.
Mavra Kuzminitchna espanejou os móveis, fechou o cravo e, despedindo um
fundo suspiro, saiu do salão, fechando a porta à chave.
Quando chegou ao pátio, pôs-se a pensar no que deveria fazer: iria ao pavilhão
tomar chá com Vissilitch, ou arranjaria na despensa o que ainda não estava em
ordem?
Passos apressados ressoaram no silêncio da rua detendo-se em frente da
cancela do portão e o ferrolho rangeu impelido por uma mão que fazia força para
abri-lo.
Mavra Kuzminitcha dirigiu-se para a porta.
— Que deseja?
— O conde, o conde Ilia Andreitch Rostov.
— E o senhor quem é?
— Sou oficial. Precisava de falar com ele — replicou o desconhecido com oagradável timbre de voz de um senhor russo. Mavra Kuzminitchna abriu a porta.
Um oficial dos seus dezoito anos, de rosto redondo, tipo dos Rostov, penetrou no
pátio.
— Paizinho, os senhores foram-se embora. Dignaram-se partir ontem à noite.
— explicou Mavra Kuzminitchna, amavelmente.
O jovem continuava à porta, indeciso, sem saber se devia ou não entrar. Deu
um estalo com a língua.
— Oh, que aborrecimento! — exclamou. — Devia, ter vindo ontem... Que
pena!
Entretanto a velha governanta examinava, com simpatia, atentamente, a
fisionomia do desconhecido, em que havia muitos traços dos Rostov, o seu capote
esfarrapado e as botas velhas que calçava.
Que queria do conde? — inquiriu ela.
— Agora... nada há a fazer! — volveu o oficial, desconsolado, e deu um passo
para a porta.
Mas deteve-se ainda indeciso.
— É que... — explicou ele, de súbito. — Eu sou parente do conde e ele sempre
foi muito bom para mim. E, como vê, o meu vestuário — acrescentou, mirando o
capote e as botas, enquanto sorria cordialmente — está um tudo-nada usado e
estou sem cinco réis. Queria por isso pedir ao conde...
Mavra Kuzminitchna não o deixou concluir.
— Quererá esperar um instante, Paizinho, só um instante? — disse ela.
E enquanto o oficial soltava a mão do ferrolho, Mavra Kuzminitchna, com o seu
passinho pressuroso de velha, encaminhou-se para o pavilhão.
Entretanto, o oficial pôs-se a passear no pátio, de cabeça baixa e remirando as
botas rotas. «Que maçada não encontrar o meu tio. Mas que simpática velha! Que
teria ido fazer? Era bom que me dissesse que ruas devo eu seguir para apanhar o
meu regimento, a esta hora lá para os lados da Rogojskaia.» Mavra Kuzminitchna
surgiu daí a pouco no cunhal da casa, preocupada, mas decidida, trazendo na mão
um tabaqueiro atado nas pontas. Depois de alguns passos em direcção ao
desconhecido, desfez o nó do lenço, retirou de dentro uma nota de vinte rublos e
precipitadamente meteu-a na mão do oficial.
— Se Sua Excelência estivesse em casa. é claro que o receberia como seu
parente, mas assim...Mavra Kuzminitchna parecia envergonhada e confusa; o oficial, porém, sem se
fazer rogado, lentamente, pegou na nota e agradeceu a dádiva.
— Se o conde estivesse em casa... — prosseguiu a velha, desculpando-se. —
Que Jesus Cristo o acompanhe, paizinho. Que Deus e, proteja — acrescentou
seguindo o oficial e fazendo-lhe uma reverência.
O oficial dir-se-ia rindo para si mesmo e, abanando a cabeça, pôs-se a andar em
passo acelerado, ao encontro do seu regimento, ao longo das ruas desertas,
direito à ponte do Iauza. Mavra Kuzminitchna, os olhos cheios de lágrimas, por
muito tempo ali ficou plantada atrás da porta fechada, pensativa, abanando a
cabeça: o oficialzinho desconhecido despertara nela uma súbita onda de ternura e
piedade maternal.
[XXIII]
Numa casa por acabar da Rua Varvarka, com uma taberna no rés-do-chão,
ouviam-se gritos e canções de bêbedos. Numa divisão suja, sentados em redor de
uma mesa, havia dez operários, Bêbedos, cobertos de suor, os olhos nublados,
cantavam, abrindo muito a boca. Cada um entoava para seu lado, fazendo grandes
esforços, sem entusiasmo, não, claro, porque isso lhes desse prazer, mas apenas
para mostrarem que estavam bêbedos e que se divertiam. Só um deles, um
rapagão louro, alto, de cafetã azul, estava de pé. Podia dizer-se que tinha uma
bela cara, de nariz direito e fino, se não fossem os seus lábios cerrados, que
remexiam sem cessar, e os olhos imóveis, turvos e sombrios. Dominava, pela
estatura, todos os demais cantores e como que para dirigir o coro ia agitando por
cima das cabeças, num movimento solene e desajeitado, um braço branco, nu até
ao cotovelo, cujos dedos da mão separava de maneira pouco natural. A manga do
casaco estava constantemente a descair-lhe para cima do braço, e ele, com a outra
mão, voltava a arregaçá-la cuidadosamente, como se fosse da maior importância
conservar desnudo o braço branco e musculoso que estava sempre a agitar. No
meio daquela cantoria ouviu-se lá para o vestíbulo e alpendre a algazarra de uma
altercação. O rapaz alto fez calar os cantores com um gesto da mão.
— Basta! — gritou, numa voz de comando. — Há pancada, rapazes!E ei-lo que, de mangas arregaçadas, se precipita no alpendre. Os demais
operários seguiram-lhe os passos. Aqueles bêbedos tinham trazido ao taberneiro
nessa manhã, para lhe pagar o vinho que beberam, couros da fábrica em que
trabalhavam. Os serralheiros da vizinhança, supondo a taberna assaltada, queriam
entrar à força no estabelecimento. Eis porque no alpendre se chegara a vias de
facto.
O dono da taberna debatia-se com um deles, o qual, no momento em que os
operários apareceram, tendo-se-lhe escapado das mãos, fora cair estatelado no
passeio.
Um seu companheiro atirou-se ao dono da taberna. O rapaz alto, das mangas
arregaçadas, deu um soco no serralheiro, vociferando como um selvagem.
— Rapazes! Estão a matar os nossos companheiros!
Entretanto, o primeiro serralheiro, que se erguera do chão, ao passar a mão
pela cara ensanguentada, principiou a gritar, numa voz lastimosa:
-Ó da guarda! Mataram-me... Irmãos, mataram um homem! Irmãos!
— Pai do Céu! Mataram um homem, mataram um homem! — esganiçou-se
uma mulher que surgiu de uma porta vizinha.
A multidão aglomerava-se em torno do serralheiro ensanguentado.
— Não te basta roubares o povo até lhe arrancares a ultima camisa —
vociferou alguém dirigindo-se ao taberneiro. — Agora ainda rios queres matar?
Bandido!
O rapagão, no alto da escada do alpendre, olhos nublados, ora fitava o
taberneiro ora os serralheiros, perguntando a si mesmo com qual deles iria bater-
se.
— Assassino! — de súbito, dirigindo-se ao taberneiro. — Amarrem-no,
rapazes!
— O quê? A mim, amarrarem-me a mim? — exclamou este, libertando-se dos
agressores, e, tirando o boné, arremessou-o ao chão.
Dir-se-ia que este gesto encerrava uma misteriosa ameaça. Os operários, que
caíam sobre ele, detiveram-se, indecisos.
— Irmão, eu conheço muito bem as leis e sou pela ordem. Vou queixar-me à
polícia, Hem! Julgas que não vou? A ninguém é permitido, no dia de hoje, assaltar
a casa alheia, percebe? — acrescentou, apanhando o boné do chão.
— Pois vamos a isso! Que julgas tu? Vamos a isso! — repetiram por sua vez oserralheiro e o rapaz alto, chefe dos operários. E ambos se meteram a caminho do
posto da polícia.
O serralheiro, com a cara coberta de sangue, seguia atrás deles. Operários e
mirones acompanhavam-nos falando e gritando. A esquina da Rua Morosseika,
diante de uma grande casa com tabuleta de sapateiro e as portadas das janelas
todas fechadas, estavam uns vinte homens, de rosto triste, magros, de aspecto
exausto, de camisões e cafetãs esfarrapados.
— Que pague o que nos deve! — dizia um deles, mestre sapateiro, esquálido,
de barba rala e sobrancelhas espessas. Sugou-nos o sangue e agora que nos
amolemos! Foi-nos entretendo, entretendo, toda a semana, e agora, que não
podemos mais, desandou.
Ao ver o grupo que se aproximava calou-se e todos os seus companheiros se
deram pressa em juntar-se as que, cheios de curiosidade, se aproximavam.
— Aonde vão vocês?
— É bem de ver, a polícia!
— Olha lá, é verdade que os nossos não levaram a melhor?
— Que estás tu para aí a dizer? Abre os ouvidos ao que se diz.
Sucediam-se perguntas e respostas O taberneiro, aproveitando a confusão,
esgueirou-se de novo para o estabelecimento.
O rapaz alto, sem, dar sequer pelo desaparecimento do inimigo, sempre de
mangas arregaçadas e grandes gestos, não se calava um só instante, atraindo a
atenção de toda a gente. À volta dele é que as pessoas de preferência se
comprimiam, esperando vê-lo tranquilizá-los a todos.
— E ele a dar-lhe com a ordem, com a lei, mas isso não é com a gente, é com as
autoridades! Não acham que tenho razão, povo ortodoxo? — declamava a gosto.
— Julgará ele que as autoridades também se foram embora? Então como
havíamos nós de passar sem autoridades? Era uma ladroeira pegada.
— Tudo isso são tolices! — respondeu alguém do meio da turba. — Julgas que
vão abandonar Moscovo? Meteram-te essa no bestunto e acreditaste. Soldados é
o que há mais para aí. Não os deixarão entrar! Para isso aí estão as autoridades.
Ouve o que este está a dizer — aconselhava, apontando para o rapaz alto, que
perorava.
Perto de Kitai-Gorod, outro pequeno grupo rodeava um homem de capote de
lã, com um papel na mão.— Está a ler um ucasse! Estão a ler um ucasse — gritaram vozes, e toda a
gente acorreu a ouvir o pregoeiro.
O homem de capote de lã lia a proclamação de 31 de Agosto. Ao ver-se
rodeado por tanta gente pareceu perturbado, mas, a instâncias do operário que se
havia aproximado dele, retomou a leitura com um ligeiro tremor na voz.
«Amanhã de madrugada irei encontrar-me com o príncipe Sereníssimo».
«Sereníssimo!», repetiu o folgazão, com solenidade, sorrindo, de sobrancelhas
carregadas...
«Para discutir com ele, agir e ajudar as nossas tropas a aniquilar esses
bandidos. Havemos de os fazer passar um mau bocado...» O pregoeiro calou-se.
«Assim mesmo!», gritou o rapazola triunfante. «Isso é que vai ser uma lição...»
«E acabaremos com a raça desses intrusos. Voltarei à hora de jantar e então
mãos à obra: entraremos em acção, acabaremos o que está principiado e não mais
se ouvirá falar nesses bandidos.»
O pregoeiro leu estas últimas palavras no meio de um profundo silêncio. O
rapaz alto deixou descair a cabeça, acabrunhado. Evidentemente o remate da
proclamação a ninguém agradava. Sobretudo as palavras «Voltarei à hora de
jantar» é que embaraçavam tanto o pregoeiro como os ouvintes.
A excitação do povo atingira tal calor que semelhante banalidade naquele
momento não podia deixar de parecer prosaica e inadmissível. Toda a gente se
teria sabido exprimir assim e um ucasse emanado das mais altas autoridades tinha
obrigação de ser concebido noutros termos.
Toda a gente permanecia silenciosa, de cabeça baixa. O rapaz alto andava de
um lado para o outro como que falando sozinho.
«Era preciso perguntar-lhe a ele?... Olhem, aí está ele!... Claro, vamos
perguntar-lhe!... Que julgam? Sim, ele explicar-nos-á...», disseram, de súbito,
várias vozes lá das últimas filas do público, e todas as atenções se volveram para a
carruagem do chefe da polícia, o qual acabava de chegar à praça acompanhado de
dois dragões a cavalo.
O chefe da polícia, por ordem do conde, fora lançar fogo às embarcações, e com
isso ganhar uma boa maquia, que trazia consigo nas algibeiras. Ao ver aquela
gente caminhar para ele gritou ao cocheiro que parasse.
— Que vem a ser isto? — inquiriu dos homens que um por um, timidamente, se
aproximavam da carruagem.— Que vem a ser isto? Que gente é esta? — repetiu, ao ver que lhe não
respondiam.
— Excelência... — disse o homem do capote de lã. — Excelência, de acordo com
os desejos de Sua Excelência o Conde, estes homens querem cumprir o seu dever
sem poupar as suas vidas e não se trata de uma revolta, como se disse da parte de
Sua Excelência...
— O conde não se foi embora, ainda aí está. Recebereis as suas instruções —
disse o chefe da polícia. — Vamos embora! acrescentou, para o cocheiro.
A multidão juntara-se em volta dos que tinham ouvido a palavra do
representante do Poder e via a carruagem afastar-se.
O chefe da polícia voltou-se assustado para onde a multidão acorria e disse
qualquer coisa ao cocheiro. Os cavalos partiram à desfilada.
«Estão a comer-nos as papas na cabeça, rapazes! Vamos a casa do conde! Não
o deixaremos escapar, rapaziada! Tem de nos prestar contas. Alto! Alto!»,
gritaram várias vozes, e a multidão precipitou-se, correndo, atrás da carruagem
que se afastava.
Na peugada do chefe da polícia, o povo, em grande alarido, dirigiu-se para a
Rua Lubianka.
«Os fidalgos e os comerciantes puseram-se a andar e nós, nós que
arrebentemos para aqui! Seremos cães, porventura?», gritava a multidão.
[XXIV]
No dia 1º de Setembro, pela noite, depois da sua entrevista com Kutuzov, o
conde Rostoptchine regressou a Moscovo magoado e triste; não o tinham ouvido
na reunião do conselho de guerra.
Kutuzov não prestara a mais pequena atenção à sua proposta no sentido de se
defender a capital. Surpreendera-o muito a nova teoria adoptada pelo estado-
maior segundo a qual o sossego da cidade e os sentimentos patrióticos dos seus
habitantes eram não só coisas secundárias, mas desprezíveis e sem qualquer
alcance. Depois da ceia estendeu-se, vestido como estava, em cima de um canapé.
À uma hora da madrugada foi acordado por um correio que lhe trazia uma cartade Kutuzov. Pedia-lhe este, visto as tropas baterem em retirada pela estrada de
Riazan, para além de Moscovo, que enviasse polícias proteger a sua passagem
através da cidade. Não era novidade para Rostoptchine. Pressentira aquilo mesmo
muito antes da sua entrevista da véspera com o general-chefe, no monte
Polclonaia, no dia seguinte ao da batalha de Borodino, visto ter ouvido os generais
chegados a Moscovo declararem unanimemente ser impossível travar uma
batalha, e todos os dias, com o seu consentimento, saírem de Moscovo, com
destino a lugar seguro, os bens da coroa e metade dos habitantes da capital já
terem abalado. Mesmo assim, aquela ordem de Kutuzov, expedida como uma
simples nota e recebida durante a noite, quando ele dormia o seu primeiro sono,
surpreendeu-o e irritou-o extraordinariamente.
Mais tarde, quando quis explicar o que fizera naquele momento, repetiu,
várias vezes, nas suas Memórias, que tivera então como objectivo principal
«manter a tranquilidade em Moscovo e evacuar os habitantes!» Se fizermos fé nas
suas palavras, tudo quanto fez foi irrepreensível. Porque não tinham levado,
então, da cidade os tesouros moscovitas, as armas, os cartuchos, a pólvora, as
reservas de trigo? Porque foram enganados milhares de habitantes com a
afirmação de que a cidade não capitularia, o que fez que ficassem arruinados? Para
que a tranquilidade fosse mantida, explica Restoptchine. Mas porque se
evacuaram, então, montes e montes de papéis inúteis das repartições? Porquê o
balão de Leppich e tantas outras coisas? Para que a cidade ficasse vazia, replica
ele ainda. Basta a tranquilidade pública estar ameaçada para tudo se justificar.
Também as chacinas do Terror só tiveram em vista a tranquilidade pública.
Em que se baseava então o conde Rostoptchine para temer que a
tranquilidade pública, em 1812, viesse a ser perturbada em Moscovo?
Nem em Moscovo nem em qualquer outra parte da Rússia, aquando da
chegada do inimigo, se passou fosse o que fosse parecido com uma rebelião. A 1 e
2 de Setembro ainda havia na capital mais de dez mil pessoas e além do
ajuntamento no pátio da residência do governador, por ele próprio provocado,
nenhum outro incidente ocorreu. Evidentemente que ainda se teria receado
menos qualquer efervescência popular se depois de Borodino, quando o abandono
de Moscovo se tornou coisa certa ou pelo menos verosímil, em vez de se haver
exaltado o povo com a distribuição de armas ou a afixação de proclamações,
Rostoptchine houvesse tomado as medidas necessárias para retirar as coisaspreciosas, a pólvora, as munições e o dinheiro, e houvesse declarado francamente
ao povo que a cidade ia ser abandonada.
Rostoptchine, homem impulsivo e sanguíneo, como vivera sempre nas altas
esferas administrativas, apesar de todo o seu patriotismo, não fazia a mínima
ideia de como era o povo que julgava governar. Depois da entrada dos Franceses
em Smolensk, imaginara desempenhar o papel de guia do sentimento nacional no
«coração da Rússia». Julgava ele, como todo o bom administrador, ser obrigação
sua não só presidir à vida material dos habitantes de Moscovo, mas também
guiar-lhes a disposição moral através de proclamações e de editais redigidos nesse
estilo corriqueiro de que a massa popular, no seu próprio meio, não faz o mais
pequeno caso, e que deixa de compreender sempre que o ouve na boca de
personagens das classes elevadas. Este lindo papel de guia da moral popular
agradava-lhe tanto, tão bem se lhe adaptara, que a necessidade de abandonar
Moscovo sem realizar qualquer acto heróico o havia apanhado desprevenido. De
súbito notou que o terreno que pisava lhe resvalava debaixo dos Pés. E
decididamente não soube que fazer. Embora o pressentisse, recusou-se
sinceramente até ao último minuto a acreditar no abandono da capital e nada fez
na previsão de semelhante eventualidade. Se os habitantes se retiraram, foi
contra a sua vontade. Se mandara transferir as repartições públicas, é que tinham
sido os funcionários a pedir-lho, e só com relutância dera autorização para tal. Por
si nunca pensara noutra coisa senão em desempenhar o papel que a si próprio
atribuíra. Como é frequente nas pessoas de imaginação viva, de há muito sabia
que Moscovo seria abandonada, mas só a razão lho dizia; no fundo do coração não
acreditava. A imaginação não o acompanhava nesse novo domínio dos factos.
Todos os seus esforços, realmente eficazes e enérgicos — e não se cura aqui de
saber até que ponto foi útil e qual a influência que exerceu no povo —, apenas
serviram para excitar nos habitantes sentimentos que ele próprio experimentava:
o ódio patriótico contra os Franceses e a confiança em si mesmo.
Mas quando os acontecimentos ganharam proporções históricas, quando se
tornou insuficiente exprimir apenas por palavras o ódio contra o inimigo, quando
não foi possível proclamá-lo mesmo no campo de batalha, quando a autoconfiança
se tornou inoperante para salvar Moscovo, quando toda a população, como um só
homem, abandonando o que era seu, correu em torrentes para fora da cidade,
mostrando, com este acto negativo, o prestígio do sentimento nacional, o papelque Rostoptchine escolhera perdeu subitamente todo o sentido. Viu-se, de chofre,
fraco e ridículo, sem terra firme debaixo dos pés.
Ao receber a nota fria e autoritária de Kutuzov sentiu-se tanto mais irritado
quanto era certo reconhecer-se culpado. O que lhe fora confiado, os bens do
tesouro, que ele devia ter retirado, ficava em Moscovo. E agora era impossível
levar dali fosse o que fosse.
«Quem tem a culpa disto?», dizia ele de si para consigo. «Eu não, com certeza.
Tinha tudo preparado, mantive Moscovo, e não é pouco. E aqui está onde eles nos
levaram! Miseráveis! Trai— dores!» Não lhe teria sido fácil determinar que eram
esses traidores, esses miseráveis, mas sentia-se impelido, por necessidade, a odiar
esses traidores que o haviam colocado na situação falsa ridícula em que se
encontrava.
Durante toda a noite emitiu ordens que junto dele vinham receber de todos os
pontos de Moscovo. Os da sua roda nunca o tinham visto tão taciturno e furioso.
«Excelência, vieram receber ordens da parte do director do Património... da
parte do Consistório, do Senado, da Universidade, do asilo das crianças
abandonadas. O ecónomo mandou saber... Pede... Que ordens se devem transmitir
à corporação dos bombeiros? Estão aí da parte do director da cadeia... Da parte
do director do manicómio...» Não lhe largaram a porta durante toda a santa noite.
A todos dava respostas rápidas e graves, dizendo que as suas ordens
doravante eram inúteis, que a obra que preparara com todo o cuidado fora
malograda por terceiros, responsáveis dos acontecimentos que sobreviessem.
— Diz a esse imbecil — respondeu ao pedido da Repartição do Património —
que fique de sentinela aos seus documentos. E, tu, que tolice me estás tu a pedir a
propósito dos bombeiros? Se têm cavalos, vão para Vladimir. Não os vão deixar
aos Franceses.
— Excelência, está ali o director do manicómio. Que devo dizer-lhe?
— Que deves dizer-lhe? Que se vão todos, nada mais simples... E, quanto aos
doidos, que os solte na cidade. Já que quem comanda o exército é doido, ficarão no
seu devido lugar.
Quando lhe perguntaram qual o destino a dar aos presos da cadeia, gritou,
furioso, para o director:
— Que quer que eu faça? Que lhe dê dois batalhões, que não temos, para os
escoltar? Solte-os, é bem de ver!— Excelência, há presos políticos: Miechkov, Verechtchaguine.
— Verechtchaguine! Ainda o não enforcaram?! — exclamou. — Tragam-no.
[XXV]
Depois das nove da manhã, hora em que as tropas principiaram a atravessar
Moscovo, ninguém mais veio pedir instruções ao conde. Todos que tinham tido
oportunidade de retirar haviam abalado espontaneamente; os que tinham ficado,
esses, só a si próprios haviam pedido conselho.
Rostoptchine mandara atrelar a sua carruagem para ir para Sokolniki, e ali
estava, no seu gabinete sombrio, amarelento e calado, os braços cruzados.
Em tempo de paz, todo o governante julga sempre que dele depende toda a
população confiada ao seu cuidado e, supondo-se indispensável, vê nisso a principal
recompensa dos seus trabalhos e dos seus esforços. Enquanto o mar da história
está sereno. é lógico que o governante-piloto que na sua ligeira embarcação
manobra o leme do navio de grande calado que é o Estado julgue ser ele quem o
faz mover. Mas assim que se levanta uma tempestade, logo que o mar se encapela
e o navio é levado pela corrente, então a ilusão acaba. O navio prossegue na sua
rota, independente e majestoso, e o leme do piloto já para nada serve. Esse
homem, momentos antes todo-poderoso, centro de todas as energias, não passa
então de um ser fraco, inútil e nulo.
Eis do que Rostoptchine se dava conta e era isso que o exasperava.
O chefe da polícia, aquele mesmo que fora detido pela turba, apresentou-se ao
conde, acompanhado do ajudante-de-campo que vinha anunciar estarem prontos
os cavalos. Ambos tinliam perdido a cor, e o chefe da polícia, ao dar contas da sua
missão, anunciou que uma turba imensa invadira o pátio do palácio e queria ver o
governador.
Rostoptchine, sem proferir palavra, levantou-se e, em passos rápidos, dirigiu-se
para a varanda, deitando a mão ao fecho da janela. Depois desistiu de a abrir e
aproximou-se de outra janela donde se via melhor o ajuntamento. Na primeira fila
lá estava o operário alto, que continuava a perorar, muito grave, gesticulando. A
seu lado via-se o serralheiro, taciturno, de cara ensanguentada. Pelas janelasabertas penetrava o rumor das vozes.
— Está pronta a carruagem? — perguntou Rostoptchine, afastando-se da
janela.
— Saiba, Vossa Excelência que sim — disse o ajudante-de-campo. E
Rostoptchine aproximou-se outra vez da janela.
— Que querem eles? — inquiriu do chefe da polícia. — Excelência, dizem que
estão na disposição de marchar contra os Franceses, de acordo com as ordens de
Vossa Excelência. Dizem que foram atraiçoados. São uns desordeiros, Excelência.
Custou ver-me livre deles. Excelência, tomo a liberdade de lhe propor...
— Pode, retirar-se, sei muito bem o que tenho a fazer — exclamou
Rostoptchine, furioso.
Pôs-se por detrás das portas da varanda a observar a multidão, «Eis aqui o que
fizeram da Rússia! Aqui está como me tratam», dizia de si para consigo, sentindo
que lhe subia, do fundo da alma uma ira incontida contra aqueles a quem devia
saber a responsabilidade de tudo que estava a acontecer. Como costuma suceder
muitas vezes com os homens impulsivos, o conde não podia dominar a cólera que o
tomava, embora procurasse ainda sobre quem lançá-la. «Lá está ela, a populaça, a
ralé, a plebe, que eles sublevaram pela sua estupidez. Precisam de uma vítima«,
pensava ele, olhando para o operário que fazia, grandes gestos. E ao mesmo
tempo ocorreu-lhe que também ele precí-av2 de uma vítima, fosse quem fosse,
sobre quem descarregar aquela ira.
— Está pronta a minha carruagem? — repetiu.
— Saiba Vossa Excelência que sim. Que ordena a respeito de Verechtchaguine?
Está ali no alpendre à espera — disse o ajudante-de-campo.
— Ah! — exclamou Rostoptchine, como se tivesse uma ideia súbita. E, abrindo
bruscamente a janela, caminhou resoluto varanda fora. O burburinho cessou
repentinamente, as cabeças descobriram-se e, todos os olhos se dirigiram para o
conde.
— Bons dias, rapazes! — disse, rápido, e em voz alta. — Obrigado por terdes
vindo. Vou já ao vosso encontro, mas antes temos de regular as nossas contas com
um malfeitor. Temos de castigar o bandido que foi o culpado da perda de Moscovo.
Esperem!
O conde entrou rapidamente nos seus aposentos, batendo com janela.
Um murmúrio de satisfação percorreu a turba. «Vais ver como ele dá conta detodos esses bandidos. E tu a dizeres que eram uns franceses... Vai metê-los todos
na ordem!», dizia aquela gente, como se se acusassem uns aos outros de falta de
fé.
Alguns minutos depois um oficial apareceu, bruscamente, à porta, principal,
deu uma ordem qualquer, e os dragões puseram-se em marcha. A multidão
acorreu, ávida, para o lado do alpendre. Nesse momento chegava Rostoptchine,
em passo rápido, e, iracundo, pôs-se a olhar à sua roda, como se procurasse
alguém.
— Onde está ele? — interrogou.
Enquanto pronunciava estas palavras, viu surgir, do cunhal do edifício, entre
dois dragões, um homem novo, de pescoço comprido e fino, a cabeça, meio
tosqueada, os cabelos hirsutos. Vestia uma velha peliça de raposa, por certo
elegante outrora, mas agora forrada de pano azul, e umas calças de penitenciário,
sujas, de linho, metidas nos canos de umas botas finas, por engraxar, e todas
esbeiçadas. Das pernas delgadas e débeis pendiam pesadas correntes, que lhe
embaraçavam o andar titubeante.
— Ah! — exclamou Rostoptchine, afastando o olhar do rapaz e pousando a
vista no último degrau da escada do alpendre. — Tragam-no aqui!
O preso, arrastando as correntes, foi colocar-se, pesadamente, no local
designado, metendo o dedo na gola da peliça, que o estava a afogar. Em seguida,
depois de retorcer duas ou três vezes o longo pescoço, despedindo um suspiro,
cruzou sobre o peito, resignadamente, umas mãos finas que nada tinham das de
um operário.
Enquanto esta curta cena se desenrolava, o silêncio era absoluto, excepto rias
últimas filas da turba, que se comprimia para —, aproximar, e aí ouviam-se tosses,
lamentos, arrastar de pés e encontrões.
Rostoptchine, que aguardava que o homem fosse posto em evidência, passou a
mão pela cara.
— Rapazes! — disse, numa voz metálica. — Este homem, Verechtchaguine, é o
miserável culpado da perda de Moscovo.
O moço conservava-se na sua humilde atitude, de mãos cruzadas e o busto
ligeiramente inclinado. A cara, desfigurada pela cabeça rapada, os traços
arrepanhados de desespero, pendia-lhe para o chão.
Ao ouvir as primeiras palavras do conde endireitou-se, lentamente, e ergueuos olhos para ele, como se quisesse dizer qualquer coisa ou pelo menos encontrar o
seu olhar. Mas Rostoptchine não olhava para ele. Então, no longo e delicado
pescoço do acusado, uma veia dilatou-se como se fosse uma corda, fez-se-lhe muito
azul ao pé da orelha e de repente toda a cara se lhe afogueou. Todos os olhares
estavam fitos nele. Olhou para a multidão e, como que encorajado pela expressão
que surpreendeu em todos os rostos, sorriu, triste e timidamente, e, baixando de
novo a cabeça, procurou equilibrar-se melhor no degrau do alpendre,
— Atraiçoou o seu czar e a Pátria, vendeu-se a Bonaparte, de todos nós foi o
único que desonrou o nome russo e é por causa dele que Moscovo está perdida —
disse Rostoptchine, numa voz brusca e uniforme. E, de súbito, baixou os olhos para
a vítima, que continuava na sua humilde postura. Como se aquela presença o
fizesse perder a cabeça, levantou o braço e gritou quase, voltando-se para a
multidão:
— Entrego-o nas vossas mãos. Justiça seja feita!
O povo continuava calado, comprimindo-se cada vez mais. No meio daquela
massa compacta o ar, viciado, tornava-se irrespirável. Era impossível fazer
qualquer movimento e toda a gente se sentia opressa pela expectativa de um
acontecimento desconhecido, incompreensível e terrível, Os que estavam nas
primeiras filas, que viam e ouviam tudo, permaneciam imóveis, de olhos
esbugalhados e a boca abe-ta, aguentando, com todas as suas forças, a pressão
que vinha da retaguarda.
— Matem-no!... Que morra esse traidor e não desonre mais o nome russo! —
gritou Rostoptchine. — Acutilem-no! Sou eu quem manda.
A multidão, sem apreender o sentido das palavras, mas arrastada pelo tom
colérico do governador, soltou como que um gemido, avançou um pouco e voltou a
recuar.
— Conde... — articulou Verechtchaguine, aproveitando aquela breve acalmia,
numa voz tímida, mas ao mesmo tempo teatral. Conde, só Deus é juiz... — Ergueu
a cabeça ao pronunciar estas palavras, e a grossa veia, visível no seu delicado
pescoço, injectou-se-lhe de sangue. O rosto coloriu-se-lhe de repente para no
mesmo momento perder a cor.
Não pôde concluir o que queria dizer.
— Acutilem-no! Ordeno!... — vociferou Rostoptchine, de repente tão pálido
como Verechtchaguine.— Desembainhar espadas! — gritou o oficial aos dragões, ao mesmo tempo
que desembainhava a sua.
Outro impulso, ainda mais forte do que o primeiro, agitou a multidão, e,
embatendo contra os da primeira fila, precipitou-os para a frente, empurrando-os
até aos degraus do alpendre, O moço operário, cujo rosto dir-se-ia petrificado, o
braço sempre erguido, achou-se ao lado de Rostoptchine.
— Acutilem-no! — ordenou o oficial numa voz quase indistinta.
Um dos soldados, a máscara transtornada pela ira, deixou cair a lâmina da
espada na cabeça de Verechtchaguine.
— Ah! — gemeu o desgraçado, surpreendido com o súbito golpe, os olhos
dilatados de espanto, sem compreender o que estava a passar-se. Um gemido de
surpresa e horror, igual ao de Vereclitchaguine, percorreu a multidão:
— Oh!, meu Deus! — exclamou alguém.
Desditosamente, a vítima, depois da exclamação de surpresa, soltou um grito
de dor, e foi esse grito que a perdeu. De súbito quebrou-se o freio da compaixão
humana que se mantivera tenso até ao último grau, contendo a turba. O crime
principiara e tinha de ir até ao fim.
Um urro terrível e furioso abafou o gemido do desgraçado. Uma vaga, a sétima
e derradeira vaga que submerge um navio, cresceu das últimas filas, derrubou as
da vanguarda e arrasou tudo. O dragão que dera a espadeirada quis vibrar-lhe
outro golpe, mas Verechtchaguine, com um grito de horror, procurando proteger-
se com as mãos, atirou-se sobre a populaça. Tropeçou de encontro ao rapaz alto,
que o agarrou pela gola, enterrando-lhe as unhas no pescoço, enquanto despedia
um grito selvagem, e os dois rolaram aos pés da turba, que se lançou sobre eles.
Uns agrediam Vereclitchaguine, outros o agressor. Os gritos dos que se
sentiam esmagados e daqueles que procuravam salvar o rapaz alto caído por terra
ainda exasperavam mais o furor da multidão. Por muito tempo não puderam os
dragões libertar o operário coberto de sangue e semimorto, e os homens que
queriam dar por finda a obra principiada, os que espancavam, acutilavam,
afogavam, trucidavam Verechtchaguine, esses, não conseguiam acabar a sua
vítima. A multidão comprimia-os de todos os lados. Apanhados no meio da turba,
ora eram arrastados para a direita ora para a esquerda, sem poderem vibrar-lhe o
golpe de misericórdia nem tão-pouco o poderem abandonar.
«Um machado para acabar com ele! — Afogaram-no?... Traidor! VendeuCristo!... E ainda está vivo... Tem sete fôlegos!... Tem o que merece, ladrão!...
Uma machadada! Ainda está vivo?»
Só quando a vítima deixou de se debater e aos gritos sucedeu um estertor
prolongado a turba começou a abrir alas diante do cadáver estendido no chão,
coberto de sangue. Todos se aproximavam, e ao verem o que tinham feito
afastavam-se ao mesmo tempo horrorizados e estupefactos.
«Oh! Meu Deus! Que animal feroz é o povo! Como havia ele de escapar?»,
diziam uns.
«Tão novo!... Naturalmente era filho de um comerciante. Ah!, o povo... Dizem
que não foi ele... Sim, não era ele o culpado... Oh, meu Deus! Parece que não foi
ele que mataram. Dizem que ainda está vivo... Ah! Que mundo!... Não temem o
castigo», comentavam os mesmos, olhando, com uma expressão repassada de
piedade, o cadáver de rosto azulado, coberto de sangue e de pó, com o longo
pescoço todo retalhado.
Um polícia zeloso, julgando não ser decente deixar aquele corpo no pátio de
Sua Excelência, deu ordem aos dragões para o arrastarem para a rua. Dois
soldados pegaram nas pernas partidas e puxaram o corpo. A cabeça rapada da
vítima, sangrando, mascarrada de poeira, o longo pescoço tombado, levada de
rastos, pulava pelo chão. A turba afastava-se do cadáver.
Na altura em que Vereclitchaguine caíra ao chão e todos em cima dele,
Rostoptchine, que empalidecera de repente, em lugar de se encaminhar para a
escada de serviço, onde o aguardavam os seus cavalos, sem que ele próprio
soubesse porquê, de cabeça baixa e precipitadamente, dirigiu-se, ao longo do
corredor, para as habitações do rés-do-chão. Lívido, a maxila inferior tremia-lhe
nervosamente, como se um febrão o sacudisse.
— Excelência, por aqui... Onde vai?... Por aqui, se faz favor — disse uma voz
trémula e assustada.
Não estava em condições de poder responder, e, dando meia volta,
docilmente, tomou o caminho que lhe indicavam. Diante da escada de serviço
estacionava a sege. O ulular distante da multidão ouvia-se ali. Rostoptchine deu-se
pressa em subir para, a carruagem, mandando seguir para a sua vivenda de
Sokolniki.
Ao chegar à Rua Miasnitskaia, como já não ouvisse o clamor, lamentou ter
deixado transparecer fraqueza. Contrariava-o a ideia de que os subordinadostivessem sido testemunhas da emoção e do susto que tivera. «A populaça é
terrível, é repulsiva», dizia de si para consigo. «São como os lobos, que só com
carne se saciam.» «Conde, só Deus é juiz!» De súbito ressoaram-lhe ao ouvido
estas palavras de Verechtchaguine, e um arrepio de gelo lhe arrepanhou a
espinha. Foi momentânea, porém, esta impressão. Logo teve um sorriso de
desdém. «Eu tinha outros deveres a cumprir», disse com os seus botões. «Era
preciso apaziguar o povo. Muitas outras vítimas morreram e morrerão pelo bem
público.» E pôs-se a pensar nas suas obrigações para com a família, para com a
capital que lhe havia sido confiada e para consigo próprio, não para com Fedor
Vassilievitch Rostoptchine, o qual, pensava, devia ser sacrificado ao bem público,
mas para com o governador da cidade, o representante do Poder, o delegado do
czar. «Se eu fosse apenas um Fedor Vassilievitch qualquer, a minha linha de
conduta seria outra, mas eu tinha de salvaguardar a vida e a dignidade do
governador.»
Embalado suavemente pelas molas da carruagem e não ouvindo já os gritos
medonhos da multidão, sentia uma grande tranquilidade física, e como sempre
acontece, ao mesmo tempo que sossegava fisicamente, o espírito ia-lhe
proporcionando argumentos conducentes à tranquilidade da alma. Esses
argumentos nada tinham de novo. Desde que o mundo é mundo e os homens se
matam uns aos outros, que ninguém cometeu qualquer crime para com o
semelhante sem tratar de apaziguar a consciência apelando para aquilo a que se
chama o bem público, aquilo que se supõe o bem dos outros.
Aos olhos do homem a quem a paixão não cega, tal bem não é coisa tão clara,
mas aquele que acaba de cometer um crime, esse, sabe sempre em que ele
consiste. Rostoptchine estava nessas condições.
Não só não se acusava do acto que cometera, como, nos seus raciocínios, esse
acto lhe proporcionava motivos de satisfação por ter sabido agir como devia, por
ter punido um criminoso ao mesmo tempo que aplacava a população.
«Verechtchaguine fora julgado e condenado à morte», raciocinava ele,
«embora o Senado apenas o houvesse condenado a trabalhos forçados. Era um
velhaco e um traidor. Eu não podia deixá-lo impune e desta sorte mato dois
coelhos de uma cajadada; dei uma vítima ao povo, para o acalmar, e puni um
criminoso.»
Chegado que foi à sua casa de campo, e depois de ter dado as ordensnecessárias para a instalação, tranquilizou-se por completo.
Meia hora mais tarde atravessava ele, ao trote de fogosos cavalos, os campos
de Sokolniki, esquecido de todo do que se passara, o futuro aberto diante de si.
Dirigia-se à ponte de Iauza. Onde estava Kutuzov, como lhe tinham dito.
Preparava, mentalmente, as amargas e acerbas censuras que iria dirigir ao
Sereníssimo por virtude da sua deslealdade. Faria compreender àquela raposa da
corte que a responsabilidade de todas as desgraças causadoras do abandono da
capital e do que ele entendia a perda do país se devia inteiramente à sua relha
cabeça de velho maluco. Pensando no que lhe iria dizer, mexia-se e remexia-se
sobre as almofadas da carruagem, ao mesmo tempo que relanceava olhares
furibundos à esquerda e à direita.
Os campos de Sokolniki estavam desertos. Apenas lá longe, junto do hospital e
do manicómio, se viam pessoas vestidas de branco e alguns indivíduos isolados que
pareciam seguir campos fora gesticulando e gritando.
Um destes deitou a correr para cortar o passo à carruagem de Rostoptchine.
Este, o cocheiro e os dragões da escolta olhavam, num misto de curiosidade e
horror, aqueles loucos em liberdade, especialmente o que corria para eles.
Cambaleando no alto das suas magras pernas, as abas do roupão a dar a dar, o
louco corria a bom correr, sem apartar os olhos de Rostoptchine: gritava-lhe fosse
o que fosse, em voz rouca, e gesticulava para que a carruagem parasse, A barba
do louco eriçava-se aqui e ali em tufos irregulares e o seu rosto taciturno e grave
era amarelo e descarnado. As pupilas, negras de azeviche, no meio da córnea
amarelo— açafrão, erravam inquietas.
«Alto! Alto! Não ouves?», gritava em voz estentórea e, retomando fôlego, o
louco proferia ameaças, acompanhadas de grandes gestos.
Alcançara a carruagem e corria ao lado dela.
«Mataram-me três vezes, três vezes ressuscitei de entre os mortos.
Lapidaram-me, crucificaram-me... Ressuscitarei... Ressuscitarei... Rasgaram-me o
corpo. O reino de Deus cairá por terra... Por três vezes o destruirei e por três
vezes o restaura— rei!», gritava numa voz cada vez mais aguda.
Rostoptchine empalideceu subitamente como empalidecera no momento em
que a turba se lançara sobre Verechtchaguine. Desviou o rosto.
— Anda, depressa! — gritou para o cocheiro, em voz trémula.
A carruagem rodou a toda a velocidade, mas por muito tempo ainda, lá para aretaguarda, ficaram a ouvir-se os gritos desesperados do louco, cada vez mais
longe, e diante dos olhos de Rostoptchine levantava-se, solitário, o rosto
ensanguentado do traidor, com a sua peliça de pele, cheio de espanto e de medo...
Ainda que esta imagem fosse recente, ele sentia agora quão fundo ela lhe
estava gravada no espírito. Percebia que aquele rasto de sangue não mais se lhe
apagaria da memória. Antes, pelo contrário, se iria tornando mais e mais vivo,
mais e mais cruel e doloroso, e que aquela tremenda recordação o iria perseguir
até ao último dos seus dias. As suas palavras: «Entrego-o nas vossas mãos. Justiça
seja feita!», ainda lhe ecoavam nos ouvidos. «Porque pronunciei eu estas
palavras? Não prestei atenção ao que disse. Podia não as ter dito», pensava, «e
então nada se teria passado do que se passou.» Revia o rosto, de princípio
assustado, depois transfigurado de ira, do dragão que desferira o primeiro golpe e
o olhar de silenciosa e humilde censura que lhe lançara o moço da peliça de
raposa. «Mas não foi por mim que o fiz. Tinha de agir assim. A plebe, o traidor... o
bem público...»
As tropas continuavam a comprimir-se na ponte de Iauza. Fazia muito calor.
Kutuzov, carrancudo e triste, sentado num banco junto da ponte, entretinha-se a
riscar a areia com o pingalim quando uma sege se aproximou com grande fragor.
Um homem fardado de general e de chapéu de plumas aproximou-se dele ao
mesmo tempo iracundo e assustado e pronunciou algumas palavras em francês.
Era o conde Rostoptchine. Disse-lhe que vinha procurá-lo, porque já não existiam
nem Moscovo nem capital e agora apenas restava o exército.
— Teria sido muito diferente, se Vossa Excelência não tivesse dito que não
entregaria Moscovo sem combate. Nada disto tinha acontecido — acrescentou.
Kutuzov olhava para Rostoptchine como se não compreendesse o significado
das suas palavras, fazendo esforços para ler na fisionomia do interlocutor. Este,
perturbado, calou-se. O general-chefe abanou ligeiramente a cabeça e, sem
desviar do conde o olhar perscrutador, disse tranquilamente:
— Não, não entregarei Moscovo sem combate.
Pensaria Kutuzov noutra coisa ao pronunciar estas palavras ou tê-las-ia dito
propositadamente, sabendo que não tinham o mais pequeno sentido? O certo é
que Rostoptchine não respondeu e afastou-se precipitadamente. E, coisa estranha,
o todo-poderoso governador de Moscovo, o orgulhoso Rostoptchine, pegou no
pingalim, aproximou-se da ponte e em altos berros pôs-se a dispersar os carros quese aglomeravam aí.
[XXVI]
Às quatro horas da tarde, as tropas de Murat entraram em Moscovo. Na
vanguarda marchava o destacamento dos hússares de Wurtemberg, e atrás, a
cavalo, seguido de numerosa escolta, vinha o rei de Nápoles em pessoa.
A meio da Rua Arbate, nas imediações da Igreja de S. Nicolau. Murat mandou
fazer alto para aguardar notícias da vanguarda a respeito da situação da fortaleza
conhecida pelo nome de «Kremlin».
Em volta de Murat juntou-se um pequeno grupo de moscovitas que haviam
ficado na capital. Todos contemplavam com tímida estupefacção esse general
estrangeiro, de longa cabeleira, agaloado a ouro e cheio de plumas policromas.
— Olha lá, será o rei deles? Não está mal! — ouvia-se dizer em voz baixa.
Um intérprete aproximou-se do grupo.
— Tirem o chapéu... tirem o chapéu — disseram uns para os outros.
O intérprete dirigiu-se a um velho porteiro e perguntou-lhe se o Kremlin ainda
ficava muito longe. Surpreendido e confuso ao ouvir o sotaque polaco do
desconhecido e não percebendo ser russo o que ele falava, o porteiro, sem
compreender a pergunta, escondeu-se atrás dos outros.
Murat aproximou-se do intérprete e disse-lhe que perguntasse onde estavam
as tropas russas, um dos russos presentes compreendeu a pergunta e várias vozes
responderam ao mesmo tempo. Um oficial do destacamento da vanguarda
apresentou-se então e explicou a Murat que as portas da fortaleza estavam
fechadas e que naturalmente havia ali uma emboscada.
— Está bem — disse Murat.
E, voltando-se para uma das personagens da escolta, deu instruções para que
quatro peças ligeiras fossem mandadas avançar e se disparasse contra as portas
da fortaleza.
Uma bateria destacou-se da coluna que vinha atrás e trotou Rua de Arbate
além. Quando chegou ao cabo da Rua Vozdvijenka parou e tomou posições na
praça. Vários oficiais franceses apontaram os canhões e puseram-se a observar oKremlin com os seus óculos de alcance.
Os sinos do Kremlin tocaram a vésperas e o seu repique perturbou os
Franceses. Julgaram um toque a rebate. Vários soldados de infantaria correram
direitos à porta de Kutafiev, barricada com vigas e trancas. Dois tiros se ouviram
no momento em que o oficial, com o seu destacamento, chegou junto da fortaleza.
O general que estava junto das peças de artilharia gritou uma ordem e o
oficial e os soldados retrocederam.
Ouviram-se ainda mais três descargas por trás da barricada.
Instantaneamente, nos rostos do general, do oficial e dos soldados, até aí alegres,
urgiu a expressão voluntária e concentrada de homens prontos a lutar e a morrer.
Todos eles, do marechal ao soldado raso, compreenderam que não tinham diante
de si a Rua Vozdvijenka ou Mokovai, a porta Kutafiev ou da Trindade, mas um
novo campo de batalha onde era preciso lutar e arriscar a pele. E todos se
preparavam para a batalha. Os gritos atrás da porta haviam serenado. As peças
foram apontadas.
Os artilheiros acenderam as mechas. O oficial gritou «Fogo!» e dois silvos
ressoaram um atrás do outro. A metralha foi incrustar-se na alvenaria da porta,
nas vigas e nas trancas e duas nuvens de fumo se ergueram por cima da praça.
Alguns momentos depois de ter ressoado o fragor da descarga, um ruído
estranho se ouviu por cima da cabeça dos franceses. Um grande bando de corvos
erguera-se das muralhas e ficara a esvoaçar no céu, crucitando e batendo as asas.
Ao mesmo tempo um grito humano isolado ressoou por detrás da barricada e no
meio do fumo apareceu a silhueta de um homem de cabeça descoberta e cafetã.
De espingarda na mão, apontava a arma aos franceses.
«Fogo», gritou pela segunda vez o oficial, e ao mesmo tempo ouviram-se um
tiro de espingarda e duas detonações de artilharia. A porta voltou a desaparecer
no meio da fumarada.
Por detrás das trancas nada mais se mexeu e os soldados franceses com os seus
oficiais aproximaram-se. Junto da porta, estendidos, estavam três feridos e quatro
mortos. Dois homens de cafetã fugiam correndo ao longo das muralhas em
direcção da Rua Znamenka.
— Tirem isto — disse o oficial apontando para a barricada e para os cadáveres,
e os franceses, depois de aplicarem aos feridos o golpe de morte, atiraram os
corpos por cima do muro.Quem eram os defensores do Kremlin? Nunca ninguém o soube. «Tirem isto»:
eis tudo quanto se disse deles, E levaram-nos dali apenas para que eles não
empestassem o lugar. Só Thiers lhes consagrou algumas linhas eloquentes: «Esses
miseráveis tinham invadido a cidadela sagrada, tinham-se apoderado das
espingardas do arsenal e disparavam contra os franceses. Espadeiraram-se uns e
purgou-se o Kremlin da sua presença.»
Vieram anunciar a Murat que o caminho estava livre. Os Franceses
franquearam as portas e começaram a instalar o acampamento na Praça do
Senado. Para acenderem as fogueiras, os soldados subiram ao palácio e atiraram
pelas janelas as cadeiras de que precisavam.
Alguns destacamentos atravessaram igualmente o Kremlin e foram acantonar
nas Ruas de Marosseika, Lubianka e Prokovka, outros ainda acamparam nas Ruas
Vozdvijenka, Znamenka, Nikolska e Tverskaia. Em vez de se alojarem nas casas,
como era costume nas cidades, os Franceses, ao verificarem a ausência dos
habitantes, instalaram-se, como no campo de batalha, em plena rua.
Embora esfarrapadas, esfomeadas, extenuadas e reduzidas a metade dos seus
efectivos, as tropas francesas nem por isso deixaram de entrar em Moscovo
devidamente ordenadas. Era um exército esgotado e destroçado, mas ainda
combativo e de temer. No entanto apenas se conservou exército até ao momento
em que os soldados se dispersaram pelas casas da cidade. Desde que eles se viram
instalados em todas essas casas ricas e desertas, o exército desapareceu para
sempre, transformando-se num amálgama nem de civis nem de militares, num
bando de bandidos. Quando, cinco semanas mais tarde, deixaram Moscovo, as
tropas regulares tinham desaparecido por completo. Eram apenas um bando de
salteadores levando consigo um nunca acabar de coisas que entendia
indispensáveis e preciosas. Não pensavam mais na guerra, só cuidavam em
conservar o produto das pilhagens. Tal como o macaco que tendo metido a mão na
estreita boca de uma jarra para apanhar um punhado de nozes não a quer abrir
para não deixar o que apanhou, e assim se perde, os Franceses, ao abandonarem
Moscovo, tinham fatalmente de se perder, pois levavam consigo o produto dos
seus roubos, não podendo, como o macaco, abandonar a presa. Dez minutos depois
da ocupação por um regimento francês de qualquer bairro da cidade já não era
possível distinguir os oficiais dos soldados. Através das janelas viam-se homens de
capote e polainas, rindo e girando pelos quartos; nas caves e nos sótãosabasteciam-se de provisões; nos pátios abriam as portas dos armazéns e das
cavalariças: nas cozinhas acendiam as lareiras e faziam o rancho, de mangas
arregaçadas, assustando e fazendo rir mulheres e crianças. Eram muitos os homens
nas lojas e nas casas: exército, porém, era coisa que já não existia.
Naquele mesmo dia circularam ordens sobre ordens, emanadas dos
comandantes, para que os soldados fossem impedidos de circular na cidade, para
que fossem proibidos os saques e as violênci4s, e determinando que houvesse à
noite chamada geral. No entanto, apesar das medidas tomadas, os homens que
ainda na véspera formavam o exército espalhavam-se por toda a cidade
confortável e vazia, onde abundavam as provisões. Como um rebanho faminto que
avança, comprimido, ao longo de um campo de escassa pastagem espalhando-se
logo que chega a uma farta pradaria, assim se dispersava o exército francês
através daquela opulenta cidade.
Como dos habitantes poucos estavam, os soldados, à semelhança da água num
areal, infiltravam-se por toda a parte e irradiavam por todos os lados a partir do
Kremlin, o primeiro lugar onde haviam penetrado. Soldados de cavalaria que
penetrassem numa casa abandonada com tudo que era preciso e até cavalariças
com lugar de sobra para as montadas, nem por isso deixavam de se mudar para a
casa vizinha que se lhes afigurasse preferível. Muitos ocupavam várias casas,
riscando-as a giz, batendo-se com homens de outros destacamentos para lhes
disputarem a propriedade. Antes mesmo de se instalarem em qualquer lado, havia
soldados que percorriam as ruas, e ao verificarem que tudo estava abandonado
introduziam-se onde pudessem pilhar objectos de valor. Os chefes encarregados de
prender os que se dedicavam à pilhagem acabavam por se entregar à prática dos
mesmos actos.
No Mercado Karetnii ainda havia estabelecimentos cheios de carruagens de,
todo o género: os generais juntavam-se para escolherem aí seges e carros para
seu uso. Os habitantes que haviam ficado na cidade convidavam os oficiais
superiores a instalar-se em suas casas na esperança de assim impedirem que elas
fossem saqueadas. Tantas eram as riquezas que dir-se-ia não terem fim. Por toda a
parte, em torno dos locais ocupados pelos Franceses, havia outros, ainda não
ocupados, em que eles julgavam vir a encontrar mais riquezas. E Moscovo ia-os
absorvendo pouco a pouco. Assim como quando se deita água numa terra seca
desaparecem a terra seca e a água, assim aquele exército esfomeado, uma veznaquela cidade opulenta, mas deserta, foi desaparecendo ao mesmo tempo que a
própria cidade: resultado, muita lama, incêndios e saques por toda a parte.
Os Franceses atribuem o incêndio de Moscovo ao patriotismo feroz de
Rostoptchine, os Russos, ao fanatismo dos Franceses. Moscovo ardeu por se
encontrar nas mesmas condições de qualquer cidade de madeira,
independentemente das suas cento e trinta. — Más bombas de incêndio. Moscovo
tinha de arder, porque os seus habitantes a haviam deixado; o que era tão
inevitável como arder o monte de aparas em que vão caindo fagulhas dia após dia.
Uma cidade de madeira onde, mesmo com a presença dos habitantes e da polícia,
quase todos os dias se registam incêndios, não pode deixar de arder se os
proprietários das casas estão ausentes e se por toda a parte há soldados de
cachimbo aceso e fogueiras em que preparam o rancho duas vezes por dia, em
plena Praça do Senado, atiçando o lume com as cadeiras dos palácios
circunvizinhos. Em tempo de paz, basta que as tropas se alojem’ numa aldeia para
que os incêndios aumentem imediatamente. Como não hão-de aumentar as
probabilidades de fogo numa cidade abandonada, construída de madeira, em que
acampou um exército estrangeiro? Nem o patriotismo feroz de Rostoptchine nem o
fanatismo dos Franceses tiveram que ver com o incêndio de Moscovo. A cidade
ardeu por causa dos cachimbos, das cozinhas, dos acampamentos e da negligência
dos soldados inimigos, instalados nas casas, mas não seus proprietários.
Se realmente houve incendiários, o que parece duvidoso, pois não se percebe
qual o motivo de uma coisa dessas, além de que seria expor-se quem o fizesse a um
perigo que a todos ameaçava, não vale a pena atribuir-se-lhes essa
responsabilidade porque sem a sua intervenção o resultado teria sido
praticamente o mesmo.
Por muito que agrade aos Franceses acusar Rostoptchine de ferocidade e aos
Russos dizerem que Bonaparte era um malfeitor, ou colocarem nas mãos de seus
compatriotas um archote heróico, é impossível admitir uma causa directa da
catástrofe já que Moscovo tinha de arder, como arderia igualmente qualquer
aldeia, qualquer fábrica, qualquer casa cujos proprietários se ausentassem e em
que se consentisse que estranhos se instalassem para comer e dormir. Moscovo foi
incendiada pelos seus habitantes, é um facto, mas não pelos habitantes que lá
ficaram, antes por culpa daqueles que partiram. Invadida pelo inimigo, Moscovonão ficou intacta como Berlim, Viena e outras capitais pela simples razão de que os
seus habitantes não vieram oferecer pão e sal aos Franceses nem lhes depuseram
nas mãos a chave da cidade, preferindo, pelo contrário, abandoná-la.
[XXVII]
A dispersão das tropas francesas pela cidade só na noite desse dia 2 de
Setembro atingiu o bairro onde vivia Pedro.
Depois de dois dias em absoluto isolamento e passados de maneira
extraordinária, Pedro encontrava-se à beira da loucura. Uma ideia fixa se havia
apoderado de todo o seu ser. Nem ele mesmo sabia como isso pudera acontecer,
mas a verdade é que essa ideia se apoderara dele de tal modo que não se
recordava do passado nem compreendia o presente: tudo quanto via e ouvia se
lhe afigurava um sonho.
Deixara a sua casa apenas para evitar as complicações da sua vida que no
estado de espírito em que se encontrava não era capaz de resolver. Fora a casa de
Osip Alexeievitch a pretexto de seleccionar os livros e os papéis do defunto,
embora o fizesse na esperança de encontrar a tranquilidade e porque a lembrança
daquele homem andava ligada no seu pensamento a um mundo de paz e de ideias
etcrnas e superiores bem diferente de toda aquela confusão para que se sentia
fatalmente arrastado. Procurava um refúgio tranquilo e foi encontrá-lo, de facto,
em casa de Osip Alexeievitch. Quando, no mortal silêncio do gabinete, se encostou
à poeirenta mesa de trabalho do defunto, vieram-lhe à memória, com toda a
nitidez, as impressões que colhera naqueles últimos dias, especialmente as da
batalha de Borodino, e então sentiu, numa irresistível evidência, toda a
insignificância e toda a mentira que nele se encarnavam em comparação com a
verdade, a simplicidade, a força daquela espécie de pessoas no seu espírito
catalogadas sob o nome genérico de «eles». No momento em que Guerassime o
veio arrancar à sua meditação estava ele decidido a tomar parte, ao lado do povo,
na projectada defesa de Moscovo. E nessa intenção pedira a este criado que lhe
arranjasse um cafetã e uma pistola, confessando-lhe estar resolvido a ficar
escondido ali mesmo, em casa de Osip Alexeievitch. Durante o primeiro diapassado naquela solitária inacção e de— pois de tentar, debalde, concentrar-se
nos manuscritos maçónicos, por vezes e confusamente lhe viera ao espírito o
Significado cabalístico do seu nome relacionado com o de Bonaparte, de acordo
com a conclusão a que chegara. No entanto esta ideia, a ideia de que ele, le Russe
Bésuhof, estava predestinado a pôr termo ao reino da besta, não se lhe
apresentara ainda senão como uma dessas vagas congeminações que atravessam
o espírito sem nele deixar qualquer rasto profundo.
Só depois de adquirir o cafetã, aliás apenas na intenção de participar na defesa
da cidade, e de encontrar os Rostov e Natacha, que lhe dissera: «Fica? Ah!, que
bom que deve ser!», só depois disso lhe ocorreu que seria realmente bom, mesmo
que Moscovo viesse a ser tomada, ficar na cidade e cumprir o que estava
determinado.
No dia seguinte, movido pela ideia de se não poupar a si próprio para se
mostrar digno «deles», dirigiu-se à barreira de Tri Gori. E ao voltar dali,
convencido de que Moscovo não seria defendida, bruscamente deu-se conta de que
o que até então lhe Parecera apenas possível se tornava agora uma necessidade
implacável. Ocultando o nome, devia ficar em Moscovo, procurar aproximar-se de
Napoleão, matá-lo, deixando-se matar, pondo assim termo às desgraças que
pesavam sobre a Europa, na sua opinião todas da responsabilidade de tal
monarca.
Pedro conhecia todos os pormenores do atentado de que Napoleão fora vítima
em Viena, em 1809, obra de um estudante alemão, que fora fuzilado. E o perigo a
que se expunha no cumprimento da sua missão ainda o exaltava mais.
Dois sentimentos igualmente fortes arrastavam Pedro ao cumprimento
daquele objectivo: o primeiro era a necessidade de se sacrificar e de sofrer que
nele despertara a desgraça que atingia todos. E esse mesmo sentimento que o
impelira, no dia 25, até Mojaisk, arrastando-o para o fragor da batalha, levava-o
agora a abandonar o seu palácio, o luxo a que estava habituado e o bem-estar que
o rodeava, para viver assim, dormindo vestido e comendo o que comia
Guerassime. O segundo era esse sentimento insensato e intrinsecamente russo
que o levava a desprezar tudo quanto fosse fictício e convencional, tudo isso que a
maioria das pessoas considera a coisa melhor no mundo. A primeira vez que esse
sentimento se lhe revelara fora no Palácio Slobodski e apossara-se dele uma
embriaguez estranha ao compreender, de súbito, que a riqueza, o poderio, aprópria vida, tudo que o homem preserva e guarda cautelosamente, não tem o
mais pequeno valor além da satisfação que dá àquele que dispõe da coragem de
renunciar a isso mesmo. Era um sentimento semelhante àquele que leva o recruta
a beber, beber, até se lhe esgotar o dinheiro e o bêbedo a quebrar vidros e
espelhos sem razão, sabendo que os terá de pagar, um sentimento igual ao do
homem que pratica acções que o senso comum qualifica de loucas, embora em
verdade sejam a revelação de uma visão superior e quase sobre-humana das
coisas da vida.
Desde o dia em que Pedro descobrira em si, pela primeira vez, este
sentimento, passara a estar continuamente sob a sua influência, mas só agora, em
verdade, lhe experimentava a plenitude da satisfação. E o certo é que já não podia
voltar atrás, uma vez chegado onde chegara. A fuga de casa, a compra do cafetã e
da pistola, o ter dito aos Rostov que ficava em Moscovo, tudo isso deixaria de ter
qualquer significado, seria estúpido e ridículo — coisa a que Pedro era muito
sensível —, caso fizesse como os demais abandonando a cidade.
Como sempre acontece, o seu estado físico acompanhava o seu estado moral. A
grosseira cozinha, a vodka que bebera nos últimos dias, o não ter à mão nem o seu
vinho habitual nem os seus charutos, o não poder mudar de roupa, as duas noites
em claro deitado vestido num estreito divã, tudo isto provocava nele lima
excitação muito próxima da loucura.
Eram já duas horas da tarde. Os Franceses estavam em Moscovo. Pedro sabia-
o, mas, em vez de agir, não pensava noutra coisa senão na sua empresa e ia-a
congeminando nos seus mais ínfimos pormenores. Não fazia ideia clara nem de
como realizaria o seu objectivo nem propriamente do facto em si da morte de
Napoleão. Pelo contrário, no que ele pensava com uma clareza extraordinária e
numa espécie de triste deleite era na sua própria morte, na sua própria heróica
valentia.
«Sim, devo fazê-lo por todos ou então morrer!», exclamava para si mesmo.
«Sim, aproximar-me-ei... e de repente... Com uma pistola ou um punhal? Pouco
importa. Não sou eu, dir-lhe-ei, não sou eu quem te castiga, mas a mão da
Providência!», acrescentou, pensando nas palavras que pronunciaria na altura em
que desfechasse o golpe mortal. «Bom, agora aqui estou. Prendam-me, conduzam-
me ao suplício!» E baixava a cabeça com uma expressão triste, mas decidida.
Assim discorria quando a porta do gabinete se abriu e no limiar apareceuMakar Alexeievitch, até aí mais tímido que outra coisa, desta vez completamente
transformado. De blusa desabotoada, tinha o rosto afogueado e descomposto. Era
evidente que se embriagara. Ao dar com os olhos em Pedro pareceu confuso, mas,
ao reparar que ele próprio se mostrava perturbado, encheu-se de coragem e
caminhou até meio do gabinete cambaleando.
— Têm medo — exclamou, numa voz rouca, mas decidida. — Cá por mim, não
me rendo... Cá por mim... Não é verdade?
Teve uma hesitação, e de chofre, ao ver a pistola em cima da mesa,
bruscamente pegou nela e precipitou-se no corredor.
Guerassime e o porteiro, que o tinham seguido, deitaram-lhe a mão no
vestíbulo, tentando arrancar-lhe a arma. Pedro, que saíra atrás dele, observava,
num misto de piedade e repulsa, aquele velho meio louco, Makar Alexeievitch, a
máscara crispada pelo esforço, que empunhava a pistola e soltava gritos roucos,
como se inimigos o assaltassem.
— As armas! Às armas! A eles, vamos a eles! Eu te digo, não me escapas!
— Basta! Basta! Tenha a bondade. Então que é isso. — dizia Guerassime,
procurando arrastá-lo para a porta, sem violência.
— Quem és tu? Bonaparte? — vociferava Makar.
— Então? Isso não está certo. Vá para o seu quarto descansar um pouco. Deixe
ver a pistola.
— Para trás, vilanagem! Não me toquem! Estas a ver isto? — prosseguia,
brandindo a arma. — A eles!
— Agarra-o! — disse Guerassime para o porteiro. Pegando-lhe por debaixo dos
braços, acabaram por arrastá-lo para a porta.
No vestíbulo ressoou então um tremendo alarido em que sobressaíam os gritos
roucos e entrecortados do bêbedo.
De súbito, um grito agudo de mulher se ouviu no alpendre e cozinheira
penetrou no vestíbulo,
— Aí estão eles, Pai do Céu!... Juro que são eles! São quatro a cavalo!... —
gritava ela.
Guerassime e o porteiro soltaram Makar Alexeievitch e tio corredor, outra vez
silencioso, ouviram-se, distintamente, pancadas na porta da rua.
[XXVIII]
Pedro, decidido a não desvendar, até ao momento em que visse realizados os
seus projectos, nem a sua identidade nem que falava francês, ficara de pé diante
da porta entreaberta do corredor, pronto a desaparecer logo que visse entrar os
franceses. Quando estes entraram. Pedro não se afastou da porta: uma curiosidade
invencível o retinha ali.
Eram dois: um oficial de grande estatura, aspecto marcial e boa presença, e um
soldado ou impedido, pequeno, delgado, curtido, de faces cavadas e, ar estúpido. O
oficial, apoiado a uma bengala, coxeando, foi o primeiro a entrar. Depois de ter
dado alguns passos, parou: sem dúvida lhe agradava a instalação, e, voltando-se
para os soldados que tinham ficado à porta, gritou-lhes, numa voz tonitruante, de
quem está habituado ao comando, que podiam trazer os cavalos. Feito o que,
cofiando o bigode, num gesto galhardo, e erguendo alto o cotovelo, levou a mão à
pala da barretina.
— Bom dia, gentes — disse em tom jovial, olhando em roda. Ninguém
respondeu à sua saudação.
— Você é o patrão? — continuou ele, dirigindo-se a Guerassime.
Este, sem o perceber, lançou-lhe um olhar assustado.
— Alojamentos, alojamentos — repetia o oficial medindo o homenzinho com
um olhar que vinha lá do alto da sua imensa estatura, protector e compassivo. —
Os Franceses são bons rapazes. Que diabo! Então! Não vale zangarmo-nos, meu
velho. — acrescentou, dando uma palmada familiar no ombro do velho, que
continuava silencioso e aterrado.
— Ora essa! Não pode ser. Então não se fala francês nesta casa? — prosseguiu,
olhando à roda e deparando-se-lhe o olhar de Pedro.
Este afastou-se da porta.
O oficial voltou-se, de novo, para Guerassime. Ordenou-lhe que lhe mostrasse
os quartos.
— O meu amo não está... Eu não compreender... Meu quarto para si... —
acabou por dizer o criado, estropiando as palavras para torná-las mais inteligíveis.
O oficial sorriu, passou a mão pelo nariz de Guerassime, num gesto que
significava nada ter compreendido, e encaminhou-se, coxeando, para onde estavaPedro. Este tentou evitá-lo, mas nessa altura viu Makar Alexeievitch, que
aparecia à porta da cozinha de pistola em punho. Com uma astúcia de demente.
Makar olhou para o francês, ergueu o cano da pistola e apontou-lha.
— A eles! — gritou o bêbedo, carregando no gatilho. Ao ouvir o grito, o oficial
voltou-se enquanto Pedro se lançava sobre Makar. No momento em que Pedro
deitava a mão à arma, conseguiu o bêbedo premir o gatilho e um estampido
ensurdecedor ressoou enchendo a dependência de fumo. O francês, pálido, correu
para a porta.
Pedro, esquecendo-se de que decidira não revelar que sabia francês, arrancou
a pistola das mãos de Makar, atirou-a pelo ar e correu para o oficial, dizendo-lhe
na língua dele:
— Não está ferido?
— Parece-me que não — volveu-lhe este, apalpando o corpo — mas escapei
por pouco desta vez. — E apontou para a arranhadura que a bala fizera na
escaiola da parede. — Quem é aquele homem? — acrescentou, medindo Pedro
com um ar carrancudo.
— Ah! Lamento muito o que acaba de acontecer — deu-se pressa de responder
Pedro, esquecendo por completo o papel que queria representar. — Era um doido,
um desgraçado, que não sabia o que fazia.
O oficial aproximou-se de Makar Alexeievitch e pegou-lhe pela gola da blusa.
O bêbedo, de boca pendente, expressão aparvalhada, cambaleava, apoiando-se
à parede.
— Bandido, hás-de pagar-mas! — vociferou o francês, retirando a mão. — Nós,
os Franceses, somos clementes depois da vitória, mas não perdoamos aos
traidores.— E disse isto num tom entre grave e solene, sublinhando as palavras
com um gesto enérgico e teatral.
Pedro continuou, em francês, a implorar-lhe que se não vingasse daquele pobre
bêbedo meio doido. O oficial ouvia-o, calado, sempre carrancudo, e, de repente,
voltou-se, sorrindo, para onde estava Pedro, Durante algum tempo observou-o
calado, No seu rosto de boa pessoa apareceu uma expressão de uma suavidade em
que havia qualquer coisa de trágico, e estendeu-lhe a mão.
— Salvou-me a vida! É francês! — exclamou ele.
Para um francês não podia haver a mais pequena dúvida: só um francês seria
capaz de praticar uma nobre acção, e salvar a vida a Monsieur Ramballe, capitãodo 13º ligeiro, não podia deixar de ser uma nobre acção.
Entretanto Pedro julgou de seu dever desenganá-lo.
— Sou russo — apressou— se a dizer-lhe.
— Ora, ora, ora, essa para cá não pega — chasqueou, sorrindo, o francês, ao
mesmo tempo que fazia um gesto pleno de incredulidade. — Já me vai contar
tudo. Que prazer encontrar um compatriota. Bom, que vamos fazer deste homem?
— acrescentou, como se se dirigisse, realmente, a um compatriota.
O tom da voz, a expressão do oficial, queriam dizer que mesmo que Pedro não
fosse, realmente, francês, nada tinha a objectar desde que lhe davam esse título, o
mais belo neste mundo. Pedro voltara a explicar como aquele doido, antes de ele
ter aparecido, como aquele bêbedo lhe tirara de cima da mesa a pistola
carregada, que ainda não tivera tempo de lhe apanhar, e de novo voltou a pedir
que não castigasse o desgraçado.
O francês arqueou o peito e fez um gesto verdadeiramente soberano.
— Salvou-me a vida! É francês. Está a pedir-me essa concessão? Concedo-lha.
Levem este homem — articulou, num tom enérgico, e, travando do braço daquele
a quem conferira a dignidade de francês por lhe haver salvo a vida, entrou com ele
em casa.
Os soldados que tinham ficado na rua entraram no vestíbulo quando ouviram a
detonação. Inquirindo do que acontecera, declararam estar prontos a castigar os
culpados, mas o oficial, severo, deteve-os.
— Eu os chamarei, quando precisar de vocês — disse-lhes.
Os soldados retiraram-se e o impedido, que entretanto metera o nariz na
cozinha, aproximou-se do oficial.
— Capitão, eles têm sopa e um assado de carneiro na cozinha — confiou-lhe —
Quer que lho traga?
— Traz. E vinho — replicou o capitão.
[XXIX]
Quando o oficial e Pedro entraram em casa, este entendeu de seu dever
garantir mais uma vez ao companheiro que não era francês, manifestando desejosde se retirar; o oficial, porém, não consentiu. Era tão cortês, tão amável, tão
benevolente e mostrava-se tão reconhecido para com aquele que lhe havia salvo a
vida que Pedro não ousou repelir o convite que lhe dirigia, e instalaram-se os dois
no salão, a primeira dependência onde ambos entravam. Como Pedro teimasse em
afirmar que não era francês, o capitão, incapaz de compreender como se podia
recusar semelhante honra, encolheu os ombros, dizendo que se tão grande era o
seu empenho em fazer-se passar por russo, ele nada teria a objectar, mas que,
fosse como fosse, a ele o ligava um reconhecimento etcrno.
Se este homem fosse capaz de compreender os sentimentos alheios e de
adivinhar os do companheiro, era provável que Pedro se tivesse afastado, mas a
incompreensão que mostrava por tudo que não fosse ele próprio obrigou-o a
ceder.
— Francês ou príncipe russo incógnito — disse o capitão, relanceando os olhos
à roupa branca de Pedro, bastante enxovalhada, mas assaz fina, e ao anel que ele
trazia no dedo. — Devo-lhe a vida e pode contar com a minha amizade. Um francês
nunca esquece nem um insulto nem um serviço. Pode contar com a minha amizade.
Só lhe digo isto.
No seu tom de voz, na expressão do seu rosto, nos seus gestos, havia tanta
bonomia, tanta nobreza, pelo menos do ponto de vista francês, que Pedro,
respondendo, sem dar por isso, com um sorriso ao sorriso do francês, lhe apertou a
mão que este lhe estendera.
— Capitão Ramballe, do 13º ligeiro, condecorado pela acção do dia — anunciou
ele com um sorriso de fatuidade que lhe franziu os lábios debaixo do bigode. —
Poderá dizer-me agora a quem tenho a honra de falar tão agradavelmente em vez
de estar na ambulância com uma bala deste doido no corpo?
Pedro respondeu ser-lhe impossível declinar a sua identidade e, corando, pôs-
se à procura de um nome qualquer e a explicar as razões que o impediam de lhe
dar tal satisfação. O francês interrompeu-o bruscamente.
— Por favor — exclamou. — Compreendo as suas razões, o senhor é oficial...
oficial superior, talvez. Pegou em armas contra nós... Isso não é comigo. Devo-lhe a
vida. Isso me basta. Sou todo vosso. É fidalgo? — Pedro assentiu com a cabeça. —
Qual o seu nome de baptismo, se faz favor? Não preciso mais. Monsieur Pierre, diz
o senhor... Muito bem. É tudo quanto desejo saber.
Serviram o carneiro e uma omeleta, trouxeram o samovar, vodka e vinho deuma adega russa. Ramballe convidou Pedro para o seu jantar e imediatamente se
lançou sobre as vitualhas, como criatura esfaimada e bom garfo que devia ser,
comendo, ávido, mastigando ruidosamente, dando estalos com a língua e
exclamando:
— Excelente! Delicado!
Estava muito corado e o suor repassava-lhe a testa. Pedro, esfomeado
também, com satisfação o acompanhou no jantar. Morel, o impedido, trouxe uma
caçarola de água quente e meteu-lhe dentro uma garrafa de vinho tinto. Em cima
da mesa pôs a botelha de kvass que achara na cozinha, bebida já famosa entre os
Franceses, que lhe chamavam «limonada de porco», e Morel tecia os mais
rasgados elogios à que encontrara. Como o capitão, porém, dispunha de excelente
vinho, arranjado algures, ao atravessar a cidade, deixou que Morel bebesse o
kvass e reservou para si o Bordéus. Amarrando um guardanapo ao gargalo da
garrafa, encheu o seu copo e o de Pedro. Morta a fome e vazia a garrafa, o
capitão, incendiado, pôs-se a falar, a falar.
— Sim, meu caro Monsieur Pierre, contraí para consigo uma grande dívida
salvando-me... das mãos desse louco. Não me faltam balas no corpo, como pode
ver. Aqui tem uma em Wagram — e mostrava uma cicatriz — e duas em Smolensk
— prosseguia apalpando o gilvaz da cara. — E esta perna, como está a ver que
não quer andar. Foi na grande batalha de 7 no Moskova, que eu arranjei isto.
Caramba, era belo! Valia a pena ver aquilo, um dilúvio de fogo. Sempre nos têm
dado uns trabalhos! Podem orgulhar-se disso, cos diabos! E palavra, apesar desta
tosse, estou de novo pronto a recomeçar. Lastimo os que não viram isto.
— Também lá estive. — disse Pedro.
— Quê, fala a sério?! Pois ainda bem — continuou ele. — Seja como for, vocês
são uns inimigos às direitas. O grande reduto foi tenaz, caramba! E fizeram-nos
pagar caro. Fui lá três vezes, aqui onde me vê. Por três vezes estivemos em cima
das peças e por três vezes nos atiraram abaixo como um castelo de cartas. Oh!,
era bonito, Monsieur Pierre. Os vossos granadeiros foram soberbos, com mil
diabos! Seis vezes seguidas os vi cerrar fileiras e marchar como numa parada.
Belos homens! O nosso rei de Nápoles, que sabe disto, gritou: Bravo! Ah! Soldados
como nós! — acrescentou, sorrindo após um silêncio. — Ainda bem, ainda bem,
Monsieur Pierre. Terríveis no combate... galantes com as belas, assim são os
Franceses, não é verdade? — concluiu, por fim, piscando o olho.A alegria do capitão era tão ingénua e confiante, havia nele tanta franqueza e
tanta satisfação própria que Pedro não pôde deixar de lhe responder com outro
piscar de olhos. A palavra galantes levou o oficial a falar de Moscovo.
— A propósito, diga-me cá, é verdade que as mulheres abandonaram todas
Moscovo? Que ideia! Que podiam elas recear?
— Então se os Russos entrassem em Paris as mulheres francesas não
abandonariam a cidade? — inquiriu Pedro.
— Ah! Ah! Ah! Essa é forte! — replicou o francês, rindo a bom rir, enquanto
lhe dava palmadinhas nas costas. — Paris? Mas Paris, Paris...
— Paris, a capital do mundo. — rematou Pedro.
O capitão fitou-o atentamente. Tinha por costume calar-se, assim, no meio de
uma conversa, fixando os olhos risonhos e amáveis no interlocutor.
— Pode crer, se me não dissesse que era russo, ia apostar que era parisiense.
O senhor tem esse não-sei-quê, esse... — E voltou a percorrê-lo com os olhos, sem
dizer palavra.
— Estive em Paris, passei lá alguns anos — replicou Pedro.
— Oh! Isso vê-se logo. Paris!... Um homem que nunca foi a Paris é um
selvagem. Um parisiense sente-se a duas léguas. Paris é Talma, a Duchesnois,
Potier, a Sorbona, as avenidas. — E, notando que o remate não correspondia ao
começo, tratou de acrescentar: — Não há senão um Paris no mundo. O senhor
esteve em Paris e continuou russo. Nem por isso tenho menos estima por si.
Sob a influência do vinho e depois daqueles dias de solidão metido em
sombrios pensamentos, Pedro experimentava, involuntariamente, grande
satisfação em conversar com aquele jovial simpático rapaz.
— Para falarmos outra vez das vossas mulheres: dizem que são bem bonitas.
Que raio de ideia irem enterrar-se na estepe com os Franceses em Moscovo! Não
sabem o que perderam. Os vossos Mujiques ainda se compreende, mas vocês,
pessoas civilizadas, tinham obrigação de nos conhecer melhor. Tomámos Viena,
Berlim, Madrid, Nápoles, Roma, Varsóvia, todas as capitais do mundo... Temem-
nos, mas gostam de nós. Vale a pena conhecer-nos... E depois o imperador... —
principiou ele; Pedro, todavia, interrompeu-o.
— O imperador... — repetiu ele, com um sorriso taciturno e enleado. — Estará
o imperador...
— O imperador? A generosidade, a clemência, a justiça, a ordem, o génio, eis oimperador! Sou eu, Ramballe, quem lho diz... Aqui onde me vê, ainda há oito anos
era inimigo dele. Meu pai era conde emigrado... Mas aquele homem venceu-me.
Empolgou-me. Não pude resistir ao espectáculo de grandeza e de glória que ele
dava a França. Quando compreendi o que ele queria, quando vi que ele nos fazia
uma cama de louros, então disse comigo; Ora aqui esta um soberano, e dediquei-
me a ele. E aqui tem. Ó, sim, meu caro, é o maior homem, dos séculos passados e
futuros.
— Está em Moscovo? — perguntou Pedro, hesitante e sem esconder uma
espécie de culpa.
O francês, sorrindo, observou, curioso, a expressão do interlocutor.
— Não, deve entrar amanhã na cidade — replicou, prosseguindo no seu
diálogo.
A conversa foi interrompida por uns gritos, lá para os lados da porta principal,
e pela chegada de Morel, que vinha explicar ao capitão que os hússares
wurteinburgueses teimavam em alojar os seus cavalos no pátio onde estavam já
os deles, mal-entendido esse proveniente sobretudo do facto de os hússares não
compreenderem o que lhes diziam,
O capitão ordenou que o sargento viesse à sua presença e em voz severa
perguntou-lhe a que regimento pertencia, quem era o seu comandante e como
ousava querer tomar conta de uma habitação já ocupada por outros militares. O
alemão, que tinha dificuldade em perceber o francês, disse o nome do regimento a
que pertencia e quem— era o seu comandante, mas, como nada percebera do que
lhe diziam, replicou, misturando no alemão fragmentos de palavras francesas, que,
na sua qualidade de sargento, nada mais fazia que cumprir as ordens que recebera
do comandante, o qual lhe ordenara que ocupasse todas as casas daquele bairro,
umas após outras. Pedro, que falava alemão, traduziu a resposta, para
entendimento do capitão, e por sua vez transmitiu ao hússar o que lhe dissera o
oficial. Tendo percebido, finalmente, o wurtemburguês cedeu, retirando com os
seus homens. Em seguida o capitão francês veio até ao alpendre e numa voz de
trovão deu ordens aos subordinados.
Quando voltou à sala, Pedro, de cabeça entre as mãos, continuava sentado no
mesmo sítio. Havia amargura na sua cara. E, de facto, sofria naquele momento.
Assim que o capitão o deixara só, compreendera, de súbito, a situação em que
estava. O que naquela altura o fazia sofrer não era o facto de Moscovo ter sidotornada nem mesmo que aqueles venturosos soldados ali se tivessem instalado
como em sua própria casa, concedendo-lhe, inclusivamente, a sua protecção,
embora tudo isto fosse, em verdade, bastante penoso: o que o atormentava era a
consciência da sua própria fraqueza. Alguns copos de vinho e dois dedos de
conversa com, aquele galhardo militar, eis quanto bastara para c seu taciturno
estado de espírito dos últimos dias, indispensável para levar a bom termo o seu
projecto, desaparecer como por encanto. A pistola, o punhal, o disfarce, tudo
estava preparado; Napoleão entraria em Moscovo no dia seguinte. E posto Pedro
continuasse a considerar útil e nobre o acto pelo qual assassinaria semelhante
bandido, o certo é que se sentia agora incapaz de o praticar. Procurava dominar a
sua fraqueza e confusamente percebia não ser capaz, que todos os seus sombrios
projectos de vingança, de assassínio, de sacrifício se haviam dissipado como fumo
desde que se pusera a falar com aquele desconhecido.
O capitão voltou a entrar na sala, assobiando e arrastando perna.
A tagarelice do francês, que tanto o divertira até, ali, agora tornava-se-lhe,
odiosa. Aquele assobio, aquele manquejar, a maneira que ele tinha de cofiar o
bigode, tudo o incomodava, «Vou-me embora e não lhe dirijo mais a palavra»,
dizia de si para consigo. E no entanto continuava sentado sem se mover.
Amarrava-o ali um estranho sentimento de fraqueza. Conquanto o desejasse, não
podia levantar-se nem podia partir,
O capitão, pelo seu lado, parecia, de contrário, na melhor disposição deste
mundo. Andava de cá para lá, de olhos cintilantes e o bigode agitado, como se
sorrisse interiormente ao lembrar-se de qualquer coisa divertidíssima.
— Encantador — exclamou, de súbito — o coronel destes wurtemburgueses! É
um alemão; mas bom rapaz, se fosse... mas alemão. A propósito, o senhor sabe
então alemão? — acrescentou, parando diante de Pedro.
Pedro fitou-o calado.
— Como é que diz «asilo» em alemão?
— Asilo! — repetiu Pedro — «Asilo» em alemão: Unterkunft.
— Como diz? — insistiu o capitão, incrédulo.
— Unterkunft.
— Onterkoff — voltou ele, fixando Pedro, por momentos, com olhos
sorridentes. — Os Alemães são uns animais orgulhosos. Não é verdade, Monsieur
Pierre? Bom, mais uma garrafa de bordéus Moscovita, não é verdade? Morel, vaiamornar-nos mais uma garrafa. Morel! — chamou, folgazão.
Morel apareceu com as velas e uma garrafa. O capitão, assim que a sala se
iluminou, relanceou a vista ao seu interlocutor e notou a transformação da sua
máscara. Realmente inquieto e com uma simpatia toda cordial, inclinou-se para
Pedro,
— Então, estamos tristes? — disse ele, pegando-lhe numa das mãos. —
Magoei-o? Tem alguma razão de queixa minha? Talvez por causa da situação?
Pedro não respondeu, mas fitou-o nos olhos com simpatia. Não podia deixar de
ser sensível a todas aquelas atenções.
— Palavra de honra, mesmo sem falarmos do que lhe devo, tenho amizade por
si. Haverá alguma coisa que eu possa fazer por si? Disponha de mim. A vida e a
morte. Digo-lhe com a mão no coração — acrescentou, fustigando a arca do peito.
— Obrigado — volveu-lhe Pedro.
O capitão olhou-o com o mesmo ar jovial de há pouco e o rosto iluminou-se-lhe.
— Ah!, nesse caso, bebo à nossa amizade! — exclamou, enchendo os dois
copos.
Pedro pegou no copo cheio e virou-o de um só trago. Ramballe virou o seu
também e voltou a apertar a mão de Pedro, deixando-se cair na cadeira, com os
cotovelos na mesa, numa, atitude melancólica.
— Sim, meu caro, chama-se a isto os caprichos do destino — disse ele. — Quem
diria que eu seria soldado e capitão de dragões ao serviço de Bonaparte, como nós
lhe chamávamos antigamente. E no entanto aqui estou eu em Moscovo. Sempre
lhe direi, meu caro — prosseguiu, numa voz agora ponderada e serena, como se
fosse encetar uma longa história — que o nosso nome é um dos mais antigos da
França.
E, com a franqueza ingénua e ligeira dos Franceses, pôs-se a contar-lhe a
história dos seus antepassados, da sua infância, da sua adolescência e da sua
juventude, pondo-o ao corrente de tudo quanto dizia respeito à família e aos bens.
«A minha pobre mãe», claro está, não faltava na história.
— Mas tudo isto mais não é que a cenografia da vida; o fundo e o amor. O
amor. Não é verdade, Monsieur Pierre? — continuou ele cada vez mais animado.
— Mais um copo.
Pedro bebeu de novo e de seguida encheu os copos.
— Oh, as mulheres, as mulheres! — E o capitão, cujo olhar se fizera langoroso,pôs-se a falar do amor e das suas aventuras galantes.
Tinham sido muitas e não era difícil de acreditar que assim fosse quando se
atentava no seu ar conquistador, na sua bela figura e na vivacidade que punha no
relato dos seus êxitos. Ainda que todas essas histórias fossem repassadas desse
carácter um tudo-nada brejeiro, encanto e poesia do amor para os Franceses, o
certo é que o capitão falava com tanta sinceridade e tanta convicção que dir-se-ia
só ele, saber o que era o amor, e tal era a sedução que emprestava às suas
heroínas que Pedro não podia deixar de o seguir interessadíssimo.
Evidentemente que o amor de que falava Ramballe nem era essa paixão
sensual e rasteira que Pedro outrora experimentara pela mulher nem essa paixão
romântica, exaltada por natureza, que Natacha lhe inspirava: para estas duas
espécies de amor ia o desprezo do francês. Para ele, o primeiro era «o amor dos
carreteiros», e o segundo «o amor dos néscios». O amor que ele preferia andava
relacionado a toda a sorte de combinações estranhas e situações extraordinárias,
sua maior atracção para ele.
Assim, contou a história emocionante dupla paixão que tivera por uma
marquesa de trinta e cinco anos e por uma filha desta, deliciosa e, inocente
criatura de dezassete primaveras. O generoso debate entre mãe e filha e por fim o
sacrifício daquela, que ofereceu ao amante a mão da filha, todos estes
acontecimentos, embora remotos, faziam estremecer o capitão. E contou depois o
curioso episódio, em que o marido tomara o lugar do amante e ele próprio, o
amante, o lugar do marido. E a tudo isto acrescentou alguns pormenores cómicos
das suas recordações da Alemanha, país em que o asilo se diz Unterkunft, os
maridos comem «choucroute» e as raparigas são louras.
Por fim, veio a última aventura, na Polónia, de fresca data, que contou com
grandes gestos e de uma animação muito particular. Salvara a vida a um polaco
(coisa curiosa, , nas suas histórias, Ramballe salvava sempre a vida a qualquer
pessoa). O polaco confiara-lhe a as encantadora mulher, uma parisiense de
coração, enquanto abalava ao serviço da França. A felicidade do capitão atingira o
auge: a bela polaca ia fugir com ele. Mas ele, dominado por um sentimento de
generosidade ainda mais forte, restituiu a mulher ao marido, dizendo-lhe: «Salvei-
lhe a vida e salvo-lhe a honra!». E ao repetir esta frase enxugou os olhos e abanou
a cabeça como para afastar de si a emoção que o tomava lembrando-se daquela
emocionante recordação.Enquanto escutava o capitão. Pedro, perturbado pelo tardio e pelo vinho que
bebera, revia, em imaginação, a vaga de reminiscências pessoais que o
assaltavam. Todas aquelas histórias de amor lhe lembraram, de súbito, a sua
própria paixão por Natacha, e havia nela cenas que comparava mentalmente às
das histórias de Ramballe. A luta entre o dever e o amor trazia-lhe à memória os
mais pequenos pormenores do seu último encontro ao pé da Torre de Sukariev.
Então esse encontro pouco o impressionara e breve se lhe desvanecera do
espírito. Mas agora, pelo contrário, afigurava-se-lhe importantíssimo e de um
valor poético muito particular.
«Piotre Kirilitch, venha daí, já o reconheci.» Parecia estar a ouvir-lhe aquelas
palavras, a ver-lhe os olhos, o sorriso, o chapelinho de viagem, as madeixas
desgrenhadas do cabelo... E tudo isto se lhe afigurava qualquer coisa de terno e de
comovedor.
Finda que foi a história da polaca, o capitão perguntou a Pedro se também
tivera oportunidade de se sacrificar de igual modo, sentindo ciúme pelo marido
legítimo.
Ao ouvir isto, Pedro levantou a cabeça e de repente sentiu uma grande
necessidade de abrir o coração. Explicou que, para ele, o amor não era a mesma
coisa. Disse-lhe que em toda a sua vida apenas amara uma mulher, uma só, e que
esta mulher nunca lhe poderia vir a pertencer.
— Essa agora! — exclamou o capitão.
E explicou-lhe depois que amava essa mulher desde que a vira criança, mas que
nunca ousara pensar nela, então nova de mais, e ele, por sua vez, filho ilegítimo e
sem nome para lhe dar. Mais tarde, quando viera a ter um nome e a ser rico, não
quisera pensar nela, pois a amava muito, a punha acima de tudo e de todos, e por
isso mesmo acima de si próprio.
Ao chegar a esta altura das suas confidências perguntou ao capitão se ele o
compreendia. Este, por um simples gesto, volveu-lhe que ainda mesmo que não
compreendesse não era razão para ele interromper a sua história.
— O amor platónico, as nuvens... — murmurava.
Ou o vinho que bebera ou a necessidade de se abrir ou ainda a certeza de que
aquele homem não conhecia nem nunca viria a conhecer qualquer das pessoas de
quem ele falava, eis o que, sem dúvida, concorreu para a loquacidade de Pedro.
Numa voz pastosa e os olhos vagos, ei-lo que prossegue na história dos seusamores: contou-lhe o caso do seu casamento, a paixão de Natacha pelo seu melhor
amigo, a traição desta e as suas relações com ela, tão pouco claras ainda.
Compelido pelas perguntas de Ramballe, acabou por dizer o que de princípio
escondera: a situação que ocupava na sociedade e até o seu verdadeiro nome.
O que mais impressionava o capitão em tudo isto era o facto de Pedro ser
riquíssimo, de possuir dois palácios em Moscovo, de tudo ter abandonado, tendo
ficado na cidade escondendo o seu nome e a sua posição, em vez de partir. Já a
noite ia adiantada quando saíram juntos. O céu estava sereno e claro. A esquerda
lobrigava-se o clarão do primeiro incêndio que estalava em Moscovo, em
Petrovka. A direita, a lua nova brilhava no alto da cúpula celeste, enquanto do
lado oposto esplendia o cometa, na alma de Pedro profundamente associado ao
seu amor. A entrada da porta estavam Guerassime, a cozinheira e dois franceses.
Ouviam-se as suas gargalhadas e as tentativas de conversa nas duas línguas, sem
que chegassem a compreender-se uns aos outros. Todos contemplavam o
resplendor do incêndio que alastrava pela cidade.
Nada havia, contudo, de ameaçador nesse pequeno incêndio longínquo no meio
da imensa capital.
Ao contemplar o céu estrelado, a Lua, o cometa e o clarão do incêndio, Pedro
sentiu que a alma se lhe inundava de alegria e enternecimento. «Que belo tudo
isto é! Que é preciso mais?», dizia de si para consigo. Mas de súbito, ao lembrar-se
do seu projecto, sentiu como que uma vertigem e viu-se obrigado a apoiar-se à
parede para não cair.
Sem se despedir do seu novo amigo, afastou-se da porta em passos titubeantes
e, entrando no seu quarto, estendeu-se no divã, adormecendo instantaneamente,
[XXX]
O clarão do primeiro incêndio, no dia 2 de Setembro, foi visto de diferentes
lados e produziu efeitos muito diversos nos habitantes que abandonavam a cidade
e nas tropas que retiravam.
O comboio dos Rostov encontrava-se nessa noite nos Grandes Mitichtchi, a
umas vinte verstas de Moscovo. No dia 1º de Setembro a sua partida fora tãotardia, a estrada estava de tal modo obstruída, tantas coisas tinham esquecido,
mandadas buscar à última hora, que decidiram passar a noite apenas a cinco
verstas da capital. No dia seguinte tinham-se levantado tarde e tantos foram os
obstáculos ainda no caminho que apenas puderam chegar aos Grandes Mitichtchi.
As dez horas, os Rostov, bem como os feridos que os acompanhavam, distribuíram-
se pelos Pátios e as isbás daquela grande povoação. Criados, cocheiros e
ordenanças dos feridos, depois de servirem os amos, comeram. Por sua vez deram
de comer aos cavalos e vieram tomar ar para os alpendres.
Numa dessas isbás encontrava-se o ajudante-de-campo de Raievski: tinha o
pulso quebrado e as tremendas dores que sentia obrigavam-no a gemer
constantemente, ressoando os seus gemidos lúgubres na obscuridade da noite
outonal.
Este ajudante-de-campo passara a primeira noite no mesmo local que os
Rostov. A condessa dissera que não tinha podido conciliar o sono, e por isso, nos
Mitichtchi, instalaram-se numa isbá menos confortável, mas mais afastada do
pobre homem.
Um dos criados viu de repente, no meio das trevas da noite, do alto da boleia
da carruagem que estacionava à entrada do pátio, um novo e pálido clarão. Era
um novo incêndio e toda a gente sabia que os Pequenos Mitichtchi estavam a
arder, incendiados pelos cossacos de Mamanov.
— Eh!, rapazes! Temos outro fogo! — exclamou.
Todos se voltaram na direcção indicada.
— Dizem que os cossacos de Mamanov deitaram o fogo aos pequenos
Mitichtchi.
— Não. Não é isso. É muito mais longe. Olha bem. Parece em Moscovo.
Dois criados desceram as escadas do alpendre, dirigiram-se para a carruagem e
treparam para o estribo.
— É mais à esquerda. Os Mitichtchi ficam para este lado, e o fogo é noutra
direcção.
Outros criados vieram juntar-se ao primeiro.
— Aquilo é que arde! — disse um deles — Cá na minha. é fogo em Moscovo, ou
em Suchtchevskaia ou então em Rogojskaia.
Ninguém replicou e por muito tempo todos ficaram a olhar para as labaredas
daquele novo incêndio que se erguia no horizonte.Um velho, a quem todos chamavam o criado de quarto do conde, um tal Danila
Terentitch, aproximou-se do grupo para chamar Michka.
— Que estás tu aí a olhar, imbecil?... O conde está a chamar e ninguém há
para o atender: anda, trata de lhe ires arrumar a roupa.
— Fui buscar água — replicou Michka.
— Que te parece. Danila Terentitch? Não achas que é em Moscovo aquele
clarão? — perguntou um dos lacaios.
Danila Terentitch, ficou calado e todos os demais o imitaram. As labaredas
ondulavam e cada vez se estendiam mais.
— Nosso Senhor nos valha! Com este vento e esta seca! — exclamou uma voz.
— Olha como aquilo caminha! Deus nos acuda! Que Nosso Senhor tenha
piedade de nós!
— Não tarda que o apaguem. Vais ver!
— Quem o há-de apagar? — murmurou Danila Terentitch, que nada dissera
até então e cuja voz era lenta e serena. — É, sim, é Moscovo, irmãos, é a nossa
mãe das brancas muralhas... A voz quebrou-se-lhe de súbito e soluçou como os
velhos costumam soluçar.
Era como se todos esperassem aquilo mesmo para compreenderem,
finalmente, o tremendo significado daquele clarão. Suspiros e orações vieram
sublinhar os soluços do velho criado do conde.
[XXXI]
Quando voltou para junto do amo, o criado de quarto participou-lhe que
Moscovo estava a arder. O conde enfiou o roupão e foi verificar com os seus olhos
o que o criado dizia. Sónia, que ainda não estava despida, e Madame Schoss
acompanharam-no. Natacha e a condessa ficaram sozinhas. Pétia, esse, já não
estava com a família: partira com o seu regimento na direcção de Troitsa.
Quando lhe falaram do incêndio de Moscovo, a condessa principiou a chorar.
Natacha, muito pálida, de olhos fixos, deixou-se ficar sentada no banco debaixo dos
ícones, que nem um só instante abandonara desde que chegara, e não prestou a
mais Pequena atenção ao que o pai dizia. Estava à escuta dos gemidos contínuosdo oficial, que continuavam a ouvir-se apesar de virem de algumas casas mais
adiante.
— Ah! Que horror! — exclamou Sónia, toda a tremer, assustadíssima, quando
voltou para dentro. — Moscovo inteira está a arder. Que clarão medonho! Vai
ver, Natacha, vê-se dali mesmo da janela — acrescentou, tentando arrancar a
prima aos seus pensamentos. Mas Natacha fitou-a, como se não compreendesse o
que lhe diziam e de novo fixou os olhos no canto da estufa. Desde manhã que
estava mergulhada naquela espécie de letargia, desde que Sónia, com grande
estranheza e irritação da condessa, não se sabe porquê, julgara necessário dizer-
lhe que o príncipe André fora ferido e fazia parte do comboio. A condessa exaltara-
se e repreendera Sónia como raramente o fizera. Sónia chorara, pedira perdão, e
agora, como para reparar a sua falta. A todo o momento se mostrava solícita para
com a prima.
— Olha, Natacha, que horroroso incêndio!
— Que está a arder? — perguntou Natacha. — Ah, sim, Moscovo! — E como
para não melindrar Sónia e se ver livre dela aproximou a cabeça da janela, olhou
para fora, de tal modo que era evidente nada ter visto, retomando em seguida a
sua atitude anterior.
— Mas tu nada viste!
— Vi, vi — protestou Natacha, como implorando que a deixassem em paz.
Tanto Sónia como a condessa compreenderam que, acontecesse o que
acontecesse. Natacha por nada poderia interessar-se, nem por Moscovo nem pelo
incêndio.
O conde voltou a recolher-se atrás do tabique da isbá e deitou-se. A condessa
aproximou-se da filha, tocou-lhe na testa com as costas da mão, como costumava
fazer quando ela estava doente, e aproximou-lhe os lábios da fronte, como se
quisesse verificar se tinha febre.
— Apanhaste frio? Estás toda a tremer? Devias deitar-te. — disse-lhe a
condessa.
— Deitar-me? Sim, vou deitar-me, sim, vou deitar-me já — murmurou
Natacha.
Desde que lhe disseram que o príncipe André, gravemente ferido, seguia com
eles, começara por fazer perguntas a seu respeito: queria saber quando e onde
fora ferido, se o ferimento era grave, se o podia ver. Ao dizerem-lhe que o nãopodia ver, que era grave o ferimento, embora não mortal, ficou convencida de
que, fizesse o que fizesse, nada mais saberia a esse respeito, e, ao ver que lhe não
diziam toda a verdade, calou-se e nada mais perguntou. Durante todo o caminho
conservara-se imóvel no fundo da carruagem, com os grandes olhos muitos
abertos, esses olhos que a mãe tão bem conhecia e cujo estranho olhar tanto
receava, e ali ficara sentada naquele banco. Em que pensava? Que decisão
congeminava ou tomara já? A condessa suspeitava-a, sem saber ao certo, e esta
incerteza atormentava-a e apavorava-a muito.
— Natacha, despe-te, minha querida; vem para a minha cama. — Só a
condessa dispunha de cama; tanto Madame Schoss como as duas raparigas tinham
de dormir na palha.
— Não, mãe, ficarei ali muito bem, no chão — replicou Natacha, com um
movimento de impaciência e, aproximando-se da janela, abriu a vidraça.
Os gemidos do ajudante-de-campo ouviam-se agora mais distintamente.
Natacha debruçou-se da janela para o ar húmido da noite e a condessa viu-lhe o
pescoço delicado, arrepanhado pelos soluços, quando encostou a cabeça ao
caixilho. Sabia muitíssimo bem que não era o príncipe André quem gemia. Sabia
que ele estava deitado na isbá contígua à deles, da qual a separava apenas um
vestíbulo, mas aquela queixa medonha, incessante, enchia-lhe os olhos de
lágrimas. A condessa trocou um olhar com Sónia,
— Deita-te, querida, deita-te minha pequenina — disse ela, aflorando-lhe o
ombro com a mão. — Vá, deita-te.
— Ah, sim!... Vou já deitar-me, já — disse Natacha, principiando a despir-se à
pressa. Arrancava os cordões das saias.
Depois de tirar o vestido e enfiar uma camisa de noite, sentou-se, acocorada,
em cima da cama de palha, no chão, e puxando para a frente os finos cabelos pôs-
se a fazer uma trança. Os seus longos dedos afuselados moviam-se rapidamente. E
ia voltando a cabeça, ora de um lado ora de outro, num gesto familiar. Os olhos,
porém, dilatados, como se tivesse febre, permaneciam imóveis e fixos. Assim que
acabou de se arranjar, deitou-se, sem ruído, na coberta estendida em cima da
palha, junto da porta.
— Natacha, deita-te no meio — disse-lhe Sónia.
— Estou bem aqui — replicou ela. — E tu deita-te, tu também — acrescentou,
repreensiva. E enterrou a cabeça na almofada.A condessa, Madame Schoss e Sónia despiram-se rapidamente e deitaram-se
também. A única luz acesa era a lamparina diante dos ícones. Mas lá fora o céu
estava iluminado pelo incêndio dos Pequenos Mitichtchi, a duas verstas dali, e
ouviam-se os gritos dos homens na taberna saqueada pelos cossacos, à esquina da
rua, enquanto os gemidos do oficial continuavam.
Por muito tempo esteve Natacha, imóvel, ouvindo os ruídos que vinham da
isbá e lá de fora. Ouviu, primeiro, a mãe que rezava, suspirando, depois o ranger
da cama quando ela se deitou e em seguida o ressonar estridente, tão seu
conhecido, de Madame Schoss e a tranquila respiração de Sónia. A certa altura a
condessa chamou-a, mas Natacha não respondeu.
— Acho que está a dormir, mãe — murmurou Sónia.
Depois de um curto silêncio, a condessa voltou a chamar, mas desta vez
ninguém lhe respondeu.
Daí a pouco Natacha ouvia a pausada respiração da mãe. Não se mexia,
embora tivesse o pèzinho nu gelado, pois o mantinha fora da roupa da cama, em
contacto com o chão.
Como para comemorar a sua vitória sobre toda aquela gente adormecida, um
grilo, na sua toca, pôs-se a cantar. Lá longe ouviu-se o cocorocó de um galo,
enquanto outro, mais perto, lhe respondia. Na taberna já se não ouvia gritar.
Continuava, porém, e sempre, a queixa do ajudante-de-campo. Natacha soergueu-
se na cama.
— Dormes. Sónia? Mãe? — murmurou.
Ninguém lhe respondeu. Levantou-se sorrateiramente, persignou-se e pousou
os delicados pés descalços no sobrado sujo e frio, que rangeu. Em passinhos
rápidos, de gato, correu para, a porta e deitou as mãos ao fecho gelado.
Afigurava-se-lhe que as paredes da isbá vibravam em pancadas surdas e
regulares: era o seu coração anelante que parecia rebentar de susto, de horror e
amor.
Abriu a porta, transpôs o limiar e pousou os pés na terra húmida e fria do
vestíbulo. O frio reanimou-a. No escuro tocou com o pé descalço no corpo de um
homem que dormia, passou-lhe por cima e abriu a porta do quarto onde estava o
príncipe André. Era grande a escuridão lá dentro. Num recanto, ao fundo, junto de
uma cama onde se via um vulto estendido, uma vela de sebo pousada num banco
ardia, fumarenta.Desde que Natacha soubera, nessa manhã, que o príncipe André estava ali e
ferido, resolvera vê-lo. Sabia porque considerava isso um dever seu, embora,
tivesse a certeza também de que esse encontro seria para ela um suplício atroz.
Durante, todo o dia não pensou noutra coisa senão em vê-lo quando viesse a
noite. Agora, porém, que o momento chegara, enchia-a de horror a ideia do
espectáculo que se lhe ia apresentar. Até que ponto estaria ele desfigurado? Teria
todos os seus membros? Estaria tão mal como o pobre do ajudante-de-campo,
sempre a gemer? Sim, devia estar no mesmo estado. Na sua imaginação, aquela
queixa horrível representava-o inteiro. Ao descobrir, ao canto, aquela forma vaga,
cujos joelhos, soerguendo a coberta, se lhe afiguravam uns ombros, julgou ter
diante de si qualquer coisa de monstruoso e deteve-se, apavorada. Mas uma orça
irresistível a obrigou a continuar. Avançou cautelosamente, passo a passo, e
achou-se no meio de um compartimento atulhado de coisas. No banco, debaixo dos
ícones, estava deitado outro corpo, o de Timokine, e no chão ainda havia mais dois
— um, o médico, e o outro, o criado do príncipe. Este soergueu-se e pronunciou
quaisquer palavras. Timokine, cujo ferimento na perna muito o fazia sofrer, não
dormia e olhava, de olhos muito abertos, a estranha aparição aquela menina
apenas de camisa de noite branca, de camisola, e os cabelos apanhados na touca
de dormir. As palavras pronunciadas pelo criado meio adormecido: «Que é
preciso? Quem está aí?», levaram Natacha a apressar o Passo para mais depressa
chegar onde estava deitado o vulto que de longe entrevira. Por mais mutilado e
horrível que esse corpo estivesse, tinha de o ver. Passou junto do criado: o pavio
da vela agitou-se, projectando uma luz mais viva, e ela pode ver distintamente o
príncipe André, as mãos estendidas sobre a coberta, como sempre o conhecera.
Estava como sempre fora, mas o rosto afogueado pela febre, os olhos
brilhantes fitos nela, numa grande exaltação, sobretudo o pescoço delicado, como
o de uma criança, emergindo-lhe do colarinho entreaberto da camisa, tudo isso lhe
dava à fisionomia um ar de candura e juventude que ela nunca lhe vira.
Aproximou-se, e num movimento rápido, elástico e gracioso, ajoelhou diante dele.
Ele sorriu-lhe e estendeu-lhe a mão.
[XXXII]
Sete dias tinham decorrido desde que o príncipe André recuperara os sentidos
na ambulância do campo de batalha de Borodino. Durante todo esse tempo
esteve, por assim dizer, em estado de quase constante inconsciência. A febre e a
inflamação dos intestinos, consequência, do ferimento que recebera, deviam ser-
lhe fatais, na opinião do médico que o acompanhava. A verdade, porém, é que no
sétimo dia tomou com apetite uma chávena, de chá com uma côdea de pão e o
médico pode verificar que o estado febril baixara. Pela manhã recuperara a
consciência. Na primeira noite após a partida de Moscovo, como estava bastante
quente, permitira-lhe que dormisse no seu carro, mas nos Mitichtchi ele próprio
pedira que o transportassem para debaixo de telha e lhe dessem uma chávena de
chá. O sofrimento que lhe causou, porém, esse curto trajecto fê-lo gemer de dor e
perder de novo os sentidos. Quando o deitaram na cama de campanha, por muito
tempo ficou estendido de olhos fechados sem fazer o mais pequeno movimento.
Depois abriu os olhos para murmurar: «E o chã?». A consciência que mostrava dos
mais pequenos pormenores da vida surpreendeu o médico. Tomando-lhe o pulso,
verificou, não sem grande surpresa e algum desgosto, que estava melhor. Não fora
com grande satisfação que verificara o facto, pois, por experiência, sabia que o
ferido não podia sobreviver e que se não morresse agora morreria pouco depois e
no meio dos maiores sofrimentos, Desde Moscovo que se juntara ao grupo do
príncipe André o major do seu regimento, Timokine, o militar de nariz rubicundo,
ferido numa perna também na batalha de Borodino. Acompanhavam-nos o médico,
o criado do príncipe, o cocheiro e duas ordenanças.
Trouxeram a chávena de chá ao príncipe André. Bebeu avidamente, enquanto
os olhos febris se voltavam para a porta que ficava na sua frente, como a tentar
lembrar-se de qualquer coisa muito confusa.
— Não quero mais. Timokine está aí? — perguntou.
Timokine arrastou-se no banco até junto dele.
— Presente, Excelência.
— Como vai essa ferida?
— A minha? Não vai mal. E a sua?
O príncipe André pôs-se a cismar, como se procurasse fosse o que fosse na
memória.
— Poder-me-iam arranjar um livro? — disse ele.— Que livro?
— O Evangelho. Não o tenho comigo.
O médico prometeu que lhe arranjaria um e perguntou-lhe como estava. O
príncipe André respondeu de má vontade a todas as perguntas, mas com tino,
depois pediu que lhe pusessem uma almofada debaixo para o aliviar um pouco das
dores que sentia. O médico e o criado soergueram o capote que o cobria e,
respirando a custo, tal o cheiro pestilencial que se derramava da ferida, puseram-
se a examinar a terrível chaga. O médico não pôde esconder o seu
descontentamento e, fazendo-lhe outro penso, voltou o ferido, o que lhe provocou
gemidos de dor, levando-o a perder de novo os sentidos e a delirar, Repetia sem
cessar que lhe trouxessem o livro e que lho pusessem ao lado.
— Que lhes custa? Preciso dele. Dêem-mo, façam favor. Ponham-no ali, nem
que seja só por um momento — dizia, em voz queixosa.
O médico saiu para o vestíbulo na intenção de lavar as mãos.
— Ah! Malditos! Como hei-de eu confiar em vocês? — dizia para o criado, que
lhe despejava água nas mãos. — Basta que me distraia um minuto. Ah! Não sei
como ele pode suportar semelhantes dores!
— Julgava que o tínhamos tratado bem, Jesus, meu Deus. — exclamou o
criado.
Pela primeira vez o príncipe André compreendeu onde estava e o que lhe
acontecera. Lembrou-se de que fora ferido e que quando a sege parara nos
Mitichtchi pedira que o levassem para uma isbá. Tendo então perdido de novo os
sentidos, voltou a si quando o instalaram na isbá, ao pedir o chá, e ali lhe veio ao
espírito tudo o que lhe acontecera. E reviu com toda a nitidez esse instante em
que, na ambulância, ao ver quanto sofria o homem que ele mais detestava neste
mundo, se sentira invadido por pensamentos que o haviam enchido de alegria. E
eram esses mesmos pensamentos, conquanto mais confusos e nublados, que de
novo se lhe apoderavam da alma. Percebeu que experimentava então uma
felicidade desconhecida e sentiu que essa felicidade estava intimamente
relacionada com o Evangelho, e por isso reclamara esse livro. Porém, as dores que
tornou a sentir no momento em que lhe faziam o penso e o voltavam mais uma
vez toldaram-lhe as ideias e quando voltou a ter consciência das coisas anoitecera
por completo. Toda a gente dormia à sua volta. Um grilo cantava no vestíbulo; lá
fora ouviam-se vozes e canções. As baratas corriam pela mesa, pelos ícones, pelostabiques; uma grande mosca zumbia junto da cabeceira da cama, esvoaçando em
volta da vela colocada junto do leito e escorrendo sebo.
Do ponto de vista mental, o príncipe André não estava em estado normal. O
homem de espírito são aplica a sua faculdade de pensar, de sentir, de se recordar,
simultaneamente, a um número infinito de coisas, mas dispõe do poder e da força
necessários, desde que se detém num objecto determinado, para concentrar nele
toda a sua atenção. O homem de espírito não sabe interromper os seus
pensamentos mais absorventes para saudar a pessoa que chega e voltar em
seguida às suas reflexões. Mas a verdade é que o príncipe André, desse ponto de
vista, se achava num estado de espírito completamente anormal. As suas
faculdades mentais mostravam-se mais activas e mais lúcidas do que nunca, mas
agiam independentes da sua vontade. As imagens e o pensamentos mais diversos
ocupavam-lhe simultaneamente o espírito. Por vezes, o pensamento trabalhava
com uma tal força, uma tal clareza e uma profundeza tais como jamais lhe seria
possível de perfeita saúde, e de súbito, em plena elaboração mental, a cadeia dos
pensamentos quebrava-se-lhe e via-se substituída por toda a sorte de
representações inesperadas, sendo-lhe impossível refazê-la.
«Sim, uma felicidade desconhecida, que ninguém pode tirar ao homem, se me
revelou», pensava, na meia obscuridade do quarto, fixando em frente, os olhos
dilatados pela febre, «uma felicidade sobre que não têm o mais pequeno poder as
forças físicas, as influências exteriores, a felicidade pura da alma, a felicidade do
amor! Todos nós a podemos compreender, mas só Deus tem o poder de no-la dar a
conhecer e de no-la revelar. Mas como nos revelou Deus esta lei de perfeita
felicidade? Foi o Filho?...»
De súbito o fio dos pensamentos quebrou-se-lhe e sem poder saber se era o
delírio que o levava consigo ou se ouvia, realmente, alguma coisa, pareceu-lhe
perceber uma voz que sussurrava constante e cadenciadamente as mesmas sílabas
lancinantes: «Piti... piti... !» Ao mesmo tempo, ao som dessa estranha música,
sentia, em pleno rosto, erguer-se-lhe como que uma construção mágica e
fantástica, formada de finas agulhas e levíssimas aparas. Dava conta, apesar de
isso lhe ser muitíssimo penoso, de que devia esforçar-se por mantê-la em equilíbrio
e impedir que essa construção caísse por terra, mas a verdade é que ela acabava
por ruir e voltava a reedificar-se, lentamente, ao com— passo da mesma música
cadenciada e pipilante. «Vai subindo; vai subindo! Vai subindo sempre!», diziapara consigo mesmo. E no meio destas impressões de música múrmura e do edifício
que se levantava, via, por momentos, o círculo vermelho do pavio da vela, ouvia o
restolhar das baratas e o zumbir da mosca embatendo contra a almofada da cama
e a cara. E de cada vez que lhe tocava no rosto sentia como que uma sensação de
queimadura, surpreendidíssimo por, embatendo ela precisamente no ponto onde
se levantava o tal estranho edifício, o não deitar por terra. Além disso, outro
fenómeno importante se verificava ainda. A porta havia qualquer coisa branca,
como que uma esfinge, que c, esmagava a ele também.
«Não. Não pode ser. Talvez seja apenas a minha camisa em cima da mesa»,
pensava. «Ali estão as minhas pernas, e acolá a porta. Mas porquê, então, este
edifício crescendo, crescendo, e esta música: ’Piti... piti...’? Basta, peço-lhe, basta, é
de mais!», implorava. E subitamente os pensamentos e os sentimentos o
assaltaram de novo, claros, poderosos como habitualmente.
«Sim, o amor», disse consigo mesmo, de novo, completamente lúcido. «Mas
não esse amor que se sente por alguma, coisa e por alguém, mas o amor como eu
o senti pela primeira vez quando, no limiar da morte, se me deparou o meu
inimigo e o amei. Senti então essa espécie de amor por assim dizer a essência da
nossa alma e que dispensa perfeitamente o objecto amado. E ainda agora mesmo
continuo a sentir esse bem-aventurado amor. Amar o próximo, amar os nossos
inimigos, amar tudo e todos é amar Deus em todas as Suas manifestações. Amar
alguém querido é amor de homem; só a um inimigo nos é dado amar com o amor
de Deus. E aí está porque senti felicidade tamanha ao compreender que amava
aquele homem. Que teria sido feito dele? Estará vivo ainda?... Quando queremos
com um amor de homem, é-nos fácil passar do amor ao ódio, mas o amor de Deus,
esse, não pode trair. Nada, nem a própria morte, o pode destruir. É a essência da
própria alma. Odiei muita gente na minha vida. Mas a ninguém amei e odiei tanto
como a ela.» E diante dos olhos surgia-lhe, com toda a nitidez, Natacha, não como
outrora, envolta apenas em seus encantos exteriores. Pela primeira vez penetrava
no intimo da sua própria alma. Percebia os seus sentimentos, as suas dores, a sua
vergonha, o seu arrependimento. E agora, pela primeira vez, compreendia a
crueldade da sua, repulsa, a crueldade do rompimento com ela. «Se ao menos me
fosse dado, uma só vez, não queria mais, tornar a vê-la! Uma só vez tornar a ver-
lhe os olhos e dizer-lhe...»
«Piti, piti, ti, ti...», titilava-lhe aos ouvidos, enquanto a mosca lhe embatia nacara. E de súbito sentiu-se arrebatado para esse inundo, misto de realidade e
alucinação, onde havia tão estranhas visões. O edifício, sem se desmoronar,
continuava a crescer. Tornou a ver o círculo vermelho da vela, a esfinge, a sua
camisa, perfilada à porta. Mas, além disso, ouviu um estalido, uma aragem fresca
lhe bafejou a cara, e eis que uma nova esfinge branca, de pé, surgiu à porta. E essa
esfinge tinha o rosto pálido e os olhos brilhantes, exactamente como os de
Natacha, em quem ele acabava de pensar.
«Oh!, que doloroso este delírio!», disse para si mesmo, procurando afastar dos
olhos aquela aparição. Mas a forma que se erguia diante dele com o contorno de
coisa real ia-se aproximando. Teria desejado voltar aos domínios do pensamento
que acabava de abandonar, mas não lhe era possível e ei-lo irresistivelmente
arrastado para as regiões do sonho. A voz tranquila e sussurrante continuava a
entoar a sua cadenciada melodia. Qualquer coisa o sufocava, se erguia, e a
estranha figura sempre diante dele. Para recuperar a noção das coisas chamou a si
todas as forças de que dispunha. Esboçou um movimento, mas, de súbito,
zumbiram-lhe os ouvidos, a vista toldou-se-lhe e, como um homem que se afoga,
perdeu os sentidos.
Quando voltou a si, Natacha, a Natacha de carne e osso, aquela a quem ele,
entre todas as criaturas humanas, queria amar com esse novo amor, esse amor
puro e divino que se lhe revelara, estava de joelhos diante dele. Compreendeu
estar realmente em presença da verdadeira Natacha, e em vez de surpreendido
sentiu-se tomado de uma tranquila alegria, Natacha, de joelhos, sem ousar mexer-
se, os olhos pávidos fixos nele, sufocava os soluços que lhe abalavam o corpo.
Estava pálida e tinha , expressão imóvel. Apenas a parte inferior do rosto se lhe
agitava com um tremor nervoso.
O príncipe André suspirou aliviado, sorriu e estendeu-lhe a mão.
— Mas é... Que felicidade!
Natacha chegou-se mais para ele, sempre de joelhos, pegou-lhe
cautelosamente na mão, inclinou sobre ela a cara e beijou-a mal a aflorando com
os lábios.
— Perdoe-me! — murmurou, erguendo para ele os olhos. — Perdoe-me!
— Amo-a — disse ele. — Perdoe-me...
— Que lhe hei-de perdoar?
— Perdoe-me o que lhe fiz — murmurou ela, numa voz entrecortada e quaseimperceptível, continuando a beijar-lhe a mão. — Amo-te, muito mais, muito
melhor que antigamente — voltou ele, forçando-a a soerguer a cabeça, para lhe
ver os olhos.
Os olhos de Natacha, rasos de lágrimas felizes, pousaram-se nos dele,
timidamente, cheios de compaixão, de alegria e de amor. O seu rosto pálido e
afilado, de lábios túmidos, não era belo, metia medo. Mas André não reparava
nele, apenas via a beleza daqueles olhos cintilantes.
Um ruído de vozes se ouviu atrás deles.
O criado de quarto, Piotre, que entretanto despertara completamente, sacudia
o médico. Timokine, sem dormir por causa das dores que o ferimento da perna lhe
ocasionava, que vira toda a cena, encolhera-se no banco, puxando para si,
cautelosamente, a roupa que o cobria.
— Que é? — perguntou o médico soerguendo-se na enxerga. Faça favor de se
retirar, menina.
Nessa altura uma criada que viera atrás de Natacha a mandado da condessa
batia à porta.
Como uma sonâmbula a quem despertassem no meio do sono. Natacha
acompanhou-a e quando chegou ao quarto deixou-se cair a soluçar em cima da
cama.
Desde aquele dia, durante a longa jornada dos Rostov, aproveitando as
paragens e os lugares onde pernoitavam, Natacha aparecia sempre junto de
Bolkonski. O médico vira-se obrigado a reconhecer que nunca imaginara numa
rapariga tanta firmeza e tanta habilidade para tratar de um doente. Apesar do
horror que lhe causava a ideia de que o príncipe iria morrer durante a viagem e
entre as mãos de sua filha, hipótese, segundo o médico, muito verosímil, a
condessa viu-se obrigada a transigir. Ao ver reatadas aquelas relações chegou a
pensar que se o príncipe se curasse talvez viessem a ficar noivos outra vez. A
verdade, porém, é que ninguém falava em tal coisa e muito menos os próprios
interessados, O dilema vida ou morte, suspenso não só sobre a cabeça de
Bolkonski, mas sobre a Rússia inteira, em nada mais deixava pensar.
[XXXIII]
No dia 3 de Setembro, Pedro acordou tarde. Doía-lhe a cabeça. O fato que não
despira para dormir enrodilhava-se-lhe no corpo e sentia a vaga consciência de
que cometera na véspera qualquer acto vergonhoso. Esse acto era a conversa
íntima com o capitão Ramballe.
O relógio mareava onze horas, mas lá fora estava muito escuro. Pedro
levantou-se, esfregou os olhos, e ao ver a pistola de punho incrustado que
Guerassime voltara a pôr em cima da secretária lembrou-se onde estava e do que
tinha a fazer precisamente nesse dia.
«Não estarei já atrasado?», interrogou-se a si mesmo. «Não, É de crer que ele
não entre em Moscovo antes do meio-dia.» Não se permitiu sequer pensar no que
tinha a fazer, tratou de o pôr em prática o mais depressa possível.
Depois de pôr algum alinho na roupa que o incomodava, pegou na pistola,
decidido a partir. Só então, porém, lhe veio à mente como levar rua fora a arma
de que precisava, já que a não podia levar na mão. Nem mesmo debaixo do amplo
cafetã lhe seria possível esconder a grande pistola, e se a levasse à cintura ou
debaixo do braço toda a gente daria por isso. Aliás, a pistola estava descarregada
e não tivera tempo de a carregar de novo. «Um punhal também servia», dizia de
si para consigo, embora mais de uma vez, ao pensar na realização daquele
projecto, tivesse considerado o emprego do punhal o maior erro do estudante que
em 1809 quisera matar Napoleão. No entanto, como o que lhe importava antes de
mais nada não era realizar o acto projectado, mas provar a si próprio que não
renunciava a ele e que estava disposto a tudo fazer para conseguir o seu fim,
pegou . Pressa no punhal da bainha verde, cheio de mossas, que comprara
aquando a pistola ao pé da Torre de Sukarieve, e escondeu-o debaixo do colete.
Depois de afivelar o cinturão do cafetã e de enterrar o barrete até aos olhos,
cautelosamente, não fosse acordar alguém ou encontrar-se cara a cara com o
capitão, atravessou o corredor e saiu para a rua.
O incêndio que na véspera tão pouca atenção lhe merecera estendera-se
durante a noite por uma larga área. Moscovo ardia já por todos os lados. O fogo
atingia ao mesmo tempo a Rua Karetnaia, o bairro do outro lado do rio, Gostini
Dvor, a Povarskaia, onde ardiam as barcas, e os estaleiros de madeira junto à
Ponte Dorogomilov.
Pedro pensava dirigir-se, através de ruas desviadas, à. Rua Povarskaia, e daíseguir até à de Arbate, donde seguiria para S. Nicolau Iavleni, onde de antemão
assentara executar o acto que congeminara. A maior parte das casas tinha os
portas e as portadas das janelas cerrados, Ruas e becos estavam desertos. No ar
pairava o cheiro a fumo e a queimado. De vez em quando encontravam-se russos,
de expressão tímida e inquieta e franceses, de ar marcial, seguindo pelo meio das
calçadas. Tanto uns como outros olhavam para Pedro com espanto. A sua alta
estatura, a sua corpulência e o seu rosto carrancudo e concentrado em que havia
uma espécie de sofrimento já de si chamavam a atenção. Enquanto os russos o
examinavam perguntando a si mesmos a que classe poderia pertencer aquele,
indivíduo, os franceses seguiam-no com a vista, simplesmente porque, em vez de
os olhar, a eles, como faziam os seus demais compatriotas, cheios de inquieta
curiosidade, não lhes prestava a menor atenção. Junto ao portal de uma casa, três
franceses, que tentavam explicar o que quer que fosse a uns russos, que os não
compreendiam, detiveram Pedro para lhe, perguntar se ele sabia francês. Pedro
abanou a cabeça negativamente e prosseguiu o seu. Mais adiante, uma sentinela
de guarda a um armão pintado de verde gritou-lhe que se afastasse e só depois da
segunda e ríspida advertência, ao ouvi-lo engatilhar a espingarda, compreendeu
que devia seguir pelo outro lado da rua... Não via, nem ouvia o que se passava à
sua roda. Dir-se-ia, levar consigo o seu projecto, apressado e apavorado, e sem
poder esquecer o que lhe acontecera lia noite anterior, como quem transporta,
cheio de medo de o perder, um objecto terrível que lhe não pertence. Ainda
mesmo que o não tivessem retido no caminho, esse projecto não se teria
realizado, pois havia mais de quatro horas naquele momento que Napoleão,
depois de atravessar os arrabaldes de Dorogonulov, cruzara o Arbate para dirigir-
se ao Kremlin, onde naquela altura, sorumbático e preocupado, no gabinete do
czar, dava ordens pormenorizadas sobre a, extinção imediata do incêndio que
lavrava em Moscovo, a repressão da pilhagem e a tranquilidade dos habitantes da
capital. Pedro, contudo, ignorava-o Inteiramente absorto no presente, o que o
atormentava, como acontece a todos os obstinados que se propõem realizar
qualquer coisa impossível, não eram as dificuldades que teria, mas o facto de a sua
natureza íntima recalcitrar contra um acto daquela espécie: tinha medo de
fraquejar no momento decisivo, perdendo, assim, toda a consideração por si
próprio. Embora cego e, surdo ao que se passava à sua roda, por instinto seguia
caminho certo e não se enganava no meio do dédalo de ruas e ruelas que levavama Povarskaia.
À medida que se aproximava, o fumo era cada vez mais denso. Por vezes fazia
já um certo calor. Aqui e ali erguiam-se chamas dos telhados das casas. Havia mais
gente nas ruas e as pessoas pareciam mais desassossegadas. Pedro, embora
percebesse estar a passar-se qualquer coisa de anormal, ainda não se dera conta
de que se aproximara do coração do incêndio. Na altura em que metia por um
caminho através de vastos terrenos devolutos, que por um lado iam até à Rua
Povarskaia e pelo outro confinavam com os jardins do palácio do príncipe
Gruzinski, ouviu, de súbito, muito perto, gritos desesperados de mulher. Estacou,
como se de chofre acordasse de um sonho e ergueu a cabeça.
De um dos lados do caminho, sobre a erva seca e poeirenta, amontoavam-se
móveis e objectos caseiros: colchões, samovares, ícones, baús. Junto de tudo aquilo
sentava-se uma mulher magra e idosa, cujos dentes superiores eram grandes e
salientes, com uma capa preta pelas costas e um gorro na cabeça. Balouçando-se e
dizendo palavras sem nexo, soltava grandes soluços. Duas pequenitas, entre dez e
doze anos, de vestiditos sujos e capitas de peles, olhavam para a mãe, muito
pálidas, assustadas. Um rapazinho, mais novo ainda, dos seus sete anos, de cafetã
pelas costas e um chapéu grande de mais na cabeça, chorava nos braços de uma
velha ama. Sentada num baú estava uma criada sórdida, descalça, que, desfazendo
a trança dos cabelos louros, arrancava as madeixas queimadas, cheirando-as. O
marido da mulher magra e idosa, gordalhudo, de uniforme de funcionário público,
mediana estatura, suíças encaracoladas e um pouco curvado, remexia, impassível,
nos baús amontoados uns sobre os outros, a procura de roupa.
Vendo Pedro, a mulher quase se lhe atirou aos pés.
— Padres santos! Cristãos ortodoxos! Salve-nos, acuda-nos, meu senhor! Seja
quem for, acuda-nos — gritava-lhe, soluçando. — Uma menina!... A minha filha!...
A minha filha mais nova, deixaram-na lá... Está queimada! Oh!, oh! Foi para isso
que eu lhe dei tanto mimo... Oh!, oh!, oh!
— Então, basta. Maria Nikolaievna — exclamava o marido, numa voz serena,
naturalmente apenas para se desculpar diante do estranho. — É provável que a
nossa irmã a tenha levado. Se assim não fosse, onde havia ela de estar?
— Monstro! Malandro! — gritou a mulher enfurecida, cessando, subitamente,
de se lamentar. — Não tens coração, nem sequer tens pena da tua filha! Outro
que fosses, tinha-la ido arrancar às chamas. Mas és um monstro, não és umhomem, não és um pai. Ouça o senhor é um mancebo às direitas — continuou ela,
mudando rapidamente de tom, e choramingando, voltada para Pedro. — O fogo
andava na casa ao lado da nossa e — depois passou para o lado de cá. A minha
criada principiou a gritar: «Fogo, fogo!» Tratámos logo de salvar as nossas coisas.
Fugimos com o que tínhamos no corpo. — Aqui tem o que a gente pôde salvar...
Este ícone, abençoado por Deus, e a cama do meu dote. Tudo o mais lá ficou.
Juntámos as crianças. A Katetchka, nada! Oh!, oh!, oh! Senhor!... — E recomeçou
a soluçar. — A minha filhinha morreu queimada! Morreu queimada!
— Mas onde ficou? — inquiriu Pedro.
Pela expressão animada que lhe entreviu, a mulher percebeu estar ele
disposto a ajudá-la.
— Paizinho! Meu Paizinho! — soluçou ela, abraçando-se-lhe aos joelhos. —
Meu benfeitor, sossega ao menos o meu coração... Aniska, estafermo, anda,
acompanha-o — gritou ela, furiosa, para a criada, abrindo muito a grande boca e
deixando ver ainda mais os imensos dentes.
— Venha comigo, venha comigo, eu... eu farei tudo que for possível — deu-se
pressa em dizer Pedro numa voz embargada.
A criada emergiu lá do meio das malas e baús, deu um jeito à trança e com um
grande suspiro meteu-se a caminho, descalça.
Dir-se-ia que Pedro voltava subitamente à vida depois de um longo desmaio.
Ergueu a cabeça, os olhos fuzilaram-lhe, depois seguiu apressadamente atrás da
criada, juntou-se a ela e enfiou pela Rua Povarskaia. Uma negra e espessa
fumarada enchia a rua. Línguas de fogo rodopiavam dos telhados e das janelas.
Grande multidão se agrupava nas imediações do incêndio. No meio da rua, um
general francês arengava às pessoas que o cercavam. Pedro, ao lado da criada, ia
aproximar-se do local onde estava o oficial francês quando um soldado lhe cortou o
passo.
— Não se pode passar — gritou-lhe.
— Por aqui, Tiozinho — disse-lhe a criada. — Vamos por aqui, pela Rua de S.
Nicolau.
Pedro deu meia volta e seguiu atrás da mulher, em grandes passadas, para
poder acompanhá-la. Esta atravessou a rua a correr, voltou à esquerda, meteu por
um beco e, depois de ultrapassar duas ou três casas, enfiou, à direita, por um
portal.— É mesmo ali — exclamou.
Atravessou o pátio correndo, abriu a cancela da divisória e, detendo-se,
apontou a Pedro um pavilhãozinho de madeira a arder e do qual se desprendia
muito calor. Metade já as chamas tinham devorado; o resto ainda ardia e uma
labareda muito clara saía das aberturas das janelas e do tecto.
Assim que transpôs a cancela, o bafo do calor sufocou-o, recuando
involuntariamente.
— Qual, qual é a vossa casa? — perguntou.
— Aquela! — choramingou a criada, apontando para o pavilhão. — É aquela a
nossa casinha, aquela! E tu lá no meio das chamas, Katetchka, minha querida
menina... — Diante da casa em chamas, Aniska julgava-se obrigada a dar
testemunho dos seus sentimentos.
Pedro avançou direito ao pavilhão, mas o calor que dele irradiava era tal que
viu-se obrigado a contorná-lo e assim veio a, achar-se diante de um casarão que
estava a arder num dos ângulos do telhado e em volta do qual enxameavam
muitos franceses. De princípio não percebeu o que estavam a, fazer, carregando
várias coisas, mas ao ver um deles vibrar duas sabradas num camponês para lhe
arrancar das mãos uma capa de peles de raposa, compreendeu vagamente que
andavam na pilhagem. Aliás, não teve tempo sequer de pensar duas vezes. O
fragor das paredes e dos vigamentos desmoronando-se, o silvo das chamas, os
gritos estridentes da multidão, os penachos de fumo, ora negros e espessos, ora
mais transparentes e sulcados pela cintilação das fagulhas, das chamas, quer
vermelhas, compactas, como medas de fogo, quer como escamas de ouro, trepando
ao longo das paredes das casas, tudo isto e a sufocação que a carreira lhe causara
e a transpiração produzida pelo calor criaram nele um estado de enervamento
vulgar em tais circunstâncias. Tão violento foi o efeito nele produzido por tudo isto
que de súbito se sentiu como que liberto dos pensamentos que o obcecavam. Dir-
se-ia mais novo, mais alegre, mais ágil e decidido. Contornou o pavilhão pelo lado
da casa e arremetia já pela parte ainda de pé, quando, precisamente por cima da
cabeça, ouviu gritos, logo seguidos de um estalido e do som de qualquer coisa
pesada que lhe veio cair ao lado.
Pedro voltou-se: uns franceses atiravam, de uma janela abaixo, a gaveta de
uma cómoda cheia de objectos de metal. Outros soldados franceses, em baixo,
aproximaram-se.— Bem, que é que ele quer? — gritou um deles ao ver Pedro.
— Uma criança nesta casa. Não viu uma criança? — perguntou este.
— Essa agora! Que está ele a dizer? Vai passear! — exclamaram diversas
vozes e um dos soldados, receoso de que Pedro lhe roubasse algumas das alfaias
de prata e bronze que enchiam a gaveta, avançou para ele, ameaçador.
— Uma criança? — gritou um francês lá de cima. — Ouvi piar alguém no
jardim. Talvez seja o garoto do pobre diabo. É preciso sermos humanos...
— Onde está ele? Onde está ele? — inquiriu Pedro.
— Ali! Ali! — gritou-lhe o francês, da janela, apontando-lhe para o jardim por
detrás da casa.— Espere, eu vou lá abaixo.
E, realmente, momentos depois, o francês, um rapagão moreno, com uma
mancha na cara, em mangas de camisa, saltava pela janela do rés-do-chão e,
dando uma palmada no ombro de Pedro, corria com ele para o jardim.
— Despachem-se — gritava o francês aos camaradas— Começa a aquecer.
Travando do braço de Pedro, levou-o consigo para as traseiras da casa, por um
caminho areado, e olhou em roda. Debaixo de um banco, deitada, estava uma
pequenita dos seus três anos com um vestidinho cor-de-rosa.
— Aqui tem o seu garoto. Ah!, é uma pequena! Ainda bem! — exclamou ele.
— Adeus! É preciso sermos humanos. Somos todos mortais. — E voltou para junto
dos camaradas.
Sufocado de alegria, Pedro correu para a pequenita e quis pegar-lhe ao colo.
Mas esta, uma pobre criança de aspecto enfermiço e expressão desagradável, tal
qual a mãe, principiou a gritar assim que viu um estranho caminhar para ela,
fugindo. Pedro conseguiu, no entanto, deitar-lhe a mão. Então os seus gritos
recrudesceram, esperneando, sacudindo as mãos para lhe escapar e tentando
mesmo mordê-lo. Um sentimento de repulsa e horror se apoderou de Pedro; dir-se-
ia que Locara num animal repugnante. Teve de vencer a sua relutância para não
abandonar ali mesmo a criança, e correu para a casa com o fardo nos braços. Já
não era possível, contudo, seguir o mesmo caminho. Aniska já não estava onde ele
a deixara, e então Pedro, estreitando contra si, num misto de carinho e
repugnância, a pequenita, que gritava com desespero, abalou com ela, jardim fora,
na esperança de encontrar outra saída.
[XXXIV]
Quando, depois de atravessar vários pátios e becos, voltou ao jardim de
Gruzinski, à esquina da Rua Povarskaia, sempre com a criança nos braços, Pedro
principiou por não reconhecer o sítio onde estava, tanta a gente ali acumulada e
tantos os salvados das casas em volta. Além das famílias russas e dos seus haveres
arrancados ao fogo, viam-se ali soldados franceses de diversos regimentos. Pedro
não reparou neles. Tinha pressa de encontrar a família do funcionário para
entregar a criança à mãe e voltar prestar os seus serviços na esperança de ser
útil. Parecia-lhe que ainda havia muita coisa a fazer e que era preciso não perder
tempo. Excitado pela carreira e pelo calor das chamas, ainda mais sentia o ardor
juvenil e a energia que se apossaram dele quando acorrera a salvar a criança. A
pequenita calara-se, e fincando as mãozitas no cafetã de Pedro aninhava-se-lhe nos
braços, olhando à roda com uns olhitos de animal bravio. Pedro mirava-a de
quando em quando e sorria-lhe. Havia qualquer coisa de comovedor na expressão
assustada daquela carinha inocente e enfermiça.
Do funcionário e da mulher nem rasto no lugar onde ele os deixara, E lá ia, em
grandes passadas, de grupo em grupo, perscrutando toda a gente. Ao passar, em
dada altura, viu uma família georgiana ou arménia: um velho, de belo tipo
oriental, de tulupe debruada e botas novas, uma velha do mesmo tipo e uma
rapariga. Esta última, muito nova, afigurou-se-lhe um exemplar perfeito de beleza
oriental, com as suas sobrancelhas negras, arqueadas, de perfeito desenho, e o seu
belo e longo rosto corado, de uma extraordinária doçura, se bem que
absolutamente inexpressivo.
No meio de todos aqueles objectos espalhados pelo chão, entre aquela
multidão, naquela praça, com a sua rica capa de cetim pelas costas e na cabeça o
seu lenço violeta-vivo, dir-se-ia uma delicada planta de estufa abandonada à neve.
Sentada em cima de uns embrulhos, um pouco à retaguarda da velha, pousava no
chão os grandes olhos imóveis, talhados em amêndoa, de longas pestanas. Via-se
perfeitamente que sabia ser bonita e que isso a preocupava. Tanto o surpreendeu
a sua cara que Pedro, ao passar por ela, apressado, ao longo do tapume, a fitou
várias vezes. Entretanto, tendo chegado ao extremo do tapume, e não vendo em
parte alguma quem procurava, parou, indeciso.A sua figura, com a criança ao colo, dava agora mais na vista alguns russos,
homens e mulheres, aproximaram-se dele.
— Perdeste alguém, amigo? És fidalgo, não és? De quem é essa criança? —
perguntavam— lhe.
Pedro explicou que a criança era da mulher de capa preta que há pouco ali
estava com os seus outros filhos e perguntou se porventura a não conheceriam e
aonde fora.
— Devem ser os Anferov — interveio um diácono, dirigindo-se à mulher picada
de bexigas... — Deus se amerceie de nós! — acrescentou ele na sua voz de baixo.
— Quê? Os Anferov? — respondeu uma mulher. — Os Anferov foram-se esta
manhã. Talvez os Maria Nikolaievna ou então os Ivanov.
— Ele está a falar numa mulher e Nikolaievna é uma senhora — observou um
lacaio.
— Devem conhecê-la. Tem os dentes muito grandes, é magra. — volveu Pedro.
— Sim, então é a Maria Nikolaievna. Fugiram para o jardim na altura em que
estes lobos aqui apareceram — disse a velha, apontando para os soldados
franceses,
— Oh! Senhor, misericórdia! — continuava o diácono.
— Por aqui, por aqui encontra-os. É, é ela. Estava a chorar a lamentar-se... —
disse a, mulher. — Sim. é ela com certeza. Por aqui.
Mas Pedro já a não ouvia. Estava a observar uma cena a pouca distancia entre
a família arménia e dois soldados franceses. Um deles, baixinho, vivo, envergava
um capote azul cingido ao corpo por uma corda. Na cabeça trazia um quépi de
polícia e estava descalço. O outro, em que Pedro especialmente atentara, era um
rapazola alourado, com uma capa de lã, umas calças azuis, minto largas, e botas de
montar todas rotas. O pequeno, que não tinha botas, aproximou-se dos arménios,
disse-lhes qualquer coisa, apontou para os pés do velho e este deu-se pressa em
descalçar-se. O outro postou-se diante da bela arménia e pôs-se a olhar pira ela,
calado, de mãos nas algibeiras.
— Toma, toma a criança — disse Pedro, de súbito, e num tom autoritário, para
a velha. — Tu encarregas-te de a entregares, hem! Estás a ouvir? — E depôs no
chão a criança, que chorava, voltando-se para o grupo dos franceses e dos
arménios.
O velho já estava descalço. O soldado francês que acabava de se apoderar dasegunda bota batia uma contra a outra. O pobre homem, com as lágrimas nos
olhos, murmurava qualquer coisa. Mas Pedro não prestava grande atenção a essa
cena. Estava atento ao que se passava com o outro soldado, que entretanto,
pouco a pouco, se fora aproximando da rapariga e lhe levara, mesmo, a mão ao
pescoço.
A arménia ficara imóvel, com as suas longas pestanas baixas, como se nada
visse nem desse pelo que se passava.
Ainda Pedro não chegara junto do francês, já o bandido arrancara o colar que a
arménia trazia ao pescoço. A pobre, levando as mãos à garganta, soltara um grito
agudo.
— Deixe a mulher! — vociferou Pedro, agarrando-o pelos ombros e atirando-o
ao chão.
O soldado caiu, levantou-se e deitou a fugir. Mas o companheiro, jogando fora
as botas, sacou da baioneta, e caminhou ameaçador para Pedro.
— Então, nada de tolices! — gritou.
Pedro fora tomado por um desses seus acessos de fúria em que por nada dava
e em que as forças se lhe multiplicavam. Caiu sobre o soldado, e antes que este
pudesse servir-se da baioneta prostrara-o e cobria-o de murros. A multidão pôs-se
a gritar, incitando-o. Nesse momento contudo desembocava da esquina da rua
uma patrulha montada de ulanos franceses que a galope avançou sobre os dois,
cercando-os. Pedro não deu pelo que depois se passou. Lembrava-se vagamente de
ter esmurrado alguém, de lhe responderem na mesma moeda, acabando por lhe
amarrarem as mãos atrás das costas enquanto um magote de soldados rodeava e
revistava.
— Ele tem um punhal, tenente! — Eis as primeiras palavras que distintamente
pôde compreender.
— Ah!, uma arma! — exclamou o oficial. E dirigindo-se ao soldado amador de
botas, sob prisão como o próprio Pedro: — Muito bem, explicarão tudo isso no
Conselho de Guerra — advertiu-o. E depois, voltando-se para Pedro: — Fala
francês?
Pedro olhou em volta de si com os olhos injectados de sangue e não respondeu.
Era de crer que o seu aspecto não fosse dos mais tranquilizadores, pois o oficial
deu uma ordem em voz baixa e quatro ulanos saíram do pelotão indo colocar-se à
direita e à esquerda do preso.— Fala francês? — repetiu o oficial, conservando-se a respeitosa distancia. —
Mande vir aqui o intérprete.
Um homenzinho de pequena estatura, vestido à paisana, saiu das fileiras.
Pedro, pelo seu vestuário e a sua maneira de falar, Percebeu imediatamente
tratar-se de um empregado de uma loja de Moscovo.
— Não tem ar de homem do povo — observou o intérprete, depois de um
breve exame.
— Oh!, oh! Tem todo o ar de ser um desses incendiários — comentou o oficial.
— Pergunte-lhe o que é ele.
— Quem és tu? — perguntou o intérprete. — Deves responder às autoridades.
— Não tenho que lhes dizer quem sou. Sou vosso prisioneiro. Levem-me. —
disse Pedro, subitamente, em francês
— Ah!, ah! — exclamou o francês franzindo o sobrolho. — Partamos!
A multidão fizera roda em torno dos ulanos, Junto de Pedro estava a mulher
bexigosa de há pouco com a pequenita ao colo. Quando a patrulha se pôs em
marcha, a mulher seguiu-a.
— Aonde te levam eles, santinho? — interrogou-o ela. — E a pequena, que
hei-de eu fazer-lhe, se não for deles?
— Que quer essa mulher? — perguntou o oficial.
Pedro parecia embriagado. Ao ver a pequenita a quem salvara a vida ainda
mais exaltado ficou.
— Que diz ela? — vociferou ele. — Traz-me a minha filha, que eu acabei de
salvar das chamas. Adeus! — E, sem que ele próprio soubesse porque dissera tal
mentira inútil, pôs-se a marchar, num passo enérgico e solene, entre a escolta
francesa.
Esta patrulha fazia parte do número das patrulhas enviadas por Durosnel para
diferentes bairros da cidade com a missão de dar caça aos salteadores e
especialmente deitar a mão aos bandidos que, segundo a opinião nessa altura
dominante no alto comando francês, haviam incendiado Moscovo. Depois de
atravessar várias ruas, a patrulha deitou ainda a mão a cinco russos suspeitos, um
boticário, dois seminaristas, um camponês, um lacaio, e a um certo número de
salteadores. Mas, de todos os suspeitos, Pedro parecia o mais perigoso. Quando os
conduziram à prisão militar, estabelecida num casarão junto da muralha de
Zubovo, foi isolado dos outros e submetido a uma vigilância rigorosa.
LIVRO QUARTO
PRIMEIRA PARTE
[I] [II] [III] [IV] [V] [VI] [VII] [VIII] [IX] [X] [XI] [XII] [XIII] [XIV] [XV]
[I]
Entretanto, nas altas esferas de Petersburgo, a complicada luta dos partidários
de Rumiantsov, dos Franceses, de Maria Feodorovna, do czarevitch, luta a que
vinha juntar-se, como sempre, o zumbido dos moscardos cortesãos, continuava
mais encarniçada do que nunca. Mas a vida tranquila, luxuosa, exclusivamente
preocupada com miragens e aparências, essa prosseguia o seu curso habitual.
Seriam precisos grandes esforços para essa gente se dar conta do perigo e das
dificuldades que apresentava a situação do povo russo. Continuavam a celebrar-se
as mesmas representações no teatro francês. Subsistiam os mesmos interesses e
as mesmas intrigas de corte e hierarquia. Apenas nas muito altas esferas havia
quem se preocupasse em conhecer a verdadeira situação. A boca pequena falava-
se na maneira como as duas imperatrizes, em tão graves circunstâncias, procediam
de forma completamente diferente. A imperatriz Maria Feodorovna, preocupada
antes de mais nada com os estabelecimentos hospitalares e educativos confiados
aos seus cuidados, tomara as suas medidas para que esses institutos fossem
transferidos para Kazan e já mandara encaixotar tudo o que lhes pertencia. A
imperatriz Elizabeth Alekseievna, pelo contrário, com o seu habitual patriotismo,
quando lhe perguntaram quais as suas ordens, respondera que não tinha ordem
alguma a dar relativamente aos estabelecimentos do Estado, pois isso era assunto
que só ao imperador dizia respeito. E quanto a si própria declarara que seria a
última pessoa a deixar Petersburgo.
A 26 de Agosto, no dia da batalha de Borodino, Ana Pavlovna dava uma
recepção cujo principal atractivo consistia na leitura da carta do metropolita,
escrita por ocasião do envio ao imperador da imagem do bem-aventurado S.
Sérgio. Essa carta era considerada um modelo de patriotismo e de eloquência
religiosa, Foi o príncipe Vassili, afamado pelo seu talento de declamação, quem se
encarregou da leitura. Inclusivamente, já a lera para a própria imperatriz. O seu
talento consistia especialmente em pronunciar em voz forte e cantante, passandodo tom grave ao tom açucarado, e isso sem a mais pequena relação com o
significado das palavras, de sorte que era perfeitamente ao acaso que avolumava
o tom em certos passos, quase murmurando outros. Esta leitura, como, aliás, todas
as recepções de Ana Pavlovna, tinha significado político, Deviam encontrar-se aí
várias personalidades que corariam de vergonha por continuarem, a frequentar o
Teatro francês e a quem queria chamar-se à ordem insuflando-lhes sentimentos
mais patrióticos. Já estava muita gente nos seus salões, mas a dona da casa ainda
não vira entrar quem esperava, e assim toda a gente principiara a conversar
antes que se iniciasse a leitura.
A notícia da última hora era o estado de saúde da condessa Bezukova. Dias
antes sentira-se subitamente indisposta, tendo faltado a várias reuniões de que
era o principal ornamento. Dizia-se que a ninguém recebia e que em vez de
chamar as celebridades médicas de Petersburgo que habitualmente a tratavam, se
confiara a um certo médico italiano, que estava a aplicar-lhe um método novo e
completamente desconhecido.
Toda a gente sabia muito bem que a doença da encantadora condessa era
devida ao embaraço em que a punha o ter de escolher entre dois maridos e que o
tratamento do italiano visava sobretudo ajudá-la a sair desse embaraço. Mas
diante de Ana Pavlovna ninguém ousava abordar esta questão delicada ou fazer-
lhe sequer qualquer alusão.
— Dizem que a pobre condessa está muito mal, o médico é de opinião que se
trata de uma angina de peito.
— A angina? Oh!, que doença terrível!
— Dizem que os rivais se reconciliaram por causa da angina... — Grande era o
prazer com que pronunciavam a palavra angina...
— O velho conde faz pena, segundo dizem. Chorou como uma criança quando o
médico lhe disse que o caso era grave.
— Oh!, que perda terrível! É uma mulher deslumbrante. — Está a falar da
condessa — disse Ana Pavlovna, aproximando-se. — Mandei saber do seu estado.
Parece que esta um pouco melhor. Não há dúvida de que é a mais encantadora das
mulheres — acrescentou, sorrindo do seu próprio entusiasmo. — Pertencemos a
campos diferentes, mas isso não me impede de a apreciar como ela merece. É
muito infeliz.
Julgando que Ana Pavlovna, com estas últimas palavras, queria erguerligeiramente a ponta do véu que envolvia aquela doença misteriosa, um rapazola,
estouvadamente, permitiu-se mostrar-se surpreendido com o facto de se não
terem chamado médicos conhecidos em vez de entregarem a condessa aos
cuidados de um charlatão, capaz de lhe ministrar remédios perigosos.
— As suas informações podem ser melhores do que as manhãs. — replicou-lhe
azedamente a dona da casa. — Mas eu sei, de fonte segura, que este médico e um
homem muito sabedor e muito competente. É um médico íntimo da rainha de
Espanha.
E depois de assim ter tapado a boca ao mancebo, voltou-se para onde estava
Bilibine, que, noutra roda, de testa enrugada, se preparava para a desenrugar,
pois ia dizer um mot., falava dos Austríacos.
— Acho encantador — dizia, a propósito do documento diplomático que
acompanhava a Viena as bandeiras austríacas tomadas por Wittgenstein, o herói
de Petropol, como lhe chamavam em Petersburgo.
— Como? — perguntou Ana Pavlovna, tentando calar os que falavam para que
toda a gente pudesse ouvir o dito espirituoso, o qual, aliás, ela já conhecia.
Bilibine citou as próprias palavras do despacho diplomático, que ele mesmo
redigira:
— O imperador restitui as bandeiras austríacas, bandeiras amigas e
descaminhadas que ele encontrou fora da estrada — disse, desenrugando a testa.
— Magnífico! Magnífico! — confirmou o príncipe Vassili.
— É a estrada de Varsóvia, talvez — exclamou em voz alta e inopinadamente
o príncipe Hipólito.
Toda a gente se voltou para ele, embora ninguém compreendesse o que ele
queria dizer. O próprio Hipólito teve um olhar surpreendido. Também ele não
compreendia, aliás como os outros, o que aquelas palavras queriam dizer. No
decurso da sua carreira diplomática, mais de uma vez tivera ocasião de observar
que as coisas ditas ao acaso eram às vezes consideradas muitíssimo espirituosas, e
por isso a torto e a direito dizia o que lhe Passava pela cabeça. «Talvez isto tenha
muito êxito e, se o não tiver, eles lá se encarregarão de tirar partido do que eu
disse.» E, com efeito, no momento em que se ia fazer um silêncio algo embaraçoso,
entravam no salão as personalidades insuficientemente patrióticas que Ana
Pavlovna aguardava, e ela, sorrindo, enquanto ameaçava com o dedo o príncipe
Hipólito, pedia ao príncipe Vassili que se aproximasse da mesa. Depois trouxe,duas velas, o manuscrito, e convidou-o a encetar a leitura. Toda a gente se calou.
«Mui augusto soberano e imperador!», exclamou o príncipe Vassili numa voz
severa, lançando um olhar à sua roda que parecia inquirir se tinham alguma
objecção a fazer. Como ninguém abrisse a boca, continuou: «Moscovo, a tua
primeira capital, a Nova Jerusalém, vai receber o seu Cristo...», e sublinhou
fortemente a palavra «seu», «...como uma mãe que se lança nos braços dos seus
filhos bem-amados, e por entre as trevas, acautelando a glória brilhante do teu
poder, canta com entusiasmo: Hossana! Bendito seja aquele que chega!»
O príncipe Vassili pronunciou estas últimas palavras em voz chorosa.
Bilibine contemplava com grande atenção as suas próprias unhas e vários
convidados entreolhavam-se, receosos, como que a perguntarem uns aos outros de
que seriam culpados. Ana Pavlovna antecipou-se a dizer em voz sussurrante, como
as velhas ao tomarem a sagrada comunhão, as palavras que o príncipe Vassili ia
dizer: «Que o audacioso e o impudente Golias...»
O príncipe Vassili prosseguiu, realmente:
«Que o audacioso e impudente Golias, vindo das fronteiras da França, inunda
as terras da Rússia dos seus horrores mortíferos; a humilde fé, essa funda do David
russo, abaterá, de súbito, a sua orgulhosa cabeça ávida de sangue, Esta imagem
do bem-aventurado Sérgio, o defensor secular da paz da nossa pátria, será
apresentada a Vossa Majestade Imperial. Lamento que as minhas débeis forças me
impeçam de gozar da contemplação do vosso rosto. Envio ao Céu as mais
fervorosas orações para que o Todo— Poderoso se digne multiplicar a raça dos
justos e levar a bom termo os desejos de Vossa Majestade,»
— Que força! Que estilo! — diziam, elogiando ao mesmo tempo o autor e o
leitor.
Reconfortados com aquela prova de eloquência, os convidados de Ana
Pavlovna por muito tempo ainda conversaram sobre a situação da pátria, fazendo
vários prognósticos sobre o resultado da batalha que se esperava para dentro de
dias.
— Vai ver — dizia Ana Pavlovna — que amanhã, dia do aniversário do
imperador, vamos ter notícias frescas. Tenho cá os meus pressentimentos.
[II]
Os pressentimentos de Ana Pavlovna realizaram-se efectivamente. No dia
seguinte, à hora dos ofícios diversos celebrados no palácio em honra do
aniversário do soberano, o príncipe Volkonski foi chamado à porta da igreja e
fizeram-lhe entrega de uma carta que vinha da parte do príncipe Kutuzov. Era o
relato, datado de Tatarinovo, dia da batalha. Kutuzov dizia que os Russos não
tinham recuado um só passo que fosse, que as perdas dos Franceses eram muito
mais importantes que as dos Russos e que redigia o seu relatório, à pressa, no
campo de batalha, sem ainda ter podido reunir todos os elementos necessários.
Mas não havia dúvida de que se tratava de uma vitória.
Imediatamente, sem abandonarem a igreja, foram ditas orações de graças pela
ajuda que o Criador trouxera aos seus fiéis e pela vitória alcançada.
Os pressentimentos de Ana Pavlovna tinham-se realizado e toda a manhã
reinou na cidade como que uma jovial atmosfera festiva. Toda a gente estava
convencida de que a vitória fora completa e alguns diziam já que Napoleão,
prisioneiro, fora deposto e a França tinha novo soberano.
Longe dos acontecimentos e na atmosfera da corte era muito difícil conhecer os
factos em toda a sua plenitude e importância. Apesar de tudo, os acontecimentos
gerais concentravam-se num caso particular qualquer. A alegria dos cortesãos era
provocada menos pela vitória anunciada que pelo facto de a notícia ter chegado
precisamente no dia do aniversário do imperador, Era como que uma surpresa
bem a propósito. Kutuzov falava igualmente de perdas russas, citava Tutchkov,
Bagration, Kutaissov. Todas estas novas desagradáveis se concentraram
involuntariamente em torno de um único facto, a morte de Kutaissov. Toda a
gente o conhecia, o imperador estimava-o, era novo e homem interessante. Nesse
dia as pessoas que se encontravam diziam entre si:
— Que estranho! Precisamente durante a cerimónia religiosa! Que perda, a de
Kutaissov! Ah!, que pena!
— Que lhe disse eu de Kutuzov? — repetia agora o príncipe Vassili, orgulhoso
das suas profecias. — Sempre disse que me parecia o único capaz de vencer
Napoleão.
No dia seguinte, porém, não se receberam notícias do exército e a opinião
pública começou a andar desassossegada. Os cortesãos sofriam pela incerteza emque estava o imperador, que nada sabia também.
«Que situação terrível!», diziam eles, e já ninguém entoava cânticos a Kutuzov
como no dia anterior, responsabilizando— o, pelo contrário, pela inquietação do
monarca. O príncipe Vassili já não se jactava do seu protegido Kutuzov, calando-se
quando falavam dele. Além disso, naquela noite tudo parecia conjurar-se para
perturbar e desassossegar a população de Petersburgo: uma notícia pavorosa se
espalhou. A condessa Helena Bezukova morrera subitamente vitimada pela
terrível doença que fora motivo de comentários fúteis. Nas altas esferas dizia-se
oficialmente que a condessa sucumbira a uma crise de angina de peito, mas nos
meios particulares contava-se que o médico íntimo da rainha de Espanha lhe
prescrevera, é certo, pequenas doses de um medicamento adequado à sua doença,
mas que ela, atormentada pelas suspeitas do velho conde e sem notícias do
marido — esse infeliz e depravado Pedro — ingerira uma grande porção dessa
droga, expirando no meio de um sofrimento atroz antes que lhe pudessem prestar
qualquer socorro. Dizia-se ainda que o príncipe Vassili e o velho conde seu
pretendente tinham chamado a capítulo o médico italiano, mas que este exibira
tais cartas da infeliz que ambos acharam por bem deixá-lo em paz.
Eis como as conversas de salão se concentravam nestes três pontos: a
Incerteza, do imperador, o desaparecimento de Kutaissov e a morte de Helena.
Três dias depois daquele em que se recebera a informação de Kutuzov, chegou
a Petersburgo um proprietário rural, procedente de Moscovo, que espalhou a
notícia segundo a qual a capital fora abandonada aos Franceses. Era incrível! Em
que situação ficava o czar? Kutuzov era um traidor e o príncipe Vassili, durante as
visitas de pêsames de que fora alvo em virtude do falecimento da filha, disse de
Kutuzov, que outrora lhe merecera os mais rasgados elogios, que não era de
esperar outra coisa daquele velho cego e pervertido. Está claro que a dor por que
passava justificava perfeitamente que se lhe perdoasse o esquecimento da sua
opinião anterior.
— O que me surpreende é que se tenha confiado o destino da Rússia a um
homem desta espécie.
Enquanto a notícia não teve confirmação oficial, ainda, havia a esperança de
que fosse menos verdadeira, mas no dia seguinte recebeu-se do conde
Rostoptchine a informação que se segue:
Um ajudante-de-campo do príncipe Kutuzov acaba de
me trazer uma carta na qual me pede oficiais da polícia
para acompanharem o exército ao longo da estrada de
Riazan. E participa-me que tem o desgosto de me
comunicar o abandono de Moscovo. Majestade! O acto de
Kutuzov decide da sorte da capital e do vosso império.
Toda a Rússia vai tremer ao ter conhecimento da perda de
uma cidade que resume toda a nossa grandeza e em que
repousam as cinzas dos vossos antepassados! Sigo o
exército. Levo comigo tudo que é possível, só me resta
chorar sobre o destino da minha pátria.
Ao receber este comunicado, o imperador mandou transmitir a Kutuzov, por
intermédio do príncipe Volkonski, o rescrito seguinte:
Príncipe Mikail Ilarionovitch! Desde 29 de Agosto que
estou sem notícias suas. Acabo de receber, por intermédio
de Iaroslav, do governador de Moscovo, a triste notícia,
datada de 1º de Setembro, de que o exército e o seu
general tinham decidido abandonar a velha capital. Pode
calcular o efeito que essa notícia me causou, e o seu
silêncio ainda aumenta mais a minha estupefacção. Com
esta lhe envio o general ajudante-de-campo príncipe
Volkonski, que se encarregará de saber junto de si qual a
posição do exército e as razões que o levaram, a tomar
resolução tão infeliz.
[III]
Nove dias depois do abandono de Moscovo, um enviado de Kutuzov chegou a
Petersburgo com a comunicação oficial do facto. Era ele o francês Michaux, que,
embora estrangeiro, russo de alma e coração, pelo menos ele assim o dizia. Oimperador recebeu-o imediatamente no seu gabinete do palácio de Kameni-
Ostrov. Michaux, que nunca estivera em Moscovo antes da campanha e que não
falava russo, sentia-se muito comovido, como o escreveria mais tarde, ao
apresentar-se diante de o nosso mui gracioso soberano para lhe anunciar o
incêndio da cidade, cujas chamas lhe iluminavam a estrada.
Embora, certamente, o pesar de Monsieur Michaux não pudesse deixar de ser
de uma espécie muito diferente do dos verdadeiros súbditos russos, tão aflita era
a sua expressão ao Penetrar no gabinete que o imperador lhe perguntou
imediatamente:
— Traz-me más notícias, coronel?
— Muito más, Sire — replicou Michaux, suspirando e baixando os olhos: — O
abandono de Moscovo.
— Terão entregado a minha velha capital sem combate? — perguntou o
imperador, sentindo, de súbito, a cólera apossar-se de si. Michaux transmitiu-lhe,
respeitosamente, a mensagem de Kutuzov, dizendo não ser possível travar
batalha diante das muralhas da cidade e que, perante a alternativa de perder ao
mesmo tempo o exército e Moscovo ou apenas Moscovo, o marechal se vira
obrigado a escolher a última solução.
O imperador ouvia, calado, sem olhar para o seu interlocutor.
— O inimigo entrou na cidade? — inquiriu.
— Entrou, Sire, e a esta hora está em cinzas. Deixei-a toda em chamas. —
Estas palavras proferiu-as resoluto, mas o efeito que elas produziram lançaram-no
em grande confusão.
Alexandre I principiou a respirar apressadamente e com dificuldade, tremeu-
lhe o lábio inferior e acto contínuo os seus belos olhos azuis humedeceram-se de
lágrimas.
Foi obra de segundos. De súbito, franziu as sobrancelhas e, como se reprovasse
a sua própria fraqueza, ergueu a cabeça e disse a Michaux em voz firme:
— Estou a ver, coronel, em presença de tudo que nos tem acontecido, que a
Providência exige de nós grandes sacrifícios.... Estou pronto a submeter-me a todas
as suas vontades; mas diga-me, Michaux, como lhe pareceu o exército, ao ver
assim abandonar a minha velha capital, sem dispararem um tiro? Não reparou se
havia desânimo?...
Ao ver que o seu mui gracioso soberano sossegara, Michaux sossegou também,mas a pergunta concreta do imperador, que exigia uma resposta igualmente
concreta, lançou-o num certo embaraço.
— Sire, consente que vos fale francamente como soldado leal que sou? — disse
ele para ganhar tempo.
— Coronel, exijo-o sempre — replicou o imperador — Não me esconda nada,
quero saber absolutamente o que se passa.
— Sire! — exclamou Michaux com um sorriso quase imperceptível, tendo
conseguido imprimir à sua resposta a forma de respeitoso jogo de palavras. —
Sire, deixei todo o exército, desde os chefes até ao soldado raso, sem excepção,
tomado de um medo pavoroso, assustador...
— Como? — interrompeu o imperador franzindo o sobrolho. — Deixar-se-ão os
meus russos abater pela desgraça... Nunca...
Era o que Michaux esperava para utilizar o seu jogo de palavras.
— Sire — continuou, com um ligeiro e respeitoso sorriso. — A única coisa que
eles temem é que Vossa Majestade, por bondade de coração, se deixe convencer a
fazer a paz. Todos estão mortos por combater e por provar a Vossa Majestade,
com o sacrifício das suas vidas, quanto lhe são dedicados...
— Ah! — exclamou o soberano, tranquilizado, batendo-lhe no ombro e
assumindo uma atitude amável — Tranquiliza-me, coronel.
Permaneceu calado alguns instantes, de cabeça baixa.
— Pois bem, volte para o campo de batalha — continuou, perfilando a sua alta
estatura, e com um gesto afável e magnânimo — e diga aos nossos valentes, diga
a todos os meus bons súbditos, por toda a parte por onde passar, que quando eu já
não tiver nenhum soldado, eu próprio me porei à frente da minha querida
nobreza, dos meus bons camponeses e bater-me-ei até ao último recurso do meu
império. Ele ainda tem para me dar muito mais do que pensam os meus inimigos.
— E cada vez mais exaltado: — Mas se estiver escrito nos decretos da Providência
— prosseguiu, erguendo para o céu os seus bonitos olhos cheios de suavidade e
sentimento — que a minha dinastia deva deixar de reinar no trono dos meus
antepassados, então depois de esgotados todos os recursos em meu poder,
preferirei deixar crescer a barba até aqui, e ir comer batatas com o último dos
meus camponeses, a aceitar o vergonha da minha pátria e da minha querida
nação, cujos sacrifícios tanto aprecio...
Depois de ter pronunciado estas palavras com voz comovida, o imperadorvoltou a cara, como se quisesse esconder as lágrimas que lhe jorravam dos olhos, e
deu alguns passos até ao fundo do seu gabinete. Aí permaneceu instantes,
voltando, em largas passadas, direito a Michaux, e num gesto enérgico apertou-
lhe a mão. O seu belo e meigo rosto afogueara-se e nos seus olhos cintilava a
decisão e a cólera.
— Coronel Michaux, não se esqueça do que eu lhe digo aqui; talvez um dia o
recordemos com satisfação... — E, falando assim, batia na arca do peito. —
Napoleão ou eu. Não pode continuar a reinar ao mesmo tempo. Aprendi a
conhecê-lo, não me voltará a enganar.
E, franzindo o sobrolho, calou-se. Michaux, embora estrangeiro, russo de alma
e coração, lendo nos olhos do soberano a sua firmeza e a sua decisão, sentiu-se,
naquele momento solene, entusiasmado pelo que acabava de ouvir, consoante o
viria a escrever depois, e com as palavras seguintes exprimiu ao soberano, ao
mesmo tempo, os seus próprios sentimentos e os do povo russo, de que se
considerava como que porta-voz:
— Sire! — articulou ele. — Vossa Majestade assina neste momento a glória da
nação e a salvação da Europa.
E o imperador, com um aceno de cabeça, despediu Michaux.
[IV]
Nós, que não vivemos naquela época, em que metade da Rússia estava nas
mãos do conquistador, os habitantes de Moscovo se refugiavam nas províncias
mais longínquas e os levantamentos de milícias se sucediam uns aos outros com
vista à defesa da pátria, imaginamos que então todos os russos, do mais elevado
ao mais humilde, não tinham outro pensamento que não fosse o de sacrificar-se
para salvar a pátria ou morrer com ela. Todos os relatos daquela época, sem
excepção, falam de sacrifícios, de amor à pátria, de desespero e de heroísmo. Mas
a realidade não era bem essa. Do passado apenas vemos as grandes linhas
históricas, enquanto os interesses puramente humanos e pessoais nos passam
despercebidos. No entanto, esses interesses puramente humanos e pessoais são
muito mais importantes que os interesses colectivos. Os primeiros não deixam vernem sentir os últimos. A maior parte dos homens daquela época não prestava a
mais pequena atenção à marcha geral dos acontecimentos, inteiramente ocupada
com os seus próprios interesses. E esses homens é que gozavam da fama de ser as
criaturas mais indispensáveis desse tempo.
Aqueles que, pelo contrário, procuravam apreciar os acontecimentos de um
ponto de vista elevado, tentando agir com devoção e heroísmo, esses eram tidos
como inúteis na sociedade. As suas ideias divergiam em tudo das dos demais e
tudo quanto levavam a cabo, na melhor das intenções, aos olhos da maior parte
das pessoas não passava de inutilidades, como, por exemplo, os regimentos
organizados por Pedro e Mamonov, que não faziam outra coisa senão saquear as
aldeias e roubar as ligaduras preparadas pelas senhoras da sociedade, as quais
nunca chegavam às ambulâncias. Até mesmo aqueles que, para exibirem os seus
dotes de inteligência e as suas louváveis intenções, se davam a fazer comentários
à situação eram acusados de duplicidade e de mentira ou de fazerem juízos
temerários e malévolos sobre as pessoas que assim tornavam responsáveis de
actos de que ninguém era culpado. Em história, ainda mais do que em qualquer
outro assunto, devemos coibir-nos de provar dos frutos da, árvore de ciência. Só os
actos inconscientes frutificam deveras e os homens que desempenham papel na
história nunca percebem a importância do que fazem. Quando porventura
acontece darem por isso, imediatamente os seus actos se tornam estéreis.
O significado dos acontecimentos que naquela altura se estavam a dar na
Rússia era tanto mais inapreensível quanto era certo os homens deles
participarem muito intimamente. Tanto em Petersburgo como nas províncias
distantes de Moscovo, as senhoras e os cavalheiros elegantemente fardados de
milicianos deploravam a sorte da Rússia e da sua capital, falando em sacrifícios e
noutras coisas semelhantes, enquanto que no exército, ao proceder-se à evacuação
de Moscovo, quase nunca se falava desse acontecimento: era coisa em que
ninguém pensava. Diante das casas a arder ninguém falava em vingar-se dos
Franceses. Só se, pensava no terço do soldo que cada um ia receber, na etapa
próxima, em Matrechka, na vivandeira, e em coisas do mesmo género.
Surpreendido pela guerra nas fileiras, Nicolau Rostov, sem a mais pequena
ideia de sacrifício, e levado apenas pelas circunstâncias, tomava parte activa e
prolongada na, defesa da pátria, E deste modo assistia ao desenrolar dos
acontecimentos sem os tomar muito a peito nem se permitir sombriospensamentos. Se lhe tivessem perguntado que pensava da situação, teria
respondido que nada pensava, que isso era, da competência de Kutuzov e dos
outros; ele nada mais sabia senão que se completavam os quadros dos regimentos,
sinal de que a guerra ainda estava para lavar e durar e que, tendo em vista as
circunstâncias actuais, não lhe seria difícil vir a obter o comando de um regimento
dentro de um ou dois anos.
Graças a esta sua maneira de considerar os acontecimentos, não mostrou o
mais pequeno ressentimento pelo facto de não ter tomado parte na última
batalha, aceitando com prazer o encargo de se dirigir a Voroneje a fim de
proceder à remonta da divisão, prazer que de modo algum fingiu não sentir e que
os seus camaradas consideravam perfeitamente legítimo.
Poucos dias antes da batalha de Borodino recebera os documentos e o dinheiro
preciso, tendo mandado adiante um destacamento de hússares, enquanto se
dirigia para Voroneje.
Só quem tenha passado por isso, isto é, só quem tenha permanecido meses,
ininterruptamente, em acampamentos, pode compreender a alegria que ele,
sentia ao afastar-se da zona militar com os seus forrageadores, os seus comboios
de abastecimentos e as suas ambulâncias. Quando, já longe dos soldados, das
bagagens, de tudo que assinala a vida, bem pouco elegante, do acampamento, lhe
foi dado ver aldeias com os seus camponeses e as suas camponesas, casas
senhoriais, campinas onde o gado pastava, as estações de muda com os seus
sonolentos guardas, tão grande foi o seu contentamento que se lhe afigurou ver
tudo aquilo pela primeira vez. E uma das coisas que maior alegria lhe deu foi o
voltar a ver mulheres frescas e risonhas, sem terem atrás de si, cortejando-as,
dúzias de oficiais, mulheres que se mostravam contentes e se sentiam lisonjeadas
com os galanteios do jovem viajante.
Foi com a melhor disposição deste mundo que Nicolau Rostov chegou, pela
noite, ao hotel de Voroneje, onde tratou de se regalar de tudo do que estivera
privado por tanto tempo. E no dia seguinte, barbeado e de farda de gala, que há
muito não vestia, ei-lo que se apresenta às autoridades. O comandante da milícia,
velho funcionário civil com o grau de general, parecia contentíssimo com as suas
funções militares e o posto que tinha. Recebeu Nicolau Rostov com a solenidade
que se lhe afigurava inerente à sua categoria militar e interrogou-o, sobranceiro,
como se a isso tivesse direito, aprovando-o ou reprovando-o, como homem quesabe o que diz e o que faz. Tão bem disposto estava Rostov que esta atitude o
divertiu.
Depois de sair do gabinete do comandante da milícia, dirigiu-se à residência do
governador. Este era um homenzinho vivo e solerte, muito amável e muito
simples. Indicou a Nicolau as cavalariças onde poderia adquirir as montadas,
recomendando-lhe um alquilador na cidade e um proprietário, a umas vinte
verstas de Voroneje, senhor dos melhores cavalos da região, prometendo auxiliá-
lo.
— É filho de Ilia Andreitch? Minha mulher é amiga íntima de sua mãe.
Recebemos em nossa casa todas as quintas-feiras. É hoje quinta-feira. Venha, peço-
lhe, sem cerimónia — disse-lhe ele, despedindo-se.
Depois da sua visita ao governador, Nicolau meteu-se numa telega com o
sargento e dirigiu-se às coudelarias do proprietário indicado, que ficavam a umas
vinte verstas da cidade. Tudo era fácil e divertido para ele naquela sua primeira
visita a Vororteje, e o que é facto é que tudo correu como geralmente acontece
quando uma pessoa está na melhor disposição deste mundo.
O proprietário referido era um velho solteirão, antigo oficial de cavalaria,
competência em cavalos, caçador inveterado e senhor de um rico salão todo
forrado de, tapetes, de uma vodka centenária, de um velhíssimo vinho da Hungria
e de uma excelente cavalariça.
Trocadas poucas palavras, Nicolau adquiria, por seis mil rublos, dezassete
potros escolhidos para figurarem em lugar de honra na sua remonta. Depois de um
óptimo jantar, copiosamente regado com o tal vinho da Hungria, depôs dois beijos
nas bochechas do seu anfitrião, com quem estava já tu cá tu lá, e meteu pés a
caminho, de regresso à cidade, incitando a todo o momento o postilhão para
chegar a horas de se apresentar na recepção do governador. Depois de se
encharcar de água fria dos pés à cabeça, de mudar de roupa, de se perfumar,
chegou a casa do governador um pouco já sobre o tarde, é certo, mas com uma
desculpa na ponta da língua: Mais vale tarde do que nunca.
Não havia baile e ninguém tinha falado ainda em bailar, mas toda a gente
sabia que Katerina Petrovna, sentada ao cravo, tocaria valsas e escocesas, e, por
conseguinte, se acabaria por dançar. Eis porque todas as senhoras capazes disso se
tinham apresentado com os seus vestidos de baile.
No ano de 1812 a vida numa cidade de província era exactamente igual ao quesempre fora, apenas com uma pequena diferença: haver muito mais animação em
virtude da presença de multas famílias ricas de Moscovo, e que, como aliás em
todas as coisas nessa época memorável, se sentia não se sabia o quê, uma
grandeza, um heroísmo particular, e que as pessoas, em vez de falarem do estado
do tempo e da saúde de cada um, falavam de Moscovo, do exército e de Napoleão.
Em casa do governador estava reunida a melhor sociedade de Voroneje.
Havia muitas senhoras e algumas delas que Nicolau conhecia já de Moscovo,
mas nenhum homem em condições de rivalizar com o cavaleiro de S. Jorge,
brilhante hússar da remonta, o cortês e distinto conde Rostov. Entre os convidados
encontrava-se um italiano do exército francês, prisioneiro, e Nicolau sentia que a
presença desse oficial ainda fazia sobressair mais o valor do herói russo que ele
era em verdade, Dir-se-ia ser para ele como que um troféu vivo e que toda a
gente pensava da mesma maneira. Eis porque se mostrou para com o oficial de
uma cortesia em que se misturava um pouco de dignidade e de reserva.
Assim que entrou, com o seu uniforme de hússar, irradiando à sua volta o
penetrante aroma das suas essências e do vinho que bebera, e assim que disse e
por mais de uma vez lhe responderam: «Mais vale tarde do que nunca», todos os
olhares se fixaram nele. De súbito percebeu que se tornara o favorito de todos,
coisa sempre agradável, particularmente atraente na província e que naquele
momento, depois de uma tão longa abstinência, literalmente o embriagava.
Muitas eram as criadinhas dignas das suas olhadelas que ele vira nas estações de
mudas, nas estalagens, no salão do proprietário da coudelaria, mas ali, nas salas
do governador, suspensas do seu olhar, eram numerosas, inesgotáveis, afigurava-
se-lhe, as senhoras e as formosas donzelas, Todas se mostravam dengosas com ele
enquanto as pessoas de idade pensavam já em casá-lo e arrumar o doido do
soldado. No número destas encontrava-se a esposa do governador, que acolheu
Rostov como um parente muito próximo e desde logo o tuteou, tratando-o por
Nicolau.
Efectivamente, Katerina Petrovna sentou-se ao cravo e pôs-se a tocar valsas e
escocesas. As danças principiaram e então é que Nicolau pôde acabar de
endoidecer toda a gente com a sua agilidade. A sua desenvoltura assombrou todo
o mundo. Até ele próprio estava surpreendido com a maneira como dançava
naquela noite. Nunca dançara assim em Moscovo e teria mesmo considerado
pouco decente e ordinária a ligeireza dos seus modos, caso não se tivesse sentidoobrigado, naquele meio pequeno, a causar o espanto daqueles provincianos,
graças a atitudes e maneiras deveras extraordinárias até na capital, mas que
fariam aquela gente pensar serem habituais e ainda desconhecidas na província.
Durante toda a noite não fez outra coisa senão seguir com os olhos uma bonita
e planturosa loura de olhos azuis, mulher de um funcionário local. Com essa
ingénua convicção dos jovens folgazões, segundo a qual julgam que foi para eles e
só para eles que vieram a este mundo e se criaram as mulheres dos outros. Rostov
não largou essa senhora, tratando o marido com uma Amistosa familiaridade, algo
cúmplice, como se eles soubessem já perfeitamente, ele e a mulher de tal marido,
que ambos se entendiam muitíssimo bem. A verdade, porém, é que o marido
parecia não partilhar de semelhante opinião e se mostrou por de mais frio para
com o hússar.
No entanto, a bonomia do moço oficial era tamanha que, sem dar por isso, até
ele próprio, marido, por várias vezes se deixou arrastar pela boa disposição do
cortejador de sua mulher. No entanto, lá para o fim da noite, à medida que o rosto
desta se animava e ganhava cor, o do marido cada vez parecia mais pálido e mais
carrancudo, como se a animação que sentiam se manifestasse de modo inverso,
quanto maior a dose da alegria da mulher tanto menor a dose da alegria do
marido.
[V]
Nicolau, ligeiramente reclinado na poltrona, sorrindo, muito chegado à
senhora, ia-lhe dirigindo galanteios em que a comparava às deusas da mitologia.
Mexendo as pernas dentro do seu calção justo de montar, derramando à sua
roda o aroma cálido a perfume, lançando olhares de admiração ora à sua dama ora
a si próprio e à elegância dos seus pés calçados de botins bem justos, ia dizendo
ser sua intenção raptar certa pessoa ali mesmo em Voroneje.
— E pode saber-se quem é?
— Urna encantadora mulher, uma mulher divina! Tem os olhos da cor do céu
— dizia ele mirando a sua interlocutora — uma boca de coral, ombros de uma
brancura... uma cintura de Diana... — O marido aproximou-se e de rostosorumbático perguntou à mulher de que falavam.
— Ali! Nikita Ivanitch — exclamou Nicolau, levantando-se cheio de mesuras.
E, como se o quisesse convidar a tomar parte nos seus galanteios, principiou a
contar-lhe os projectos que tinha de raptar uma linda mulher loura.
Teve um riso amarelo o marido, a mulher na francamente Mas a esposa do
governador aproximou-se deles com uma expressão algo recriminadora.
— Ana Ignatievna queria falar-te. Nicolau — disse ela, e a maneira como
pronunciou o nome dessa senhora não pôde deixar dúvidas a Rostov de que se
tratava de alguém de alta distinção — Anda daí, Nicolau. Pois não é verdade que
deixas que eu te trate assim?
— Com certeza, minha tia. E quem é essa senhora?
— Ana Ignatievna Malvintseva. Ouviu falar de ti à sobrinha, quem tu salvaste
a vida. Lembras-te?...
— Salvei a vida a tantas — replicou ele.
— A sobrinha, a princesa Bolkonskaia. Está aqui, em Voroneje, com a tia.
Coraste? Dar-se-á o caso que...
— De maneira nenhuma! Que está a dizer, minha tia?
— Bom! Está bem, está bem... Dás-me vontade de rir!
A mulher do governador levou-o até junto de uma senhora idosa, alta e
corpulenta, com um toucado azul na cabeça, que acabava de jogar uma partida de
cartas com as pessoas mais importantes da cidade. Tratava-se de Madame
Malvintseva, a tia materna da princesa Maria, abastada viúva, sem filhos, que
vivia todo o ano em Voroneje. Estava de pé, tratando de pagar o que devia ao seu
parceiro. Olhou para Rostov, franzindo as sobrancelhas, enquanto prosseguia
resmungando com o general que lhe levara a melhor.
— Muito prazer em conhecê-lo — exclamou ela, estendendo a mão a Rostov. —
Queira dar-me o prazer de vir a minha casa.
Pôs-se a falar da princesa Maria e do seu falecido irmão, por quem parecia não
morrer de amores, e perguntou-lhe se ele sabia alguma coisa acerca do príncipe
André, que também não parecia pessoa da sua estima, despedindo-se não sem lhe
repetir convite.
Prometendo não deixar de a visitar, Nicolau corou de novo ao despedir-se dela.
Quando ela falara da princesa Maria, um grande embaraço o tomara, receio
mesmo, sem que ele desse por isso.Ao deixar Madame Malvintseva ia de novo regressar ao baile, mas a mão
rechonchuda da senhora governadora travou-lhe do braço e, dizendo-lhe que tinha
necessidade de lhe falar, conduziu-o a um gabinete, donde, discretamente, se
deram pressa de sair as pessoas que lá estavam.
— Sabes, meu caro — disse-lhe ela, imprimindo uma expressão grave ao seu
rostozinho cheio de bonomia — tens ali um bom partido. Se quiseres, posso
apresentar-te.
— De quem se trata, minha tia? — perguntou Nicolau.
— Eu pedirei a princesa em casamento. Katerina Petrovna, está inclinada para
Lili, mas, pela minha parte, é a princesa que prefiro. Queres? Tenho a certeza de
que a tua mãe me vai ficar reconhecida. E de resto é uma rapariga encantadora e
nada feia, ao contrário do que as pessoas dizem.
— Claro que não, realmente — volveu Nicolau, como se se sentisse
pessoalmente ofendido com essa opinião — Por mim, minha tia, como convém a
um soldado, nada reclamo e nada recuso — acrescentou, sem se dar ao trabalho
de pensar no que estava a dizer.
— Bom, pois então lembra-te de que não se trata de uma brincadeira.
— De que brincadeira está a falar?
— Está bem, está bem — exclamou a santa senhora, como se estivesse falando
a si mesma. — E ainda há outra coisa, meu caro, entre outras. É muito assíduo
junto da outra, da loura. Estou deveras com pena do marido...
— Porquê? Somos óptimos amigos — exclamou Nicolau com a maior
simplicidade. Nunca lhe viera à cabeça que aquela maneira tão agradável de
passar o tempo não pudesse ser muito divertida para outrem.
«Ora esta! Que tolice fui eu dizer a mulher do governador!», disse ele de si
para consigo, de repente, durante a ceia. «Queres ver que me vai tratar do
casamento... E Sónia?...» E ao despedir-se da dona da casa, quando ela lhe repetia,
sorrindo: «Bom, já sabes. Não te esqueças...», chamou-a de parte:
— A verdade é que devo dizer-lhe, minha tia...
— Que foi? Que foi, meu amigo? Espera, vamos sentar-mos aqui.
Nicolau sentiu, de súbito, a imperiosa necessidade de contar àquela mulher,
por assim dizer desconhecida para ele, os seus pensamentos mais íntimos,
pensamentos que ele não teria confiado nem à própria mãe, nem à irmã, nem a
qualquer amigo. Mais tarde, quando veio a lembrar-se dessa necessidade decomunicação inexplicável e injustificada, que tantas consequências graves teve
para ele, afigurou-se-lhe, como de resto acontece a toda a gente, ter feito grossa
asneira. Mas a verdade é que nem por isso aquele movimento de sinceridade e
alguns outros pequenos-nadas deixaram de vir a ter para ele e para a família
consequências da maior importância.
— Ora aqui tem de que se trata, minha tia. Há muito que a mãe me quer casar
com uma herdeira rica, mas não posso com a ideia de um casamento de
conveniência.
— Ah, sim! Percebo — contraveio a santa senhora.
— Mas o caso da princesa Bolkonskaia é outra coisa. Em primeiro lugar, devo
dizer-lhe, com toda a franqueza, que me agrada muitíssimo, que me convém em
absoluto. Além disso, desde que a vim a conhecer em circunstâncias tão estranhas,
várias vezes tenho dito a mim mesmo que está ali o meu destino, Imagine! A mãe
há muito tempo que pensava nela, mas nunca calhara eu encontrá-la. Não sei
como isso foi; o certo é que nunca nos tínhamos visto. E é claro que eu não poderia
ter Pensado em casar com ela desde que minha irmã Natacha estava noiva do
irmão dela. E fui encontrá-la precisamente quando o casamento de Natacha se
tinha dissolvido e depois de tudo o que se estava a passar... Sim, isto é que é a
verdade... Nunca falei nisto a ninguém, nem nunca mais voltarei a falar em tal. Só
a si o digo.
A senhora governadora travou-lhe do braço, como a agradecer-lhe.
— Conhece a Sónia, a minha prima? Quero-lhe muito. Prometi casar com ela e
é com ela que hei-de casar... Como vê, não Posso pensar nessa história do
casamento com concluiu ele, um Pouco hesitante e corando muito.
— Meu caro, meu caro, que estás tu a dizer? Mas Sónia nada tem de seu e tu
próprio disseste que a fortuna de teu pai estava periclitante. E a tua mãe? Dás
cabo dela, podes ter a certeza. E, além disso, se a Sónia é rapariga de
sentimentos, que situação para ela! Uma mãe de cabeça perdida, uma fortuna por
água abaixo... Sim, meu caro. Sónia e tu, vocês devem compreender as
circunstâncias.
Nicolau ficou calado. A verdade é que aquelas conclusões lhe não eram de todo
desagradáveis.
— Em todo o caso, minha tia, é impossível — exclamou ele, suspirando, após
alguns instantes de silêncio. — Além disso, resta saber se a princesa me quer, eainda está de luto. Acha que se pode pensar nisso?
— Julgas que te vou casar de hoje para amanhã? Há maneiras e maneiras —
obtemperou a mulher do governador.
— Que casamenteira me saiu, minha tia... — disse Nicolau, beijando-lhe a
mãozinha rechonchuda.
[VI]
Ao chegar a Moscovo, depois do seu encontro com Rostov, a princesa Maria
encontrara o sobrinho na companhia do seu preceptor e uma carta do príncipe
André com o itinerário que ela devia seguir para alcançar Voroneje e instalar-se
em casa da tia Malvintseva.
As preocupações com a mudança, os cuidados com o destino do irmão, a
instalação da nova casa, o ter de lidar com gente desconhecida, a educação do
sobrinho, todas estas circunstâncias lhe sufocaram na alma aquele sentimento em
que havia fosse o que fosse dessa tentação que tanto a fizera sofrer durante a
doença e a morte do pai e especialmente no tempo que se seguiu ao seu encontro
com Rostov. Estava muito triste. A mágoa que lhe causara a perda do pai,
agravada pela desgraça que pesava sobre a Rússia, ainda agora, após trinta dias
de vida tranquila, se mantinha viva e pungente. Estava desassossegada. Os
perigos que ameaçavam o irmão, o ser querido que lhe restava, traziam-na em
perpétuo tormento. A educação do sobrinho, tarefa que entendia superior às suas
forças, preocupava-a muitíssimo. No entanto, ao verificar que fora capaz de
reprimir a vaga de sonhos e esperanças que o aparecimento de Rostov erguera
dentro dela, pudera sentir alguma serenidade.
No dia seguinte ao da noite da sua recepção, a mulher do governador
apresentou-se em casa de Madame Malvintseva e pô-la ao corrente de todos os
seus planos. Principiou por dizer que, em virtude das circunstâncias, não era de
pensar num pedido em regra, mas que se podiam aproximar os dois jovens,
proporcionando-lhes a forma de se conhecerem melhor. Tendo obtido a anuência
da tia, aproveitou a ocasião para falar de Rostov diante da princesa Maria,
tecendo-lhe largos elogios e contando como o vira corar quando pronunciara onome dela. A princesa, em vez de se sentir feliz ao ouvir estas palavras na boca da
esposa do governador, experimentou um grande mal-estar. Fora-se-lhe a harmonia
interior e de novo acordaram nela os desejos, as dúvidas, os reproches e as
esperanças.
Durante os dois dias que transcorreram entre essa notícia e a visita de Rostov,
a princesa Maria não deixou de pensar na atitude que devia assumir para com ele.
Ora resolvia não pôr os pés no salão quando ele entrasse em casa de sua tia, pois,
estando de luto pesado, não achava próprio receber visitas, ora se dizia a si
mesma que isso seria pouco delicado da sua parte depois do que ele fizera por ela,
ora ainda lhe ocorria a ideia de que a tia e a esposa do governador tinham
intenções reservadas quanto a Rostov e a ela própria, o que, aliás, confirmara
perfeitamente as piscadelas de olhos e os segredinhos que trocavam entre si, ora
concluía não ter o direito de pensar em tais coisas, atribuindo tudo à sua própria
inquietação. Era impossível, pensava, não ter em conta que, na sua situação,
estando de luto rigoroso, aquela ideia do casamento só podia ser ofensiva para ela
e para a memória do defunto. Na hipótese, porém, de que semelhante pedido
viesse a efectivar-se, conjecturava, de antemão, o que Rostov lhe diria e o que ela
teria de lhe responder, e os termos que empregaria ora se lhe afiguravam frios de
mais ora demasiado significativos. Mas o que acima de tudo receava nesse
encontro era deixar transparecer a perturbação que inevitavelmente a tomaria
quando o voltasse a enfrentar.
O certo é, porém, que quando, no domingo, depois da missa, um criado a veio
prevenir, no salão, de que o conde Rostov acabava de chegar, não foi grande a
perturbação da princesa; corou ligeiramente e os olhos brilharam-lhe com uma luz
radiante e nova.
— Já o conhece, tia? — perguntou em voz serena, surpreendida de poder
aparentar tanta calma e naturalidade.
Quando Rostov entrou no salão, a princesa manteve-se por momentos de
cabeça baixa, para dar tempo a que ele pudesse fazer os seus cumprimentos à
velha senhora, mas exactamente na altura em que ele se voltou para ela ergueu a
cabeça e os seus olhos brilhantes pousaram nos dele. Num movimento cheio de
graça e dignidade, soergueu-se ligeiramente, sorrindo, estendeu-lhe a mão fina e
delicada e pôs-se a falar numa voz em que pela primeira vez ressoavam notas
verdadeiramente femininas. Mademoiselle Bourienne, que estava presente, nãopôde deixar de se sentir surpreendida e pousou nela um olhar de espanto. A mais
galante das mulheres não teria sido capaz de manobra mais hábil diante do
homem a quem quisesse agradar.
«Será o luto que lhe fica bem, ou terá ela, realmente, ganho tanto sem que eu
o tenha notado?...», interrogou Mademoiselle Bourienne os seus botões.
Se a princesa Maria estivesse naquele momento em condições de reflectir, não
se teria sentido menos surpreendida que Mademoiselle Bourienne com a mudança
operada nela própria. Mal entrevira aquele bonito rosto, que tão querido se lhe
tornara, invadira-a como que uma energia nova que a compelia, sem que ela nada
pudesse fazer em contrário, a falar e a agir. Mal ele entrou, o rosto transfigurou-
se-lhe repentinamente. Assim como, ao iluminar-se uma lanterna, o desenho
gravado nos seus vidros ressalta de uma beleza que se não adivinhava enquanto
não havia luz, também os traços da princesa Maria ressaltaram de improviso. Pela
primeira vez vinha à superfície o trabalho intimo que até então se elaborara em
segredo no fundo da sua alma. O mais recôndito da sua vida, e que tanto tormento
lhe causava, os seus sofrimentos, os seus impulsos para o bem, o seu espírito de
submissão, de amor e de sacrifício, tudo isso resplandecia agora nos seus luminosos
olhos, no seu fino sorriso, em cada um dos traços do seu delicado rosto.
Nicolau deu-se conta de tudo tão franca e claramente como se lhe conhecesse
toda a vida. Compreendeu que a criatura de eleição que tinha diante era bem
melhor que todos os seres que conhecera até aí, e bem melhor, sem dúvida, do
que ele próprio.
A conversa que entre eles se entabulou foi das mais simples insignificantes que
imaginar se pode. Falaram da guerra, exagerando, como toda a gente, aliás,
então, o desgosto que os acontecimentos causavam, falaram do seu último
encontro, assunto que Nicolau procurou evitar, e referiram-se então à santa
mulher do governador e aos seus parentes respectivos.
A princesa Maria evitou aludir ao irmão e desviou a conversa quando a tia lhe
fez referência. Via-se perfeitamente que, se lhe era fácil falar banalmente das
desgraças públicas, já o mesmo não podia fazer a respeito do irmão, desgraça que
lhe tocava muito de perto. Nicolau reparou no facto, ao mesmo tempo que
observava, com uma penetração nele invulgar, os mais pequenos matizes do
carácter da sua interlocutora, observação que o levava a pensar que ela era
realmente uma natureza excepcional e única em verdade a todos os títulos. Comoacontecia à princesa Maria, também ele corava e se mostrava perturbado quando
falavam dela, ou até mesmo quando apenas nela pensava. Na presença de Maria
sentia-se, porém, como que desoprimido, não dizia palavra do que
antecipadamente pensava dizer e as suas palavras de improviso eram sempre as
que mais convinha.
Durante a sua curta visita, numa pausa da conversação, Nicolau, como
acontece onde há crianças, pôs-se a acariciar o filho do príncipe André e
perguntou-lhe se ele não gostaria de vir a ser hússar também. Pegou-lhe ao colo,
sentou-o nos joelhos e fê-lo pular enquanto olhava para a princesa Maria. Esta
seguia os movimentos do sobrinho querido nos braços do homem a quem amava,
olhando carinhosa, tímida e feliz. Este terno olhar não passou despercebido a
Nicolau, que, ao compreender-lhe o sentido, corou de satisfação e beijou a criança
efusivamente.
A princesa Maria não saía de casa por causa do luto e Nicolau não achava
conveniente continuar a visitá-la. Nem por isso contudo a mulher, do governador
desistiu da sua tarefa casamenteira e, repetindo a Nicolau o que Maria dissera de
lisonjeiro a seu respeito ou vice-versa, insistia com ele para que se declarasse. E
nessa intenção preparou uma entrevista entre os dois jovens, em casa do
arcipreste, antes da missa.
Embora Rostov lhe tivesse dito que não tinha qualquer declaração a fazer à
princesa Maria, prometeu não faltar à entre— vista.
Da mesma maneira que em Tilsitt não vacilara um momento em aceitar por
bom o que lhe era recomendado como tal, assim agora, após breve luta, embora
sincera, entre o desejo de organizar a sua vida consoante os seus próprios desejos
e a inteira submissão às circunstâncias, escolheu o último partido, entregando-se
ao destino para que se sentia irresistivelmente arrastado, Sabia muitíssimo bem
que, depois das promessas que fizera a Sónia, declarar os seus sentimentos a
Maria não era outra coisa senão cobardia. Mas, ao mesmo tempo, também sabia,
e, mais, sentia isso mesmo no fundo da alma, que, confiando-se à influência do
destino e das pessoas que o dirigiam, não só não procedia mal, como, pelo
contrário, cumpria um acto da mais alta importância como nenhum outro da sua
vida.
Após a sua entrevista com a princesa Maria, conquanto nada, na verdade, se
tivesse modificado na sua existência, o certo é que todas as suas alegrias deoutrora pareciam ter perdido o encanto e só um pensamento o ocupava — ela.
Todavia os sentimentos que a princesa Maria lhe inspirava não só em nada se
pareciam com os que havia sentido por outras raparigas que encontrara na
sociedade como nada tinham de comum com o amor exaltado que outrora votara a
Sónia. Como acontece a todo o mancebo de honestos sentimentos, sempre que
pensava em tais raparigas era com a ideia de fazer delas esposas, representando-
lhe a imaginação todas as cenas habituais da vida conjugal: uma mulherzinha,
vestida de branco, sentada junto do samovar, a carruagem da senhora, as crianças
que pronunciam pai e mãe, numa palavra, todas as banalidades quotidianas, e
essas perspectivas de futuro, a seus olhos, não deixavam de se revestir de certo
encanto. Contudo, ao pensar na princesa Maria, a quem o queriam dar por noivo,
nada de semelhante lhe vinha ao espírito. Se porventura o tentava, as imagens
que se lhe erguiam diante dos olhos apresentavam-se-lhe com qualquer coisa de
falso e de malogrado. O único sentimento que lhe comunicavam era o sentimento
de angústia.
[VII]
A terrível nova da batalha de Borodino, em que houve tantas baixas dos
Russos, bem como a notícia de que Moscovo caíra nas mãos dos Franceses, apenas
chegaram a Voroneje em meados de Setembro. A princesa Maria, que só pelos
jornais fora informada de que o irmão estava ferido e que nada sabia afinal sobre
o seu estado, resolveu ir ao seu encontro. Assim, pelo menos, constou a Nicolau,
que nunca mais a tornara a ver. Os acontecimentos, se não despertaram em
Rostov instintos de violência, cólera ou vingança ou quaisquer outros do mesmo
género, pelo menos inspiraram-lhe súbito desgosto e contrariedade,
determinando-o a não prolongar por mais tempo a sua permanência em Voroneje,
onde se sentia molesto e pouco à vontade. Todas as conversas lhe soavam a falso.
Não sabia que pensar dos acontecimentos e sentia que só depois de regressar ao
seu regimento veria claro em tudo isso. Precipitou as suas últimas aquisições de
cavalos e eram mais frequentes agora as suas irritações contra o criado e contra o
sargento, mais frequentes e imotivadas.Alguns dias antes da sua partida, celebrou-se um tedéu na catedral em acção
de graças por uma vitória das tropas russas e Nicolau assistiu a ele. Ficou alguns
metros atrás do governador e foi com dignidade oficial que acompanhou todos os
passos da cerimónia religiosa enquanto ia pensando nos assuntos mais diversos.
Assim que terminou o fedeu, a mulher do governador acenou-lhe com a cabeça,
chamando-o para junto de si.
— Viste a princesa? — perguntou— lhe ela, indicando-lhe com a cabeça uma
senhora toda vestida de preto que estava ao pé do coro. Nicolau reconheceu-a
imediatamente, não tanto pelo perfil que se deixava adivinhar debaixo do chapéu
como por esse sentimento de retenção, receio e piedade que se apoderou dele. A
princesa Maria, absorta nos seus pensamentos, persignava-se antes de sair da
igreja.
Nicolau fitou, assombrado, o seu rosto. Era, de facto, a mesma fisionomia em
que se lia sempre o trabalho subtil do pensamento interior, mas a luz que a
iluminava era completamente outra. Reflectia-se em seus traços uma tocante
expressão de dor, de oração e de esperança. Não esperou, como, aliás, acontecera
da primeira vez, que a mulher do governador lho consentisse, não se interrogou a
si próprio, sequer, se era ou não razoável dar aquele passo em plena igreja;
aproximou-se dela e disse-lhe que soubera do seu novo desgosto e que de todo o
coração a acompanhava na sua dor, Assim que lhe reconheceu a voz, uma súbita
luz lhe iluminou o rosto, derramando claridade sobre a sua mágoa e acordando
nela a alegria.
— Apenas lhe queria dizer, princesa — murmurou Rostov —, que, se o príncipe
André Nikolaievitch já não fosse do número dos vivos, os jornais tê-lo-iam dito,
pois que é comandante de regimento.
A princesa olhou para ele sem apreender o sentido das suas palavras, mas
satisfeita com a compaixão que lhe via no rosto.
— Na maior parte dos casos, os ferimentos provocados pelos estilhaços de
granadas, quando não são logo mortais, não oferecem cuidados — acrescentou ele.
— É de esperar que não seja coisa grave, estou convencido de que...
A princesa Maria interrompeu-o.
— Oh!, seria terrível... — principiou ela sem poder concluir a frase, de tão
perturbada que estava, inclinando a cabeça, num movimento cheio de
graciosidade, como acontecia a todos os seus gestos na presença dele. E, depois deum olhar de reconhecimento, saiu atrás da tia.
Naquela noite Nicolau não saiu, ficou em casa para fechar contas com os
negociantes de cavalos. Quando acabou esse trabalho era demasiado tarde para ir
a qualquer parte, embora relativamente cedo para se deitar, e assim ficou,
sozinho, no seu quarto, a andar de um lado para o outro, cismando na vida, coisa
que raramente lhe acontecia.
Já aquando do seu encontro perto de Smolensk a princesa Maria lhe causara
uma viva impressão. Impressionara-o muito também o tê-la encontrado em
circunstâncias tão excepcionais e o facto de a mãe lha ter recomendado como um
rico partido.
O encontro em Voroneje ainda o impressionara mais. Desta vez notara
sobretudo a beleza especial, toda de essência moral, que nela resplandecia. No
entanto ia partir e não lhe ocorria a ideia de que teria pena de a não tornar a ver.
O encontro na igreja, sentia-o claramente, ainda viera gravar nele a imagem da
princesa Maria mais profundamente do que previra e mais funda— mente de que
o exigia o seu sentimento de repouso. Aquele rosto fino, pálido e triste, aquele
luminoso olhar, aqueles gestos harmoniosos e serenos, sobretudo aquela funda e
comovida mágoa que por toda ela se espalhava, perturbavam-no e atraíam-no.
Sobretudo nos homens, Nicolau não tolerava manifestações de uma vida espiritual
superior e essa a razão por que não simpatizava com o príncipe André. Mas a
princesa Maria, em virtude, precisamente, da expressão dolorosa em que se
evidenciava toda a profundeza de um mundo espiritual que lhe era estranho,
atraía-o de maneira irresistível.
«Que estranha mulher deve ser! É realmente um anjo!», dizia de si para
consigo. Porque não hei-de eu ser livre? Porque me precipitei eu com a Sónia?» E
involuntariamente ia-as comparando: à ausência, numa, e à abundância, noutra,
dessa riqueza espiritual de que ele próprio era tão pouco provido e que por isso
mesmo tanto estimava. Tentou imaginar o que aconteceria se porventura fosse
livre: como pediria a sua mão e como viria ela a ser sua mulher? Mas não, não
podia pensar em semelhante coisa. Sentiu-se pouco à vontade e diante dos seus
olhos apenas se lhe vieram representar imagens confusas. Havia muito que
traçara o quadro da sua existência futura com Sónia: era muito simples e muito
claro, pois tudo aí estava previsto de antemão e ele nada ignorava,
absolutamente nada, a respeito dela. Com a princesa Maria, contudo, não lhe erapossível conceber qualquer futuro, uma vez que a não compreendia, que apenas se
limitava a amá-la.
Pensar em Sónia era como penetrar num mundo de alegria e de graça. Pensar
na princesa Maria trazia sempre consigo uma impressão de seriedade e até
mesmo de temor.
«Como ela rezava!», dizia de si para consigo. «Era como se o fizesse com toda a
sua alma. Sim, é aquilo a que se chama a fé que remove montanhas e tenho a
certeza de que a sua oração será ouvida. Porque não poderei eu rezar assim para
obter o que preciso? E de que preciso eu? De ser livre e desligar-me de Sónia. A
mulher do governador tinha razão: o meu casamento com ela será uma fonte de
desgostos, de dificuldades, uma grande mágoa para a mãe... e depois há a questão
dos dinheiros... sim, de dificuldades... de grandíssimas dificuldades. Aliás, creio que
a não amo de todo o coração. Não, não a amo como se deve amar. Meu Deus,
salva-me desta situação sem recurso!», exclamou ele, de súbito, como se sentisse
uma necessidade imperiosa de rezar. «Sim, as minhas orações removerão
montanhas, mas o que é preciso é, ter fé e não rezarmos como o fazíamos quando
éramos crianças, a Natacha e eu, quando pedíamos que a neve se transformasse
em açúcar. Não, não são criancices desse género que eu tenho de pedir a Deus.»
E pousando o cachimbo algures, de mãos postas, ajoelhou diante dos ícones.
Enternecido com a lembrança de Maria, pôs-se a rezar como o não fazia lia muito
tempo. Tinha os olhos rasos de lágrimas e soluços na garganta quando Lavruchka
apareceu à porta com uns papéis na mão.
— Idiota! Que vens aqui fazer, se não te chamei! — gritou-lhe, mudando,
subitamente, de, atitude.
— É da parte do governador — disse Lavruchka, em voz sonolenta. — Chegou
um correio com uma carta para si.
— Está bem, obrigado, podes retirar-te.
Havia duas cartas, uma da mãe e a outra de Sónia. Reconhecera a caligrafia de
ambas elas e principiou por abrir a de Sónia. Mal lera as primeiras linhas
empalideceu, abrindo muito os olhos cheios de espanto e alegria.
«Não, não é possível!», disse em voz alta.
Não pôde ficar imóvel e ao tempo que lia a carta pôs-se a andar no quarto de
um lado para o outro, Começou por lê-la alto, depois leu-a uma, duas vezes e, por
fim, encolhendo os ombros e gesticulando de boca aberta e olhos fixos, deteve-seno meio do quarto. A oração que acabava de dirigir a Deus fora ouvida. Tamanha
era a sua estupefacção, tão extraordinário o que acontecia, tão longe estava de
ver realizados os seus desejos, que aquilo lhe não parecia a consequência da
intervenção divina, mas puro acaso.
O nó górdio que lhe encadeava a liberdade fora cortado pela carta de Sónia de
maneira inesperada e que nada fazia prever. A carta dela dizia que em virtude das
desgraças dos últimos tempos, da perda de quase todos os bens dos Rostov em
Moscovo, do desejo da condessa, por várias vezes manifestado, de o ver a ele
desposar a princesa Bolkonski, e ainda em consequência do seu silêncio
persistente, da frieza que lhe mostrara ultimamente, por todos esses motivos
juntos, estava resolvida a desobrigá-lo da sua promessa e a restituir-lhe a sua
inteira liberdade.
Seria para mim muito penoso — dizia-lhe ela— pensar
que viria a ser causa de desgosto e desacordo numa família
que tanto bem me tem feito. O único objectivo do meu
amor é fazer a felicidade daqueles a quem amo. Por isso lhe
peço, Nicolau, que retome a sua liberdade e que acredite
que, apesar de tudo, ninguém lhe quer mais do que a sua
Sónia.
As duas cartas eram datadas de Troitsa. A segunda era da condessa.
Descrevia-lhe os últimos dias passados em Moscovo, a partida, o incêndio da
cidade e a ruína de todos os seus bens. E entre outras coisas dizia-lhe que o
príncipe André, ferido, viajava com eles. Estava em estado gravíssimo, mas o
médico, de momento, alimentava algumas esperanças. Sónia e Natacha eram as
suas enfermeiras.
Munido com esta carta, Nicolau apresentou-se no dia seguinte em casa da
princesa Maria. Nem ele nem ela fizeram qualquer comentário sobre os cuidados
que Natacha dedicava ao príncipe André, mas aquela carta aproximou-os e criou
entre eles como que uma espécie de parentesco.
No dia seguinte, Rostov acompanhou a princesa Maria a Iaroslav e dias depois
regressou ao seu regimento.
[VIII]
A carta de Sónia que dava satisfação aos desejos de Nicolau fora escrita em
Troitsa. Eis os factos que a determinaram. De dia para dia se obstinava mais a
velha condessa em casar seu filho com uma rica herdeira. Sónia, sabia-o ela muito
bem, continuava a, ser o maior obstáculo à realização de tal projecto. E a vida
desta durante os últimos tempos, sobretudo depois da carta, em que Nicolau
falara do seu encontro em Bogutcharovo com a princesa Maria, tornara-se-lhe
penosíssima. A condessa passava o tempo a feri-la com alusões cruéis e ofensivas.
Alguns dias antes da partida de Moscovo, a condessa, transtornada e inquieta
com o que se estava a passar, mandou chamar Sónia e, entre lágrimas, reproches
e súplicas, implorou-lhe que se sacrificasse desligando Nicolau dos seus
compromissos e pagando-lhe a ela, condessa, deste modo, tudo que por ela tinha
feito.
— Não sossegarei enquanto me não prometeres o que te peço.
Sónia chorou e respondeu entre soluços que faria tudo o que fosse possível,
sem se comprometer, todavia, ao que lhe pediam. O certo era que o não podia
fazer. Sacrificar-se-ia pela felicidade da família que a tinha recolhido e educado. A
esse sacrifício estava habituada. A sua situação em casa dos Rostov era tal que
para patentear os seus méritos só lhe restava a abnegação e por isso se habituara
a sacrificar-se. Com alegria se dera conta até, aí de que todos os seus actos de
abnegação a realçavam a seus olhos e, aos olhos dos outros, tornando-a mais
digna de Nicolau, seu único e grande amor— Agora, porém, queriam que
renunciasse, no fim de contas, aquilo mesmo que era a única recompensa do seu
sacrifício e a única justificação da sua vida. E pela primeira vez se sentiu
amargurada diante daquela gente que a recolhera e protegera para afinal a fazer
sofrer ainda mais. E uma espécie de ódio a tomou contra essa Natacha que não só
nunca passara por sofrimentos comparáveis aos seus, sem nunca se sacrificar por
alguém, mas antes exigira o sacrifício dos outros e apesar disso de todos era
querida e estimada. Pela primeira vez sentiu que o seu amor, até então inocente e
tranquilo, se convertia numa violenta paixão capaz de a dominar e arrastar contra
a religião e a virtude. Sob a influência de tal sentimento, Sónia, que a prática dadependência ensinara a ser dissimulada, respondera à condessa em termos vagos
e gerais, evitando qualquer explicação mais demorada, decidida, entretanto, a
esperar por Nicolau, não para lhe restituir a palavra, mas, pelo contrário, para
mais fortemente e para sempre se unir a ele.
As preocupações e os terrores dos últimos dias passados em Moscovo tinham-
na feito esquecer um pouco os tristes pensamentos que a atormentavam. E por
isso se sentira como que aliviada no meio de todas essas preocupações materiais.
Quando veio a saber, porém, que o príncipe André estava em casa dos condes, à
sua sincera piedade por Natacha e pelo ferido veio associar-se o sentimento, entre
supersticioso e agradecido, de que a Providência não queria separá-la de Nicolau.
Sabia que Natacha só ao príncipe André amava verdadeiramente e só a ele amara
em verdade. E sabia também que neste momento, outra vez reunidos e em tão
trágicas circunstâncias, de novo se entregariam ao seu amor, impedindo Nicolau,
graças ao casamento da irmã com o príncipe, de pensar em desposar a princesa
Maria.
Por mais horríveis que fossem os acontecimentos a que assistia, grande era a
sua satisfação ao pensar que a Providência lhe viera em auxílio.
Após a primeira etapa de sua jornada, os Rostov detiveram-se no mosteiro de
Troitsa. No albergue do convento tinham-lhes reservado três quartos, um dos
quais para o príncipe André. O ferido parecia muito melhor nesse dia. Natacha
estava junto dele.
No quarto contíguo o conde e a condessa conversavam respeitosamente com o
superior do convento em visita aos antigos conhecidos e protectores. Sónia, junto
deles, atormentava-a a curiosidade: que estariam a dizer um ao outro André e
Natacha?
Através da porta ouvia-lhes o sussurro das vozes. Em determinado momento a
porta abriu-se e Natacha, muito comovida, penetrou na dependência sem reparar
no frade, que se ergueu, apanhando as grandes mangas do hábito, quando a viu
aproximar-se. Dirigindo-se a Sónia, travou-lhe do braço.
— Natacha, que foi? Vem cá — disse-lhe a mãe.
Natacha aproximou-se para receber a bênção do frade, que a aconselhou a
implorar o auxílio de Deus e do seu santo protector.
Quando o superior do convento se retirou, Natacha deu o braço à amiga e
levou-a consigo para o quarto contíguo, onde não estava ninguém.— Sónia, será verdade? Achas que se salvará? — perguntou-lhe ela — Ah,
Sónia, que feliz e que infeliz eu sou! Sónia, minha querida, está tudo como dantes.
O que importa é que ele viva! Mas não pode... porque... porque... — E os soluços
embargaram-lhe a voz.
— Eu sabia-o! Louvado seja Deus! — exclamou Sónia. — Há-de viver! — A sua
emoção não era menor do que a de Natacha diante daquela desgraça, e às suas
apreensões vinham misturar-se pensamentos secretos. Abraçou-se à amiga,
chorando e procurando consolá-la. «O que importa é que ele viva!», repetia para
si mesma. Depois de trocarem as suas confidências, enxugaram as lágrimas e
ambas se aproximaram da porta. Natacha abriu-a cautelosamente e olhou para
dentro. Sónia, a seu lado, conservava-se no limiar da porta entreaberta.
O príncipe André, deitado, tinha o busto soerguido por três almofadas. O seu
rosto pálido estava tranquilo, tinha os olhos cerrados e respirava regularmente.
— Oh, Natacha! — exclamou Sónia, de súbito, agarrando-se ao braço da prima
e recuando um passo.
— Que foi? Que foi? — inquiriu Natacha.
— É aquilo, é aquilo... — respondeu ela muito pálida, toda trémula.
Natacha fechou a porta cautelosamente e seguiu Sónia até ao vão da janela,
sem compreender o que a amiga dizia.
— Lembras-te — disse Sónia, assumindo uma expressão ao mesmo tempo
solene e aterrada. — Lembras-te de quando consultámos o oráculo do espelho...
em Otradnoie, pelo Natal... lembras-te do que eu vi?...
— Lembro, lembro... — replicou Natacha, os olhos esbugalhados, recordando-se
vagamente de que a prima lhe falara então do príncipe André, que vira deitado.
— Lembras-te? Vi-o e disse-o a todas, a ti e à Duniacha. Via-o estendido na sua
cama. Tinha os olhos fechados, como neste momento, e, estendida sobre ele, uma
coberta cor-de-rosa, e as mãos cruzadas. — Falava cada vez com maior animação,
firmemente convencida de que todos os pormenores que acabava de ver não eram
mais que a repetição exacta da visão de outrora.
Evidentemente que nada vira anteriormente e que apenas descrevera um
fantasma produto da sua imaginação. No entanto essa ilusão afigurava-se-lhe
agora uma recordação verdadeira. Dissera então que ele olhara para ela, lhe
sorrira, que estava envolto em qualquer coisa vermelha, e agora recordava-se
perfeitamente, tinha a certeza: a coberta da cama era cor-de-rosa, sim,efectivamente, cor-de-rosa, e ele tinha os olhos fechados.
— Sim, sim, é verdade, era uma coberta cor-de-rosa — confirmou Natacha, que
se recordava agora também de que ela lhe falara nessa coberta, o que, a seus
olhos, ganhava proporções de estranha e misteriosa previsão.
— Que quer isto dizer? — perguntou ela, pensativa.
— Ah!, não sei. É tudo tão extraordinário! — comentou Sónia, levando as
mãos à cabeça.
Alguns minutos mais tarde André chamou, e Natacha foi para junto dele.
Sónia, que nunca em sua vida sentira maior emoção ou estivera mais perturbada,
deixou-se ficar junto da janela pensando naquelas estranhas coincidências.
Nesse mesmo dia houve oportunidade de utilizar um correio para o exército e
a condessa escreveu ao filho.
— Sónia — chamou, erguendo a cabeça, quando a sobrinha passou junto dela
— Sónia, não escreves ao Nikolenka? — E, ao dirigir-lhe esta pergunta, a sua voz
tremeu ligeiramente.
Nos seus olhos fatigados que ;i olhavam atrás das lentes dos óculos. Sónia
adivinhou o que a condessa lhe queria dizer. Nesse olhar havia suplica, receio de
uma recusa, embaraço por ter de fazer semelhante pedido e inimizade pronta a
manifestar-se caso ela não transigisse.
Sónia aproximou-se da condessa e, ajoelhando, beijou-lhe as mãos.
— Eu vou escrever-lhe, mãe — disse ela.
Sónia sentia-se comovida — perturbada e enternecida por ver cumprido
aquele misterioso presságio de outrora. Agora, que concluíra que a reconciliação
do príncipe André e Natacha tornaria impossível o casamento de Nicolau com a
princesa Maria, sentia-se contente por voltar de novo ao espírito de sacrifício que
era toda a sua vida. Com os olhos rasos de lágrimas e a satisfação ele cumprir um
acto realmente heróico, pôs-se a escrever, interrompendo-se, várias vezes para
enxugar as lágrimas que lhe queimavam as órbitas, a carta comovedora que tão
profundamente iria surpreender Nicolau.
Ao chegar ao corpo da guarda onde Pedro fora conduzido, os oficiais e os
soldados principiaram por tratá-lo severamente, embora com algum respeito.
Ainda não sabiam de quem se tratava — talvez fosse uma personalidade
importante —, mas a luta que recentemente travara, com eles não os predispunhaà indulgência.
Na manhã do dia seguinte, porém, quando se procedeu ao render da guarda, a
nova, guarnição deixou de ter razões para o tratar da mesma maneira. Com efeito,
esse homem corpulento de cafetã de mujique já não era aos olhos, deles aquele
que tivera a mão leve para o salteador e para os soldados da patrulha e falara em
tom solene de uma criança salva das chamas. Para eles era apenas o décimo
sétimo prisioneiro russo às ordens do alto comando. Só o que o distinguia dos
outros era o seu porte altivo, o seu ar meditativo e o facto de falar francês com
extraordinária felicidade. Mas nesse mesmo dia Pedro foi encarcerado à mistura
com outros suspeitos, pois o quarto particular onde ele estivera fora requisitado
para um oficial.
Todos os russos que tinham sido detidos aquando ele pertenciam à mais baixa
condição. E, reconhecendo que Pedro era um senhor, todos eles o mantinham à
margem, tanto mais que falava francês, Pedro percebeu com desgosto que
troçavam dele.
Na noite do dia seguinte veio a saber que todos os prisioneiros, e ele também
naturalmente, iam ser julgados sob a acusação de incendiários. No terceiro dia
levaram-no com os outros à presença de um general de bigode branco, dois
coronéis e outros franceses de braçadeiras claras. Interrogaram-nos com a nitidez
e a precisão de quem se considera superior a todas as fraquezas humanas, atitude
habitual nos interrogatórios de prisioneiros. Perguntaram-lhes quem eram, onde
estavam e com que intenções...
Todas estas perguntas, que deixavam de lado, sistematicamente, a essência do
caso e tornavam desde logo impossível o esclarecimento do que mais importava,
como acontece a todas as perguntas que se formulam nos tribunais, não tinham
por fim outra coisa senão orientar as respostas dos acusados no sentido requerido,
isto é, da sua culpabilidade. Sempre que o prisioneiro queria dizer qualquer coisa
de pouco favorável à acusação, tratavam logo de desviar as suas palavras para o
ponto desejado. Além disso dava-se com Pedro o que se costuma dar com todos os
acusados onde quer que estejam: ignorava o objectivo daqueles interrogatórios.
Supunha que só por indulgência ou cortesia adoptavam semelhante procedimento
para com ele. Compreendia estar nas mãos daquela gente, que só a força ali o
levara e só a força os fazia exigir respostas às suas perguntas e que aquela
assembleia apenas se reunia para o inculpar. Perante tal situação, dizia de si paraconsigo, era inútil usar de astúcia. Todas as respostas que desse apenas serviriam
para o incriminar. Perguntaram-lhe o que fazia quando fora preso: respondeu, com
entono trágico, que levava aos país uma criança que ele salvara das chamas. A
pergunta: «Porque jogava à pancada com um soldado?» respondeu que «defendia
uma mulher, e que todo o homem honesto tinha o dever de defender uma mulher
atacada, que...» Assim que isto disse, porém, mandaram-no calar: que não tinha
nada a ver com o assunto. Que fazia ele no pátio da casa incendiada, onde fora
visto por testemunhas? Replicou que «tinha ido ver o que se passava na cidade».
Interromperam— no de novo. Não lhe perguntavam onde ia, mas porque se
encontrava no local do fogo. E repetiram-lhe a primeira pergunta acerca da sua
identidade. à qual não quisera responder. Pela segunda vez replicou que não podia
responder a essa pergunta.
— Escrivão, tome nota. O seu caso é grave, muito grave mesmo — disse em
tom severo o general de bigode branco e rosto corado.
No quarto dia após a prisão de Pedro, os incêndios principiaram na muralha de
Zubovo.
Conduziram-no com mais treze detidos a Krimski Brod e meteram-nos na
cocheira de um comerciante. Ao atravessar as ruas sentiu-se sufocado pelo fumo,
que parecia espalhar-se agora pela cidade inteira. Viam-se chamas por todos os
lados. Ainda então não compreendia todo o significado do desastre e o espectáculo
enchia-o de pavor.
Passou quatro dias nesse barracão, e pelo que diziam os soldados franceses
soube que se aguardava de um momento para o outro a decisão do marechal
sobre o destino dos detidos. Não lhe foi possível compreender todavia de que
marechal se tratava.
Para aqueles soldados o nome de marechal representava o escalão supremo da
autoridade.
Os dias que precederam 8 de Setembro, data em que os prisioneiros voltaram
a ser interrogados, foram os mais penosos para Pedro.
[IX]
No dia 8 de Setembro, por conseguinte, um oficial superior, a avaliar pelas
honras que a guarda lhe dispensou, veio visitar os prisioneiros. Este oficial, que
pertencia sem dúvida ao estado-maior, procedeu, de lista em punho, à chamada
dos russos, designando Pedro por aquele que não revela o seu nome». E depois de
lhes lançar um olhar indiferente, ordenou ao oficial da escolta que os mandasse
vestir convenientemente para se apresentarem diante do marechal. Uma hora
mais tarde chegou a escolta, que conduziu Pedro e os companheiros ao campo
Deviche. Depois da chuva que caíra, o dia estava claro e cheio de sol, e o ar
extraordinariamente puro. O fumo não se conservava rente ao chão como no dia
em que os haviam levado do corpo da guarda das muralhas de Zubovo; subia
direito no ar sereno. Não se viam agora labaredas, mas de todos os lados se
erguiam colunas de fumo, e Moscovo, de ponta a ponta, pelo menos quanto a
Pedro era dado ver, estava reduzida a escombros.
Por toda a parte eram áreas devastadas, ruínas, muros enegrecidos no alto
dos quais ainda se mantinham de pé as chaminés. Por mais que procurasse
identificar essas ruínas, Pedro não conseguia descobrir o bairro em que estava.
Aqui e ali havia igrejas intactas.
O Kremlin, que não fora atingido, alvejava, na distancia, com a suas torres e a
igreja de Ivã, o Grande. Nas suas imediações brilhava a cúpula do Mosteiro
Novodeviche, cujos sinos repicavam com particular sonoridade. Esses sinos fizeram
lembrar a Pedro que era domingo e dia da Natividade da Virgem, mas parecia não
haver ninguém para celebrar a festa. Tudo estava em ruínas. De vez em quando
encontravam alguns russos esfarrapados e temerosos que se escondiam ao verem
os franceses.
Era evidente que o ninho russo fora destruído e disperso, mas Pedro sentia
inconscientemente que, destruída a ordem da vida russa, se estabelecera um
regime muito diferente, particularmente severo, o regime francês. Disso se
apercebia ao ver o aspecto alegre e marcial dos militares que o escoltavam, a ele
e aos outros detidos, assim como o alto funcionário francês que caminhava ao
encontro deles, numa carruagem tirada por dois cavalos e guiada por um soldado.
E também se apercebia disso mesmo ao ouvir os alegres compassos de uma banda
regimental que chegavam até ele vindos do lado esquerdo da esplanada.
Compreendeu-o e sentiu-o sobretudo nessa mesma manhã quando o oficial veio
fazer a chamada dos prisioneiros. Fora capturado por simples soldados, forabaldeado de um lado para o outro, de cambulhada com dezenas de outros
indivíduos. Podia ter pensado que iam esquecê-lo, confundi-lo com os outros. Mas
não: as suas respostas no interrogatório pegavam-se-lhe ao corpo, «aquele que
não revela o seu nome». E sob essa designação, que o assustava agora, o levavam
não sabia para onde, embora lesse na cara dos guardas saberem-no eles
muitíssimo bem, eles que os conduziam onde era mister. Sentia-se como o grão de
pó que cai na engrenagem de uma máquina desconhecida, mas que trabalha
maravilhosamente.
Conduziram Pedro e os seus companheiros ao campo Deviche, não longe o
mosteiro, a uma grande casa branca cercada de extensos jardins. Era a casa, do
príncipe Chteherbatov, que Pedro costumava frequentar, e onde residia, veio a
sabê-lo pelos soldados, o marechal príncipe de Eckmühl.
Foram levados até ao alpendre e introduziram-nos dentro de casa um por um.
Pedro foi o sexto a entrar. Através da galeria envidraçada, do vestíbulo e da
antecâmara, que Pedro conhecia muitíssimo bem, fizeram-nos entrar num longo
gabinete de tecto baixo à porta do qual havia um ajudante-de-campo.
Davout estava sentado na extremidade da sala, os óculos acavalados no nariz.
Pedro aproximou-se. De olhos pousados no papel que procurava decifrar. Davout,
perguntou em voz baixa: Quem sois?
Pedro ficou calado, pois sentia-se incapaz de articular palavra. A seus olhos,
Davout não era apenas um general francês, mas um homem de conhecida
crueldade. Ao ver aquele rosto frio em que havia qualquer coisa da expressão de
um pedagogo severo que condescende em esperar um instante pela resposta
pedida. Pedro disse de si para consigo que cada segundo de hesitação que
mostrasse lhe poderia custar a vida: e no entanto não sabia que dizer. Repetir o
que dissera quando do primeiro interrogatório parecia-lhe inútil: revelar o seu
nome e a sua situação não só seria perigoso mas vergonhoso. Ficou calado. Sem
lhe dar tempo, porém, a que ele tomasse uma decisão, Davout ergueu a cabeça,
puxou os óculos para a testa e piscou os olhos, fixando Pedro atentamente.
— Conheço este homem — disse ele, num tom frio e monótono, evidentemente
para o assustar.
Pedro sentiu que uma tenaz lhe apertava a testa.
— Meu general, não me pode conhecer, eu nunca o vi...
— É um espião russo — interrompeu Davout, dirigindo-se a outro general queestava presente e Pedro não vira.
E Davout virou-lhe as costas. Pedro, subitamente, pôs-se a falar em voz
trémula.
— Não, monsenhor — disse ele, lembrando-se, de repente, que Davout era
príncipe. — Não, monsenhor, não me pode conhecer. Sou um oficial miliciano e
nunca saí de Moscovo.
— Como se chama? — repetiu o marechal.
— Besouhoff.
— Que é que me prova que não está a mentir?
— Monsenhor! — exclamou Pedro, numa voz mais súplice que ofendida.
Davout ergueu os olhos e olhou-o fixamente. Assim estiveram a olhar-se um ao
outro durante alguns instantes. Eis a salvação de Pedro. Aqueles olhares, que
esqueciam a situação respectiva de dois inimigos, juiz e acusado, estabeleceram
entre eles relações simplesmente humanas. Ambos, naquele instante, sentiram,
confusamente, muitas coisas, compreendendo que tanto um como outro eram
feitos da mesma humanidade, dois irmãos.
Na altura em que Davout ergueu a cabeça de cima da sua lista, onde os seres
humanos e o seu destino não eram mais do que números, Pedro, para ele, era
apenas um incidente sem importância.
Sem receio de sobrecarregar a sua consciência com qualquer má acção, tê-lo-ia
mandado fuzilar. Agora, porém, via nele um homem. Ficou um breve instante a
reflectir.
— Como me prova a verdade do que me está a dizer? — disse ele friamente.
Pedro lembrou-se de Ramballe e citou o regimento deste, o seu nome e a rua
onde ele vivia.
— O senhor não é o que diz ser — repetiu Davout.
Pedro, numa voz trémula e entrecortada, apresentou as provas do que
afirmava.
Nesta altura o ajudante-de-campo entrou na sala e comunicou qualquer coisa
ao seu superior.
Este pareceu sentir-se muito contente com a notícia e pôs-se a abotoar o
dólman para sair. Dir-se-ia ter esquecido Pedro por completo.
O ajudante-de-campo, contudo, lembrou-lhe o prisioneiro que ele interrogava.
Davout franziu o sobrolho, acenou com a cabeça na sua direcção e deu ordem parao levarem dali. Mas para onde? Eis o que Pedro ignorava. Levá-lo-iam para o
barracão ou para o local do suplício do campo Deviche, que lhe tinham mostrado?
Voltou a cabeça e viu o ajudante-de-campo que interrogava o marechal.
— Sim... sem dúvida! — replicou este. De que se tratava? Não sabia.
Não foi capaz de saber, mais tarde, por quanto tempo havia caminhado e para
onde o tinham levado. Num estado de completa, inconsciência, sem se dar conta
do que se passava à sua roda, caminhou, caminhou, detendo-se quando os outros
se detinham. Um único pensamento o preocupava no fim de contas, quem o
condenara à morte? Não, com certeza, aqueles que o haviam interrogado: nenhum
deles o teria feito nem o desejaria fazer. Tão-pouco Davout, que o olhara com
tanta humanidade. Um pouco mais e Davout teria reconhecido estarem enganados
a seu respeito, A chegada do ajudante-de-campo o impedira disso. Naturalmente
esse oficial não procedera de má-fé, mas teria sido preferível que não aparecesse.
Quem pois o queria supliciar, acabar-lhe com a vida, a ele, Pedro, com todas as
suas recordações, os seus desejos, as suas esperanças, os seus pensamentos?
Quem? E concluía que afinal ninguém.
Se havia um culpado, era a ordem estabelecida, e essa ordem roubava-lhe a
vida, aniquilava-o.
[X]
Da casa, do príncipe Chtcherbatov, os prisioneiros foram conduzidos
directamente, através do campo Deviche. à esquerda do Mosteiro Dievitchi, e
fizeram-nos entrar num pomar onde estava erguido um poste. Na retaguarda
deste havia um grande fosso, ladeado de um monte de terra recentemente
removida, e em volta dele, em semicírculo, grande multidão. Os russos eram
poucos, e grande o número de soldados de Napoleão: alemães, italianos e
franceses envergando os fardamentos mais variados. A direita e à esquerda do
poste formava um destacamento de franceses, de arma ao ombro, capotes azuis,
charlateiras vermelhas, polainas e barretinas.
Os condenados foram colocados em filas pela ordem em que figuravam na lista,
na qual Pedro era o sexto, e conduziram-nos até junto do poste. De súbito ouviu-seo rufar de tambores em vários pontos. Ao ouvi-los, Pedro sentiu, por assim dizer,
que a alma se lhe separava do corpo. Perdeu toda a capacidade de pensar e de se
recordar. Apenas podia ver e ouvir. E só tinha um desejo: que aquela coisa
horrível acabasse o mais depressa possível. Pousou os olhos nos seus
companheiros.
Os dois da extremidade eram presidiários e tinham a cabeça rapada: um,
grande e magricela, o outro, moreno, peludo, musculoso e de nariz achatado. O
terceiro era um criado dos seus quarenta e cinco anos, de cabelo grisalho,
corpulento e bem tratado. O quarto, um mujique, belo rapaz, de barba ruiva, em
forma de leque, e olhos pretos, O quinto, um operário fabril, rapazola amarelento
e delgado, dos seus dezoito anos, que vestia um guarda-pó.
Pedro ouviu os franceses discutir entre si se deviam fuzila-los individualmente
ou dois a dois. «Dois a dois», respondeu, friamente, o oficial que comandava a
força. Houve agitação nas fileiras dos soldados e todos se deram pressa. Não era a
pressa de alguém que quer realizar uma tarefa de bom grado aceite por todos,
mas a pressa em dar por findo um trabalho necessário, embora desagradável e
repugnante.
Um funcionário francês, de braçadeira, aproximou-se pela direita das filas dos
condenados e leu as sentenças em russo e francês. Em seguida, quatro soldados,
dois a dois, a um sinal do oficial, tomaram conta dos penitenciários da
extremidade. Estes marcharam direitos ao poste, pararam e, enquanto lhes
preparavam os sacos para lhes enfiar na cabeça, olharam à sua volta em silêncio
como a fera cercada pelos caçadores que a vão abater.
Um deles persignava-se e voltava a persignar-se, o outro coçava as costas,
esboçando um movimento de lábios em que havia como que um sorriso. Os
soldados, rapidamente, vendaram-lhes os olhos, enfiaram-lhes os sacos pela cabeça
e amarraram-nos ao poste.
Doze atiradores saíram das fileiras, em passo firme e cadenciado, e alinharam
a uns oito passos do poste. Pedro virou a cara para não ver o que ia passar-se. De
súbito soaram as detonações, que lhe pareceram mais estrondosas que os mais
medonhos trovões, e de novo voltou a cara. Havia fumo no ar, e os franceses,
pálidos e de mãos trémulas, faziam fosse o que fosse em volta do fosso. Os dois
condenados seguintes foram levados também. Exactamente como os primeiros, e
com os mesmos olhos, fitaram o público, como se não compreendessem nempudessem acreditar no que lhes estava a acontecer. Impossível. Só eles sabiam o
preço que a existência tinha para eles e não podiam compreender nem acreditar
que lhes tirassem a sua única vida.
Pedro, para não ver, voltou de novo a cara e uma nova e tremenda detonação
lhe soou aos ouvidos. No mesmo instante subiu no ar o mesmo fumozinho, o
sangue espalhou-se no chão, e os franceses, de rostos pálidos e assustados,
agitaram-se em volta do poste, empurrando-se uns aos outros com mãos trémulas.
Pedro, com um grande suspiro, olhou em roda de si, como se perguntasse o que
significava tudo aquilo. E a mesma pergunta se lia em todos os olhos que os de
Pedro interrogavam.
Em todos os rostos, dos russos, dos soldados franceses, dos oficiais, em todos,
sem excepção, encontrava o mesmo pavor, o mesmo horror, e também os mesmos
sinais da luta travada em seus corações: «Quem foi, realmente? Todos sofrem o
que estou a sofrer. Quem? Quem?» E esses pensamentos perpassaram-lhe pelo
espírito como um relâmpago.
«Atiradores do 36º, em frente!», gritou uma voz.
Levaram o quinto prisioneiro, só esse, aquele que estava ao lado de Pedro.
Mas não compreendeu logo que estava salvo, que tanto ele como os outros
apenas ali tinham sido levados para assistir à execução. Cada vez era maior nele o
sentimento de horror. Não sentia nem alegria nem apaziguamento. O quinto
condenado era o operário fabril de guarda-pó. Assim que lhe puseram as mãos em
cima, deu um salto e agarrou-se a Pedro, que, estremecendo, horrorizado,
procurou desembaraçar-se dele. Não era capaz de dar um passo. Arrastaram-no
pelas axilas enquanto ele gritava, Ao chegar ao poste, calou-se subitamente. Só
agora parecia compreender. Teria percebido ser inútil gritar ou pensaria não ser
possível que o fossem matar? E ali estava diante do poste, de pé, aguardando que
lhe vendassem os olhos, como aos outros, e, como eles, parecia o mesmo animal
ferido olhando à, sua roda com olhos alucinados.
Pedro sentia não ser capaz de voltar de novo a cabeça e fechar os olhos.
Atingira o auge da curiosidade e da emoção, como todos os presentes, perante
aquele quinto fuzilamento. E também aquele condenado, como os demais, parecia
finalmente calmo: embrulhava-se no guarda-pó enquanto esfregava um no outro
os pés descalços.
Quando lhe vendaram os olhos, ele próprio ajeitou na, nuca o nó que omagoava e quando, em seguida, o amarraram ao poste ensanguentado, inclinou-se
para trás, mas como essa posição tosse incómoda, voltou a endireitar-se e, de pés
juntos, dócil, pôs-se no lugar conveniente. Pedro, de olhos fitos nele, seguia-lhe os
mais pequenos movimentos,
Ouviu-se, naturalmente, a voz de fogo e os oito tiros soaram sem dúvida ao
mesmo tempo. Mas, por mais que Pedro o tentasse recordar depois, não se
lembrava de ter ouvido qualquer detonação Apenas viu o rapaz escorregar, de
súbito desamparado, no meio das cordas que o prendiam. Sangue lhe apareceu em
dois pontos, as cordas bambearam sob o peso do corpo e o fuzilado, a cabeça
exageradamente pendida para diante, as pernas flectidas, sentou-se no chão.
Pedro correu para ele. Ninguém o reteve. Em volta do cadáver moviam-se vultos
pálidos e assustados. O queixo de um velho soldado de grandes bigodes que
desatava as cordas estremecia convulsivamente. O corpo caiu. Os soldados,
apressados, arrastaram-no para além do poste e jogaram-no na fossa.
Dir-se-ia que todos se sentiam criminosos e que só queriam fazer desaparecer o
mais depressa possível os vestígios do seu crime.
Pedro olhou para o fundo do fosso e viu lá dentro o condenado, os joelhos ao
pé da cabeça e um ombro mais alto do que e outro. Este ombro, em movimentos
nervosos, baixava e subia regularmente. Mas as pazadas de terra principiavam já
a cobrir o corpo. Um soldado, exasperado, gritou a Pedro que se afastasse. Este,
sem perceber, continuou onde estava e ali ficou.
Assim que o fosso ficou coberto de terra, soou uma voz de comando. Pedro foi
reconduzido ao seu lugar e o destacamento francês formado aos lados do poste fez
meia volta e desfilou, marcando passo. Os vinte e quatro atiradores que tinham
feito fogo iam-se incorporando nas fileiras à medida que o destacamento passava
diante deles.
Pedro olhava agora sem ver os soldados que passavam diante dele dois a dois.
Todos, menos um, reentraram nas suas companhias. Um soldado, muito novo,
pálido como um morto, barretina atirada para a nuca, a espingarda voltada para o
solo, continuava de pé diante do fosso no sítio onde fizera fogo. Cambaleando
como um ébrio, dava um passo em frente, outro à retaguarda, para, se, manter de
pé. Um velho sargento saiu das fileiras, pousou-lhe as mãos nos ombros e arrastou-
o à força para o seu lugar, A multidão ia dispersando.
Todos caminhavam de cabeça baixa, sem dizer palavra.— Isto os ensinará a deitar fogos! — exclamou um dos franceses.
Pedro olhou para o soldado que falara: era alguém que tentava desculpar o
que se consumara. Sem concluir a frase, teve um gesto de indiferença e seguiu o
seu caminho.
[XI]
Depois da execução separaram Pedro dos outros e deixaram-no só numa
igrejinha saqueada e em ruínas.
Pela noite, o sargento da guarda penetrou na igreja acompanhado de dois
soldados e comunicou-lhe que fora indultado e que transitaria dai para o futuro
para o barracão dos prisioneiros de guerra, Sem perceber o que lhe diziam,
levantou-se e seguiu os soldados. Conduziram-no à parte superior da esplanada, a
uns barracões de pranchas e vigas queimadas e meteram-no num deles. Na
obscuridade pode distinguir uns vinte homens. Olhou-os sem compreender quem
eram e o que estavam ali a fazer. Percebia as palavras que diziam sem poder
deduzir delas qualquer sentido. Nem sequer lhes compreendia o significado.
Respondia as perguntas sem a mais pequena ideia de quem poderia ser que lhe
falava e da maneira como compreenderia as respostas. Via diante de si figuras e
corpos e tudo parecia não ter para ele o mais ligeiro significado.
Desde o momento em que assistira àquela terrível chacina executada por
quem a levara a cabo sem vontade própria, dir-se-ia que na sua alma deixara de
funcionar subitamente essa mola que tudo aguenta e dá vida ao conjunto. Tudo
nele parecia desmoronado e um monte informe de ferro-velho. Nele, sem que se
desse conta, extinguira-se a fé na harmonia do universo, na alma humana, na sua
própria alma e até em Deus. Já passara por esse mesmo estado outrora, mas
nunca sentira como agora os efeitos dessa crise. Até então, quando diante de uma
dúvida, era ele próprio, por sua culpa, o causador dela, Então sen(ia, no fundo da
sua alma, que a salvação lhe viria dos seus próprios excessos e das suas mesmas
dúvidas, Agora dava-se conta de que, sem que ele tivesse culpa, o mundo se
desmoronava diante dos seus olhos e que dele não restavam mais que absurdas
ruínas. Sentia não estar nas suas mãos recuperar a fé na vida.Distinguia, no meio da obscuridade, em volta de si, vultos que pareciam
interessados na sua pessoa. Contavam-lhe coisas várias, faziam-lhe perguntas:
depois levaram-no dali e encontrou-se num recanto do barracão, ao lado de
indivíduos que se interpelavam mutuamente de várias direcções, rindo.
— Ora aí está ele, rapazes... esse príncipe «que» exclamou uma voz, no recanto
oposto, pondo intenção particular na maneira como pronunciara aquele «que».
Calado e imóvel, Pedro, sentado na palha, encostado ao tapume, ora abria ora
fechava os olhos. Quando os fechava, revia o rosto terrível do pobre operário
fabril, cuja simplicidade o tornava ainda mais pavoroso, e revia também as caras,
ainda mais terríveis no seu pavor, dos assassinos obrigados. Depois tornava a abri-
los e olhava em volta de si, no meio da obscuridade, com um ar estúpido.
A seu lado, debruçado para ele, estava sentado um homenzinho cuja presença
notara desde o primeiro instante graças ao cheiro a suor que dele se desprendia
ao mais simples movimento.
Esse homem cuidava dos pés no meio das trevas, e embora Pedro lhe não visse
a cara sentia-lhe os olhos pousados nele. Tentando ver através da obscuridade,
percebeu que procurava descalçar-se. E a maneira como o fazia intrigava Pedro.
Depois de ter desatado os trapos que envolviam uma das pernas,
imediatamente tratou da outra, sempre a olhar para Pedro. Enquanto com uma
das mãos pendurava num prego os trapos, ia desfazendo os outros com a outra
mão. Depois de se ter descalçado, também com toda a cautela, em movimentos
regulares, pacientes, sem pressa, dependurou as botas numa escápula que lhe
ficava por cima da cabeça, puxou de uma navalha, cortou qualquer coisa, voltou a
fechá-la, e depois de se sentar mais comodamente abraçou os joelhos com as mãos
e fitou Pedro com insistência. Uma agradável sensação de apaziguamento e de
doçura se apoderava de Pedro observando os movimentos regulares daquele
homem metódico ali no seu canto; até o cheiro que dele emanava lhe não era
desagradável e ele próprio se pôs a olhá-lo também obstinada mente.
— Tem visto muita coisa na sua vida, cavalheiro? Hem? — exclamou, de
súbito, o homenzinho.
Na voz cantante daquele homem havia tal inflexão de carinho e simplicidade
que Pedro, ao querer responder-lhe, sentiu que lhe tremia o queixo e que as
lágrimas lhe subiam aos olhos.
O homenzinho, sem lhe dar tempo a que se deixasse ganhar pela comoção,prosseguiu no mesmo tom:
— Não te aflijas, meu falcãozinho — disse nessa voz terna e acariciadora tão
própria das velhas russas. — Não te aflijas, meu amigo; depois de uma hora de
sofrimento, temos a vida inteira para viver, É o que te digo, meu amigo. E graças
a Deus ainda estamos vivos e de boa saúde, Também eles são homens, uns bons e
outros maus... — E, dizendo isto, inclinou-se para diante, num movimento ágil,
levantou-se, tossindo, e afastou-se um pouco.
— Eh!, patife! Estás aí outra vez! — exclamou a mesma voz agradável na
outra extremidade do barracão. — Estás aí outra patife! Lembras-te de mim? Bom,
bom, basta.
Enxotando um cachorrinho que pulava à roda dele o soldado voltou para o seu
lugar e sentou-se de novo. Trazia qualquer coisa embrulhada num trapo,
— Toma, come — disse, ele de novo em tom respeitoso. Tirou trapo batatas
cozidas e ofereceu-as a Pedro. — Ao jantar houve sopa. Mas batatas, nem falar
nisso!
Pedro não comera durante todo o dia e o cheiro das batatas pareceu-lhe
agradável. Agradecendo ao soldado, pôs-se a comer.
— Assim, uma por uma — interveio este, sorrindo, pegando numa das batatas.
— Assim é que é.
De novo puxou da navalha, cortou a batata, na palma da não, em duas partes
iguais, salpicou-a de sal que tinha dentro do trapo e apresentou-a a Pedro.
— Batatas de primeira qualidade! — repetiu ele. — Come-as assim. — Dir-se-ia
que, Pedro nunca em sua vida comera coisa tão boa.
Para mim tanto se me dá — murmurou Pedro. — Mas porque fuzilaram eles
aqueles desgraçados? — O último ainda não tinha vinte anos.
— Chiu!... Chiu!... Não diga isso, não diga isso — deu-se pressa em responder o
homenzinho, e, como se as palavras lhe viessem por si mesmas à boca e sem que
ele desse por isso, continuou:
— Porque ficou o senhor em Moscovo?
— Não pensei que eles chegassem tão depressa. Foi por acaso E assim
apanharam-no em casa?
— Não, saí para ver o fogo e foi então que eles me deitaram a mão e me
julgaram como incendiário.
— Onde há justiça há injustiça — comentou o homenzinho.— E tu, tu estás aqui há muito tempo? — interrogou Pedro, que acabara de
comer a sua última batata.
— Eu? No domingo apanharam-me no hospital de Moscovo.
— És soldado?
— Do regimento de Apcheron. Estava a morrer de febre. Nada nos disseram.
Éramos vinte ao todo. Nunca teríamos pensado.
— E aborreces-te aqui?
— Como não hei-de eu aborrecer-me, meu falcão? Cá por mim, chamo-me
Platão e sou de Karataiev. — Acrescentou, para que a conversa corresse mais fácil
para Pedro. — Na tropa chamavam-me Falcãozinho. Ah. Dois não me havia de
aborrecer? Moscovo é a mãe das cidades. Pois não hei-de estar triste com tudo
isto? Sim, mas a lagarta come a couve e morre também. Os velhos têm razão —
continuou, mudando de assunto.
— Quê? Que disseste tu? — perguntou Pedro.
— Eu? Eu disse que homem põe e Deus dispõe — voltou, supondo repetir o
provérbio que dissera antes. E prosseguiu: — E o senhor, o senhor, naturalmente,
tem bens, tem casa? E a despensa sempre a abarrotar. E uma boa dona de casa? E
os pais ainda vivos?
Embora Pedro, na obscuridade, não lhe pudesse ver a cara, sentia que os lábios
do soldado, ao dizerem estas coisas carinhosas, esboçavam um sorriso cortês. E
grande foi a sua aflição quando Pedro lhe disse que não tinha parentes,
especialmente que não tinha mãe.
— A mulher, para dar conselhos; a sogra, para bem nos acolher, mas não que
chegue à mãe. E tens filhos? — prosseguiu ele.
A resposta negativa de Pedro, condoeu-se igualmente e apressou-se a
acrescentar:
— Ora, ora! Ainda és novo. Ainda podes ter filhos, graças a Deus! Desde que
uma pessoa viva em paz...
— Oh, agora é-me indiferente! — disse Pedro, por dizer, sem dar por isso.
— Eh, meu homem! — replicou o soldado. — A miséria e à prisão todos irão.
Aninhou-se melhor, tossicou, dispondo-se, era bem de ver, para uma longa
história.
— Sim, meu velho, também eu vivia na minha casa — principiou. — Vivíamos
numa rica propriedade, tínhamos muita terra nossa, os camponeses viviamfolgados e nós também, graças a Deus. A colheita rendia sete por uma. Vivíamos
bem. Éramos tementes a Deus. E até que um dia...
E Platão Karataiev encetou uma história compridíssima: fora apanhar lenha à
floresta vizinha, o guarda deitara-lhe a mão, fora vergastado, julgado e
mandaram-no assentar praça.
— E que julgas, meu falcãozinho — prosseguiu, num tom em que se adivinhava
o sorriso —, julgas que foi uma desgraça? Nada disso, tanto melhor assim! Se me
não tivessem apanhado a mim, ao meu irmão competia assentar praça. E o meu
irmão mais novo tinha cinco filhos à sua conta, enquanto que eu, eu, por mim,
apenas deixei a mulher em casa. A filhinha que eu tive, Deus ma levou antes de
assentar praça. Uma vez voltei a casa, de licença, é como te digo. Que vejo eu?
Que todos viviam mais folgados do que antes: as capoeiras cheias de criação, as
mulheres na lida da casa, os dois irmãos a ganhar a vida lá por fora. Só o Mikaila,
o mais novo, estava em casa. E o pai volta-se para mim e diz-me: «Para mim, todos
os filhos são iguais. Seja qual for o dedo que mordas, faz-te sempre doer. Se não te
tivessem levado para a tropa a ti, Platão, tinham levado o Mikaila.» Chamou-nos
a todos e mandou-nos pôr diante dos ícones. «Mikaila», disse ele, «chega-te aqui,
roja-te aí no chão, e tu, mulher, faz o mesmo, e vocês, gente miúda, também.
Perceberam?» E aqui tem, meu velho. O destino é que manda e nós passamos a
vida a dar sentenças: não está certo, não é assim que deve ser. A nossa felicidade,
meu amigo, é como a água nas redes do pescador. Se puxamos por elas, as redes
incham, mas quando as tiramos de dentro da água já estão vazias. É assim mesmo.
E Platão enterrou-se na sua palha.
Após alguns instantes de silêncio, voltou a soerguer-se.
— Quer-me parecer que estás com vontade de dormir — disse ele, e pôs-se a
benzer-se precipitadamente, murmurando:
— Senhor Jesus Cristo, Santos Nicolau, Frol e Laura! Senhor Jesus Cristo,
Santos Nicolau, Frol e Laura! Senhor Jesus Cristo, tem piedade de nós e salva-nos!
— Finda a sua oração, prosternou-se no chão, voltou a erguer-se, suspirou e
sentou-se na palha. — Faz com que durmamos como uma pedra, o Deus, e que
acordemos como um calatch — murmurou ainda. Depois deitou-se, cobrindo-se com
o capote.
— Que oração é essa? — perguntou Pedro.
— Que dizes? — retrucou Platão, que estava quase a dormir.— Que foi que eu rezei? Rezei a Deus. E tu, tu não rezas?
— Rezo, sim, também rezo — volveu Pedro. — Mas que é isso de Frol e de
Laura?
— Hem? São os patronos dos cavalos — respondeu ele. — Também devemos
ter piedade dos animais. Eh, patife! Enroscou-se todo. Está quentinha, a filha de
uma cadela! — acrescentou, passando a mão pelo lombo da cadelita deitada em
cima das suas pernas: depois voltou-se para o outro lado e adormeceu
instantaneamente.
Lá fora, na distância, ouviam-se gritos e queixas e através das fendas das
tábuas do barracão via-se luz. Lá dentro, porém, reinavam as trevas e a
serenidade. Levou tempo antes que Pedro pudesse conciliar o sono e ali esteve
estendido na palha, no meio das trevas, os olhos muito abertos, a ouvir o ressonar
de Platão, deitado perto dele. Sentia que o mundo moral que se desmoronara na
sua alma se ia reedificando, pouco a pouco, mais belo, e sobre alicerces novos e
inalteráveis.
[XII]
No barracão onde estava Pedro, e onde passou quatro semanas, havia, entre
os vinte e três prisioneiros, três oficiais e dois funcionários.
De toda essa gente apenas lhe ficou na memória uma pálida lembrança, mas a
figura de Platão Karataiev gravou-se-lhe nela para sempre, como a recordação
mais viva e mais querida, como a personificação do que há de melhor e de mais
são no povo russo. Quando no dia seguinte de madrugada lhe foi dado ver o rosto
do seu vizinho, a impressão que tivera dos seus gestos envolventes confirmou-se.
Com efeito, no seu capote de soldado francês cingido por uma corda, com o seu
barrete e os seus laptis, todo ele era reboludo. Tinha a cabeça redonda como uma
bola; redondos eram também o seu dorso, o seu peito, os seus ombros e até os
seus braços, que ele mantinha sempre numa postura envolvente, corao para
acariciar alguém. E até o seu sorriso e os seus grandes olhos castanhos e ternos
eram redondos.
Devia ter os seus cinquenta anos, a ajuizar pelas campanhas em que tomaraparte jutrora como soldado. Mas ele próprio não saberia nem poderia uízer que
idade tinha. Porém os seus dentes fortes, de uma brancuna esplendorosa, que
mostrava, alinhados, quando ria, e ria a cada passo, eram sãos e intactos, Não
havia um fio branco na sua barba e nos seus cabelos, e o seu corpo era elástico e
sobretudo forte e resistente.
Apesar de algumas rugas, no seu rosto havia inocência e mocidade. Tinha uma
voz agradável e cantante. Uma das suas particularidades quando falava era a
espontaneidade e a precipitação. Parecia não pensar nem no que dizia nem no que
ia dizer, e esta presteza, a verdade das suas entoaçIes, conferiam-lhe um
penetrante dom de persuasão.
Tais eram a sua resistência física e a sua vivacidade nos primeiros tempos de
cativeiro que a doença e a fadiga nada queriam com ele. Todos os dias, de manhã
e à noite, dizia: «Faz com que durmamos como uma pedra. Senhor, e que nos
levantemos como um calatch.» De manhã, ao erguer-se, tinha sempre o mesmo
movimento de ombros e dizia: «Quando nos deitamos, pomo-nos redondos, quando
nos levantamos, estenderno-nos.» E, realmente, assim que se deitava lá estava
ele a dormir como uma pedra, e assim que se estendia, sem um minuto de
hesitação, punha-se logo a fazer qualquer coisa, exactamente como as crianças,
que mal se levantam correm para o pé dos seus brinquedos. Tudo sabia fazer, não
com perfeição, mas ainda assim nada mal. Fazia o pão, cozinhava, cosia, aplainava
madeira, remendava as botas, Estava sempre ocupado e só à noite se permitia
conversar, coisa de que, aliás, muito gostava, e cantar. Não o fazia como os
profissionais, que se sabem escutados, mas como as aves, pois lhe era tão
necessário emitir sons como estender os membros ou caminhar, e o que cantava
era sempre suave, terno, quase feminino e melancólico. Enquanto cantava estava
sempre muito sério.
Desde que fora feito prisioneiro deixara crescer a barba e, abandonando por
assim dizer tudo que nele era de empréstimo, estranho, soldadesco, ei-lo que volta
a ser o que era, um mujique, um homem do povo.
«O soldado quando está de licença puxa a camisa para fora das calças» (Voltar
a ser mujique, pois o muiique usa a camisa por fora das calças, presa com um cinto.
(N. dos T.), costumava dizer.
Não era do seu agrado falar do seu tempo de serviço, embora não se queixasse
dessa época e repetisse muitas vezes que nunca fora castigado. Preferia contarhistórias dos seus antigos tempos de «cristão», como dizia, em lugar de dizer
camponês. Os provérbios de que esmaltava a conversa nada tinham que ver
geralmente com esses ditos jocosos e inconvenientes de que tanto gosta, a
soldadesca. Eram maneiras de dizer populares que, empregadas isoladamente, não
têm sentido, mas, quando ditas a propósito, trasbordam de profunda sabedoria.
Era frequente contradizer-se, embora fosse sempre acertado e que dizia.
Gostava de falar, e falava bem, adornando a, sua palavra de diminutivos
carinhosos ou adágios, de que ele proprio era autor, pensava Pedro. O maior
encanto das suas histórias era o facto de os acontecimentos mais vulgares, que
teriam passado completamente despercebidos, revestirem-se na sua boca de
verdadeira grandeza, Gostava muito de ouvir as histórias, sempre as mesmas, que
um soldado narrava ao serão, mas o que mais o interessava era o que se contava
da vida real. Então todo ele era alegria, e metia a sua colherada, fazia a sua
pergunta, procurando extrair a moral do que se dizia. Não tinha afectos nem
amizades como Pedro as compreendia, mas vivia amistosamente com todos os que
o rodeavam e não gostava mais deste ou daquele, em especial, mas em geral de
todos na presença dos quais se encontrava. Queria ao seu cachorrinho, aos seus
camaradas, aos franceses, gostava de Pedro, que era seu vizinho. Este, no entanto,
percebia perfeitamente que, apesar de todas as atenções para com ele,
homenagem involuntária do soldado às qualidades morais do seu companheiro, se
ele partisse, não teria sofrido com a sua falta. E Pedro principiou a sentir por
Karataicv os mesmos sentimentos.
Platão Karataiev, para todos os seus demais companheiros de cativeiro, era
um soldado como outro qualquer chamavam— -lhe Falcãozinho ou Platocha,
gracejavam com ele sem maldade, mandavam-no fazer isto e aquilo. Aos olhos de
Pedro, contudo, ele era a imagem inacessível, etcrna, do espírito de simplicidade,
de franqueza e de verdade, e assim como o vira na primeira noite ele lhe ficara
gravado para sempre na memória.
Platão Karataiev nada sabia de cor além da sua oração. Quando principiava a
falar dir-se-ia não saber como acabaria. Quando Pedro, por vezes, maravilhado
com o sentido das suas palavras, lhe pedia que repetisse o que dissera, já não era
capaz de se recordar do que acabara de dizer, e por isso mesmo lhe era impossível
também repetir a letra da sua canção favorita. Falava-se aí no «meu querido
álamo», dizia-se «estou triste», mas não se lhe podia perceber qualquer sentidocoerente. Ele próprio não compreendia e ser-lhe-ia de todo impossível
compreender o que significavam os termos isolados. Cada uma das suas palavras e
cada um dos seus actos era a manifestação exterior de uma força inconsciente, a
sua própria vida. E esta vida, tal qual ele a considerava, não tinha para ele
qualquer sentido como vida em si mesma, só a compreendia como parte de um
todo que ele a cada momento sentia presente. As suas palavras, os seus actos,
emanavam dele tão regular, necessária e espontàneamente como o perfume
emana de uma flor. Era-lhe impossível conhecer o preço e o valor dos seus actos e
das suas palavras considerados isoladamente.
[XIII]
Ao saber por Nicolau que seu irmão estava em Iaroslav com w Rostov, a
princesa Maria, apesar das recomendações da tia, resolveu partir imediatamente,
levando consigo o sobrinho, Não quis saber se era difícil ou não, se era mesmo
impossível. O seu dever não só consistia em estar junto do irmão, moribundo
talvez, como fazer tudo o que estivesse nas suas mãos para lhe levar o filho. Por
isso se dispôs a partir. Se o príncipe André lhe não tinha escrito, era, sem dúvida,
por se encontrar em estado de fraqueza extrema, ou então porque considerava
aquela longa jornada muito difícil e perigosa para ela e para o filho.
Em poucos dias se preparou para a viagem. A sua equipagem era formada pela
grande berlinda do príncipe em que viera para Voroneje, e por algumas britchkas
e galeras para as bagagens.
Acompanhavam-na Mademoiselle Bourienne, Nikoluchka e o seu preceptor, a
velha ama, três criadas, Tikon, um criado moço e um heiduque que a tia lhe
arranjara para a escolta.
Não se podia pensar em seguir a via ordinária para Moscovo. Assim, pois,
tiveram de seguir por Lipetsk, Riazan, Vladimir, Chuia, muito mais longe, e
caminho difícil, em virtude de se não encontrarem com facilidade estações de
posta, e perigoso, mesmo, pois se dizia haver franceses já nas imediações de
Riazan.
Durante todo o penoso percurso a princesa Maria foi o espanto deMademoiselle Bourienne, de Dessales e de toda a criadagem, tão grandes a sua
decisão e actividade. Era a última a deitar-se a primeira a levantar-se. Nenhuma
dificuldade a fazia recuar. Graças a esta energia, grande estímulo para o moral de
seus companheiros, puderam alcançar Iaroslav em duas semanas.
Os últimos dias da sua permanência em Voroneje tinham sido para a princesa
Maria os mais felizes da sua vida. O seu amor por Rostov já lhe não causava
tormento nem inquietação. Enchia-lhe toda a alma, era, por assim dizer, parte
integrante sua e deixara de lutar. Sem que o tivesse confessado a si própria
claramente, convencera-se entretanto de que era amada e de que amava. Disso
tivera a certeza aquando da última entrevista com Nicolau, no dia em que ele lhe
viera comunicar que o irmão estava junto dos Rostov. Nicolau não se referira à
hipótese de qualquer reconciliação projectada entre Natacha e André no caso de
este melhorar, mas lera-lhe no rosto que esta eventualidade o Preocupava. No
entanto, a sua maneira de ser, discreta, terna e afectuosa, não se alterara;
parecia, pelo contrário, sentir-se feliz que a aliança projectada lhe permitisse
exprimir mais livremente , amizade que sentia por ela e que era já amor. Assim,
pelo merios, raciocinara a princesa Maria. Era a primeira e a última vez na sua
vida que ela própria amava e era amada, e nesta certeza se, sentia feliz e
tranquila.
A felicidade que isto lhe dava irão a impedia de sentir uma grande mágoa por
causa do estado do irmão. A própria traircluilidade moral de que, gozava favorecia
nela os sentimentos de tristeza que dai lhe advinham. Tão inquieta se mostrara
por isso mesmo durante os primeiros momentos, à partida de Voroneje, que as
pessoas que a rodeavam, ao verem a sua expressão atormentada e o desespero
que se lhe pintava no rosto, se convenceram de que ela ia adoecer durante a
viagem. Felizmente as próprias dificuldades e preocupações da jornada, ocupação
de todos os seus momentos, salvaram-na momentaneamente da dor em que se
abismava e reanimaram-lhe a energia.
Como frequentemente acontece no decurso de uma viagem assim, absorvida
pelas preocupações materiais do caminho, esquecera, por assim dizer, o seu
objectivo. Mas ao aproxi m arem— se de Iaroslav, e quando pôde dar-se conta de
que, não dentro de dias, mas de poucas horas, nessa mesma noite, as suas
apreensões iam ser confirmadas, uma grande emoção tomou conta dela,
O heiduque, enviado para se informar do domicílio dos Roslov em Iaroslav e doestado do príncipe André, ao reencontrar as portas da cidade a grande berlinda,
que acabava de chegar, e, vendo a palidez mortal da princesa, que espreitara pela
portiijhola, sentiu-se aterrado.
— Informei-me de, tudo, Excelência — disse ele. — Os Rostov vivemn na praça,
na casa do comerciante Bronikov. Não fica longe, mesmo na margem do Volga.
A princesa, ao verificar que ele não respondera à principal pergunta, a que
dizia respeito ao estado de seu irmão, olhou para c, criado apavorada.
Mademoiselle Bourienne foi quem o interrogou em vez da princesa.
— E o príncipe? — perguntou ela.
— Sua Exclência reside na mesma casa.
«Isso quer dizer que está vivo», disse de si para consigo a princesa, e
perguntou em voz baixa:
— Como está ele?
— Os criados disseram-me que está sempre na mesma.
A princesa não perguntou o que queriam eles dizer com isso e relanceando os
olhos ao pequeno Nicolau, a criança de sete anos sentada diante dela muito
contente por chegar a uma cidade, baixou a vista e nessa atitude se manteve até
que a pesada carruagein, rangendo, oscilando e combaleando, se deteve
finalmente, os estribos foram apeados com fragor.
Abriam-se as portinholas. A esquerda estendia-se uma grande toalha de água:
era o rio: à direita um alpendre. No alpendre aguardavam-na os criados e uma
rapariguinha, rosada e fresca, com uma grande trança preta, que, assim o julgou a
princesa Maria, lhe sorriu um pouco afectadamente: era Soma. A princesa
precipitou-se na escada, e ela disse-lhe: «Por aqui, por aqui! » E viu-se, na
antecâmara, na presença de uma senhora idosa de tipo oriental, que vinha ao seu
encontro, muito comovida. Era a velha condessa. Tomando nos braços a princesa
Maria, beijou-a na cara.
— Minha filha — exclamou ela. — Estimo-a muito e conheço-a há muito tempo.
Apesar da emoção que sentia, a princesa Maria compreendeu de quem se
tratava e disse de si para consigo que era preciso corresponder àquela efusão. E,
sem saber muito bem o que fazia, disse-lhe em francês algumas palavras corteses
no tom em que a condessa o fizera para com ela, e perguntou-lhe:
— Ele como está?
— O médico diz que o perigo passou — respondeu a condessa, com um suspiroe os olhos no céu que pareciam desmentir as suas palavras.
— Onde está ele? Pode ver-se, pode? — perguntou a princesa. —
Imediatamente, princesa, imediatamente, miniia amiga. É o filho dele? —
acrescentou ao ver entrar Nikoluchka na companhia de Dessales. — Caberemos
todos, a casa é grande. Oh!, que encantadora eriançal
A condessa introduziu a princesa no salão. Sónia falava com Mademoiselle
Bourienne enquanto a condessa acariciava o pequeno.
O velho conde veio cumprimentar a princesa. Mudara muito desde que ela o
vira pela última vez. Então era um velhinho folgazão, muito alegre, cheio de si:
agora não passava de um pobre homem desorientado e digno de piedade.
Enquanto falava à princesa ia olhando à sua roda, assustado, como se temesse não
fazer o que devia. Arrancado aos seus hábitos pelo desastre de Moscovo e o da
sua própria ruína, perdera todo o contacto com a realidade e sentia que já não
tinha lugar nesta vida.
Embora a dominasse o desejo de se ver na presença do irmão um pouco
desorientada por lhe tomarem tanto tempo com as delicadezas e os cumprimentos
pouco sinceros de que era alvo o sobrinho, a princesa ia fazendo as suas
observações sobre o que via e compreendia que era sua obrigação submeter-se,
pelo menos provisoriamente, a maneiras de agir novas para ela. Isso era
necessário, era-lhe penoso, mas aceitava as consequências.
— Esta é a minha sobrinha — disse o conde, apresentando Sónia —, ainda a
não conhecia, não é verdade, princesa?
A princesa Maria voltou-se para onde ela estava e, procurando dominar os
sentimentos de hostilidade que sentira por essa rapariga, beijou-a. O que lhe era
mais penoso era o facto de sentir que o estado de espírito dos que a rodeavam
não rimava com o que se passava no seu próprio coração.
— Onde está ele? — perguntou pela segunda vez, dirigindo-se a todos.
— Está lá em baixo. Natacha está junto dele — respondeu Sónia, corando. —
Foram preveni-la. Mas deve estar cansada, princesa?
Lágrimas de despeito e e impaciência assomaram aos olhos dela. Desviou a
cara e dispunha-se a perguntar à condessa por onde era o caminho para o quarto
do irmão, quando uns passos leves, decididos, quase alegres, se ouviram à porta. A
princesa voltou a cara e viu Natacha, que tanto lhe desagradara aquando da
entrevista de Moscovo.Mas, assim que os seus olhos pousaram nela, logo compreendeu estar ali a sua
sincera companheira de sofrimento e por conseguinte a sua amiga. Precipitou-se
ao seu encontro, abraçou-se a ela e rompeu em soluços encostada ao seu ombro.
Assim que Natacha, à cabeceira do príncipe André, soubera da chegada de
Maria, saíra do quarto sem ruído, e no seu passo rápido, nesse seu passo de ritmo
alegre que surpreendeu a visitante, correu ao encontro dela.
Ao entrar no salão, o seu rosto emocionado só exprimia um sentimento, o
amor, um amor sem limites por ele, por tudo que dizia respeito ao homem a quem
amava, uma compaixão imensa pelos outros e um desejo apaixonado de se
sacrificar. Naquele instante no seu coração não havia o mais pequeno pensamento
egoísta: uma possível união com ele não lhe passava pelo espírito.
O instinto delicado de Maria levou-a a ler tudo isso na cara dela e foi com uma
alegria em que se misturava sofrimento que se deixou chorar sobre o ombro de
Natacha.
— Vamos, vamos ter com ele, Maria — disse Natacha, levando-a consigo para
outra sala.
A princesa levantou a cabeça, enxugou as lágrimas e quis interrogá-la. Sabia
que Natacha lhe diria a verdade.
— Como... — disse ela, mas interrompeu-se imediatamente. Sentia que com
palavras era incapaz de Interrogar e Natacha incapaz de responder, os seus olhos,
a expressão do seu rosto falavam mais claramente.
Natacha olhou para ela, mas estava cheia de ansiedade e de incerteza, Devia
dizer-lhe ou não tudo o que sabia? Confusamente, sentia que na presença daqueles
olhos luminosos que a penetravam até ao fundo da alma não lhe seria possível não
dizer tudo, toda a verdade, tal qual a sabia. Os lábios tremerem-lhe, um rieto se
lhe esboçou em torno da boca e soluçou com a cabeça nas mãos.
A princesa Maria compreendeu tudo.
No entanto, ainda tinha alguma esperança e perguntou, sem que ela própria
acreditasse no que dizia:
— E como está o seu ferimento? E o seu estado geral?
— Vai ver... vai ver — foi tudo quanto Natacha pôde articular.
Ficaram alguns momentos num quarto vizinho do do príncipe para que
desaparecessem os vestígios das lágrimas e pudessem chegar junto dele com o
rosto sereno.— Como tem caminhado a doença? Há muito que está assim pior? Quando
aconteceu «isso»? — perguntou Maria.
Natacha contou-lhe que nos primeiros tempos o seu estado febril e as dores lhe
tinham posto a vida em perigo, mas que em Troitsa melhorara e o médico nada
mais receava então senão a gangrena.
Esse perigo fora evitado: em Iaroslav, no entanto, veio a produzir-se uma
supuração e o médico dissera que iria seguir, provavelmente, o seu curso regular.
— Natacha estava perita em termos médicos. — A febre declarara -se-lhe de novo:
mas o médico dizia que não tinha gravidade.
— Finalmerite, antes de ontem — continuou Natacha, reprimindo as lágrimas
— «isso» apareceu bruscamente... Não sei como. Verá com os seus olhos o estado
em que ele está.
— Está mais magro? Emagreceu? — perguntou a princesa.
— Não, não é isso, é pior. Verá. Ah! Maria. é bom de mais, não pode, não pode
viver neste mundo, por isso...
[XIV]
Quando Natacha, com um movimento habitual, abriu a porta, deixando passar
na sua frente a princesa Maria, esta sentiu que os soluços a sufocavam. Conquanto
estivesse preparada para o encontro, e embora fizesse tudo para estar serena,
sentia que não tinha coragem de o ver sem chorar.
Compreendera o que Natacha queria dizer com as suas palavras: «Isso
aconteceu-lhe antes de ontm.» Percebera que aquilo queria dizer que ele se
acalmara de repente e que essa acalmia, esse desprendimento, eram prenúncios
de morte. Revia, naquele momento, o pequeno André que ela ccithecera na sua
infância, esse rostozinho meigo, suave, humilde, essa expressão que ele tão poucas
vezes tivera depois e que tão profundamente a comovia quando voltava a
encontrar-lha no rosto. De antemão sabia que ele lhe iria dizer dessas palavras
serenas e ternas como o pai lhe dissera antes de morrer e que não poderia
suportar isso e que romperia a chorar. Mas, como mais tarde ou mais cedo tinha
de Ícontecer, resolveu entrar. Estava quase sufocada pelos soluços quando, com osseus ohos míopes, distinguiu os contornos do corpo do irmão e reconheceu os seus
traços: o rosto dele estava diante de si e os seus olhos vieram pousar-se nos dela.
Estendido num canapé, amparado por duas almofadas, tinha um roupão
forrado de zibelina. Estava magro e pálido. Com uma das mãos, transparente e
quase descarnada, pegava num lenço, enquanto com a outra, graças a
imperceptíveis movimentos dos dedos, retorcia o fino bigode, que crescera muito.
Os seus olhos pousaram-se na pessoa que entrava.
Ao ver aquela fisionomia e a expressão daquele olhar, Maria moderou o passo
e sentiu que as lágrimas se lhe secavam rios olhos e os soluços se lhe retinham no
peito. Aquela cara, aqueles olhos, intimidaram-na de súbito e sentiu-se como
culpada.
«Culpada de quê?», perguntou-se a si própria. «De que tu vivas e que penses
na vida, enquanto que eu...» respondeu-lhe aquele frio e severo olhar.
Quando dirigiu lentamente os olhos para a irmã e para Natacha, no seu olhar
profundo, que não olhava para fora, mas antes parecia olhar para dentro, quase
havia ódio.
O príncipe beijou a irmã, passando-lhe os braços em volta do pescoço, como era
seu costume.
— Bons dias, Maria, chegaste por fim? — disse numa voz tão monótona e tão
estranha como o seu olhar.
Se se tivesse posto a gritar desesperadamente, teria causado menos horror à
irmã que o que lhe causara com o timbre daquela voz.
— Trouxeste contigo também o Nikoluchka? — perguntou com a mesma voz
monótona e lenta, fazendo um grande esforço de memória.
— Como te sentes agora? — disse Maria, surpreendida de poder fazer
semelhante pergunta.
— Minha querida amiga, isso deves perguntá-lo ao médico — replicou ele, e,
num esforco ainda para se mostrar amável, acrescentou apenas dos lábios (via-se
que não pensava no que dizia):
— Muito obrigada, querida amiga, por ter vindo.
A princesa Maria apertou-lhe a mão. Essa pressão fê-lo franzir as sobrancelhas
imperceptivelmente. Calara-se e ela própria não sabia que dizer. E então
compreendeu o que acontecera a André havia dois dias. Nas suas palavras, no tom
da sua voz, sobretudo naquele frio olhar, quase hostil, adivinhava-se essedesprendimento de todas as coisas deste mundo tão terrível para quem está vivo.
Parecia já nada compreender do inundo dos vivos, e não porque as suas
capacidades intelectuais tivessem enfraquecido, mas porque o seu pensamento
estava noutro lado, num mundo que não compreendem nem podem compreender
os vivos e que por isso mesmo deles o afastava.
— Ah! Que estranho foi connosco o destino! — disse ele, rompendo o silêncio e
apontando para Natacha: — Está a tratar-me, como vês.
A princesa Maria ouvia-o, mas sem compreender o que ele dizia. Como podia
ele, esse André, tão delicado, tão terno, falar assim na presença daquela a quem
amava e que o amava? Se ele tivesse pensado que poderia vir a curar-se não
falaria com aquela frieza, aquele tom quase ofensivo. Se ele não soubesse que ia
morrer, não teria tido piedade dela? Teria podido exprimir-se assim? A única
explicação é que tudo se lhe tornara indiferente e que qualquer coisa se lhe
revelara de muito mais importante.
A conversa, a cada momento interrompida, era fria e sem continuidade.
— Maria, passou por Riazan — disse Natacha.
André não sentiu qualquer surpresa ao ouvir chamar assim sua irmã, mas
Natacha, que assim a chamara na presença dele, deu por isso pela primeira vez.
— E então? — inquiriu ele.
— Contaram-lhe que Moscovo ardeu, está completamente em ruínas: que, ao
que parece...
Natacha calou-se: não podia continuar. Via-se que debalde ele tentava segui-
la.
— Sim, Moscovo ardeu, dizem. Que coisa triste -pronunciou ele, de olhos fixos,
repuxando maquinalmente as guias do bigode.
— Encontraste o conde Nicolau, Maria? — disse ele, de súbito, como se
quisesse mostrar-se afectuoso. — Escreveu para cá a contar que tu lhe agradas
muito — prosseguiu ele, num tom simples e calmo como se não pudesse
compreender inteiramente a importância das suas palavras para a gente deste
mundo. — Se ele te agrada também, é muito bom... casai-vos — concluiu, por fim,
como se procurasse as palavras e tivesse acabado por encontrar a expressão
desejada.
A princesa Maria, ao ouvir tais palavras, compreendeu quão longe o seu irmão
estava já do mundo dos vivos.— Porque falas tu de mim? — disse ela com calma, relanceando um olhar a
Natacha.
Esta, sentindo pousar-se nela esse olhar, não ergueu os olhos.
O silêncio continuou.
— André, queres... queres ver o Nikoluchka? — exclamou Maria, de súbito,
numa voz hesitante. — Está sempre a perguntar por ti.
O príncipe André sorriu imperceptivelmente pela primeira vez, mas a irmã,
que conhecia muito bem o seu jogo fisionómico, descobriu, apavorada, que aquele
sorriso não era de alegria ou de ternura por ouvir falar do filho, mas uma subtil
zombaria para com ela, por tê-la visto empregar este último expediente na
esperança de acordar nele qualquer sentimento.
— Pois sim, gostava muito de o tornar a ver. Está bom?
Quando lhe trouxeram o filho, que fitou o pai assustado, mas não chorou, pois
ninguém chorava, o príncipe André abraçou-o sem saber que dizer-lhe.
Levaram de novo a criança, e a princesa Maria aproximou-se mais uma vez do
irmão, beijou-o, e, sem poder reprimir as lágrimas por mais tempo, rompeu em
soluços.
André olhou-a fixamente.
— Choras por Nikoluchka? — perguntou ele.
Maria respondeu com um aceno afirmativo de cabeça.
— Maria, tu conheces o Evange ... — E, de súbito, calou-se.
— Que queres tu dizer?
— Nada. Não deves chorar assim — disse ele, olhando-a com o mesmo frio
olhar.
Quando a irmã principiou a chorar, André compreendeu que ela chorava
porque o pequeno Nicolau ia ficar órfão. Fez então um grande esforço sobre si
mesmo para retomar contacto com a vida e reaver o ponto de vista dos vivos.
«Sim, isso deve parecer-lhe triste», pensou ele, «e no entanto é tudo que há
de mais simples!»
«As aves do céu não semeiam nem colhem, mas o nosso Pai celeste alimenta-
as», pensou e veio-lhe à mente comunicar essa ideia à irmã, «Mas não, elas
compreenderão isto à sua maneira ou antes não o compreenderão de todo! E o
que elas não Podem compreender é que todos estes sentimentos que tão caros
lhes são nos são puramente pessoais, que são inúteis estes pensamentos que tantovalor têm para nós. Não nos poderemos compreender mais!» E calou-se.
O filhinho do príncipe ia fazer sete anos. Mal sabia ler. Ainda nada aprendera.
No decurso da sua vida veio a adquirir numerosos conhecimentos, experiência, o
dom de observação. Mas ainda que dispusesse naquele momento de toda a ciência
que adquiriu mais tarde, não teria apreendido melhor nem teria penetrado mais
profundamente o sentido da cena que se desenrolou entre seu pai, a princesa
Maria e Natacha. Compreendeu muito bem, saiu sem verter uma lágrima,
aproximou-se de Natacha em silêncio, e, seguindo-a, olhou-a timidamente com os
seus lindos olhos cismadores. Um movimento convulsivo lhe agitava o rosado lábio
superior ligeiramente soerguido. Depois, escondendo a cabeça no colo de Natacha,
rompeu a chorar.
Desse dia em diante evitou Dessales e esquivou-se às carícias da condessa. Ora
se deixava estar sozinho, ora procurava a princesa Maria e Natacha, a qual
parecia preferir à própria tia e que, suave e timidamente, o acariciava.
Maria, depois desta sua primeira visita ao irmão, compreendeu a expressão
silenciosa do rosto de Natacha. Não mais lhe falou em esperanças de cura.
Alternadamente com ela, assistia-lhe à cabeceira da cama. Não chorava, mas as
orações prorrompiam-lhe dos lábios mudos, elevando-se a toda a hora para o Ser
Eterno e Inacessível cuja presença tão vivamente se manifestava junto do
moribundo.
[XV]
O príncipe André não só sabia que ia perecer como se sentia morrendo pouco a
pouco, já estava meio morto. Tinha consciência plena do seu desprendimento de
tudo que era terreno e sentia na alma uma estranha sensação de alegria e bem-
estar. Aguardava sem pressa nem inquietação o inevitável. Essa coisa terrível,
etcrna, desconhecída, longínqua, que ao longo de toda a sua vida ele sentira
sempre a seu lado estava agora realmente ali, e graças àquele estranho bem-
estar dir-se-ia quase compreensível, tangível.
Outrora receara a moi-te. Por duas vezes já sentira com verdadeira angústia asua aproximação, o fim, e agora deixara de ter inedo. A primeira vez fora quando
aquela granada rodopiara diante dele: olhando os prados, as árvores, o céu, sabia
a morte a pairar sobre ele. Quando voltou a si, na ambulância, sentiu-se, de
repente, como liberto da vida: na sua alma desabrochara essa flor do amor etcrno,
livre, independente de todas as contingências, e de então para cá deixara de ter
medo da morte e não mais pensara nela. Nas horas de dolorosa solidão e meio
delírio após ter sido ferido, quanto mais se deixava absorver por esse mundo que
se lhe revelara impregnado de amor etcrno tanto mais se desprendia, sem que
desse por isso, da existência terrena.
Amar tudo e todos, sacrificar-se sempre por amor, era como não amar alguém,
não viver vida terrelia. E à medida que inergulhava neste princípio de amor ia
renunciando às coisas do mundo, ia vencendo a tremenda barreira que sem o amor
se h-vanta entre a vida e a morte. E foi assim que durante este primeiro período
da sua doença, sempre que pensava na morte próxima, para si mesmo dizia: «Pois
bem, tanto melhor!»
Mas depois daquela noite em Mitichtchi, quando, no meio do seu delírio, lhe
apareceu aquela que ele desejara tornar a ver, e, pegando-lhe na mão, a levou
aos lábios, lágrimas de uma suave alegria lhe encheram os olhos e o amor da
mulher, insensivelmente, de novo se insinuou no seu coração, prendendo-o outra
vez à vida. Assaltaram-no pensamentos ao mesmo tempo alegres e inquietos,
Lembrando-se de Kuraguine, na ambulâr.:ia, já não experimentava o sentimento
de outrora. Agora atornienlava-o o desejo de saber se viveria e não ousava
perguntá-lo os que o rodeavam.
A enfermidade seguia o seu curso natural, mas a modificação de que Natacha
falara apenas se produzira dois dias antes da chegada da princesa Maria. Era
únicaniente a luta derradeira entre a vida e a morte, luta em que esta sairia
vencedora. Era o reconhecimento de que ainda estimava a vida, que lhe oferecia o
amor de Natacha. Era a última revolta de todo o seu ser perante o desconhecido.
Anoitecia, o principe André, como era costume depois das re,feições, estava
febril e os pensamentos circulavam-lhe no cérebro com toda a nitidez. Sónia
sentava-se a seu lado, André dormitava. De súbito tornou-o um grande
sentimento de felicidade. «Oh! Ei-la que chega!», exclamou.
Efectivamente, Natacha, que acabava de chegar sem ruído, tomava o lugar de
Sónia.Desde que ela o tratava que o príncipe André experimentava como que a
sensação física da sua presença. Natacha ocupava uma poltrona voltada a três
quartos para ele. Por detrás ardia uma vela num castiçal. Fazia meia. Aprendera a
fazer meia no dia em que André lhe dissera que ninguém tratava melhor dos
doentes que as velhas amas, a fazer meia, e que essa ocupação para ele era muito
apaziguadora. Os seus delgados dedos manejavam ágilmente as agulhas, e ele via-
lhe perfeitimente o perfil cismador da cabeca inclinada. O novelo escorregou-lhe,
dos joelhos, Natacha moveu-se para o ipanhar. Estremeceu, relanceou-lhe um
olhar, colocando a mão diante dos olhos, para protegê-los da luz, e, rápida, ligeira,
cautelosa, debruçou-se, apanhou o novelo e retomou a posição primitiva.
O príncipe André olhou-a, sem se mexer, e viu que, graças ac movimento que
ela acabava de fazer, teria precisado de respirai fundo, mas que o não ousava,
respirando a custo.
No mosteiro de Troitsa tinham falado do passado, e ele dissera-lhe que, se se
curasse, etcrnamente agradeceria a Deus aquele sofrimento que voltara a
aproximá-los, A partir de então, porém, nunca mais entre eles voltou a falar-se do
futuro,
«Será possível que assim seja?», interrogava-se a si próprio, contemplando
Natacha, ao mesmo tempo que ouvia o subtil ruido das agulhas de aço. «Não nos
terá o destino reunido de maneira tão estranha senão para eu morrer?... Não se
me teria revelado a verdade da vida senão para eu voltar a viver na mentira?
Amo-a acima de todas as coisas neste mundo. Ora, se a arno assim, que me resta
fazer?» E de súbito um grande suspiro se lhe despren, deu do peito, hábito que lhe
viera no meio dos muitos sofrimentos por que passara.
Natacha, ao ouví-lo suspirar, pousou o braço, inclinou-se para ele, e, vendo que
os olhos lhe brilhavam, aproximou-se mais no seu passinho leve.
— Não está a dormir?
— Não, estou a olhá-la há muito tempo; senti-a entrar. Só a Natacha me dá
este sossego tão benigno... esta claridade. Apetec.e-me chorar de felicidade,
Natacha aproximou-se ainda mais. No seu rosto havia uma inef ável alegria.
— Natacha, amo-a de mais, amo-a acima de todas as coisas neste mundo.
— E eu... — voltou-se, por instantes. — Ama-me de mais, porquê? -disse ela.
— De mais porquê?... Acha, sente no fundo do seu coração que poderei salvar-
me? Acredita que sim?— Tenho a certeza, tenho a certeza! — quase gritou Natacha, agarrando-lhe
apaixonadamente as duas mãos.
O príncipe André ficou calado.
— Era bom de mais! — E, pegando-lhe na mão, beijou-lha.
Uma grande felicidade agitava Natacha, mas de súbito lembrou-se de que ele
não devia excitar-se daquela maneira, que precisava de repouso.
— Mas não dormiu — disse ela, refreando a felicidade que a tomava. —
Procure descansar... peço-lhe.
Depois de lhe apertar outra vez a mão, abandonou-a, e Natacha, voltando
para o pé da luz, retomou a sua primitiva atitude. Por duas vezes se voltou e por
duas vezes viu que os olhos dele brilhavam ao encontrarem os seus. Então fitou
uma mancha de malha que tinha entre as mãos e para si mesmo resolveu não
voltar a olhar para André enquanto não chegasse àquele ponto.
Efectivamente, pouco depois, André fechava os olhos e adormecia. Não dormiu
por muito tempo. De repente acordou banhado de suores frios. A ideia da vida e
da morte acompanhara-o no seu curto sono, especialmente a ideia da morte.
Sentia-a cada vez mais próxima.
«O amor? Que é o amor?», pensava ele. «O amor é o inimigo da morte. O
amor é a vida. Tudo, absolutamente tudo que me é dado compreender, graças ao
amor eu o compreendo. Tudo que é, tudo que existe, pelo amor existe. O amor é
Deus; morrer é regressar, eu, parcela desse amor, à fonte geral e etcrna.» Estas
ideias pareceram-lhe consoladoras, mas eram apenas ideias. Qualquer coisa lhes
faltava, havia nelas fosse o que fosse de demasiado subjectivo, de demasiado
ininteligível. Faltava-lhe evidència. E de novo recaiu nas suas inquietações e
incertezas. Acabou por adormecer outra vez.
Sonhou estar deitado no quarto em que realmente se encontrava, mas de
perfeita saúde, sem estar ferido. Diante dele havia uma multidão de pessoas
vulgares indiferentes, e ele falava com elas, conversava disto e daquilo. Essas
pessoas iam retirar-se. André, sentindo, confusamente, que nada disso tinha
importância e que outra coisa o preocupava, continua a trocar com essas pessoas,
apesar da surpresa que o facto lhe causa, toda a espécie de ditos fúteis e
graciosos. Pouco a pouco, contudo, as figuras desvanecem-se, e ele só tem uma
preocupação: fechar a porta. Levanta-se, disposto a correr o fecho e a cerrá-la.
Tudo agora depende de ser capaz de o conseguir. Dá-se pressa, as pernas não lheobedecem, sabe que não chegará a tempo. Apodera-se dele uma tremenda
angústia. Essa angústia é o medo da morte. A morte está ali, atrás da porta. E
enquanto se extenua em esfor— ços impotentes, eis que do outro lado um ser
terrífico a força. Esse ser, que nada tem de humano, e que é a morté, pretende
arrombã-la, e é preciso impedi-lo. Agarra-se à porta, num apelo a todas as suas
forças para que ao menos o ajudem a deter aquele espectro, já que não é capaz de
a fechar. É fraco, não pode mais, e a porta cede um pouco impelida por essa
criatura horrenda.
Tenta mais uma vez, mas a porta cede definitivamente. Esses seus últimos
esforços, verdadeiramente sobre-humanos, são inúteis. Os batentes abrem-se sem
ruído. «Aquilo» entra. É a morte. E o príncipe André sente-se morrer. Mas no
instante, precisamente, em que a morte se apodera dele, lembra-se de que está a
dormir, e, fazendo sobre si um grande esforço, acorda. «Sim, era a morte, não
havia dúvida. Eu estava morto e acordei. Sim, a morte é um despertar.» De súbito
uma grande claridade lhe ilumina a alma e a cortina que até então lhe escondia
essa coisa desconhecida corre diante dele. Sentiu-se então como que liberto da
força que até aí o encadeava e foi nessa altura que experimentou aquela estranha
sensação de leveza que nunca mais o abandonou.
Tendo acordado banhado em suores frios, agitou-se no colchão, e Natacha
perguntou-lhe o que tinha. André não lhe respondeu e, sem compreender o que
ela dizia, fitou-a com uns olhos estranhos.
Eis o que acontecera na antevéspera da chegada da princesa Maria.
A partir desse momento, assim o médico o pôde verificar, a febre baixa que o
consumia transformou-se em febre perniciosa. Mas Natacha não prestava a mais
pequena atenção ao que o médico dizia. Para ela, mais assustador e mais certo
ainda eram aqueles indícios morais do próximo fim.
A partir desse dia, André, como se acabasse de sair de un, sonho, principiou a
abandonar a vida. E como é sempre moroso o despertar de um sonho, o mesmo
aconteceu ao seu despertar da vida.
Este lento despertar não foi perturbado por qualquer incidente grave ou
assustador.
Os seus últimos dias e as suas últimas horas decorreram penosamente, como
de costume. A princesa Maria e Natacha, que nunca mais o abandonaram,
puderam verificá-lo. Já não choravam, já não estavam inquietas, e nos últimostempos elas próprias sentiam que não era a ele, príncipe André, que tratavam. Ele
já ali não estava, deixara-as. Tratavam apenas a sua mais recente recordação, o
seu despojo mortal, por assim dizer. Tão alto haviam subido os seus sentimentos
que o espectáculo terrível da morte já não tinha poder sobre elas. Era inútil
avivarem mais a dor que as pungia, Já não choravam nem na presença dele nem
na sua ausência, e nunca dele falavam entre si.
Sentiam não poderem exprimir por palavras o que dentro delas se passava.
Sempre, e cada vez mais, o viam, lentamente, tranquilamente, abismar-se no
desconhecido, e era como se soubessem que assim tinha de ser e só assim estava
certo.
Confessou-se, recebeu a comunhão. Toda a gente veio despedir-se. Quando lhe
trouxeram o filho, pousou os lábios no rosto da criança e voltou a cara, não para
esconder a mágoa e a dor, mas, assim, pelo menos, o pensaram a princesa e
Natacha, por supor que era aquilo que lhe exigiam. Quando lhe pediram que lhe
lançasse a bênção assim o fez, e, olhando em roda, parecia perguntar se
pretendiam ainda mais alguma coisa.
A princesa Maria e Natacha estavam junto dele quando soltou o derradeiro
suspiro.
— Acabou! — disse a princesa Maria ao notar que o corpo, durante alguns
instantes imóvel, começava a arrefecer, Natacha aproximou-se, viu-lhe os olhos
sem vida e cerrou-lhes as pálpebras. Fechou-lhe os olhos, mas não os beijou:
limitou-se a inclinar-se sobre o que era a sua mais recente memória. «Para onde
foi ele? Onde estará agora?...»
Quando, vestido e lavado, estenderam o corpo no caixão em cima da mesa,
todos se aproximaram, chorando.
Nikoluchka soluçava, o coração trespassado por uma perplexidade dolorosa. A
condessa e Sónia choravam de compaixão por Natacha e por aquele que já não era
deste mundo. O velho conde, aflito, chorava pensando que não vinha longe a sua
hora. E também Natacha e a princesa Maria choravam, não de dor, mas em
virtude da piedosa emoção que lhes enchia a alma perante o simples e solene
mistério da morte que acabava de cumprir-se na sua presença.
SEGUNDA PARTE
[I] [II] [III] [IV] [V] [VI] [VII] [VIII] [IX] [X] [XI] [XII] [XIII] [XIV] [XV] [XVI]
[XVII] [XVIII] [XIX]
[I]
A razão humana não pode compreender a correlação das causas e dos
acontecimentos, mas a necessidade de em tudo achar uma causa é inerente ao
espírito humano. Eis porque a inteligência, incapaz de penetrar as razões infinitas
e infinitamente complicadas dos acontecimentos, as quais, cada uma de per si,
podem fazer figura de causa, lança mão da primeira que lhe aparece, seja a mais
acessível das coincidências, e proclama: Esta é a causa! Nos factos históricos que
têm por objecto de estudo as acções humanas a mais vulgar coincidência costuma
ser a vontade dos deuses, e depois a dos homens colocados em situação de
destaque, os chamados «heróis da história». Basta, no entanto, aprofundar um
pouco qualquer facto histórico, isto é, ver agir as massas de homens que tomaram
parte nele, para nos persuadirmos de que não é a vontade deste ou daquele herói
que conduz as massas, mas, muito pelo contrário, é essa mesma massa que a todo
o momento é conduzida. Dir-se-á ser indiferente que os acontecimentos se
expliquem desta ou daquela maneira. Mas entre aquele que afirma que os povos
do Ocidente se dirigiram para o Oriente porque Napoleão assim o quis, e aquele
que sustenta que tal coisa aconteceu porque assim tinha de acontecer, existe a
mesma diferença que entre os que proclamam que a Terra está imóvel e que os
planetas giram em torno dela e os que confessam ignorar o que mantém a Terra
no espaço, embora saibam que há leis que regem o movimento da Terra e dos
planetas. Não há nem pode haver outras causas dos factos históricos que não seja
a causa de todas as causas, mas há leis que as conduzem, umas vezes des—
conhecidas, outras acessíveis à nossa razão. A descoberta destas leis não é
possível todavia senão na medida em que renunciar-mos deliberadamente a
atribuir as causas à vontade de um só homem, como acontece com a descoberta
das leis do movimento planetário, as quais apenas se tornaram viáveis a partir da
altura em que se pôs de parte o princípio da imobilidade da Terra.
Depois da batalha de Borodino, da ocupação e do incêndio de Moscovo, oepisódio mais importante da guerra de 1812 teria sido, na opinião dos
historiadores, o movimento do exército russo ao deixar a estrada de Riazan para
seguir pela de Kaluga, dirigindo-se para o campo de Tarutino, isto é, aquilo a que
se chamou «a marcha de flanco» para Krasnaia Pakra. Atribuem eles a glória deste
acto genial a diferentes pessoas e discutem a quem pertence realmente. Os
estrangeiros, de maneira geral, e os próprios Franceses, prestam jus ao génio
militar dos generais russos sempre que falam desta marcha de flanco. Mas difícil
de compreender é a razão por que os escritores militares, e de todos os demais na
sua esteira, admitem que esta famosa marcha de flanco seja uma invenção
profunda de um indivíduo determinado para salvar a Rússia e perder Bonaparte.
Aliás é difícil de compreender, de facto, a genialidade deste movimento, pois a
verdade é que se não carece de grande rasgo de inteligência para compreender-se
que a melhor posição de um exército não atacado é aquela que lhe oferece mais
nutrido abastecimento. Qualquer pessoa, até a menos esperta das crianças, sem
grande esforço, compreenderia que, em 1812, a estrada de Kaluga era o caminho
mais vantajoso para a retirada do exército depois da capitulação de Moscovo. E é
impossível compreender-se à custa de que deduções chegam os historiadores a
atribuir tamanha profundeza a esta manobra. E ainda mais difícil é admitir como
podem eles descobrir que esta manobra salvava os Russos e perdia os Franceses,
quando é certo que, muito pelo contrário, em consequência das circunstâncias que
a precederam, a acompanharam ou se lhe seguiram, essa manobra poderia ter
sido fatal para o exército russo, dando a vitória ao exército francês. Se, com efeito,
a partir do momento em que esse movimento se realizou, a situação dos Russos
beneficiou, não é razão para se dizer que a causa disso fosse esse mesmo
movimento.
Não só podia não ter trazido qualquer vantagem ao exército russo esta marcha
de flanco, como podia mesmo ter sido a causa da sua perda. Para isso bastava que
outras circunstâncias não tivessem surgido. Que teria acontecido se se não tivesse
dado o incêndio de Moscovo, se Murat não houvesse perdido o contacto com os
Russos, se Bonaparte não tivesse sido forçado à inacção, se o exército russo
houvesse travado batalha em Krasnaia Pakra, como queriam Bennigsen e Barclay?
Que teria acontecido se os Franceses tivessem atacado os Russos durante a
marcha sobre Pakra ou se, em seguida, Napoleão houvesse atacado os Russos em
Tarutino, apenas com a décima parte da energia que empregara em Smolensk?Que teria acontecido se os Franceses tives— sem marchado sobre Petersburgo?...
Em qualquer destas eventualidades a salvadora marcha de flanco teria redundado
num desastre.
Por último, o que é ainda mais inconcebível, as pessoas que estudaram a
história de peito feito não querem ver que a marcha de flanco não podia de
maneira alguma ser atribuída à vontade de um só homem, que nunca ninguém a
previra, que esta manobra, tal como aconteceu com a retirada de Fili, nunca fora
em verdade encarada por quem quer que fosse no seu conjunto, mas era apenas o
resultado de um número infinito de circunstâncias variadas, só sendo considerada
em toda a sua amplitude quando se concluiu e já pertencia ao passado.
No conselho de guerra de Fili o comando russo teve como ideia dominante a
retirada, coisa óbvia, em linha recta, isto é, pela estrada de Njjni— Novgorod. A
prova está no facto de a maioria das vozes se terem pronunciado nesse sentido e
sobretudo na célebre conversa do general-chefe, após o conselho, com Lanskoi,
intendente -geral. Lanskoi informou Kutuzov de que os abastecimentos tinham sido
principalmente concentrados ao longo do no Oka, através do qual seria impossível
transportá-los nos prin— cípios do Inverno. Foi esta, portanto, uma das primeiras
razões que determinaram o abandono do plano de retirada em linha recta,
aparentemente o mais natural. As tropas mantiveram-se, pois, mais ao sul, na
estrada de Riazan, mais próximas, por conseguinte, dos seus abastecimentos.
Posteriormente, a inactividade dos Franceses, que chegaram, mesmo a perder o
contacto com os Russos, a preocupação de defender as manufacturas de Tula e
sobretudo a vantagem de estar mais perto dos abastecimentos ebrigaram o
exército a obliquar mais para sul ainda, na direc— ção da estrada de Tula. Depois
de alcançarem, em marchas forçadas, a estrada de Tula, era intenção dos chefes
militares não fazerem alto senão em Podolsk, e não se falava sequer, então, das
posições de Tarutino, mas o caso é que uma série de circunstáricias diversas -a
aparição dos Franceses, que tinham voltado a estabelecer contacto com o exército
russo, projectos de batalha e sobretudo a abundância de provisões em Kaluga—
levou as tropas russas a descerem ainda mais para o sul a fim de se fixarem no
centro do campo de abastecimentos, dirigindo-se da estrada de Tula na direcção
da de Kaluga, rumo a Tarutino. Só quando as tropas chegaram a Tarutino, mercê
de um concurso de circunstâncias, e que os homens principiaram a convencer-se de
que tinham desejado aquela manobra e que a liaviam planeado havia muito.
[II]
A famosa marcha de flanco apenas consistiu, em ultinia analisu, no seguinte, os
exércitos russos, que até ai haviam retirado no sentido contrario ao da invasão,
desviaram-se, uma vez que o movimento invasor cessou, da linha recta, ate então
seguida, e. w verificaram que não eram perseguidos, ericaminharam-se
naturalmente, na direcção das maiores reservas de abastecimentos.
Admitindo que os exércitos russos nenhum chefe militur genial tivessem a
comandá-los, que ninguém tivessem, mesmo, a comandá-los, não teriam podido
fazer outra coisa, depois da sua retirada sobre Moscovo, senão descrever um arco
de círculo na direcção do local onde se encontravam os abastecimentos e em que
havia abundância de tudo.
O movimento da estrada, de Nijm para a de Riazan. Tula e Kaluga era tão óbvo
que nessa mesma direcção seguiam os bandos de salteadores e de Petersburgo se
impunha a Kutuzov o mesmo caminho. Em Tarutino foi por assim dizer repreendido
pelo imperador por ter tomado a estrada de Riazan, e de Petersburgo indicaram-
lhe essa mesma posicão em frente de Kaluga, onde aliás, ele já se eencontrava
quando a carta do imperador lhe chegou às mãos.
Depois de rodar na direcção que a batalha de Borodino lhe impusera, a bola
que era então o exército russo, após a supressão da força propulsora inicial, e na
falta de novos impulsos, tomou o carninho que naturalmente se lhe impunha.
O mérito de Kutuzov não está nessa manobra estratégica a que
charnaramgenial, mas no facto de ter percebido por si o que, siignificava esse acto.
Só ele, a partir desse momento, compreendeu a importância da inactividade do
exército francês: só ele teimou em aflirmar que a batalha de Borodirio fora uma
vitoria; e só ele empregou toda a sua energia em evitar que o exército se
entregasse a combates inúteis, embora, na sua qualidade de general-chefe
devesse ser partidário da da ofensiva.
A fera atingida em Borodino continuava agora no ponto onde a linham deixado
ao afastar-se, mas ainda não se sabia se estava viva, se se encontrava exausta ou
se apenas o fingia. E de súbito a fera soltou um gemido.Esse gemido de fera atingida anunciando o aniquilamento foi o envio de
Lauriston ao campo de Kutuzov com uma proposta de paz.
Napoleão, persuadido, como sempre, de que tudo quanto fazia era perfeito,
escreveu a Kutuzov nos termos que lhe vieram à cabeça, sem se dar ao cuidado de
saber se era sensato o que escrevia:
Senhor Priucipe Kutuzov:
Envio-lhe um dos meus ajudantes-de-cuinpo para lhe
falar de alguns assuntos de importància. Peço a Vossa Alteza
que faça fé no que ele lhe dirá, sobretudo quando ele lhe
exprimir os sentintentos de estima e de particular
consideração que eu desde há muito nutro pela pessoa de
Vossa Alteza. Como não e outro o firri, desta carta, iogo a
Deus, Sr. Príncipe Kutuzov, que vos tenha sob a Sua santa
quarda,
Moscovo. 30 de Outubro de 1812,
Assinado: Napoleão
— Seria amaldiçoado pela posteridade se viesse a ser encarado como o
primeiro motor de um acordo qualquer. Tal é o espirito presente da minha nação
— respondeu Kutuzov, e continuou a fazer tudo ao seu alcance para impedir o
exército russo de passar à ofensiva.
Durante o mês em que o exército de Napoleão se entregara ío saque de
Moscovo e o russo acampava, tranquilamente, em Tarutino, uma mudança
importante se verificara quer nas forcas dos dois adversários, quer no espirito que
os animava: o fiel da balança inclinou-se a favor dos Russos. Embora eles não
conhecessem a situação exacta do exército francés e as mudanças tssaz rápidas que
nele se tinham operado, a necessidade de passar a ofensiva traduzia-se agora em
infinitos sintomas. Grande numero de razões os compelia a isso: a missão de
Lauriston, abundância de abastecimentos em Tarutino, as notícias provenientes de
todos os lados sobre a inactividade das tropas francesas e as desordens que entre
elas lavravam, a reconstituição dos regimentos russos pela incorporação de novosrecrutas, tempo, o prolongado repouso de que os soldados tinham beneficiado, a
impaciência que em geral se manifesta entre as tropas em descanso ansiosas de
cumprir a sua missão, a curiosidade de saber o que acontecera ao exército francês
que há tanto tinham perdido de vista, a audácia com que os postos avançados
russos perseguiam os franceses desgarrados nas imediações de Tarutino, os
guerrilheiros e a emulação que daí resultava, o desejo de vingança que exaltava a
alma de cada russo desde que os Franceses se encontravam em Moscovo,
principalmente o sentimento obscuro, latente em todos, de que se modificara a
situação das tropas frente a frente, e que eram os Russos que tinham agora
superioridade sobre o inimigo. Se a proporção das tropas era outra, a ofensiva
tornava-se indispensável. E o certo é que, tal como acontece ao relógio pronto a
dar horas quando os ponteiros percorrem os devidos pontos do mostrador, assim
também nas altas esferas principiara um movimento acelerado de acordo com a
mudança produzida entre as tropas.
[III]
O exército russo era dirigido por Kutuzov e pelo seu estado-Maior e de
Petersburgo pelo próprio imperador. Mesmo antes de receber a notícia do
abandono de Moscovo, se estabelecera em Petersburgo o plano pormenorizado de
toda a campanha, o qual fora remetido a Kutuzov para que este o pusesse em
prática. Apesar das modificações ditadas pelas circunstâncias, este plano fora
adoptado pelo estado-maior e por ele posto em execução. O general-chefe apenas
observara que as disposições tomadas a distância são sempre difíceis de executar.
Por isso, a fim de resolver as dificuldades que sobrevieram, a cada passo estavam
a enviar mensageiros portadores de novas instruções para vigiar o cumprimento
dessas ordens e transmitirem os seus relatórios, Além disso, o estado-maior do
exército passara por modificações profundas. Era preciso substituir Bagration, que
fora morto, e Barclay, que se afastara, ofendido por se ver em posição subalterna.
Tinha-se examinado com a maior severidade e que era preciso fazer: dever-se-ia
colocar A no lugar de B ou R no lugar de D, ou então D onde estava A? Dir-se-ia
que apenas se tratava de ser agradável a A ou a B.Em consequência da inimizade existente entre Kutuzov e o chefe do estado-
maior. Bennigsen, mercê das intrigas obradas pelas pessoas de confiança enviadas
pelo imperador e das modificaçães a fazer, os partidos achavam-se envolvidos
numa rede muito mais complicada que de costume. A intrigava contra B, D contra
C, etc., em todas as modificações e combinações possíveis,
O objectivo destas múltiplas intrigas estava sobretudo nas operações militares
que cada um queria orientar à sua maneira, quando a verdade é que as operações
prosseguiam independentemente de tudo o que se fizesse, consoante era mister
que prosseguissem, isto é, sem nunca coincidirem com o que congeminavam os
homens, pois a verdade era serem uma consequência das reacções mútuas das
massas. Todas aquelas combinações se cruzavam, se enredavam, reflectindo nas
altas esferas a imagem exacta do que devia realizar-se.
Numa carta endereçada a Kutuzov no dia 2 de Outubro, a qual ele não viria a
receber senão depois da batalha de Tarutino, dizia o imperador:
Principe Mikail Ilarionovitch:
Desde o dia 2 de Setembro que Moscovo está nas mãos
dos Franceses. Os seus últimos relatórios são datados de 20
e durante todo este tempo não só nada fez contra o
inimigo no sentido de libertar a nossa primeira capital,
como, in— clusivamente, nesses relatórios participa que
continua a recuar. Serpukov já se encontra ocupada por um
destacamento e Tula, com as suas fábricas indispensáveis
ao exército, está em perigo. Por um relatório do general
Wintzengerode, verifico que um corpo de exército inimigo
de dez mil homens avança pela estrada de Petersburgo.
Outro, composto de alguns milhares, encaminha-se para
Dmitrov. Um terceiro segue pela estrada de Vladimir. E um
quarto, bastante importante, está concentrado entre Ruza
e Mojaisk. No dia 25 o próprio Napoleão estava em
Moscovo. De acordo com todas estas indicações, e visto,
que o inimigo dispersou as suas forças em destacamentos
assaz iniportantes, e o próprio Napoleão ainda está em
Moscovo com toda a sua guarda, será possível que as orçasque se encontram na sua frente sejam tão poderosas que
não possa tentar a ofensiva? É de supor, muito pelo
contrário, com toda a verosimilhança, que o inimigo o
esteja a perseguir com destacamentos ou, mais
rigorosamente, com um corpo de tropas muito mais fraco
que o exército que lhe esta confiado a si. É de crer que,
tirando partido destas circunstância, e lhe seja possível,
com vantagem evidente, atacar o inimigo, em número
inferior às forças que comanda, e exterminá-lo ou, pelo
menos, obrigá-lo a recuar, permitindo que continuem nas
nossas mãos a maior parte dos distritos actualmente
ocupados, e deste modo afastando o perigo que pesa sobre
Tula e as demais cidades do interior, Se o inimigo estiver
em condições de marchar com um importante corpo de
tropas sobre Petersburgo, a fim de ameaçar esta capital,
quase inteiramente desguarnecida, a responsabilidade será
sua, pois a verdade é que com o exército de que dispõe,
agindo com decisão e energia, tem nas suas mãos todos os
meios para evitar esta nova desgraça. Lembre-se de que já
tem de prestar contas à Pátria, indignada pela perda de
Moscovo. Sabe, por experiência, que estou sempre disposto
a recompensá-lo. Esta minha boa disposição não se pode
dizer de qualquer modo afectada, mas tanto a Rússia como
eu temos o direito de esperar de si todo o zelo, toda a
firmeza e os êxitos que a vossa inteligência, os vossos
talentos militares e a valentia das tropas que comanda nos
autorizam a esperar.
Esta carta prova que em Petersburgo se sabia com exactidão qual o cômputo
das tropas em presença, mas ainda ela vinha a caminho e já Kutuzov não podia
impedir o exército sob o seu comando de tomar a ofensiva. A batalha já estava
travada.
No dia 2 de Outubro, o cossaco Chapovalov, no decurso de uma patrulha,
matou uma lebre e feriu outra. Ao perseguir esta ultima foi levado para longe dafloresta e deparou-se-lhe o flanco esquerdo do exército de Murat, que se
encontrava nessas paragens sem qualquer precaução ou cobertura, Rindo, contou
o cossaco aos camaradas como ia caindo nas mãos dos Franceses. Ao ouvir isto, o
capitão contou o caso ao seu comandante.
Mandaram chamar o cossaco, interrogaram-no: os coman— dantes lembraram-
se de aproveitar esta circunstância para capturar alguns cavalos, e um dos
comandantes, que estava em relaçêes com graduados do exército, participou o
caso a um general do estado-maior.
Ultimamente a situação estava muito tensa no estado-maior. Ermolovo, alguns
dias antes, viera procurar Bennigsen para lhe pedir que usasse da sua influência
sobre o general-chefe para que se desencadeasse a ofensiva.
— Se eu o não conhecesse — replicou Bennigsen — diria que era exactamente
o contrário que pretendia, Basta que eu aconselhe seja o que for para o
Sereníssimo fazer exactamente o contrário.
A nova divulgada pelo cossaco, e confirmada por várias patrulhas, veio
demonstrar que as coisas estavam definitivamente maduras.
As cordas distenderam-se, o relógio estremeceu e as horas ressoaram. Apesar
de todo o seu presumível poder, da sua inteligência, do seu conhecimento dos
homens. Kutuzov acabou por tomar em consideração não só o pedido de
Bennigsen, que, aliás, apresentara directamente ao imperador um relatório da
situação, mas o desejo unânime dos generais, o presurnível apelo do imperador e
as informações prestadas pelos cossacos. Não podendo deter um movimento que
se tornara inevitável, deu ordens para que se fizesse o que ele considerava inútil e
perigoso: aprovou o facto consumado.
[IV]
O relatório de Bennigsen e as informações dos cossacos confirmando que o
flanco esquerdo dos Franceses se encontrava descoberto levaram definitivamente
a fixar a ofensiva para o dia 5 de Outubro.
No dia 4, de manhã, Kutuzov assinou a respectiva ordem. Toll leu-a a Ermolov,
propondo-lhe que se encarregasse de tomar as últimas medidas.«Está bem, está bem, agora não tenho tempo», disse este, e saiu.
O dispositivo estabelecido por Toll era excelente. Como acontecera com o de
Austerlitz, aí se dizia, embora não em alemão:
A primeira coluna marcha em direcção a tal parte, a segunda coluna marcha
(Em alemão no texto original. (N. dos T.) em direcção a tal outra, e assim por
diante. Todas estas colunas, pelo menos no papel, chegavam ao local designado no
momento previsto, esmagando o inimigo. Como sempre acontece em todo e
qualquer dispositivo no papel, tudo estava admiràvelmente organizado, mas a
verdade é que, como aliás sempre acontece com todos os dispositivos, nenhuma
das colunas chegou a tempo aos lugares designados.
Quando houve número suficiente de exemplares do dispositivo, chamou-se um
oficial que foi enviado a Ermolov com a ordem de o mandar por em execução. Este
jovem oficial da guarda montada, ajudante-de-campo de Kutuzov, orgulhoso da
missão que lhe tinham confiado, apresentou-se nas instalações de Ermolov.
— Não está — volveu-lhe um impedido.
O oficial dirigiu-se à instalação de um general onde Ermolov ia, muitas vezes.
— O general não está.
O oficial, montando de novo, dirigiu-se a casa de outro general.
— Não, o general saiu.
«Que grande contrariedade! Contanto que me não responsabilizem pelo
atraso!», dizia ele, de si para consigo, enquanto percorria o acampamento de
ponta a ponta. Houve quem lhe dissesse ter visto Ermolov com outros generais, e
quem lhe sugerisse que naturalmente regressara ao seu aquartelamento. Sem
comer, c oficial prosseguiu nas suas buscas até às seis horas da tarde. Ermolov não
estava em parte ’alguma e ninguém sabia do seu paradeiro. Comeu qualquer
coisa, mesmo de pé, em casa de um camarada, e voltou para os postos -avançados
à procura de Miloradovitch, que também não estava. Disseram-lhe encontrar-se
num baile em casa do general Kikine e que naturalmente Ermolov também aí
estaria.
— E onde fica isso?
— Lá adiante, em Etchkino — explicou— lhe um oficial de cossacos, apontando-
lhe, na distância, uma casa senhorial. — Quê? Lá adiante? Para lá das linhas?
— Mandaram para ali dois dos nossos regimentos. Estão numa paródia doida!
Têm duas bandas regimentais e três coros de cantores.O oficial dirigiu-se para os lados de Etchkino. Já de longe, antes de chegar à
casa senhorial, ouviu as notas alegres e bem destacadas de uma bailata de
soldados.
«Pelos campos fora... Pelos campos fora.»
Pífaros e pandeiros acompanhavam o canto, e de quando em quando ouviam-se
sons de vozes. Grande alegria sentiu o oficial ao ouvir aquelas canções, ao mesmo
tempo que o acicatavam os remorsos por tanto tardar em transmitir a ordem
importante de que era portador.
Já eram nove horas. Apeou-se do cavalo e subiu os degraus do alpendre da
grande casa senhorial, intacta apesar de situada na linha entre Russos e
Franceses. No vestíbulo e na sala de jantar passavam correndo lacaios ajoujados
com vinhos e manjares. Os cantores estavam ao pé das janelas. Fizeram-no entrar
e de súbito achou-se na presença de todos os principais generais do exército,
inclusivamente da alta e imponente figur2 de Ermolov. De túnicas desabotoadas,
muito corados, formando roda, riam a bom rir. No meio do salão, um deles, belo
homem de pequena estatura, muito vermelho, bailava o trepak galhardamente.
— Ah!, ah!, ah! Bravo, Nicolau Ivanovitch! Ah!, ah!...
O mensageiro pensou que se se apresentasse naquele momento com ordens
tão importantes seria duas vezes culpado, e resolveu esperar. Mas um dos
generais viu-o, e, como se soubesse a razão que o trazia ali, chamou para ele a
atenção de Ermolov. Este dirigiu-se-lhe, contrariado, e, depois de ouví-lo, pegou no
papel de que ele era portador, sem dizer palavra.
— Julgas, talvez, que não desapareceu de propósito observou, nessa mesma
noite, ao oficial emissário o seu camarada do estado-maior, referindo-se a
Ermolov. — Pois enganas-te. Foi de propósito, de caso pensado. Quer fazer uma
partida a Konovnitzine. Vais ver o pé-de-vento que se levanta amanhã.
[V]
No dia seguinte, o velho Kutuzov, que dera ordens para que o chamassem
muito cedo, fez as suas orações, vestiu-se, e com a desagradável impressão de que
tinha de dirigir uma batalha nada do seu agrado, meteu-se na carruagem e dirigiu-se de Letachovka, a cinco verstas de Tarutino, para o local onde deviam reunir-se
a, colunas que iam atacar. No caminho, quando não dormitava, apurava o ouvido,
na esperança de ouvir o canhoneio que deveria principiar à direita da estrada,
sinal do início da operação. Mas nada ouvia, Era uma manhã de Outono húmida e
sombria. Ao aproximar-se de Tarutino notou que alguns soldados de cavalaria
atravessavam a estrada por onde rodava a sua carruagem conduzindo, pela
arreata, cavalos ao bebedouro. Atentou neles, mandou parar o carro e perguntou-
lhes a que regimento pertenciam, Faziam parte da coluna que a essa hora devia
encontrar-se já muito longe dali, pronta para uma emboscada. «Há engano,
naturalmente», disse de si para consigo o velho general. Prosseguindo no seu
caminho, viu regimentos de infantaria de armas ensarilhadas, cujos homens, em
ceroulas, preparavam o rancho e acarretavam lenha. Mandou chamar um dos
oficiais. Este disse-lhe não ter recebido qualquer ordem de ataque.
— Como é, que... — ia a dizer, mas calou-se e ordenou que chamassem o
comandante. Entretanto apeou-se e, calado, ficou à espera, de cabeça baixa, a
respiração opressa, passeando de um lado para o outro. Assim que apareceu o
oficial do estado-maior que ele tinha convocado, um tal Eichen, Kutuzov ficou
muito corado, não porque esse oficial fosse culpado de alguma coisa, mas apenas
por tratar-se de alguém que podia ser vítima da cólera em que refervia. Trêmulo
dos pés à cabeça, ofegante, tamanha era a ira do velho general que dir-se-ia capaz
de se rolar no chão, num ataque de raiva Assim se lançou sobre o oficial, de
punhos erguidos, gritando e cobrindo-o de grosseiras
Outro oficial que por acaso entretanto apareceu, o capitão Brozine, e que,
aliás, nenhuma responsabilidade tinha no caso, teve de suportar os mesmos
insultos-
— E este canalha quem é? Fuzilem-no Miserável! — vociferava, rouco,
gesticulando, cambaleante.
Dir-se ia experimentar uma dor física, como era possível que ele,
generalissimo, Sereníssimo, homem com poderes como ainda outro não tivera em
toda a Rússia, se visse numa situação daquelas, ridicularizado por todo o exército?
«Foi então debalde que tanto rezei por este dia? Foi em vão que levei a noite
inteira acordado a fazer cálculos minuciosos?», dizia de si para consigo. «Quando
eu era o fedelho de um oficial ninguém se atreveria a fazer pouco de mim a este
ponto, mas agora...» E a dor física que sentia era a mesma que se lhe tivessemaplicado castigo corporal. Não podia deixar de soltar gritos de raiva e dor. Não
tardou, porém, que as forças o abandonassem, e compreendendo então que se
zangara de mais, voltou a subir para a carruagem, regressando pelo mesmo
caminho, sem dizer mais palavra
Este acesso de ira não voltou a repetir-se. Foi com um ligeiro piscar de olho
que ele ouviu as justificações, a defesa e as instâncias de Bennigsen, de
Konovnitzine e de Toll propondo-lhe que se transferisse para o dia seguinte o
movimento que fracassara. Ermolov, esse, apenas apareceu dois dias depois. E
Kutuzov teve de voltar a dar-lhe o seu consentimento.
[VI]
No dia seguinte, ao fim da tarde, as tropas concentraram-se nos lugares
indicados e a partida principiou durante a noite.
O tempo era bem de Outono. Havia nuvens no céu azul-violáceo, mas não
chovia. A terra estava impregnada de humidade, embora não houvesse lama. As
tropas marchavam em silêncio e so de vez em quando se ouvia o ressoar metálico
da artilharia. Era proibido falar alto, fumar, riscar a pederneira. Tanto quanto
possível, procurava-se impedir os cavalos de relinchar. O mistério que envolvia o
empreendimento ainda o tornava mais atraente.
As tropas marchavam alegres. Algumas colunas fizeram alto, os homens
ensarilharam armas e estenderam-se na terra fria, julgando-se chegados ao seu
destino. A maioria, porém, marchou toda a santa noite e como era natural as
tropas não puderam chegar onde era mister que chegassem,
O conde Orlov, Denissov e os seus cossacos, o destacamento menos numeroso,
foram os únicos a chegar a horas ao local designado. Instalaram-se na orla extrema
da floresta, ao longo do caminho que de Stromilovo levava a Dmitrovskoie.
Ainda não era manhã acordaram o conde Orlov, que dormi— tava. Tinham
filado um desertor do campo francês. Era um sar,ento polaco do corpo de
Poniatowski, Explicou, em polaco, que desertara, pois estava a ser vítima de uma
injustiça: há muito já que devia ter sido promovido a oficial, era o mais valente de
todos. Por isso os abandonara, disposto a vingar-se. Dizia ele que Muratpernoitava a uma versta do local onde se encontravam e que, se lhe
proporcionassem uma escolta de cem homens, tinha a certeza de o apanhar vivo.
O conde Orlov-Denissov quis saber a opinião dos seus camaradas. A proposta era
por de mais atraente para repeli-la. Todos queriam partir, todos eram de opinião
de que se devia tentar o feito. Após muitas discussões e conferências, o general
Grekov, à frente de dois regimentos de cossacos, resolveu acompanhar o desertor.
— Mas lembra-te do que te digo — ameaçou Orlov-Denissov, despedindo-o —;
se mentiste, mando-te enforcar como um cão, mas se falaste verdade tens cem
ducados às tuas ordens.
Sem responder a estas palavras, o sargento montou a cavalo e, resoluto,
abalou seguido de Grekov. Desapareceram na floresta.
O conde Orlov, tiritando — a manhã estava fresca e a aurora Principiava a
raiar—, apreensivo pela responsabilidade que assumira, depois de ceavalgar por
algum tempo ao lado de Grekov, afastou-se da mata para perscrutar o campo
inimigo, que vagamente se descobria agora a luz do sol-nascente e das fogueiras
do bivaque que se iam apagando. As colunas russas deviam surgir pela direita, na
vertente de uma colina descoberta. Olhou para esse lado, mas nada viu, embora o
terreno fosse bem visível. No acampamento francês. Iwito ciiianto lhe era dado
perceber, e graças ao auxílio dos penetrantes olhos do seu ajudante-de -campo,
parecia notar-se uma certa agitação.
— Ah! Receio que seja tarde de mais — observou, depois do perscrutador
olhar.
Como costuma acontecer muitas vezes ao afastar-se alguém da influência do
homem em quem confia, afigurou-se-lhe subitamente que o sargento era um
traidor, que mentira, e que apenas quisera comprometer o êxito do ataque
distraindo aqueles dois regimentos só Deus sabia para onde.
Em que cabeça caberia poder surpreender-se o general-chefe no meio de
tantas tropas!
— Não há dúvida, aquele ladrão mentiu — acrescentou. — Podemos mandá-lo
retroceder -arguiu alguém do séquito, que, como Orlov, duvidava do êxito daquela
empresa, agora diante do acampamento inimigo.
— Sim, realmente! Que acha? Devemos mandá-lo retroceder, ou não?
— Quer que o vá procurar?
— Pois bem. É melhor! Que volte para trás — disse o conde, subitamenteresoluto. E acrescentou, depois de consultar o relógio: — Tarde de mais, já é dia
alto.
O ajudante-de-campo, a galope, meteu pela floresta dentro, na intenção de
alcançar Grekov. Quando voltou, o conde, excitado pelo fracasso da tentativa e da
baldada espera das colunas de infantaria, que continuavam a não aparecer, e
também pela proximidade do inimigo, resolveu atacar. Os homens do séquito
partilhavam dos seus sentimentos.
Em voz baixa ordenou «Montar!», e cada um se dirigiu para o seu posto,
persignando-se.
«Que Deus nos proteja!»
Um «hurra!» ressoou floresta além, e, pelotão após pelotão, os cossacos
dispersaram-se, como grãos que caíssem de um saco, e, de lança em riste,
cavalgaram direitos ao campo inimigo atravessando um riacho.
O primeiro francês que viu os cossacos soltou um grito de desespero e os
outros, meio vestidos, acordados em sobressalto, abandonaram canhões,
espingardas, cavalos e deram às de vila-diogo.
Se os cossacos tivessem perseguido os fugitivos sem se preocupar com os
despojos que estes deixavam após si, teriam, por certo, apanhado Murat e todos
os que com ele se encontravam. Eis, aliás, o que os chefes pretendiam. Mas não foi
possível obrigá-los a marchar enquanto houve que pilhar e prisioneiros a fazer.
Ninguém mais ouviu as ordens dos comandantes. Ali se fizeram mil e quinhentos
prisioneiros, se tomaram trinta e oito bocas de fogo, bandeiras, e, coisa muito
mais importante para cossacos, cavalos, selas, cobertores e grande número de
diversos objectos. Era preciso põr em lugar seguro os prisioneiros e os canhões,
dividir os despojos, discutir, chegar-se mesmo a vias de facto, e de tudo isto houve
um pouco.
Os Franceses, ao ver que não eram perseguidos, ganharam coragem, reuniram-
se e abriram fogo. Orlov-Denissov, que continuava à espera das suas colunas, não
avançou mais.
Entretanto, em virtude do dispositivo: «A primeira coluna marcha, etc.», os
soldados de infantaria das colunas atrasadas, comandadas por Bennigsen e
superiormente dirigidas por TolI, tinham-se posto em marcha de acordo com o
programa estabelecido, e, na verdade, cumprindo as ordens, chegaram quando
deviam, mas não ao local que lhes havia sido designado. Como era de esperar, oshomens, que alegremente tinham partido, não tardaram a aborrecer-se. Em alta
voz havia quem mostrasse o seu descontentamento, a desordem surgiu entre as
fileiras, alguns retrocederam. Os ajudantes— de -campo galopavam por aqui e por
ali, os generais gritavam, coléricos, discutiam entre si, diziam que se tinham
enganado, que estavam atrasados, acusavam este ou aquele. Toda a gente, por
fim, abandonou o terreno, e foi dali sem saber para onde. «Havernos de ir parar a
algures!», exclamavam. E, com efeito, acabaram por chegar, mas não onde era
mister, e, se alguns chegaram, era tarde de mais e sem outra utilidade além da de
servirem de alvo ao inimigo. TolI, que nesta batalha desempenhara o papel de
Weirother em Austerlitz, galopava em todos os sentidos, dando-se conta de que
tudo se fizera ao contrário do que era preciso. E assim veio a encontrar-se no meio
da floresta com o corpo de exército de Bagovut já dia claro e quando havia muito
devia estar junto dos cossacos de Orlov-Denissov. Fora de si por causa daquele
fracasso e desejoso de encontrar alguém sobre quem pudesse descarregar a sua
ira, Toll galopou imediatamente ao encontro do comandante do corpo e pôs-se a
increpá-lo violentamente e a dizer que o que ele pre— cisava era de ser fuzilado.
Bagovut, velho e valente general, habitualmente sereno, exasperado também com
todo aquele atraso, com aquelas ordens contraditórias e confusas, destemperou,
ante a surpresa de todos, e, num ataque de cólera completamente imprevisto no
seu temperamento, respondeu à letra a Toll:
«Não aceito lições seja de quem for, e sei morrer com os meus soldados tão
bem como qualquer outro», exclamou, prosseguindo avante, seguido da sua
divisão.
Ao chegar a campo aberto, sob a fuzilaria dos Franceses, o valente Bagovut,
num acesso de fúria, sem querer saber se era ou não útil travar batalha naquela
altura, só com a sua divisão, marchou direito ao inimigo. Eis do que precisava
naquele momento: perigo, balas, projécteis. Uma das primeiras balas prostrou-o e
as que logo se lhe seguiram abateram muitos dos seus soldados. E assim, sem
qualquer necessidade, ali esteve, exposta ao fogo dos Franceses, aquela divisão.
[VII]
Entretanto, outra coluna devia atacar o inimigo, mas essa coluna estava junto
de Kutuzov. Este sabia perfeitamente que daquela batalha, iniciada contra sua
vontade, só podia resultar um fracasso, e por isso retinha as tropas tanto quanto
lhe era possível, Não se movia do lugar em que estava.
Montado no seu cavalito cinzento, ali permanecia, calado, respondendo,
preguiçosam ente, às propostas de ataque que lhe dirigiam.
— Não fala noutra coisa senão em atacar e está demonstrado que não
sabemos fazer manobras complicadas — observou a Miloradovitch, que pedia que
o deixasse seguir para a frente.
— O senhor não soube esta manhã deitar a mão a Murat nem chegar a tempo
ao local que lhe estava designado. Agora nada mais há a fazer! — respondeu a
outro general.
Quando lhe vieram anunciar que na retaguarda dos Franceses, segundo
informações fornecidas pelos cossacos, desguarnecida até então, se enccitravam
agora dois batalhões polacos, relanceou a vista, pelo canto do olho, a Ermolov,
pessoa a quem ele desde a véspera não dirigia a palavra.
— Como vê, reclamam uma ofensiva, poem-se em prática diversos dispositivos,
e quando chega o momento de agir nada está preparado, e o ininigo, prevenido,
toma as suas precauções.
Ermolov piscou o olho e sorriu ligeiramente ao ouvir estas palavras. Percebeu
a tempestade passara e que Kutuzov se limitaria àquela obse-vação.
— Diverte-se à minha custa — murmurou Ermolov, em voz muito baixa,
tocando no joelho de Raievski, que estava a seu lado.
Pouco depois, Ermolov aproximou-se de Kutuzov e disse-lhe, respeitosamente:
— Ainda é tempo, alteza, o inimigo ainda se não foi embora... Se quiser dar
ordens para a ofensiva. De outra maneira, guarda nem sequer cheirará a pólvora.
Kutuzov não respondeu e quando lhe participaram que Murat se retirava, deu
ordem de marcha, embora de cem em cem passos mandasse fazer alto por três
quartos de hora.
Toda a batalha se resumiu, portanto, à expedição dos cossacos de Orlov-
Denissov e à perda inútil de algumas centenas de homens. O resultado desta
batalha foi que Kutuzov recebeu uma condecoração de diamantes, e Bennigsen
igualmente, além de cem mil rublos; outros chefes obtiveram também pingues
beneficios, consoante os postos, e houve de novo modificações no estado-maior.«É sempre assim na Rússia, faz-se tudo ao contrário!», diziam, depois de
Tarutino, os oficiais e os generais russos, como ainda hoje o repetem, para darem
a perceber que, se houve um imbecil que fez tudo ao contrário, eles, no seu caso,
teriam procedido de maneira muito diferente. A verdade, porém, é que aqueles
que assim falam ou não conhecem o assunto de que se trata, ou então se enganam
redondamente. As batalhas, seja a de Tarutino, a de Borodino ou de Austerlitz,
nunca decorrem segundo as previsões daqueles que as dirigem. Eis um facto
essencial.
Número infinito de forças independentes -em nenhuma outra circunstância é o
homem mais livre que numa batalha, para ele questão de vida ou de morte —
influem na marcha das operações, e esta marcha nunca poderá ser conhecida
antecipadamente, nem nunca coincidirá com a direcção que lhe tenha fixado tal ou
qual força individual única.
Quando sobre um determinado corpo agem, ao mesmo tempo de vários lados,
variadas forças, a direcção do movimento não pode ser a de nenhuma dessas
forças, mas como que a média de todas elas, o que em mecânica costuma exprimir-
se pela diagonal do paralelogramo das forças.
Quando os historiadores, especialmente os franceses, afirmam que as suas
guerras ou as suas batalhas se desenrolam segundo um plano antecipadamente
estabelecido, a única conclusão que podemos tirar das suas descrições é que são
inexactas.
O combate de Tarutino, evidentemente, não atingiu o resultado que Toll se
propunha, isto é, conduzir as tropas em perfeita ordem ao ponto fixado pelo
dispositivo, nem tão-pouco aquele que desejava o conde Orlov, isto é, fazer
prisioneiro Murat, ou o de Bennigsen e de outros, o de esmagar instantâneamente
o corpo inimigo; ou ainda o dos oficiais desejosos de tomarem Parte numa acção e
de se distinguirem; ou o dos cossacos, que não conseguiram recolher todos os
despojos que apanharam, e assim por diante. Mas se o objectivo real era
justamente aquele que se alcançou e o que todos os russos unanimemente
desejavam: expulsar os Franceses e destruir o seu exército. é evidente que a
batalha de Tarutino, graças, precisamente, a isso mesmo, aos erros cometidos, foi
a única eficiente naquele momento da campanha. Era difícil e mesmo impossível
imaginar resultado de batalha mais favorável. Com os mais mesquinhos esforços,
no meio dos maiores erros, e com perdas quase insignificantes, adquiriram-se osmaiores resultados de toda a campanha: pass.ou-se da retirada à ofensiva. Foi
demonstrada a fraqueza dos Franceses, e os Russos provocaram o choque que os
exércitos de Napoleão esperavam para empreender a fuga.
[VIII]
Napoleão entra em Moscovo depois da brilhante vitória do Moskva; não há
dúvida de que a vitória foi dele, pois o campo de batalha ficou nas mãos dos
Franceses. Os Russos recuam e abandonam a capital. Moscovo, a abarrotar de
provisões, de armas, de munições e de riquezas sem conta, está nas mãos de
Napoleão.
O exército russo, duas vezes mais fraco que o francês, durante trinta dias não
esboça a mais pequena tentativa de ataque. Não pode ser mais brilhante a
posição de Bonaparte. Para cair com forças duas vezes superiores sobre os restos
do exército russo e esmagá-lo; para propor uma paz, vantajosa ou, em caso de
recusa, esboçar um movimento ameaçador sobre Petersburgo; para, mesmo no
caso de desastre, retirar sobre Smolensk ou Vilna, em vez de ficar em Moscovo;
numa palavra, para conservar a situação admirável em que os Franceses se
encontravam, parece que não era necessário ser-se um génio militar
extraordinário. Bastava fazer a coisa mais simples e mais fácil deste mundo:
impedir que as tropas se entregassem ao saque, preparar roupas de Inverno,
roupas que Moscovo estava em condições de fornecer para o exército inteiro, e
regulamentar a distribuição de alimentos, os quais, na opinião dos historiadores
franceses, eram suficientes para seis meses. Napoleão, esse génio dos génios,
senhor de plenos poderes sobre o exército, segundo referem os historiadores, não
soube pôr em prática esta coisa simplíssima.
E não só nada disto fez, mas serviu-se de todo o seu poder para escolher, de
entre todas as medidas a tomar, a mais absurda e a mais nefasta; de tudo o que
podia fazer — hibernar em Moscovo, marchar sobre Petersburgo ou sobre Nijni-
Novgorod, ou retroceder, quer pelo norte, quer pelo sul, pela estrada que depois
seguiu Kutuzov—, escolheu a mais absurda e mais perigosa: ficar em Moscovo até
Outubro, deixando que os seus soldados saqueassem a cidade, e em seguidahesitar entre manter uma guarnição na capital, sair dela ao azar, aproximar-se de
Kutuzov, não decidir travar batalha, passar pela direita, alcançar MaloIaroslavets
sem correr o risco de um recontro; o não tomar a estrada que seguira Kutuzov,
mas regressar a Mojaisk pela estrada escalavrada de Smolensk. Nada se pode
imaginar de mais insensato nem de mais nefasto, como ficou amplamente provado
pelas consequências. Admitindo que Napoleão tivesse como objectivo perder o seu
exército, teria sido difícil aos mais hábeis estrategos imaginar plano de operações
mais eficaz para a destruição completa desse exército, e isso independentemente
de tudo quanto o próprio exército russo pudesse ter feito nesse sentido!
E no entanto foi isto mesmo que o genial Napoleão acabou por fazer. E, apesar
de tudo, afirmar que este perdeu o seu exército porque quis ou porque não
passava de um tolo seria tão errado como dizer que ele levara as suas tropas até
Moscovo por ter sido esse o seu desejo e porque era uma inteligência e um génio.
Quer num quer no outro caso, a sua acção pessoal, não mais influente que a do
mais insignificante dos seus soldados, limitou-se a conformar-se com as leis que
presidiam ao acontecimento.
Estão em erro os historiadores que nos apresentam Napoleão
intelectualmente deprimido em Moscovo, simplesmente porque os resultados não
justificam a sua acção. Nesse momento, como antes e depois, em 1813, Napoleão
serviu-se de toda a sua força moral para agir o melhor possível no interesse
próprio e no interesse do seu próprio exército. Então a sua actividade não foi
menos surpreendente do que a que empregou no Egipto, na Itália, na Áustria e na
Prússia. A verdade é que não sabemos com precisão até que ponto se revelou o
seu génio no Egipto, onde quarenta séculos contemplaram a sua grandeza, visto os
seus feitos nos terem sido relatados por franceses. É-nos impossível apreciar no
seu justo valor o génio por ele demonstrado na Áustria e na Prússia, pois a
verdade é que não podemos conhecer os seus actos senão através de fontes
francesas e alemãs, e os Alemães não podem explicar a capitulação sem combate
do seu corpo de exército e capitulação sem cercos em forma das suas fortalezas
desde que não recorram ao reconhecimento do génio que Bonaparte exibiu na
guerra da Alemanha. No que diz respeito aos Russos, esses, graças a Deus, não
têm qualquer razão para se inclinarem perante essas qualidades excepcionais no
intuito de esconderem a sua vergonha. Os Russos pagaram caro de mais o direito
de julgar os seus actos com justeza e sem disfarces e não estão dispostos aabandonar o diieito que lhes assiste.
A actividade de Napoleão em Moscovo foi tão espantosa e tão inspirada pelo
génio como em qualquer outra parte. Ordens e planos não cessaram de lhe
emanar da cabeça desde que entrou em Moscovo até, que partiu da capital russa.
Não o impressionam nem a ausência dos habitantes nem das deputações, como o
não impressiona o próprio incêndio da cidade. Não perde de vista nem o bem-estar
do seu exército nem os movimentos do inimigo, tão-pouco esquece o bem-estar das
populacões russas, a administração dos negócios públicos de Paris e as
considerações diplornáticas relativas às condições de paz.
[IX]
No ponto de vista militar, Napoleão, assim que entrou em Moscovo, deu
ordens severas ao general Sebastiani para que seguisse exactamente os
movimentos do exército russo e enviasse corpos de tropas em várias direcções,
tendo prescrito a Murar que descobrisse o paradeiro de Kutuzov. Em seguida
torna medidas severas para fortificar o Kremlin e estabelece um plano adinírável
para a sua futura campanha na Rússia.
No ponto de vista diplomático convoca o capitão Iakovlev, irruinado e
andrajoso, que não sabia como sair de Moscovo, para lhe expor detalhadamente a
sua política, e a sua magnanimidade, e entrega-lhe uma carta para o imperador
Alexandre, onde se, sente no dever de o pôr ao corrente do comportamento
censurável de Rostoptchine, ordenando-lhe que a leve a Petersburgo. E expõe
igualmente os seus magnânimos projectos a Tutolmina e manda também este
ancião a Petersburgo como parlamentário.
No que diz respeito a assuntos judiciais, após os incêndios ordena que se
procurem e punam os culpados. E o malfeitor do Rostoptchine é castigado,
ordenando-se que lhe deitem fogo às próprias casas.
Em matéria administrativa, oferece a Moscovo uma constituição. Cria-se uma
municipalidade e afixa-se a seguinte proelamação:
Habitantes de Moscovo!
São grandes as vossas desgraças, mas Sua Majestade o
Imperador e Rei quer pôr termo aos vossos sofrimentos.
Terríveis exemplos vos mostraram já a maneira como ele
castiga a desobediência e o crime. Severas medidas foram
tomadas para acabar com as desordens e dar lugar a que se
restabeleça a segurança de todos os indivíduos, Unta
administração paternal, composta de homens escolhidos de
entre vós, formará a vossa municipalidade. O corpo
administrativo chamará a si cuidar de vós, das vossas
necessidades, dos vossos interesses. Os membros desta
municipalidade distinguir-se-ão por urra faixa vermelha a
tiracolo.
O governador civil, além da faixa, tera uma cinta branca.
Fora das horas de serviço, porém, os membros da
municipalidade apenas usarão hraçadeira vermelha no braço
esquerdo. A polícia municipal é instituída de acordo com o
antigo regulamento, e graças à vigilãneia por ela exercida a
ordem na cidade já é outra. O Governo nomeou dois
comissários-gerais, ou police-meister, e vinte comissários, ou
tchastni pristavs, para todos os bairros da cidade.
Conhecem-se pela braçadeira branca no braço esquerdo.
Várias igrejas afectas a cultos diversos estão abertas e as
solenidades religiosas realizam-se sem obstáculos. Os vossos
concidadãos estão todos os dias a regressar aos seus lares e
deram-se ínstruções para que lhes seja prestada ajuda e
protecção, como é devido a quem sofre. Eis os meios pelos
quais o Governo espera restabelecer a ordem e minorar as
vossas privações. Mas para se chegar a este objectivo é
preciso que junteis os vossos esforços aos desta gente, que
esqueceis, e for possível, os sofrimentos por que acabais de
passar, que tenhais esperanças num futuro menos cruel, que
estejais convencidos de que a morte inevitável e infamante
pesará sobre todos aqueles que atentem contra a vossa vidaou contra a vossa propriedade, e sobretudo que não tenhais
dúvidas de que os vossos bens serão respeitados, que tal é o
desejo do maior e do mais justo de todos os monarcas,
Soldados e habitantes, seja qual for a vossa nacionalidade!
Restabelecei a confiança pública, essa fonte de felicidade de
todos os governos, vivei em paz, ajudai-vos e protegei-vos
uns aos outros, uni-vos para combater as tentativas dos
criminosos; obedecei às autoridades militares e municipais e
não tarda que deixem de correr lágrimas dos vossos olhos.
No que dizia respeito a subsistências, Napoleão ordenou às tropas que viessem
à vez a Moscovo. à rapina, para assim arranjarem alimentos para que o exército
pudesse fazer face ao futuro. No que tocava à religião, deu ordeni de trazerem os
popes e de recomeçarem nas igrejas as cerimónias religiosas.
Mandou afixar por toda a parte a seguinte proclamação, relativa às
transacções comerciais e ao fornecimento de subsis— tências ao exército:
Pacíficos habitantes de Moscovo, homens de artes e
ofícios que as desgraças afastaram da cidade, e também
vós outros agricultores dispersos, escondidos pelos campos,
aterrorizados sem qualquer fundamento, ouvi! A calma res
— tabeleceu-se na capital e a ordem reina por toda a
parte. Os vossos compatriotas abandonam sem medo os
seus refúgios, pois sabem que serão respeitados. Qualquer
acto de violência exercido contra eles ou em prejuízo dos
seus bens é punido acto contínuo. Sua Majestade o
Imperador e Rei protege-vos e só considera inimigos
aqueles que de entre vós desobedecerem às suas ordens. É
seu desejo pôr fim às vossas infelicidades e restituir-vos a
vossos lares e a vossas famílias. Correspondei às suas
benévolas medidas voltando a casa sem temor algum.
Habitantes! Artesãos e trabalhadores laboriosos! Retomai
as vossas actividades: os vossos lares, as vossas tendas,
protegidas por patrulhas, esperam-vos, e o vosso trabalhoserá recompensado. E vós, camponeses, abandonai as
florestas onde vos refugiastes levados pelo medo, regressai
às vossas isbás, certos de que vos saberemos proteger.
Criaram-se nas cidades grandes armazéns onde os
camponeses podenz colocar os produtos da lavoura que
excedam as suas necessidades. Para garantir a livre
circulação destes produtos, o Governo tomou as seguintes
medidas: 1º De hoje em diante os camponeses, lavradores
e demais habitantes dos arrabaldes de Moscovo, sem
qualquer risco, podem trazer à capital os seus produtos e
colocá-los em dois dos armazéns montados para esse fim,
um na Rua Mokovaia e outro no Mercado Okotni. 2º Estes
produtos serão adquiridos ao preço que se convencione
entre o vendedor e o comprador; porém se aquele que
vende não encontrar quem lhe pague preço justo tem o
direito de tornar a levar a sua mercadoria, sem que
ninguém o possa impedir. 3º Em vista disto, semanalmente,
aos domingos e quartas-feiras, haverá feiras, e para esse
efeito aos sábados e terças-feiras serão destacadas tropas
em número sujiciente para protegerem os comboios ao
longo de todas as estradas, até certa distância da capital.
4º Iguais medidas se adoptaram para proteger o regresso
dos camponeses às suas aldeias. 5º Procurar-se-d
restabelecer no prazo mais breve possível os mercados
ordinários. Habitantes da cidade e das aldeias, e vós,
artesãos, operários, qualquer que seja a vossa
nacionalidade! Apelamos para vós, rogando-vos que vos
conformeis com as paternais instruções de Sua Majestade o
Imperador e Rei e que o ajudeis a contribuir para o bem-
estar comum. Depositai a seus pés o respeito e a confiança
e não vos demoreis a juntar-vos connosco!
No intuito de elevar o moral das tropas e do povo, havia frequentes paradas e
distribuíam-se condecorações. O imperador percorria as ruas a cavalo, consolandoos habitantes, e apesar das muitas preocupações que lhe causavam os negócios
públicos aparecia nos espectáculos organizados segundo inspiração sua.
No que diz respeito a beneficência, a melhor virtude dos soberanos, Napoleão
fez também tudo que dependia dele. Deu ordem para que se inscrevesse no
frontão dos estabelecimentos de beneficênci,—: Casa de minha mãe, maneira de
associar, assim, o terno afecto filial à magnanimidade do monarca. Visita o asilo
das crianças abandonadas, dá a beijar a sua branca mão aos órfãos que salvou e
conversa c ondescendentem ente com Tutolmine. Enfim, segundo o eloquente
relato de Thiers, manda pagar o soldo dos seus soldados com o dinheiro russo por
ele falsificada. «Relevando o emprego dos seus recursos por um acto digno de si e
do exército francès, mandou distribuir socorros aos sinistrados. Mas como os
víveres eram demasiado preciosos para serem dados a estrangeiros, a maior parte
dos quais inimigos, Napoleão preferiu distribuir-lhes dinheiro para que eles se
abastecessem fora da cidade, e mandou distríbuir-lhes rublos-papel.»
Enfim, no, desejo de manter a disciplina do exército, constantemente expede
ordens severas para que sejam punidas as infracções ao regulamento e o saque.
[X]
Mas, coisa estranha, todas estas medidas, todas estas ordens e todos estes
planos, em nada piores que os tomados em circunstâncias idênticas, não afectavam
a essência da questão, como acontece aos ponteiros de um quadrante que, quando
desligados do maquinismo, giram arbitrariamente e sem objectivo, alheios às
engrenagens que os accionam.
No ponto de vista militar, este genial plano de campanha, a respeito do qual
Thiers disse «que o seu génio nunca imaginara nada de mais profundo, de mais
hábil e de mais admirável», e a propósito do qual., na sua polémica com M. Fain,
se empenha em demonstrar ter sido redigido não a 4, mas a, 15 de Outubro, este
plano nunca foi nem nunca poderia ter sido executado, pois a verdade é que em
coisa alguma se aplicava às eircunstãneias de momento. A fortificação do KrernIin,
que implicava a, demolição de a Mesquita, que assim chamava Napoleão à igreja
de Basílio, o Bem— Aventurado, provou ser absolutamente inútil. As minascavadas no subsolo do Kremlin apenas serviram para ajudar o imperador a por em
prática o seu projecto de o fazer ir pelos ares aquando da sua partida de Moscovo,
no mesmo espírito com que uma pessoa fustiga o soalho que fez cair uma criança.
A perseguição do exército russo, que tanto o preocupou, proporcionou aos
observadores um espectáculo extraordinário. Os generais franceses perderam a
pista de sessenta mil russos, e, segundo Thiers, só graças à habilidade, e talvez
mesmo ao génio de Murat, foi possível encontrá-los, como se se tratasse de um
simples alfinete perdido,
Na actividade diplomática, os argumentos que Napoleão desenrolou para
demonstrar a sua generosidade e o seu espírito de justiça diante de Tutolmina e
de IakovIev, o qual, entre parêntesis se diga, se preocupava sobretudo em
arranjar um bom capote e uma carruagem, resultaram também inúteis, Alexandre
I não recebeu esses embaixadores e não respondeu às cartas de que eram
portadores. E no que diz respeito às suas medidas judiciárias? Apesar de ter sido
executado grande número de falsos incendiários, o que restava de Moscovo
acabou por arder.
E quanto às suas medidas administrativas? A constituição de uma
municipalidade não só não deteve o saque, como só foi útil às pessoas que dela
fizeram parte, as quais, a pretexto de manterem a ordem, se entregaram à
pilhagem ou apenas se de— ram ao cuidado de proteger o que era seu contra a
pilhagem alheia.
No que toca a matéria religiosa, as medidas postas em prática no Egipto, como
as visitas às mesquitas, que aí deram tão bons resultados, em Moscovo não
produziram efeito algum. Os dois ou três padres que estavam em Moscovo
procuraram pôr em execução a vontade imperial, mas um deles foi esbofeteado
por certo soldado francês durante o serviço divino e acerca de outro escreveu um
funcionário de Napoleão o que se segue: «O padre que eu descobrira, e a quem
convidara a celebrar missa, limpou e fechou a igreja. Nessa noite vieram de novo
arrombar as portas, partir os cadeados, rasgar os livros e praticar outras
desordens.»
No que se refere a assuntos comerciais, a proclamação aos artesãos e
camponeses não encontrou o mais pequeno eco. Já não havia «trabalhadores
laboriosos»: e, quanto aos camponeses, esses deitaram a mão aos comissários
portadores das proclamações que se aventuraram longe de mais e mataram-nos.Tão-pouco deram resultado os espectáculos destinados a divertír o público e as
tropas. Os teatros organizados no Kremlin e em casa de Posniakov foram
imediatamente fechados, pois actores e actrizes viram-se despojados de tudo
quanto tinham.
Também a beneficência foi estéril. Moscovo viu-se inundada de papel-moeda,
quer falso quer verdadeiro, que logo perdeu todo o seu valor, Os Franceses, só
preocupados em encher as algibeiras, apenas queriam ouro. Não só carecia de
valor a moeda falsa que Napoleão distribuía tão generosamente pelos
desgraçados, como as próprias moedas de prata se trocavam por moedas de ouro
muito abaixo do seu valor.
Mas o exemplo mais impressionante da ineficácia das medidas tornadas nas
altas esferas revelou-se na inutilidade dos esforços do imperador para deter a
pilhagem e restabelecei, a disciplina.
Eis aqui informações das autoridades militares:
«O saque continua na cidade, apesar das ordens dadas para que cessasse. A
ordem, por enquanto, não está restabelecida e ainda não lia um único comerciante
que pratique comércio legal. Apenas os cantineiros se arriscam a vender, mas
objectos proveiiientes do saque.»
«A parte do meu bairro continua a ser saqueada pelos soldados do 3º corpo, os
quais, não se contentando em arrancar aos desgraçados refugiados nos
subterrúncos o pouco que lhes resta, se mostram tão ferozes que os ferem à
sabrada, como eu próprio Pude observar.»
«Nada de novo, além de que os soldados continuam a roubar e a saquear, 9 de
Outubro.»
«O roubo e o saque continuam. Há um bando de ladrões no nosso bairro que é
preciso mandar prender por uma força poderosa. 11 de Outubro.»
«O imperador está muito descontente com o facto de, apesar das ordens
severas dadas para se acabar com a pilhagem, só ver chegar ao Kremlini
destacamentos de merodistas da guarda. Na velha guarda renovaram-se ontem e
hoje com mais intensidade do que nunca os actos de pilhagem. O imperador tem o
desgosto de verificar que soldados de escol, destinados a defender a sua própria
segurança, e que deviam dar exemplo de acatar as ordens, levam tão longe a
desobediência que saqueiam os próprios armazén’s e as lojas preparadasexpressamente para o exército. Alguns tão baixo desceram que já não obedecem
às sentinelas, antes as injuriam e as abatem a tiro.»
«O grande marechal do palácio queixa-se», escrevia o governador, «de que,
apesar das reiteradas proibições, os soldados continuam a fazer as suas
necessidades em todos os pátios e até mesmo debaixo das janelas do imperador.»
O exército francês, como um rebanho que pisasse aos pés o pasto destinado a
salvá-lo da fome, dispersava-se e perecia, pouco a pouco, mercê daquela longa
permanência em Moscovo. E a verdade é que se não movia.
Não se moveu até ao dia em que de súbito o assaltou um medo pânico, e isso
veio a dar-se quando os soldados souberam que haviam sido capturados comboios
na estrada de Smolensk e que se dera a batalha de Tarutino. A notícia desta
batalha, inopinadamente levada ao conhecimento de Napoleão durante uma
parada militar, despertou no imperador o desejo de castigar os Russos, como
refere Thiers, e foi então que deu a ordem de marcha reclamada pelo exército
inteiro.
Ao abalarem de Moscovo, os soldados levavam consigo tudo quanto tinham
podido apanhar. O próprio Napoleão fugia com o seu tesouro. Perante os pesados
carregamentos que o exército levava, segundo diz Thiers, Napoleão ganhou medo.
Mas, com a sua experiência da guerra, não mandou queimar todas as bagagens
supérfluas, como fizera com as carroças de um dos seus marechais, ao aproximar-se
de Moscovo. Ao ver essas seges e essas carruagens apinhadas de soldados, achou
que estavam bem e que esses carros podenam vir a ser utilizados mais tarde para
transportar abastecimentos, doentes e feridos.
A situação do exército francês fazia lembrar a de uma fera atingida que sabe
próximo o seu fim e já não atina com o que deve fazer. Estudar as hábeis manobras
e os planos de campanha de Napoleão e do seu exército desde a entrada em
Moscovo até à destruição deste é como estudar os pinchos e as convulsões de um
animal ferido de morte. Acontece muitas vezes que esse animal, assustado Por um
ruído qualquer, se atira para debaixo da espingarda do caçador, corre direito a
ele, volta para trás, precipitando deste modo o seu próprio fim. Eis o que fez
Napoleão sob a pressão do seu exército. A notícia da batalha de Tarutino encheu
de medo o animal, que se atirou para debaixo da espingarda, chegou até junto do
caçador, voltou para trás e, por fim, como sempre acontece, se precipitou nocaminho mais desvantajoso e mais perigoso, pois os seus trilhos já lhe eram
conhecidos.
Tal como aos olhos dos selvagens a figura esculpida à proa do barco se lhes
afigura a força que o faz mover, Napoleão, que nos é apresentado como o
dirigente de todo este movimento, na realidade, durante todo este período da sua
vida, foi apenas a criança que, agarrada às correias do interior de um carro, julga
estar a dirigi-lo.
[XI]
No dia 6 de Outubro, de manhã muito cedo, Pedro saiu da sua barraca, e, ao
regressar a ela, deteve-se no limiar da porta a brincar com um cachorrito
pardacento de pernas curtas e tortas que pulava à sua volta. Este animalzinho
vivia na barraca e dormia com Karataiev. As vezes ousava sair à rua, mas voltava
sempre para casa. A ninguém pertencia, naquele momento não era de quem quer
que fosse e não dava por nome algum. Os Franceses chamavam-lhe Açor; um
soldado apreciador de histórias, Femgalka; Karataiev e os outros, Sierii e às vezes
Vislii (Nomes vulgarmente dados aos cães na Rússia (N. dos T.).
O pobre animal parecia não se preocupar com o facto de não ter dono, nem
nome, nem raça bem definida, nem cor muito distinta. Trazia a empenachada
cauda bem alçada, e as suas patitas tortas cumpriam tão bem ou tão mal a sua
função que, por vezes, esquecendo-se de usar das quatro pernas, soerguia uma das
da retaguarda, graciosamente, e nas outras três trotava agilmente. Para ele tudo
era motivo de alegria: ora se esfregava no chão de barriga para o ar, ora se
aquecia ao sol com modos pensativos e importantes, ou ainda brincava com um
pedaço de Pau ou um bocado de palha.
Pedro, vestido com uma camisa suja esfarrapada, tudo quanto lhe restava dos
seus antigos atavios, trazia pantalona de soldado amarradas nos artelhos, para
andar mais quente, como o aconselhara Karataiev, um cafetã e um gorro de
camponês. Mudara muito fisicamente. Não parecia tão gordo, embora mantivesse
a mesma corpulência e a mesma força natural. Grande barba e farto bigode lhe
revestiam os lábios e o mente. Por debaixo do gorro saíam-lhe umas farripas muitocrescidas e emaranhadas inçadas de piolhos. Tinha no olhar Lima expressão
decidida, serena e resoluta como nunca. O relaxamento que outrora se lhe lia nos
olhos desaparecera para dar lugar a uma decisão e a uma energia prontas a agir e
a lutar. Andava descalço.
Pedro ora mirava os campos, onde nessa manhã passavam comboios de carros
e gente a cavalo, ora estendia a vista para além do rio, um pouco mais para longe,
ora ainda punha os olhos no cachorrito que fingia mordê-lo, quando não rios seus
próprios pés descalços, que se entretinha a mudar de posição, remexendo os sujos
dedos polegares. De cada vez que fitava os pés descalços perpassava-lhe pelos
lábios um sorriso de alegria e satisfação. Esse espectáculo trazia-lhe a mente tudo
quanto sofrera o também o muito que aprendera nos últimos tempos e era-lhe
agradável lembrar-se de tudo isso.
O tempo ultimamente estava calmo e límpido, apenas pela manhã havia
ligeiras geadas brancas: era, então, o Estio das mulheres.
Ao ar livre, enquanto havia sol, estava quente, e este calor, após o fresco
estimulante das geadas matinais, não deixava, de ter os seus encantos.
Todos os objectos, próximos ou distantes, pareciam mergulhar nessa claridade
feérica e cristalina como só há nessa época do Outono. Na distância divisavam-se
os montes Vorobi, com a sua povoação, a sua igreja e uma casa branca. E as
árvores despidas, a areia, as pedras, os telhados, o cata-vento verde da igreja, os
cunhais da casa branca, lá longe, tudo isto, com uma nitidez quase irreal, se
desenhava em finíssimos cor)tornos atrás da atmosfera diáfana. Num plano mais
perto perfilavam-se as ruínas dessa casa senhorial, meio lambida pelo fogo,
ocupada pelos Franceses, com os canteiros de lilases que adornavam o jardim
ainda vestidos da sua sombria verdura. E até dessa casa meio arruinada e suja,
cuja fealdade era hostil em dias sombrios, agora, iluminada por essa luz imóvel e
viva, emanava uma espécie de apaziguadora beleza.
Um cabo francês, que, para estar à vontade, desabotoara o dólman, de gorro
de polícia e cachimbo nos dentes, saiu de um dos ângulos do abarracamento e, com
uma amistosa piscadela de olhos, aproximou-se de Pedro.
— Que sol, hem?, Monsieur Kiril, — assim lhe chamavam todos os franceses. —
Parece que estamos na Primavera.
Encostando-se à ombreira da porta, ofereceu-lhe uma cachimbada, coisa que
Pedro sempre recusava.— Se tivéssemos um tempo destes para caminhar — principiou ele.
Pedro perguntou-lhe o que havia sobre a próxima partida, e por ele soube que
quase todas as tropas iam deixar Moscovo e que naquele mesmo dia deveria sair
uma ordem determinando o destino dos prisioneiros. Na barraca de Pedro havia
um soldado. Sokolov de, nome, que estava na agonia, e Pedro chamou a atenção
do cabo para, a necessidade de se tomarem quaisquer medidas acerca dele. Foi-lhe
respondido que podia estar sossegado, que existiam ambulâncias e hospitais
permanentes, que os doentes seriam tratados e que aliás as autoridades já tinham
sido prevenidas.
— E depois, Monsieur Kiril, basta que diga uma palavrinha ao capitão, bem
sabe. Oh!, é um b.... que nunca se esquece de nada. Diga ao capitão, quando ele
vier fazer a ronda, fará tudo por si...
Esse capitão tinha às vezes longas conversas com Pedro e mostrava por ele
certa parcialidade.
— Estás a ver, Saint-Thomas, o que ele me dizia no outro dia: Kiril é, um
homem instruído, que fala francês; é um fidalgo russo, que teve pouca sorte, mas e
um homem. E ele lá se entende, o b... Se ele quer alguma coisa, que mo diga, não
se lhe recusa nada. Quando uma pessoa tem estudos, gosta da instrução e das
pessoas decentes. É por si que eu digo isto, Monsieur Kiril. No caso do outro dia, se
não fosse o senhor, aquilo acabava mal.
Depois de dar à língua ainda algum tempo, foi-se o cabo.
O caso do «outro dia» a que ele se referira dizia respeito a uma altercação
entre prisioneiros e franceses que Pedro conseguira harmonizar. Alguns dos presos
que tinham ouvido a conversa entre o compatriota e o cabo francês perguntaram-
lhe de que haviam falado. Como Pedro lhes dissesse que se falava numa próxima
partida, um soldado francês, magro, amarelento e esfarrapado, aproximou-se
deles. Enquanto levava dois dedos à pala da barretina, num gesto rápido e algo
acanhado, à guisa de continência, perguntou-lhe se o soldado Platoche, a quem
confiara a camisa para remendar, não estaria por ali.
Na semana anterior, os Franceses tinham recebido pano e cabedal para botas
e haviam confiado aos prisioneiros o seu calçado e as suas camisas para remendar.
— Está pronta, está pronta, meu falcãozito — exclamou Karataiev, que
aparecera à porta com a camisa dobrada,
Por causa do calor, e para estar mais à vontade, Karataiev estava apenas emceroulas e vestia uma camisola negra como um tição. À maneira dos artesãos,
amarrara os cabelos com pedaços de cânhamo, e a sua cara redonda ainda parecia
mais redonda agradável do que habitualmente.
— Contratos são contratos. Se eu disse que estava pronta sexta-feira, está
pronta sexta-feira — rematou Platão, sorrindo enquanto desdobrava a camisa.
O francês olhou inquieto à sua roda e, dominando a indecisão que o tomava,
despiu rapidamente o uniforme e enfiou a camisa. Sobre o desnudo corpo delgado
e amarelento trazia, a servir de camisa, um folgado colete de seda floreado, muito
sebento, que mal lhe cobria a pele. Receando, sem dúvida, que os prisioneiros se
rissem dele, deu-se pressa em meter a cabeça pelo decote da camisa. Mas
ninguém disse fosse o que fosse.
— Fica-te bem — observou Platão, puxando-lhe pela camisa. Quando conseguiu
meter a cabeça e os braços dentro da camisa, o francês, sem erguer os olhos, pôs-
se a examinar as costuras.
— Que queres tu, falcãozito, isto aqui não é uma oficina de costura, faltam-me
as ferramentas necessárias. É bem verdade o que se costuma dizer: sem ter com
quê, nem a pulga um homem pode matar. — E todo ele, toda a redondeza da sua
cara, era riso, satisfeitíssimo com o seu trabalho.
— Está bem, está bem, obrigado; mas tu deves ter pano de sobra — disse o
francês.
— E ainda te ficará melhor depois de se te ajeitar ao corpo — comentou
Karataiev, que continuava a admirar a sua obra. — Vais-te sentir bem e à
vontade.
— Obrigado, obrigado, meu velho, o resto... — voltou o francês, sorrindo e
metendo uma nota na mão de Karataiev. — Mas o resto...
Pedro percebeu que Platão não tinha grande empenho em compreender o que
dizia o seu cliente, e olhava para ambos sem abrir a boca. Karataiev agradecia o
que lhe davam e continuava a admirar a sua obra. O francês teimava em que ele
lhe desse o resto do pano, e acabou por pedir a Pedro que lhe servisse de
intérprete.
— E para que quer ele as sobras? — perguntou Karataiev. — Para nós podiam
servir para fazermos umas ricas polainas para as pernas. Mas já que ele as quer...
E, de súbito, numa expressão triste, tirou de dentro da camisa um embrulhito
com umas sobras de pano e entregou-lho sem olhar para ele.— Que pena! — exclamou, voltando-lhe as costas. O francês pôs-se a examinar
os bocados de pano, pareceu indeciso, interrogou Pedro com os olhos e como se
este lhe tivesse dito alguma coisa:
— Platoche, ouve lá, Platoche — gritou, corando. — Guarda-as para ti. — E,
estendendo-lhe o embrulho com as sobras do pano, deu meia volta e afastou-se.
— É como vês — comentou Karataiev, abanando a cabeça. — Dizem que não
são cristãos. Mas sempre têm alma. Os velhos têm razão. Mão suada é dadivosa,
mão enxuta é avara. Está nu e assim mesmo dá-me as sobras.
Karataiev ficou pensativo, calado, de olhos fitos nos bocados de pano.
— É o que te digo, amigo, vou fazer daqui umas ricas polainas — comentou,
voltando a entrar na barraca.
[XII]
Quatro semanas tinham decorrido desde que Pedro caíra prisioneiro. Embora
os Franceses o tivessem querido transferir da barraca dos soldados para a dos
oficiais, continuara sempre naquela onde o tinham metido no primeiro dia.
Em Moscovo, arruinada e incendiada, Pedro chegara quase ao limite extremo
das privações que um homem pode suportar, porém a sua forte constituição e a
sua saúde até então nunca experimentadas, e sobretudo o facto de essas privações
se terem verificado pouco a pouco, fizeram que ele as suportasse não só com
facilidade, mas até com alegria. Precisamente naquela altura atingia ele aquela
serenidade e aquela satisfação de si próprio a que debalde aspirara outrora. Por
muito tempo, no decorrer da sua vida, procurara, de vários modos e em várias
direcções, aquela tranquilidade, aquele acordo consigo próprio, que tão
profundamente o impressionara nos soldados durante a batalha de Borodino.
Procurara-os na filantropia, na franco-maçonaria, nas distracções da vida mundana,
no vinho, na heróica abnegação, no romanesco amor por Natacha; procurara-os
pelas vias do puro pensamento e sempre e em toda a parte só encontrara
decepções. Mas agora, espontaneamente, sem pensar nisso, ei-lo que achara essa
serenidade nos horrores passados diante da morte, nas privações, aceitando e
compreendendo a alma de Karataiev.Os horríveis momentos que vivera durante a execução dos incendiários
pareciam ter-lhe varrido para sempre do espírito e da memória os pensamentos e
os sentimentos que o inquietavam até então e que tão importantes se lhe
afiguravam. Já não pensava na Rússia, nem na guerra, nem na política, nem em
Napoleão. Era evidente que nada disso lhe dizia respeito, que lhe não pertencia
apreciar essas coisas e mesmo que o quisesse não podia. «A Rússia e o Verão não
se casarão», costumava dizer, repetindo certo dito de Karataiev, e estas palavras
tão simples davam-lhe uma serenidade estranha. Agora encarava como
incompreensível e até ridículo o seu projecto de matar Bonaparte e bem assim as
suas lucubrações à volta do algarismo cabalístico e da Besta do Apocalipse. A ira
que a mulher lhe despertara e o receio de que o seu nome tivesse sido desonrado
pareciam-lhe agora não só coisas vãs mas até ridículas.
Que lhe importava a ele que essa mulher levasse a vida que queria? Que lhe
importava a ele principalmente que soubessem ou não que aquele prisioneiro era
o conde Bezukov?
Pensava muitas vezes na conversa que tivera com o príncipe André e dava-lhe
inteira razão, embora lhe interpretasse o pensamento de maneira um pouco
diferente. O príncipe André pensava e dizia que a felicidade apenas tinha carácter
negativo, e isto não sem que o dissesse e pensasse com um misto de amargura e
ironia. Pensando assim, parecia querer dizer que todas as aspirações do homem à
felicidade positiva lhe não tinham sido dadas senão para o atormentar,
insatisfeitas que sempre eram. Sem qualquer pensamento reservado, Pedro
adoptara esta maneira de pensar. A ausência da dor, a satisfação de todas as
necessidades, e, como consequência, a liberdade da escolha das suas próprias
ocupações, isto é, do género de vida que mais lhe quadrava, afiguravam-se-lhe, a
Pedro, incontestavelmente, o ideal da felicidade humana. Mas agora
compreendera pela primeira vez o prazer de comer quando se tem fome, de beber
quando se tem sede, de dormir quando se tem sono, de se aquecer quando se tem
frio, de falar quando apetece ouvir uma voz humana. A satisfação das
necessidades, uma boa alimentação, o asseio, a liberdade, agora, que estava
privado de tudo isso, apareciam-lhe como o supra-sumo da felicidade, e a liberdade
da escolha das suas ocupações, isto é., a própria vida, agora, que tão limitada lhe
estava essa escolha, parecia-lhe coisa tão fácil que esquecia que o próprio excesso
das comodidades da existência destrói toda a felicidade que resulta da satisfaçãodas necessidades e que uma perfeita liberdade de acção, essa liberdade que lhe
proporcionara a instrução, a fortuna, a posição na sociedade, torna a escolha das
ocupações excessivamente difícil e por isso mesmo destrói a necessidade e o desejo
de acção.
Todos os pensamentos de Pedro se reportavam agora ao momento em que o
restituíssem à liberdade. E, no entanto, depois, e até ao fim dos seus dias,
alegremente recordaria aquele mês de prisão e com entusiasmo falaria das fortes
e inapagáveis alegrias que experimentara então e sobretudo da serenidade moral
perfeita, da completa liberdade interior que só nessa quadra da sua existência
profundamente conhecera.
No primeiro dia de cativeiro, quando, depois de se levantar muito cedo, viu, ao
sair da barraca, as cúpulas e as cruzes sombrias do Mosteiro Novodievitchii, o
orvalho gelado sobre a erva poeirenta, os cumes dos montes Vorobi e as orlas
cobertas de arvoredo do no que serpeava perdendo-se na distância violácea;
quando sentiu a brisa fresca soprar-lhe na cara e ouviu o grasnido das gralhas que
debandavam de Moscovo através dos campos, quando, de súbito, a luz surgiu do
Oriente, o Sol se ergueu, solene, por cima das nuvens, e as cúpulas, as cruzes, o
orvalho, a distância, o rio, tudo resplandeceu no meio dessa alegre claridade, uma
felicidade nova, uma alegria nunca experimentada o tomou, enchendo-o de
desconhecido júbilo.
Este sentimento nunca o abandonara enquanto estivera prisioneiro. Pelo
contrário, fora crescendo à medida que se agravavam as dificuldades da sua
situação.
Nesta disposição de espírito e na aceitação de tudo que lhe acontecia e ainda
no revigoramento das suas forças morais muito o ajudou a elevada opinião que
dele tiveram sempre os seus companheiros de cativeiro desde que chegara ali. O
saber vários idiomas, o respeito que lhe testemunhavam os Franceses, a sua
simplicidade, a maneira que tinha de dar tudo quanto lhe pediam, particularmente
os três rublos que semanalmente recebia como pré de oficial, a sua robustez física,
que maravilhara os soldados ao verem-no enterrar com as mãos alguns cravos na
parede da barraca, a sua humildade no trato com os camaradas, as suas maneiras,
para eles incompreensíveis, ao quedar-se horas imóvel e sem fazer nada,
cismando, tudo isto junto lhe dera, aos olhos deles, ares de criatura misteriosa.
Estas qualidades, que até ali, na sociedade em que vivera, apenas lhe tinham sidoprejudiciais e embaraçosas, a sua força, o seu desprezo pelas comodidades da vida,
o seu ar distraído, a sua simplicidade, ali, entre aquela gente, quase faziam dele
um herói. E Pedro sentia que esta opinião a seu respeito lhe criava obrigações.
[XIII]
Durante a noite de 6 para 7 de Outubro começou a retirada dos Franceses.
Demoliram-se as cozinhas e as barracas, carregaram-se as galeras, e soldados e
bagagens puseram-se em marcha.
As sete da manhã um pelotão de franceses com uniforme de campanha,
barretinas, arma ao ombro, mochila às costas e grandes bornais a abarrotar,
alinhou diante dos abarracamentos e foi um nunca acabar de gritos e graçolas ao
longo das fileiras.
No interior das barracas todos estavam a postos, vestidos, calçados,
aguardando ordem de marcha. Só Sokolov, o soldado doente, pálido e magro, não
estava nem equipado nem calçado, Sentado no seu canto, os olhos fora das
órbitas, de grandes olheiras, castigado pelo sofrimento, interrogava em silêncio os
seus companheiros indiferentes, gemendo de vez em quando. O que lhe ditava
aquela queixa era menos a desinteria que o prostrava que o terror e a tristeza
que lhe causavam a ideia de ficar só para ali.
Pedro, com umas botifarras que Karataiev lhe fizera de um pedaço de couro
que um francês lhe trouxera para ele lhe pôr meias solas numas botas, à cinta uma
corda que lhe cingia os rins, aproximou-se do enfermo e agachou-se junto dele.
— Escuta, Sokolov, eles não se vão embora de vez. Têm aqui um hospital.
Naturalmente ainda vais ficar melhor do que nós — disse-lhe ele.
— Ai, meu Deus! Vou morrer! Ai, meu Deus! — gemia o desgraçado.
— Eu vou falar com eles — animou-o Pedro, dirigindo-se para a porta da
barraca.
Nesse momento vinha entrando, acompanhado de dois soldados, o cabo que na
véspera oferecera uma cachimbada a Pedro. Todos envergavam uniforme de
campanha, com barretinas e bornais e o francalete por debaixo do queixo, o que
lhes dava outro aspecto.O cabo recebera ordem para conservar a porta fechada. Antes da partida,
tinha de proceder à chamada dos prisioneiros.
— Cabo, que vais tu fazer do doente?... — perguntou Pedro.
E enquanto isto lhe dizia. Pedro perguntava a si próprio se realmente estaria
falando com o cabo seu conhecido ou com outro homem, pois a verdade é que não
parecia o mesmo.
O cabo, ao ouvir as palavras de Pedro, franziu o sobrolho e fechou a porta
ruidosamente, soltando uma grosseria. A barraca ficou imersa numa semi-
obscuridade. O rufar de tambores que de repente se ouviu dos dois lados da
barraca abafava as queixas do doente.
«Ah! Aí está outra vez... », pensou Pedro, e um calafrio lhe percorreu a
espinha. Voltara a encontrar na fisionomia transfigurada do cabo, no tom da sua
voz, no rufar ensurdecedor dos tambores que tocavam a reunir, aquela força
misteriosa e impassível que levava os homens a matarem-se uns aos outros
mesmo sem quererem, essa força cujos efeitos vira aquando das execuções. Ter
medo, procurar evitar esta força, suplicar ou admoestar aqueles que se lhe
rendiam, era absolutamente inútil. Eis o que Pedro compreendia agora.
Era preciso esperar e ter paciência. Não voltou ao pé do doente e não lhe disse
qualquer outra palavra de consolo. Ali ficou, de pé, junto da porta da barraca,
mudo, as sobrancelhas franzidas.
Quando as portas voltaram a abrir-se e os prisioneiros, como um rebanho de
carneiros, empurrando-se uns aos outros, se amontoaram à saída, Pedro abriu
caminho pelo meio deles e avançou até junto do capitão que, no dizer do cabo,
estava disposto a tudo fazer por ele. Também este capitão envergava fardamento
de campanha e no seu frio rosto reflectia-se essa mesma coisa terrível traduzida
nas palavras do cabo e no rufar dos tambores.
— Toca a andar, toca a andar! — gritava ele, olhando severamente os
prisioneiros que se comprimiam uns contra os outros na sua frente.
Pedro, embora certo de que seria inútil o que ia tentar, aproximou-se dele.
— Então, que é que há? — exclamou o oficial, relanceando-lhe um frio olhar,
como se o não conhecesse.
Pedro lembrou-lhe o doente.
— Que diabo, ele pode caminhar! — replicou o capitão, e sem olhar para
Pedro: — Toca a andar, toca a andar! — prosseguiu.— Não pode, está a morrer — insistiu Pedro.
— Fazem favor!... — gritou o capitão iracundo.
Tan, rataplã, continuavam os tambores. E Pedro compreendeu que aqueles
homens estavam completamente dominados pelo poder da força misteriosa que
ele sentia ali presente e que era inútil dizer fosse o que fosse.
Separaram os soldados dos oficiais prisioneiros e, deram-lhes ordem de
marchar na vanguarda. Com Pedro, eram trinta — os soldados eram trezentos.
Pedro não conhecia os oficiais das outras barracas, que se apresentavam muito
melhor. Olharam, desconfiados e hostis, Para ele e para as botas que tinha nos
pés.
Bastante perto dele marchava um gordo major, que parecia respeitado por
todos os demais: vestia um roupão tártaro de Kazan, cingido por uma toalha, a sua
cara, opada e amarelenta, tinha qualquer coisa de iracundo. Uma das mãos, que
segurava a bolsa do tabaco, apoiava-se na abertura da camisa e a no chibuque
(Cachimbo turco (N. dos T.) . Resfolegando e soprando, resmoneava, zangado com
toda a gente, dizendo que o empurravam, que todos estavam com pressa sem
razão alguma, que não havia motivo para surpresas. Outro, pequenino e
magricela, ia interrogando toda a gente, perguntando para onde os levavam o
que percurso teriam de fazer naquele dia. Um funcionário, de uniforme de
comissário e botas de feltro, corria daqui para ali, observando Moscovo e fazendo
comentários em volta sobre este e aquele bairro ainda fumegantes. Outro ainda,
um polaco, a avaliar pelo sotaque, discutia com o funcionário, pretendendo
mostrar-lhe que se enganava a respeito dos bairros que ia designando.
— Para que serve discutir? — exclamou o major colérico. — Tanto faz que seja
S. Nicolau como Vlass: é o mesmo. Como vêem, está tudo queimado e isso é um
facto... Para que empurram? Não lhes chega o espaço que têm? — acrescentou,
dirigido-se àquele que vinha atrás dele e que o não empurrava de lacto.
— Oh! Que terrível coisa fizeram! — exclamavam os prisioneiros,
contemplando as ruínas. — E o Zamoskvorietche e Zubovo e o Kremlin... Olhem,
não ficou nem metade. Eu bem lhes disse que tinha ardido todo o
Zamoskvorietche, e é verdade. Aí têm.
— Bom, está bem, já sabem que ardeu a cidade inteira. De que lhes serve
discutir? — resmungava o major.Ao atravessarem Kamovniki, um dos poucos bairros intactos, ao pé da igreja,
os prisioneiros correram de súbito todos para o mesmo lado, e ouviram-se
exclamações de horror e repulsa.
— Oh! Que canalhas! Bem se vê que não são cristãos. Olhem, o morto, o
morto... Borraram-lhe a cara.
Pedro também se aproximou da igreja para saber a causa daquelas
exclamações, e viu então qualquer coisa encostada ao muro do templo. Pelos seus
camaradas, que viam melhor do que ele, soube que era um cadáver de pé contra a
grade e ao qual tinham besuntado a cara com sebo.
— Marchem, caramba... Marchem... trinta mil diabos! — vociferaram os
soldados da escolta, e com renovada, ira puseram-se a destroçar a coronhada a
multidão dos prisioneiros que ficara para trás olhando o cadáver.
[XIV]
Pelas ruelas de Kamovniki foram seguindo os prisioneiros com a sua escolta,
mais as carroças e as galeras que vinham atrás deles, sem encontrar ninguém no
caminho. Mas ao desembocarem junto dos armazéns de subsistências, deparou-se-
lhes um grande comboio de artilharia que avançava, penosamente, entravado por
um engarrafamento de viaturas particulares.
Ao chegarem à ponte, tiveram de estacar para darem tempo a que passassem
os que iam na vanguarda. Passada a ponte, puderam ver que tanto na sua frente
como na sua retaguarda tudo eram filas intermináveis de carros. À direita, no
local em que a Calçada de Kaluga forma uma curva diante de Neskutchni,
perdendo-se na distância, desfilavam filas imensas de soldados e de bagagens.
Eram as tropas do corpo de Beauharmais, as primeiras a sair da cidade. Atrás, ao
longo do cais e da ponte de Pedro, marchava, o corpo de exército de Ney, com as
suas respectivas viaturas.
As tropas de Davout, de que os prisioneiros faziam parte, atravessaram o vau
de Krimski e meteram por um troço da Rua de Kaluga. Mas a fila era tão longa que
as últimas viaturas de Beauharmais ainda não tinham saído de Moscovo quando a
vanguarda das tropas de Ney principiava a desembocar na Grande Ordinka.Após terem atravessado o vau de Krimski, os prisioneiros, depois de darem
alguns passos, pararam, para de novo se porem em marcha: de todos os lados se
comprimiam contra eles cada vez mais homens e viaturas. Levaram mais de uma
hora para Percorrer a escassa centena de passos que separa a ponte da Rua de
Kaluga, e, ao chegarem à praça onde a Rua de Zamoskvorietche se encontra com a
de Kaluga, pararam, comprimidos numa massa compacta, e ali ficaram algumas
horas naquela encruzilhada. Por toda a parte se ouviam, num rindo semelhante ao
do mar, e rolar das rodas, os passos dos soldados e gritos furiosos e intermináveis
injúrias. Pedro, de pé, comprimido contra a parede de uma casa incendiada, ouvia
aquele rumor que na sua imaginação se fundia com o rufar dos tambores.
Alguns oficiais prisioneiros, para verem melhor, treparam ao alto das paredes
da casa junto à qual se encontrava Pedro.
— Tanta gente! Ah! Tanta gente!... Até há homens em cima dos canhões!
Olhem para as peles’... Ah!, que crápulas! O que eles roubaram! Olha para aquele,
o que ele leva no carro... Deve ter tirado aquilo a um ícone... São alemães. é mais
que certo! Onde estão os nossos camponeses?... Canalhas!... Olha para o que
aquele leva. Nem pode andar! E aqueles, aqueles apanharam uma carruagem de
fidalgo! E aquele além! Sentado em cima dos baús! Ah! Santos Padres! Isto é que
foi roubar!
— Sim, sim! Chega-lhe nas ventas! Sim, senhor, não salinos daqui antes da
noite! Olha, olha... Se calhar é do Napoleão. Repara! Que belos cavalos! Um
escudo e a coroa! Parece uma casa desmontável! Olha, aquele perdeu o saco e,
não deu por isso. Quê, mais zaragatas? Uma mulher com o filho. Não é qualquer
peste. Claro, assim, hão-de deixar-te passar, Olhem! Nunca mais acaba! Moças
russas, palavra de honra! Sim, moças russas1 Aquilo é que elas se rebolam nos
carros.
De novo um acesso de curiosidade, como junto da igreja de Kamovniki,
precipitou os prisioneiros para diante, e Pedro, graças à sua estatura avantajada,
pôde ver por cima das cabeças o que assim chamava a atenção. Em três
carruagens. à mistura com os armões da artilharia, aglomeradas umas sobre as
outras, viam-se umas mulheres muito pintadas, com vestidos ultragarridos, que
gritavam em altos berros.
Desde o momento em que Pedro dera pela presença daquela força misteriosa e
brutal que a certa altura se apodera dos homens, nada lhe parecia já estranhonem horrível: nem aquele cadáver borrado de sebo, nem aquelas mulheres
empilhadas dentro de um carro, nem mesmo os escombros do incêndio. Já nada o
comovia: dir-se-ia que a sua alma, preparando-se para uma luta difícil, repelia de si
toda a emoção capaz de a debilitar.
O carro das mulheres passara. Atrás dele vinha uma grande fileira de carroças,
de soldados, de galeras: depois, de novo soldados, furgões, veículos; e outra vez
soldados, armes e mais soldados: de quando em quando algumas mulheres.
Pedro ninguém via individualmente, mas apenas massas de gente em
movimento.
Toda aquela gente, todos aqueles cavalos, pareciam impulsionados por uma
força invisível. Em todos eles, afluindo das diversas ruas, não havia senão um único
e mesmo desejo: passar o mais depressa que pudessem. Empurravam-se,
irritavam-se, agrediam-se, viam-se dentes ranger, franziam-se sobrancelhas,
injuriavam-se uns aos outros, e todos os rostos reflectiam a mesma expressão
resoluta, cruel, fria, a expressão que o impressionara logo pela manhã na máscara
do cabo, quando principiara a rufar o tambor.
Para o fim da tarde, o comandante do comboio conseguiu agrupar o seu
destacamento, que entre gritos e zaragatas acabou por unir-se aos demais
comboios, e os prisioneiros, escoltados por todos os lados, entraram, a pé, na
estrada de Kaluga.
A marcha foi rápida, sem interrupções, e apenas pararam ao pôr do Sol. As
carroças alinharam umas atrás das outras e os homens prepararam-se para passar
ali a noite. Toda a gente parecia irritada e descontente. Por muito tempo se
ouviram, por todos os lados, injúrias, obscenidades, disputas. Uma carruagem que
vinha atrás do comboio abalroou com uma carroça e meteu-lhe dentro os taipais
com a lança dos cavalos. Acorreram vários soldados: uns fustigavam a cabeça das
bestas atreladas à carruagem, para obrigá-las a recuar, outros agrediam-se entre
si, e Pedro viu um alemão gravemente ferido na cabeça por uma espadeirada.
Aquela gente, ali parada em pleno campo, no meio das fria, trevas de uma
noite de Outono, experimentava a desagradável sensação de quem desperta
depois da confusão e da precipitação em que vivera à saída da capital. Todos
pareciam compreender ser desconhecido o destino que levavam e que muitos
tormentos e muitas dificuldades os aguardavam ainda.
Neste primeiro descanso, os soldados da escolta ainda trataram os prisioneiroscom mais dureza que no momento da partida. Pela primeira vez receberam como
ração carne de cavalo.
Desde os oficiais até ao mais humilde dos soldados, todos mostravam uma
espécie de irritação particular para com os prisioneiros, contraste flagrante com o
amistoso tratamento que até então tinham tido.
Essa irritação ainda mais se agravou quando, no momento de se fazer a
chamada, verificaram que tinha fugido um soldado russo, que se queixara de uma
indisposição de barriga. Pedro viu Um francês agredir um russo por se ter afastado
da estrada e Ouviu o capitão seu amigo repreender severamente o sargento por
causa do desaparecimento do prisioneiro, ameaçando-o com um conselho de
guerra. Respondendo-lhe o sargento que o soldado estava, doente e não podia
caminhar, o oficial replicou-lhe que havia ordens para fuzilar os retardatários.
Pedro sentiu que aquela força fatal e bruta que pesara sobre ele na altura, da
execução dos incendiários, aligeirando-se durante o período do cativeiro, voltava
de novo a impor-se-lhe. Um grande terror se apoderou dele: mas ao mesmo tempo
sentia que, enquanto esta força procurava esmagá-lo, outra, poderosa e
independente dela, espécie de energia vital, crescia e lhe fortalecia a alma
Ceou papas de farinha e centeio e um pedaço de carne de cavalo e pôs-se a
falar com os companheiros.
Nem Pedro nem qualquer dos outros aludiu ao que tinham, visto em Moscovo,
nem tão-pouco à brutalidade dos Franceses nem à ordem de disparar sobre eles
em caso de fuga. Como para contrabalançar a gravidade da situação que
atravessavam, pareciam especialmente alegres e ruidosos. Lembravam
recordações pessoais, cenas cómicas a que tinham assistido durante a campanha, e
as histórias que contavam faziam-nos esquecer o momento que passava.
Há muito que, se havia posto o Sol. Estrelas brilhantes surgiam aqui e ali no
alto céu, O globo da lua cheia, cor de fogo, espalhava o seu fulgor no horizonte,
balouçando-se de maneira estranha no meio da bruma acinzentada. Era como se
fosse dia claro. O crepúsculo ainda não acabara e a noite ainda não principiara.
Pedro, afastando-se do grupo dos seus novos amigos, atravessou pelo meio das
fogueiras do acampamento para o outro lado da estrada onde lhe haviam dito
haver também prisioneiros, Desejava conversar com eles. Uma sentinela francesa
mandou-o fazer alto, ordenando-lhe que voltasse para trás.
Pedro obedeceu-lhe, mas, em vez de voltar para o bivaque onde estavam oscompanheiros, encaminhou-se para uma carroça desatrelada em que ninguém
havia. Sentou-se no chão, acocorado, e de cabeça baixa, sob a caixa da carroça, por
muito tempo ali ficou imóvel, absorto nos seus pensamentos. Passou-se mais de
uma hora, Ninguém se lembrava dele. De súbito rompeu uma gargalhada tão
franca e estrepitosa que toda a gente se voltou para ver donde partia aquela
estranha jovialidade.
«Ah!, ah!, ah!», gargalhava Pedro. E em voz alta ia dizendo para si mesmo: «O
soldado não me deixou passar, apanharam-me, encarceraram— me, fizeram-me
prisioneiro. Mas a quem? A mim. à minha alma imortal?
«Ah!, ah!, ah…» E de tanto rir enchiam-se-lhe os olhos de lágrimas.
Um dos prisioneiros levantou-se e aproximou-se para ver qual a causa da
hilaridade daquele homem gordo e estranho, Pedro deixou de rir, levantou-se e,
afastando-se do indiscreto, olhou em torno de si.
O acampamento, ainda há momentos animado pelo crepitar das fogueiras e
das conversas ruidosas, serenara até onde a vista alcançava; as chamas vermelhas
empalideciam e apagavam-se. A lua cheia estava agora lá no alto do firmamento
inundado de luar, As florestas e os campos, até então invisíveis para além do
acampamento, avultavam ao longe. E para além dessas florestas , desses campos,
a distancia infinita iluminada pelo luar parecia mover-se e chamá-lo para si.
Ergueu os olhos para o céu, para as profundezas onde se perdiam as estrelas
cintilando. «E tudo isto me pertence, tudo isto está em mim e tudo isto sou eu!»,
exclamou. «E a tudo isto deitaram eles a mão e tudo isto enceraram numa barraca
de madeira!» Sorriu e foi deitar-se junto dos companheiros.
[XV]
Nos primeiros dias de Outubro. Kutuzov voltara ainda a receber uma carta de
Napoleão, com propostas de paz, que lhe fora confiada por um parlamentário,
carta falsamente datada de Moscovo, pois o imperador já se encontrava para
além do exército russo, na velha estrada de Kaluga. Kutuzov repetiu o que
respondera à primeira que lhe fora apresentada por Lauriston: que não queria
ouvir falar em paz.Pouco tempo depois, o destacamento de guerrilheiros comandado por Dolokov,
que operava à esquerda de Tarutino, comunicou que haviam desaparecido tropas
francesas em Fominskoie, e que, essas tropas eram formadas pela divisão
Broussier, a qual, isolada do resto do exército, facilmente podia ser dizimada.
Soldados e oficiais exigiam, gritando, que os deixassem combater. Os generais do
estado-maior, encorajados pela vitória fácil de Tarutino, insistiam com o
generalíssimo para que a proposta de Dolokov fosse aceite. Kutuzov continuava a
considerar inoportuna qualquer actividade. Foi então resolvido tomar uma medida
intermédia: enviou-se um pequeno destacamento a Fominskoie com o propósito de
atacar Broussier.
Por um estranho acaso, esta missão — a mais difícil e a mais importante de
todas, como depois se verificou — foi confiada a Dokturov, esse pequeno e
modesto Dokturov, que ninguém concebia a gizar planos de batalha, e lançar-se à
frente dos seus regimentos, ou a espalhar cruzes às mãos-cheias peias baterias,
esse homem que tinha fama de indeciso, e que, no entanto, em todas as operações
contra os Franceses, de Austerlitz até 1813, estivera sempre na posição de
comando onde a situação era mais difícil. Em Austerlitz fora o último a abandonar
o dique de Augezd, reunindo os regimentos, salvando o que podia, quando todos
debandavam ou tinham sido mortos e mais nenhum general havia na linha de
fogo, Enfermo e cheio de febre, acorreu a Smolensk com vinte mil homens para
defender a cidade contra o exército de Napoleão. Em Smolensk, num grande
acesso febril, passa pelo sono na Porta de Malakov. O tiroteio desperta-o e a
cidade aguenta-se todo o dia, Em Borodino, depois que Bagration foi morto e os
Russos perderam, na sua ala esquerda, um por cada nove soldados, e quando toda
a artilharia francesa despejava metralha sobre eles. é ainda este indeciso e
imprevidente Dokturov quem vai substituir um general mal escolhido numa infeliz
decisão de Kutuzov. E apresenta-se este miúdo, este modestíssimo Dokturov, e
Borodino transforma-se numa das mais brilhantes glórias russas. No entanto,
embora sejam muitos os heróis celebrados em prosa e verso, de Dokturov
ninguém fala.
Foi ainda Dokturov o general enviado a Fominskoie e daí a Malii Iaroslavets,
local em que se travou a última verdadeira batalha contra os Franceses, e onde,
de facto, verdadeiramente, principiou a derrocada dos exércitos napoleónicos. E,
embora sejam muitos os génios e os heróis glorificados desta campanha, deDokturov ou não se fala ou apenas se lhe dedicam algumas palavras de elogio
equívoco. O silêncio à volta deste homem é a mais evidente prova dos seus
méritos.
É natural que um homem que não conhece o funcionamento de uma máquina
atribua grande importância ao cisco que por acaso se introduziu nas suas
engrenagens e a não deixa funcionar. Sem conhecer a sua construção, esse homem
não pode compreender que o órgão essencial da máquina é a pequena roda que
gira sem ruído.
No dia 10 de Outubro, dia em que Dokturov, tendo percorrido metade do
caminho para atingir Fominskoie, se deteve na povoação de Aristovo, onde se
dispunha a executar com toda a exactidão a ordem recebida, o exército francês,
que, impelido por um movimento compulsivo, chegara até junto da posição
ocupada por Murat para aí travar batalha, segundo parece, imediatamente e sem
motivo algum virou para a esquerda, pela estrada nova de, Kaluga, e penetrou em
Fominskoie, onde até essa data só se encontrava Broussier. Naquele momento.
Dokturov apenas tinha sob o seu comando o destacamento de Dolokov e dois
outros, menos importantes, o de Figner e o de Sesslavine.
Na noite de 11 de Outubro, Sesslavine chegou a Aristovo e apresentou-se na
sede do comando com um soldado francês da Guarda que acabava de ser feito
prisioneiro. Este disse que as tropas que nesse mesmo dia tinham entrado em
Fominskoie constituíam a guarda-avançada de todo o exército, que Napoleão se
encontrava junto delas e que havia quatro dias que tinham deixado Moscovo.
Nessa mesma noite, um criado-servo que chegava de Borovska, contou que vira
um importante corpo de exército penetrar na cidade. Cossacos do destacamento
de Dolokov confirmaram que a guarda francesa marchava pela estrada de
Borovska. De harmonia com todas estas informações, tornou-se evidente que
naquele ponto, onde esperavam encontrar apenas uma divisão, se achava todo o
exército francês, que deixara Moscovo, e o qual seguia direcção imprevista, a
velha estrada de Kaluga. Dokturov, hesitante, não sabia que decisão tomar, pois
não via agora com clareza o que tinha a fazer. Recebera ordem para atacar
Fominskoie. Mas aí, onde anteriormente apenas se encontrava Broussier, estava
agora todo o exército francês. Ermolov teria desejado agir a seu talante, mas
Dokturov insistiu na necessidade de se recorrer à decisão do Sereníssimo. E foi
resolvido enviar-se um relatório ao estado-maior.Para essa missão escolheu-se Bolkovitinov, um oficial inteligente, o qual, além
do relatório escrito, devia prestar completas explicações orais, A meia-noite,
Bolkovitinov, depois de ter recebido o relatório e as respectivas ordens verbais,
partiu a galope ao encontro do estado-maior, seguido de um cossaco e de cavalos
de muda.
[XVI]
A noite de Outono estava escura e quente. Há três dias que chovia, Depois de
mudar duas vezes de cavalos e de ter percorrido trinta verstas em hora e meia,
por uma estrada lamacenta e escorregadia, Bolkovitinov chegou a Letachovka às
duas da madrugada. Apeando-se diante de uma isbá em cuja porta havia um
letreiro com a inscrição «Estado— Maior», penetrou no vestíbulo escuro.
— É urgente, o general de serviço! Extremamente urgente! — disse ele a um
homem que se perfilou, sobressaltado, no meio das trevas.
— Está muito doente desde ontem, ha duas noites que não dorme — deu-se
pressa em responder um impedido baixando a voz. — É melhor acordar primeiro o
capitão.
— É muito importante. Da parte do general Dokturov — insistiu Bolkovitinov,
entrando, às apalpadelas — pela porta dentro.
O impedido adiantou-se-lhe e fez menção de acordar alguém que estava a
dormir.
— Excelência, Excelência, um correio.
— Hem? Quê? Da parte de quem? — inquiriu uma voz ensonada.
— Da parte de Dokturov, Alexis Petrovitch. Napoleão está em Fominskoie -—
disse Bolkovitinov, que, na obscuridade, não conseguia ver a pessoa que falara,
reconhecendo, no entanto, pela voz, que não era Konovnitsine.
O homem pôs-se a bocejar e a espreguiçar-se.
— Não estou com vontade de o acordar — disse ele, tacteando nas trevas. —
Está muito doente e naturalmente isso são boatos.
— Aqui tem o relatório — volveu Bolkovitinov — Tenho ordem de o entregar
imediatamente ao general de serviço.— Espere, vou acender a luz. Onde a meteste, malvado? — disse para o
impedido o militar que acordara e, era Chtcherbinine, o ajudante-de-campo de
Konovnitsine. — Ah! Aqui está ela, aqui está ela.
O impedido riscou a pederneira enquanto o oficial procurava vela tacteando no
escuro.
— Ah, malandros! — exclamou, arreliado.
A claridade das chispas, Bolkovitinov reconheceu a cara moça de
Chtcherbinine, que tinha uma vela na mão, e a um canto, na sua frente, viu
alguém que dormia. Era Konovnitsine.
Quando a chama da isca, primeiro azul, se tornou vermelha, Chtcherbinine
acendeu a vela de sebo. As baratas que a devoravam fugiram e ele pôs-se a
examinar o mensageiro. Bolkovitinov, coberto de lama, ao tentar enxugar-se com
a manga da farda, mascarrou a cara.
— E quem prestou estas informações? — perguntou Chtcherbinine, pegando no
sobrescrito.
— As informações são de confiança — replicou o correio. Prisioneiros, cossacos,
espiões, são unânimes a dizer o mesmo.
— Não há outro remédio, tenho de o acordar — murmurou Chtcherbinine,
erguendo-se e aproximando-se do homem que ressonava com a cabeça metida num
barrete de dormir e o capote por cima. — Piotre Petrovitch! — chamou ele,
Konovnitsine não se mexeu. — Ao estado-maior! — acrescentou, sorrindo, certo de
que estas palavras chegariam para o acordar.
Com efeito, a cabeça com o barrete de dormir soergueu-se imediatamente. O
belo e enérgico rosto de Konovnitsine, afogueado pela febre, permaneceu ainda
por momentos numa espécie de entressonho, muito longe, por certo, da realidade.
Depois teve um sobressalto e recuperou a sua expressão habitual cheia de
serenidade e firmeza.
— De que se tratai? Da parte de quem? — perguntou imediatamente, mas
sem grandes pressas, piscando os olhos em frente da luz da vela.
Enquanto ouvia o relatório oral do emissário abriu o sobrescrito e percorrer a
mensagem com os olhos. Assim que terminou a leitura, pousou no sobrado os pés,
onde enfiara meias de lã, e pôs-se a calçar as botas, Em seguida tirou o barrete de
dormir, alisou o cabelo nas fontes e pôs a barretina.
— Vieste depressa! Vamos ao Sereníssinio.Konovnitsine compreendera imediatamente a extrema importância das
notícias trazidas pelo correio e, que não havia tempo a perder. Não sabia nem se
perguntava a si mesmo se as notícias eram boas ou mas. Não pensava nisso nem
estava disposto a interrogar-se sobre o assunto. Não o interessava. A guerra, para
ele, não era nem questão de inteligência nem de raciocínio. Era qualquer coisa de
muito diferente. Tinha a convicção profunda, e nunca expressa de que,
evidentemente, tudo acabaria bem, mas que era preciso não acreditar em tal e
muito menos não manifestar essa opinião. Havia apenas que cumprir a tarefa. E
essa tarefa cumpria-a ele consagrando-lhe roda a sua energia.
Piotre Petrovitch Konovinitsine, assim como Dokturov, parece não terem sido
incluídos na lista dos heróis de 1812 — os Barclay, os Raievski, os Ermolov, os
Platov e os Miloradovitch — apenas por uma questão de pura formalidade. Tal
como a de Dokturov, a sua reputação era a de um homem de min escassas
capacidades, conhecimentos e, assim como o seu émulo, também ele nunca gizara
planos de campanha, embora sempre viesse a encontrar-se nos pontos em que a
situação era mais grave. Desde que fora nomeado general de serviço que dormia
de porta aberta e dava ordens para que o chamassem à chegada de qualquer
correio, Era sempre o primeiro na linha de fogo Kutuzov repreendia-o por tanto se
expor, e hesitava mesmo em dar-lhe ordens. Eis porque, como Dokturov, era uma
dessas engrenagens invisíveis que sem fazer qualquer ruído constituem um dos
órgãos essenciais de qualquer máquina.
Ao ver-se exposto à humidade da escura noite, assim que saiu da isbá,
Konovnitsine sentiu-se mal, eram muito fortes as suas dores de cabeça e a
barafunda que aquelas notícias iam causar na esfera das graúdas engrenagens do
estado-maior, principalmente em Bennigsen, que desde Tarutino andava a ferro e
fogo com Kutuzov, impressionava— o. Que propostas surgiriam? E as discussões
que ia haver! As mudanças! Era penosa a impressão que lhe causava pensar nisso,
tanto mais quanto considerava inevitável o que ia acontecer.
E, com efeito, Toll, a cujos aposentos se dirigiu para dar-lhe parte do ocorrido,
pôs-se imediatamente a expor as suas ideias ao general seu companheiro de casa,
e Konovnitsine, que o ouvia sem dizer palavra, com um ar cansado, viu-se obrigado
a lembrar-lhe a conveniência de apresentarem o caso ao Sereníssimo.
[XVII]
Kutuzov, como todos os velhos, pouco dormia de noite. De dia acontecia-lhe
muitas vezes cabecear com sono; de noite estendia-se na cama sem se despir, e
geralmente pensava, não dormia.
Era o que sucedia naquele momento. Estava estendido na cama, com a grande
e pesada máscara, toda sulcada de cicatrizes, absorta em pensamentos e o único
olho muito aberto na escuridão.
Desde que Bennigsen, que mantinha correspondência directa com o imperador
e era preponderante no estado-maior, evitava Kutuzov, este sentia-se mais
tranquilo, pois ninguém apertava com ele para lançar as tropas em aventurosas
ofensivas.
A lição de Tarutino e do que se passara na véspera da batalha, lembrança que
ainda o impressionava desagradavelmente, devia tê-los feito reflectir.
«Devem compreender que só temos a perder tomando a iniciativa de atacar»,
pensava, «A paciência e o tempo, eis os meus dois grandes heróis!» Estava certo
de que se não devia arrancar a maçã da árvore enquanto ela estivesse verde.
Quando amadurecer cairá por si; apanhar a maçã verde é estragar a fruta e a
árvore. E a única coisa que podemos ganhar é os dentes botos. Caçador
experimentado que era, estava seguro de que a fera fora atingida e ferida, sem
dúvida, depois de sentir o peso do poderio russo. Se a ferida era mortal ou não,
isso ainda o não sabia. Naquele momento, depois das diligências de Lauriston e de
Berthier e das informações colhidas pelos guerrilheiros, estava quase certo de que
seria mortal. Mas era preciso obter provas irrefutáveis esperar ainda,
«Estão sempre com vontade de ir ver se mataram a presa. Esperem, terão
tempo de ver mais tarde», dizia ele de si para consigo. «Manobras e mais
manobras, ataques e mais ataques. Para quê? Para se distinguirem! Como se fosse
coisa muito agradável travar uma batalha! Parecem crianças. Não são capazes de
contar como as coisas se passaram. O que eles querem é mostrar que se bateram
bem. Mas não é disso que se trata neste momento.
«E que manobras são essas que eles me estão sempre a propor? Lá porque
imaginaram dois ou três casos», acrescentou, pensando no general que lhe
mandaram de Petersburgo, «julgara ter previsto todos os que podem surgir. Ascontingências são infinitas!»
Havia já um mês que Kutuzov perguntava a si mesmo ansiosamente se o
ferimento de Borodino seria ou não mortal. É certo que os Franceses estavam na
posse de Moscovo. Mas, por outro lado, sentia, com todas as fibras da sua alma,
que o golpe terrível que lhe vibrara com todas as tropas russas tinha de ser
mortal. Em todo o caso precisava de provas e havia um mês que as esperava. E
quanto mais o tempo ia passando mais impaciente parecia.
Estendido na cama durante as longas insónias, fazia exacta— mente o mesmo
que todos os seus jovens generais, aquilo mesmo por que os repreendia, Tal como
eles, imaginava todos os casos possíveis. Só com uma diferença: que nada edificava
sobre tais hipóteses e que não formulava apenas duas ou três, mas milhares.
Quanto mais pensava maior era o número de circunstâncias que via.
Representava-se a si mesmo toda a espécie de movimentos do grosso do exército
napoleónico, em direcção a Petersburgo ou apenas de uma das suas partes,
avançando sobre ele, graças a um envolvimento, E pensava, e era o que mais
temia, na hipótese de Napoleão empregar para com ele as mesmas armas de que
ele próprio se utilizava: no caso de ele ficar em Moscovo aguardando-o. Admitia
mesmo que os Franceses fizessem um movimento de recuo sobre Medine e Iuknev,
E, no entanto, a única coisa que não pudera prever fora precisamente o que veio a
dar-se, a saber, esse vaivém de Napoleão, insensato, quase convulsivo, durante os
onze dias após a evacuação de Moscovo, vaivém que tornou possível uma coisa em
que Kutuzov não ousava ainda pensar: a destruição completa do exército francês.
A informação de Dokturov sobre a divisão Broussier, as comunicações dos
guerrilheiros sobre a desorientação que se sentia no exército napoleónico, o que
constara acerca dos pormenores da partida de Moscovo, tudo confirmava a
hipótese de que as tropas inimigas estavam perdidas e se dispunham a bater em
retirada. No entanto, tudo isto eram suposições, talvez convincentes aos olhos de
todos os jovens que o rodeavam, mas não aos seus. Com os seus sessenta anos de
experiência, sabia a importância que devia atribuir-se aos boatos. E também sabia
que quando se deseja muito qualquer coisa, pode uma pessoa acabar por preparar
as notícias de sorte a que elas confirmem o que se deseja, tendo o cuidado de
guardar silêncio sobre tudo que contradiga o que se pretende. Por isso, quanto
mais desejava que fosse essa a solução, menos se permitia a si próprio acreditar
nela. O problema do estado do exército francês absorvia todas as suas faculdadesintelectuais: o mais, para ele, era acessório, o trem habitual da vida. Entre as suas
ocupações quotidianas figuravam as conversas com o estado-maior, a
correspondência com Madame de Staël, que punha em dia desde Tarutino, a
leitura de romances, a distribuição de recompensas, as cartas que enviava para
Petersburgo e outras coisas semelhantes, Porém, o seu único e mais ardente
desejo era a derrota dos Franceses, derrota que ele, aliás, e só ele, previa.
Na noite de 11 de Outubro Kutuzov ali estava, pois, com a cabeça entre as
mãos, absorto em seus pensamentos.
Um ruído se ouviu tio quarto contíguo: era Toll, Konovnitsine e Bolkovitinov
que chegavam.
— Quem está aí? Entre, entrem. Que há de novo? — interrogou ele.
Enquanto o criado acendia uma vela, Toll pô-lo ao corrente das notícias
acabadas de chegar.
— Quem as trouxe? — perguntou o generalíssimo com tinia expressão tão
severa e fria que Toll se sentiu impressionado quando lhe pode ver o rosto.
— Bolkovitivov, Excelência. Não pode haver dúvidas.
— Diga-lhe que entre, que entre!
Kutuzov, sentado na cairia com uma das pernas pendentes, deixava descair a
volumosa barriga sobre a outra perna encolhida. Piscando o único olho para
melhor ver o emissário, procurava ler-lhe no rosto o que absorvia.
— Conta, vamos, conta meu amigo. — disse ele a Bolkovitinov, na sua
tranquila voz de ancião, apertando contra o peito a camisa entreaberta. — Vem
cá, aproxima-te. Que notícias me, trazes tu? Hem! Napoleão abandonou Moscovo?
É verdade? Hem?
Bolkovitinov pôs-se primeiro a expor-lhe em pormenor as instruções orais que
recebera.
— Fala, fala depressa, não me atormentes — interrompeu— o Kutuzov.
O emissário, ao acabar a sua comunicação, calou-se, aguardando ordens. Toll
tentou dizer fosse o que fosse, mas o general-chefe interrompeu-o com um gesto.
Quis pronunciar qualquer coisa, mas o rosto contraiu-se-lhe de súbito; virou-se
para o outro lado, para o recanto da isbá onde estavam os ícones.
— Senhor, criador nosso! Ouviste a nossa oração... — exclamou em voz
trémula, juntando as mãos.— A Rússia está salva! Obrigado, meu Deus! — E
rompeu a chorar.
[XVIII]
A partir daquele momento e até ao fim da campanha, Kutuzov não teve outro
objectivo senão o de impedir pela autoridade, pela astúcia ou pela súplica que as
suas tropas se metessem em ofensivas ou executassem manobras que conduzissem
a recontros estéreis com o inimigo, cuja perda desde esse momento era certa. É
verdade que Dokturov se dirige para Maloiaroslavets, mas Kutuzov não se dá
pressa em fazer que todas as tropas o sigam e ordena a evacuação de Kaluga,
retirada que lhe parece perfeitamente possível.
Kutuzov recua por toda a parte, mas o inimigo, sem esperar que ele recue,
foge em direcção oposta.
Os historiadores de Napoleão descrevem todas estas hábeis manobras em
direcção a Tarutino e Maloiaroslavets e fazem prognósticos sobre o que teria
acontecido se o imperador tivesse podido penetrar nas ricas províncias do Sul.
Mas a verdade é que, além de ninguém o impedir de penetrar nessas
províncias, uma vez que o exército russo lhe abria o caminho para elas, esses
historiadores esquecem-se de que nada podia já então salvar o exército
napoleónico, visto ele transportar consigo inevitáveis germes de morte. Esse
exército, que encontrara em Moscovo abundantes abastecimentos, e que, em vez
de os conservar, os desperdiçara por completo, esse exército, que ao chegar a
Smolensk, em lugar de repartir os mantimentos entre os seus homens, deixara que
os pilhassem, estaria esse exército em condições de recuperar forças na província
de Kaluga, cujos habitantes sentiam e pensavam como os de Moscovo e tinham,
como eles, o fogo à sua disposição?
Tal exército irão tinha maneira de se refazer fosse onde, fosse. Depois de
Borodino e do saque de Moscovo, havia nele elementos de decomposição por
assim dizer químicos,
Os soldados deste, por assim dizer, ex-exército fugiam com os seus
comandantes sem saber para onde, não desejando — tanto Napoleão como
qualquer dos seus soldados — senão uma coisa: sair, pessoalmente, o mais breve
possível, daquela situação sem apelo, de que todos se davam conta, emboraconfusamente.
Eis porque, em Maloiaroslavets, onde os generais, simulando um conselho de
guerra, emitiram vários pareceres, o ultimo, o do cândido soldado que era
Mouton, exprimindo o que estava no pensamento de todos, que o que havia a
fazer era abalarem o mais depressa possível, tapou a boca a toda a gente e
ninguém, nem o próprio Napoleão, ousou objectar fosse o que fosse a essa
indiscutível verdade.
No entanto, por mais que reconhecessem que era preciso partir, tinham
vergonha ainda de confessar a necessidade da fuga. Era preciso um impulso
exterior para vencer essa relutância humana. E esse impulso veio a produzir-se no
momento necessário. Foi o que os Franceses chamaram o «hurra do imperador».
No dia seguinte, após este conselho de guerra, Napoleão, de madrugada, com
o pretexto de inspeccionar as tropas e o campo das batalhas passadas e futuras,
aventurou-se com a sua escolta até às primeiras linhas. Alguns cossacos que
andavam na pilhagem surpreenderam o imperador e por pouco não lhe deitaram a
mão. Se desta vez o não apanharam, salvou-o, precisamente, o que fora a causa da
derrota dos Franceses: o saque, que naquele caso, como antes, em Tarutino, levou
os cossacos a não pensarem noutra coisa. Sem repararem em Napoleão,
entregaram-se à pilhagem, e assim o imperador pode escapar-se-lhe das mãos.
Desde que os rapazes do Dom tinham a possibilidade de o apanhar no meio do
seu próprio exército, era evidente não haver outra coisa a fazer senão fugir o mais
depressa possível pela estrada mais curta. Napoleão, com os seus quarenta anos e
a sua barriguinha, já se não sentia com a elasticidade e a audácia de outrora, e
compreendeu a advertência. O medo que os cossacos lhe provocaram levou-o a
aceitar imediatamente o parecer de Mouton. E deu ordem de retirar, assim o
dizem os seus historiadores, pela estrada de Smolensk.
O facto de Bonaparte se ter mostrado de acordo com Moutou e a circunstância
de o seu exército ter batido em retirada não provam de maneira alguma que a
decisão haja partido dele, mas apenas que as forças ocultas, agindo sobre os seus
homens, e impelindo-os a tomar a estrada de Mojaisk, também agiam sobre
Napoleão.
[XIX]
Quando um homem se move, o seu movimento tem sempre uma finalidade.
Para percorrer mil verstas é preciso, necessariamente, que o homem se figure que
ao cabo dessas mil verstas há qualquer coisa de muito agradável à sua espera.
Para se resolver a marchar tem de apetecer a terra prometida.
A terra prometida, para os Franceses, no momento em que invadiam a Rússia
era Moscovo; na altura da retirada a terra prometida era a pátria. Mas a pátria
estava muito longe, e o homem com mil verstas a percorrer tem,
necessariamente, de principiar por se dizer a si próprio que fará hoje quarenta
verstas, ao cabo das quais poderá descansar, dormir e olvidar o termo da jornada.
O primeiro descanso fá-lo esquecer a meta a atingir e todos os seus desejos e
todas as suas esperanças aí se concentram. E o que se verifica com o indivíduo
isolado em mais alto grau se observa quando se trata da multidão.
Para os Franceses em retirada pela antiga estrada de Smolensk, a pátria
estava ainda muito longe e por isso o termo mais próximo a que aspiravam todas
as suas energias, mais ardentes ainda por se tratar de um exército inteiro, era
Smolensk. Não que eles soubessem existir nessa cidade grandes reservas de
mantimentos ou esperassem aí encontrar tropas francesas — ninguém lhes dissera
uma coisa dessas, e não só os oficiais superiores como o próprio Napoleão sabiam
perfeitamente serem escassos o mantimentos aí existentes. No entanto, essa
perspectiva dava-lhes coragem para caminhar e para suportar as privações bem
reais. E tanto os que sabiam como os que não sabiam, atraídos elo engodo, se
precipitaram em, direcção a Smolensk como se caminhassem para uma terra da
promissão.
Assim que atingiram a estrada real, os Franceses, com uma energia
extraordinária, uma rapidez incrível, deram-se pressa de alcançar o fim almejado.
Além das razões já apontadas, nova causa os compelia para diante em massa
compacta: o seu grande número. Esta enorme massa, graças à própria lei da
atracção, dos corpos, chamava a si os átomos individuais. Avançava num bloco de
cem mil homens como se fosse um Estado inteiro em marcha.
Cada um de per si apenas desejava uma coisa: cair prisioneiro. Era a maneira
de se livrar de todos aqueles horrores e de todo aquele sofrimento. Em primeiro
lugar, no entanto, a força que os compelia para Smolensk arrastava-os a todosnuma única e mesma direcção. E mais: não podia um corpo de exército inteiro
entregar-se a uma simples companhia e conquanto os soldados aproveitassem
todas as oportunidades para se separarem uns dos outros e se servissem do mais
pequeno pretexto para se entregarem, as ocasiões eram raras. A circunstância de
serem muitos e a rapidez da marcha que levavam tiravam-lhes a possibilidade de
o conseguirem e tornava-se difícil, e por assim dizer impossível para os Russos,
deter um movimento em que punham toda a sua energia. O desgarramento
interior deste corpo não podia acelerar além de uma certa medida o processo de
decomposição que o ameaçava.
É impossível derreter instantaneamente uma bola de neve. Tem de decorrer
um certo lapso de tempo antes que o calor o consiga, por maior que seja. Pelo
contrário, quanto maior é o calor mais a neve endurece.
Eis o que nenhum dos chefes russos compreendera, à excepção de Kutuzov.
Desde que se teve a certeza de qual a direcção que tomara o exército francês em
fuga pela estrada de Smolensk, principiou a realizar-se o que Konovnitsine previra
na noite de 11 de Outubro. Os altos postos não pensaram noutra coisa senão em
distinguir-se, cortando a retirada aos Franceses, cercando-os, fazendo-os
prisioneiros, aniquilando-os: todos, à compita, exigiam lima ofensiva.
Kutuzov era o único a empregar todas as suas forças — e as forças do
comandante-chefe são por vezes escassas em casos destes — para se opor aos
desígnios dos altos postos.
Não lhe era possível argumentar com eles como agora pode argumentar-se.
Para quê uma batalha? Para quê cortar-lhes as estradas, perder homens, chacinar
desumanamente tantos desgraçados? Para quê tudo isto, quando é certo que
entre Moscovo e Viazma a terça parte deste exército se derreteu sem uma única
batalha em forma? Na sua sageza de velho apenas lhes dizia o que lhes era
possível, a eles, compreenderem, falando-lhes na «ponte de ouro» (Kutuzov dissera
para o inglês que acompanhava as operações como representante dos Aliados que
preferia construir uma «ponte de ouro» par),; Franceses passarem que sacrificar os
seus homens. (N. dos T.). E eles zombavam do velho, caluniavam-no, mostrando a
sua bravura no lombo da fera morta.
Em Viazma, Ermolov, Miloradovitch. Platov, ao verem-se perto dos Franceses,
não puderam refrear os seus ímpetos e aniquilaram dois corpos de exército
inimigos. Para informarem Kutuzov da sua intenção enviaram ao Sereníssimo,dentro de um sobrescrito. à guisa de relatório, uma folha de papel em branco.
E, apesar dos esforços do general-chefe para os reter, os soldados russos
atacaram no intuito de tolher o passo aos Franceses. Segundo se disse, regimentos
de infantaria marcharam para a linha de fogo com bandas e tambores à frente,
perdendo e matando milhares de homens. Mas quanto a tolherem-lhes o passo,
não tolheram coisa alguma nem aniquilaram ninguém. E o exército francês, mais
coeso graças ao perigo, prosseguiu na sua caminhada fatal em direcção a
Smolensk, esgotando-se pouco a pouco.
TERCEIRA PARTE
[I] [II] [III] [IV] [V] [VI] [VII] [VIII] [IX] [X] [XI] [XII] [XIII] [XIV] [XV] [XVI]
[XVII] [XVIII] [XIX]
[I]
A batalha de Borodino, a ocupação de Moscovo, que se lhe seguiu, e a retirada
dos Franceses sem novos combates constituem acontecimentos históricos
instrutivos.
Todos os historiadores estão de acordo em afirmar que a actividade externa
dos povos e dos impérios se traduz nas suas colisões mútuas representadas pelas
guerras e que a força política dos países aumenta ou diminui na razão directa dos
êxitos militares maiores ou menores.
São sem dúvida estranhas as descrições dos historiadores em que se relata que
tal ou qual rei ou imperador, em conflito com tal ou qual outro rei ou imperador,
convocou o seu exército, se bateu contra o exército inimigo, saiu vitorioso, causou
a morte de três, cinco, dez mil homens, em virtude do que conquistou determinado
Estado e um povo inteiro composto de muitos milhões de habitantes. Que a
derrota de um exército, apenas a centésima parte das forças de um povo inteiro,
leve à submissão desse povo, eis o que não pode deixar de ser incompreensível. No
entanto, estes factos, na medida em que chegam ao nosso conhecimento,
confirmam a justeza do que se diz acerca das vitórias militares, causa essencial da
grandeza dos povos. Ganha um exército uma batalha e imediatamente os direitos
do vencedor prosperam em detrimento dos do vencido. É uma derrota que o
atinge, e logo o povo perde os seus direitos na proporção do desastre sofrido, e se
porventura o seu exército é esmagado não tem mais que submeter-se por
completo.
Assim tem sucedido, diz a História, desde os tempos mais recuados até aos
nossos dias. Todas as guerras de Napoleão confirmam afinal esta regra. A medida
que os exércitos austríacos são derrotados, a Áustria perde certos dos seus
direitos, enquanto os da França aumentam, crescendo o seu poderio
proporcionalmente. As vitórias de Iena e de Auerstedt representam o fim da,
independência da Prússia.No entanto, em 1812, os Franceses obtêm a vitória em Moscovo, ocupam a
cidade, e o certo é que, sem novas batalhas, não é a Rússia que deixa de existir,
mas, em primeiro lugar, esse imenso exército de seiscentos mil homens e depois a
própria França de Napoleão. Tentar pôr de acordo os factos com as leis históricas,
afirmar que o campo de batalha de Borodino ficou nas mãos dos Russos, que depois
de Moscovo se travaram combates que aniquilaram o exército napoleónico, eis o
que é impossível,
Após a vitória dos Franceses em Borodino, não tornou a haver mais nenhuma
batalha geral, nem sequer houve qualquer recontro importante, e, no entanto, o
exército francês foi destruído. Que significa isto? Se se tratasse de um
acontecimento da história da China, ainda poderíamos sustentar que se não
tratava de um fenómeno histórico, recurso habitual dos historiadores quando
alguma coisa não joga perfeitamente com as suas teorias. E ainda se se não
tratasse senão de um conflito bastante episódico, em que apenas tivesse tomado
parte número restrito de tropas, isso ainda nos habilitaria a, sustentar que
estávamos perante uma excepção. Mas o acontecimento deu-se quando os nossos
pais eram vivos e se debatia a questão de vida ou de morte da sua pátria, e essa
guerra foi a maior de todas as guerras conhecidas.
O período da campanha de 1812 que vai de Borodino à expulsão dos Franceses
não só demonstrou que uma batalha vitoriosa não é só por si razão suficiente da
conquista de um país, mas nem sequer disso é mesmo sintoma. Provou, pelo
contrário, que a força que decide do destino dos povos nem está nos
conquistadores, nem nos seus exércitos, nem mesmo nas batalhas que eles travam.
Está em qualquer outra coisa.
Os historiadores franceses, ao referirem-se à situação do exército napoleónico
antes da sua retirada de Moscovo, afirmam que a ordem reinava em todos os
corpos excepto na cavalaria, na artilharia e no trem hipomóvel, acrescentando
existir falta de forragens para os cavalos e para o gado, penúria irremediável, uma
vez que os camponeses dos arredores preferiam queimar a palha a, entregá-la aos
Franceses.
A vitória não trouxe consigo os resultados habituais, porque os camponeses, os
Karp e os Vlas, trataram de saquear Moscovo quando os Franceses abandonaram
a capital, não dando provas, em geral, de grande heroísmo, e porque muitos
outros preferiram queimar a palha a vendê-la ao invasor por elevado preço.Imaginemos dois homens dispostos a bater-se em duelo à espada de acordo
com todas as regras da esgrima. A peleja dura muito tempo. De súbito, um deles,
ao sentir-se ferido e ao compreender que se não trata de uma brincadeira, pois é a
sua própria vida que está em risco, joga fora, a espada e, deitando a mão ao
primeiro cacete que lhe aparece, põe-se a riscar com ele. Suponhamos porém que
esse duelista que com tanta oportunidade empregou o melhor meio e o mais
simples para conseguir os seus fins, animado pela tradição cavalheiresca, procura
ocultar a verdade e insiste em dizer que venceu o seu rival com todas as regras.
Poder-se-á fazer uma pequena ideia da confusão que resultaria se ele porventura
se pusesse a descrever o seu duelo?
O esgrimista que exige que o combate decorra de acordo com todas as regras
do duelo é o francês; o adversário que jogou fora a espada e sacou do cacete é o
russo:, as pessoas que procuram tudo explicar pelas regras da esgrima são os
historiadores que se ocuparam do acontecimento.
A partir do incêndio de Smolensk principiou uma guerra a que se não pode
aplicar qualquer das tradições guerreiras conhecidas até então. O incêndio das
cidades e das aldeias, a retirada após as batalhas, o golpe de Borodino e a nova
retirada, os acontecimentos de Moscovo, a caça aos merodistas, a captura dos
transportes., as guerras dos partidários, tudo isto estava à margem das regras
ordinárias e das tradições bélicas.
Napoleão deu por isso, e desde o momento em que se deteve em Moscovo na
atitude correcta imposta pela esgrima e se deu conta de que o adversário, em vez
de brandir uma espada, manejava um cacete, logo se pôs a queixar-se a Kutuzov e
a Alexandre, alegando que a guerra estava a ser conduzida de maneira contrária a
todas as regras, como se em verdade pudesse haver regras para matar criaturas
humanas. Mas, apesar das queixas dos Franceses e da vergonha que sentiam
certas altas personalidades russas por se verem obrigadas a bater-se com cacetes
quando desejavam seguir as regras, colocando-se em posição de em quarta, ou em
terceira, e atacando em primeira, etc., o certo é que o cacete da guerra civil
nacional se levantou com força majestosa e devastadora e sem querer saber dos
gostos de cada um o das respectivas regras, simples e brutal, mas confiante nos
seus golpes, caiu sobre os Franceses e zurziu-lhes as costas até os invasores
ficarem completamente aniquilados.
Ditoso o povo que, ao contrário dos Franceses em 1813, os quais saudaramsegundo os princípios da arte de esgrima, entregando a espada cortês,
graciosamente, ao magnânimo vencedor, ditoso do povo que, num momento de
provação, sem querer saber como se conduziriam os outros em caso semelhante,
ergue, fácil e simplesmente, o primeiro cacete que lhe vem às mãos e zurze com
ele o inimigo até que na alma lhe desponte, em vez da ofensa e da vergonha, o
sentimento do desprezo e da compaixão.
[II]
Uma das mais impressionantes e fecundas excepções às pretensas leis da
guerra é a acção de indivíduos isolados contra as massas compactas de tropas. Eis
um género de operações que vem a produzir-se sempre nas guerras de carácter
nacional. Em lugar de se oporem em massa, os homens dividem-se em pequenos
destacamentos, atacam isoladamente e fogem desde que enfrentados por grandes
forças, atacando outra vez logo que a oportunidade se oferece. Foi o que fizeram
os guerrilheiros em Espanha, assim agiram os montanheses no Cáucaso e os Russos
em 1812 não procederam de outra maneira.
A esta forma de combater deu-se o nome de «guerra de guerrilhas» e ao
designá-la dessa sorte pensou-se explicar a sua significação. Na verdade, pode
considerar-se à margem de todas as regras e até mesmo em oposição aos
princípios tácticos mais conhecidos e tidos por infalíveis. Segundo esses princípios,
aquele que ataca deve concentrar as suas tropas de maneira a que na altura do
combate se encontre mais forte que o adversário.
A guerra de guerrilhas, sempre bem sucedida, como a história o demonstra,
desmente categoricamente tal princípio.
A contradição deve-se ao facto de que a arte militar supõe que a força de um
exército está em relação com o número dos seus homens. Segundo ela, quanto
mais numeroso é um exército mais forte resulta.
Os batalhões pesados têm sempre razão.
Ao sustentar esta afirmação, a ciência militar parece-se com a teoria da
mecânica afirmando que as forças estão na relação directa das massas e que as
forças são iguais entre si consoante as massas são ou não iguais, também.A força como quantidade de movimento é o produto da massa pela velocidade.
Na guerra, a força das tropas é realmente o produto das massas, mas
multiplicado por uma incógnita x.
A ciência militar, ao encontrar na história numerosos exemplos em que a
massa dos soldados não coincide com a sua força real, pois pequenos
destacamentos vencem por vezes grandes concentrações de tropas, admite
confusamente a existência desse multiplicador desconhecido e procura descobri-lo,
quer na construção geométrica de um plano, quer na superioridade do
armamento, quer, mais geralmente, no génio dos chefes. Mas os resultados
obtidos por estes diversos multiplicadores estão longe de poderem explicar os
factos históricos.
Basta, porém, renunciar a atribuir importância, como em geral acontece, para
agrado dos heróis, às disposições tomadas pelo alto comando durante uma guerra,
para se descobrir, finalmente, essa famosa incógnita.
Este x é o moral das tropas, isto é, o desejo mais ou menos vivo de os homens
de que se compõe o exército se exporem ao perigo, independentemente da
questão de saberem se se batem sob as ordens de um génio ou não, em duas ou
três linhas, ou com cacetes ou espingardas capazes de disparar trinta tiros por
minuto. Os que tiverem o desejo mais vivo de se bater serão os que se encontram
nas condições mais favoráveis para a luta.
O moral das tropas, eis o multiplicador da massa cujo produto é a força.
Precisar e definir o valor do moral, esse multiplicador desconhecido, eis o que a
ciência da guerra tem de fazer.
A resolução deste problema apenas se tornará possível no dia em que
deixemos de substituir arbitrariamente a incógnita, pelas condições que manifesta
a força, quer dizer, as disposições tornadas, o armamento, etc., atribuindo-lhes o
valor do multiplicador e— reconhecendo essa incógnita, em toda a sua
integridade, como um maior ou menor desejo de bater-se e de expor-se ao perigo.
Só então, ao exprimir por equações os factos históricos, e tendo em conta o valor
relativo da incógnita, pode esperar-se encontrar esta última.
Dez homens, dez batalhões ou dez divisões, combatendo contra quinze homens,
quinze batalhões ou quinze divisões, vencem-nos, quer dizer, mataram e fizeram
prisioneiros todos os seus inimigos, perdendo os vencedores quatro unidades. Por
conseguinte, de um lado caíram quatro e do outro quinze. Logo, 4 é igual a 15, ouseja, 4x = 15y. Assim, pois, x:y = 15:4. Esta equação não dá o valor da incógnita,
mas a relação entre as duas incógnitas. Ao aplicar o sistema das equações aos
diferentes acontecimentos históricos considerados separadamente — batalhas,
campanhas, períodos de guerra — poder-se-á obter uma série de números em que
devem existir leis susceptíveis de se revelar.
A regra táctica que prescreve que se deve agir por massas no ataque e em
ordem dispersa na retirada confirma, involuntariamente, a verdade segundo a
qual o poderio de um exército depende do espírito que o anima. Para se levarem
os homens para a linha de fogo é preciso muito maior disciplina — e essa disciplina
apenas se consegue pelas massas em movimento — do que para escapar aos
assaltantes. Mas toda a regra que não tenha em conta a questão do moral das
tropas é infalivelmente falsa e está mesmo em absoluta oposição com os factos, ali
onde se manifestar uma violenta exaltação ou uma grande depressão no espírito
do exército, principalmente nas guerras civis de carácter nacional.
Os Franceses, durante a sua retirada de 1812, quando, segundo a táctica,
deveriam defender-se, isoladamente, concentram-se, pelo contrário, em massa,
pois o certo é que, o moral das tropas estava de tal modo quebrantado que a
massa era u única forma de manter a unidade. Os Russos, que, segundo a táctica,
deveriam atacar em massa, dispersam-se, pelo contrário, uma vez que o seu moral
era de tal ordem que os homens isolados não precisavam de ordem para combater
os Franceses nem de disciplina para se exporem ao perigo e à fadiga.
[III]
A guerra de guerrilha, principiou no dia em que os Franceses entraram em
Smolensk.
Muito antes de esta guerra vir a ser reconhecida oficialmente pelo Governo
russo, já muitos milhares de homens do exército inimigo — desertores, merodistas,
forrageadores — haviam sido exterminados pelos cossacos e pelos camponeses e
com tão poucos escrúpulos como se se tratasse de cães danados. Denis Davidov foi
o primeiro, com o seu faro patriótico, a reconhecer a importância desta terrível
guerra de cacete, sem quaisquer preocupações com as regras da arte militar,matava numerosos franceses, e a ele pertence a glória de, ter principiado por
regularizar esta nova maneira de combater.
No dia 24 de Agosto estava organizado o primeiro destacamento de
guerrilheiros, e a ele logo se seguiram muitos outros. Quanto mais se prolongava
a campanha maior era o número destes destacamentos.
Os guerrilheiros iam destruindo, por partes, o grande exército. Varriam as
folhas que caíam da árvore seca que era o exército francês e por vezes chegavam a
abanar-lhe o tronco. No mês de Outubro, enquanto os Franceses fugiam em
direcção a Smolensk, formavam-se centenas destes destacamentos com efectivos e
carácter diferentes. Tinham uns a aparência de tropas regulares, com infantaria,
artilharia, estado-maior e fartos abastecimentos: outros apenas eram constituídos
por cavalaria e cossacos; havia alguns, pouco importantes, formados por tropas
mistas de infantaria e de cavalaria; e outros, enfim, compostos de camponeses e
de proprietários rurais, completamente desconhecidos. Só um sacristão, à frente
de um grupo de guerrilheiros, conseguiu num mês fazer centenas de prisioneiros, e
a mulher de um estaroste, uma tal Vassilissa, dizimou um centenar de franceses.
Nos últimos dias de Outubro atingia a guerra de guerrilhas seu apogeu.
Passara o período inicial durante o qual os guerrilheiros se surpreendiam com a
sua própria audácia, receando a cada momento ver-se cercados pelos Franceses.
Quase não desmontavam dos seus cavalos e escondiam-se nas florestas, sempre a
espera de serem perseguidos. Agora as guerrilhas estavam organizadas, e todos
sabiam claramente o que podiam ou não fazer para atacar o inimigo. Só os
comandantes de destacamento, que no séquito do estado-maior, consoante as
ordens recebidas, se mantinham afastados dos Franceses, consideravam impossível
certos empreendimentos. Os comandantes dos pequenos grupos de guerrilheiros,
já bastante experimentados e que perseguiam o inimigo de perto, consideravam
realizáveis coisas em que os demais nem sequer teriam ousado pensar. Quanto aos
cossacos e aos camponeses que se infiltravam nas próprias linhas inimigas, esses
pensavam que doravante tudo era possível.
No dia 22 de Outubro. Denissov, que comandava um destacamento de
guerrilheiros, encontrava-se, tanto ele como os seus companheiros, em pleno
entusiasmo pela nova guerra. Desde madrugada que andava em campo com os
seus homens. Durante o dia inteiro tinham espiado, através das grandes florestas
que marginavam a estrada, um imenso comboio de material de cavalaria e deprisioneiros russos, o qual, separado do resto do exército, se dirigia para
Smolensk, fortemente escoltado, como tinham sabido por alguns espiões e por
prisioneiros evadidos. A passagem deste comboio havia sido assinalada não só a
Denissov e a Dolokov, o qual, comandante também de um pequeno grupo de
guerrilheiros, operava nas mesmas paragens, mas outrossim aos comandantes de
fortes destacamentos e aos respectivos estados-maiores.
Toda a gente estava, pois, avisada e, como dizia Denissov, todos aguçavam o
dente de antemão. Dois dos comandantes destes destacamentos, um polaco e
outro alemão, quase ao mesmo tempo, mandaram pedir a Denissov que se
juntasse a eles para atacarem juntos.
— Não, amigo, eu sei o que faço — disse Denissov, depois de ler as duas
missivas. E respondeu ao alemão que, apesar do sincero desejo que tinha de
obedecer às ordens de um general tão brilhante e tão ilustre, se via obrigado a
privar-se dessa honra, uma vez que se encontrava já sob as ordens do polaco. E
com a mesma pena escreveu ao general polaco informando-o de que se encontrava
já comprometido com o alemão.
Se tomou estas disposições foi porque tinha a intenção, sem informar disso o
alto comando, de atacar o comboio de acordo com Dolokov e de se apoderar dele
com os seus escassos recursos, No dia 22 de Outubro dirigia-se da povoação de
Milculino para a de Chamchevo. A esquerda da estrada, entre essas duas aldeias,
sucediam-se matas espessas, que por vezes vinham mesmo bordejar o caminho,
afastando-se dele, outras vezes, para cima de uma versta. Foi essa floresta que
Denissov bateu todo o dia, ora entrando por ela dentro até ao mais espesso da
mata, ora surgindo na sua orla, sem nunca perder de vista os movimentos dos
Franceses. De manhã, não muito longe de Mikulino, num dos pontos em que as
árvores chegavam à estrada, os seus cossacos haviam capturado dois carros
cobertos carregados de selas de cavalaria e arreios, os quais tinham caído num
atoleiro. Desde então e até à noite observara o inimigo sem o atacar. Era preciso
não dar o alarme para que os Franceses se aproximassem tranquilamente de
Chamchevo, e então, reunindo-se a Denissov, que à noitinha devia encontrar-se
em certo local da floresta, a uma versta da povoação, para com ele estabelecer
contacto, cairiam, dos dois lados ao mesmo tempo, inesperadamente, sobre o
comboio e de uma só vez apoderar-se-iam dele, destruindo-o.
Na retaguarda, a duas verstas de Mikulino, num ponto em que a floresta vinhaaté à estrada, tinham ficado seis cossacos emboscados para dar o alarme assim
que aparecessem novas colunas francesas.
Para lá de Chamchevo, Dolokov devia igualmente explorar a estrada na
intenção de saber a que distância poderiam encontrar-se outras tropas inimigas.
Calculavam-se em mil e quinhentos os homens que serviam de escolta ao comboio.
Denissov dispunha de duzentos homens: Dolokov pouco mais teria. Mas a
superioridade numérica do inimigo não detinha Denissov. A única coisa que queria
saber é que tropas eram essas; e com esse objectivo precisava de «prendre
langue» (Expressão em francês no texto original. (N. dos T.), isto é, capturar um
prisioneiro. O ataque matutino às carroças cobertas fora tão inesperado que os
franceses da escolta tinham sido todos mortos e apenas haviam aprisionado vivo
um pequeno tambor, o qual, porque seguia na retaguarda, nada pôde dizer de
preciso acerca da composição da coluna.
Tentar um segundo ataque afigurava-se perigoso a Denissov, pois não
convinha alertar a coluna inteira. Eis porque enviou a Chamchevo um camponês
chamado Tikon Chtcherbatov, um dos ,seus partidários, com a missão de capturar
pelo menos um dos furriéis franceses da vanguarda que se deviam encontrar ali.
[IV]
Era um dia de Outono chuvoso e temperado. O céu e o horizonte estavam
envoltos na mesma aguada turva. Ora tombava uma espécie de neblina ora, de
repente, se punham a cair obliquamente grossas gotas de água.
Denissov, envolto numa burka (Capote sem mangas. (N. dos T.) e de gorro de
peles na cabeça, ensopado até aos ossos, montava um cavalo de raça, magro e de
flancos escorridos. Tanto ele como a montada, que abanava a cabeça e arrebitava
as orelhas, se encolhiam e olhavam desassossegados sob a chuva que os fustigava.
O rosto de Denissov, esquálido e picado por uma espessa e curta barba preta,
parecia desconfiado e pouco contente.
A seu lado cavalgava o ajudante, um capitão de cossacos, fardado da mesma
maneira, montando um corcel do Dom muito bem tratado.
O terceiro companheiro era o capitão de cossacos Lovaiski, que vestia idênticofardamento. Tratava-se de um homem comprido e chato como uma prancha, louro,
de tez branca, com uns olhitos claros e um ar de calma segurança que lhe
transparecia não só no rosto como em todo o corpo. Embora não fosse fácil dizer
em que consistia a particularidade daquele cavaleiro e do seu cavalo, bastava
relancear-lhe um olhar para se ver que, se Denissov, encharcado e de má
catadura, dava a impressão de alguém que monta a cavalo um pouco por acaso, o
capitão de cossacos, esse, pelo contrário, parecia à sua vontade, tranquilo como
sempre, e que ele e o seu cavalo dir-se-iam uma só peça. A frente cavalgava o
guia, um camponês, molhado até aos ossos, de cafetã cinzento sujo e gorro branco.
A retaguarda, a certa distancia, montado num cavalo quirguiz magro e
franzino, de grandes crinas e cauda farta, a boca ensanguentada pelo freio,
trotava um jovem oficial com o capote azul dos Franceses.
A seu lado cavalgava um hússar que levava na garupa um garoto fardado à
francesa, todo esfarrapado e de quépi azul na cabeça, Fincado com as mãos
vermelhas de frio às costas do hússar, para as aquecer batia com as pernas nuas
contra os flancos do cavalo enquanto relanceava olhares assustados à sua roda.
Era o tamborzito capturado pela manhã.
Atrás deles, alinhados a três e quatro de fundo, trotavam os hússares pela
estreita vereda coberta de folhas da floresta, depois vinham os cossacos, uns
envoltos em burkas, outros envergando capotes franceses e outros ainda com as
gualdrapas dos cavalos pela cabeça. Os ginetes, quer os baios quer os alazões,
pareciam pretos tanta a chuva que os ensopava. As crinas encharcadas colavam-
se-lhes às cabeças singularmente delgadas, Um vapor espesso irradiava-lhes do
corpo. Fardas, selas, arreios, tudo estava ensopado, viscoso, lustroso, como, aliás,
a terra e as folhas mortas que recobriam o caminho. Os homens, direitos nas selas,
mantinham-se imóveis para que a água que lhes escorria pelo corpo pudesse
aquecer e para que os não trespassasse a que continuava a cair-lhes em cima. No
meio dos cossacos rodavam duas carroças cobertas, tiradas por cavalos franceses,
selados à cossaca, que faziam estalar os ramos secos e esparrinhar a água das
poças.
Ao contornar um lodaçal do caminho, o cavalo de Denissov ladeou e o
cavaleiro bateu com um joelho numa árvore. «Diabos te levem!», gritou ele,
furioso. E, rangendo os dentes, fustigou o cavalo com duas ou três chicotadas que o
esparrinharam de lama a ele e aos companheiros. Não estava de boa catadura.Sentia-se ensopado e faminto, pois desde manhã que nada comia. E depois
Dolokov ainda não dera sinal de vida o soldado que fora «prendre tangue» nunca
mais aparecera.
«Não se arranja outra oportunidade como esta para assaltarmos um comboio.
Atacar sozinho seria muito arriscado e adiar a expedição é o mesmo que dizer que
outro destacamento de mais peso nos levará a presa», dizia ele com os seus
botões, sempre de olhos fitos no horizonte, na esperança de descobrir o
mensageiro esperado que Dolokov lhe enviaria. Ao chegarem a uma clareira, que
deixava a descoberto o horizonte à direita, Denissov estacou.
— Vem lá gente — disse.
O capitão olhou para onde Denissov apontava.
— São dois, um oficial e um cossaco. Mas o tenente-coronel que não. —
observou o capitão de cossacos, que gostava de empregar palavras pouco usadas
entre os seus homens.
Os referidos cavaleiros, que desciam uma encosta, deixaram de ver-se, para
voltarem a aparecer alguns minutos depois. A frente, e chicoteando o cavalo para
o manter a galope, vinha um oficial esguedelhado, molhado até aos ossos, com as
calças arregaçadas até aos joelhos. Atrás dele, de pé nos estribos, trotava um
cossaco. O oficial, rapazola muito novo, gordalhudo e rubicundo, os olhos muito
vivos, alegríssimos, aproximou-se de Denissov e entregou-lhe um sobrescrito todo
molhado.
— Da parte do general — disse ele — Desculpe se vem um pouco molhado...
Denissov, franzindo as sobrancelhas, pegou no sobrescrito e abriu-o.
— Só me diziam que era perigoso, muito perigoso — ia dizendo o oficial,
voltado para o capitão de cossacos, enquanto Denissov lia a mensagem. — Por isso
o Komarov e eu tratámos de tomar as nossas precauções — acrescentou,
apontando o cossaco que o acompanhava. — Cada um traz duas pisto... O que é?
— perguntou ao ver o tamborzito. — Um prisioneiro? Já se bateram? Posso falar
com ele?
— Hem? Rostov? Pétia! — exclamou subitamente Denissov, que tinha acabado
de ler a missiva — Porque não disseste que eras tu? — E Denissov, voltando-se
para o oficial, estendeu-lhe mão, muito sorridente: era Pétia Rostov.
Todo o caminho Pétia estudara a atitude que devia tomar diante de Denissov,
a atitude que convinha a um homem feito, a um oficial, sem fazer a mais pequenaalusão ao seu antigo conhecimento. Mas assim que Denissov se sorriu para ele, a
cara de Pétia iluminou-se, corou de satisfação e esqueceu-se por completo do ai,
marcial que estudara para a oportunidade. Pôs-se a contar-lhe como passara
diante dos Franceses e a satisfação que sentia por cumprir a missão que lhe fora
confiada e como já estivera sob o fogo do inimigo em Viazma, onde por sinal se
distinguira o hússar que era ele próprio.
— Pois é verdade, estou contentíssimo por te ver — interrompeu Denissov, em
cujo rosto reaparecera a expressão preocupada.
— Mikail Feoklitich — exclamou, virando-se para o capitão de cossacos. — Cá
temos outra vez o alemão. Este está adido a ele.
E explicou que o papel que acabavam de lhe entregar encerrava um novo
pedido do general alemão para que Denissov se lhe juntasse no intuito de
atacarem o comboio.
— Se não nos apoderamos dele amanhã, deitam-lhe a mão mesmo nas nossas
barbas — concluiu.
Enquanto Denissov falava com o capitão, Pétia, desorientado pelo tom frio do
oficial e persuadido de que a causa disso eram as suas calças arregaçadas, tratou
de as puxar para baixo dissimuladamente, procurando assumir uma atitude o mais
marcial que podia.
— Que ordens tem Vossa Excelência a dar-me? — inquiriu de Denissov,
levando a mão à pala da barretina e retomando a postura de um ajudante-de-
campo na presença do seu general, a tal atitude que ele estudara de antemão. —
Ou deverei continuar aqui ao pé de Vossa Excelência?
— Ordens?... — repetiu Denissov pensativo. — Podes ficar aqui até amanhã?
— Oh! Com todo o gosto... Posso ficar ao pé de si? — inquiriu Pétia.
— Que ordens te deu o general, no fim de contas? Que voltasses
imediatamente? — perguntou Denissov.
Pétia corou.
— Nada me disse. Então? Posso ficar? — interrogou ele. — Bom, fica.
E, voltando-se para os subordinados, Denissov deu-lhes instruções para a força
se dirigir ao ponto designado na floresta e ai fazer alto. Em seguida mandou o
oficial que montava o cavalo quirguiz, desempenhando junto dele funções de
ajudante-de-campo, saber onde se encontrava Dolokov e se chegaria pela noite.
Entretanto, ele próprio, na companhia do capitão de cossacos e de Pétia, pensavadirigir-se para a orla da floresta, nas imediações de Chamchevo, no intuito de
observar a posição dos Franceses, que atacaria no dia segui-te.
— Vamos, barbaças — ordenou ele para o camponês que desempenhava as
funções de guia. — Leva-nos a Chamchevo. Denissov, Pétia e o capitão, seguidos de
alguns cossacos e do hússar encarregado do prisioneiro, tomaram o caminho à
esquerda, através de uma ravina, na intenção de alcançarem a orla da floresta.
[V]
A chuva cessara, caía apenas uma cacimba e os ramos das árvores gotejavam.
Denissov, o capitão e Pétia seguiam silenciosos o camponês, de gorro na cabeça e
laptis nos pés, que caminhava ligeiro e sem ruído por cima das raízes e das folhas
molhadas, encaminhando-se para a orla da floresta.
Ao chegar a um talude, o guia parou e, depois de inspeccionar o sítio, dirigiu-se
para um renque de árvores bastante afastadas umas das outras. Quando chegou
junto de um carvalho, ainda coberto de folhagem, pôs-se a chamar com um
misterioso aceno de mão.
Denissov e Pétia aproximaram-se. Dali podiam ver-se os Franceses. Logo
adiante da floresta havia um campo de trigo sobre uma colina. Ã direita, para
além de uma abrupta ravina, descobria-se um povoado e uma casa senhorial com o
telhado desmantelado. Na povoação, na casa, ao longo da colina, no jardim, junto
do poço e ao pé do tanque, em todo o percurso da estrada que da ponte subia
para a aldeia, numa distância de mais de duzentas sagenas, entreviam-se grupos
de homens através da neblina flutuante. Ouviam-se distintamente os gritos, que
soltavam em língua estrangeira, incitando os animais a transpor a rampa e
chamando uns pelos outros,
— Traz o prisioneiro — disse Denissov, em voz baixa, sem perder de vista os
Franceses.
O cossaco apeou-se, ajudou o garoto a desmontar e conduziu-o junto de
Denissov. Este apontou-lhe os Franceses e perguntou-lhe que tropas eram aquelas.
O prisioneiro, que enfiara as mãos transidas de frio nas algibeiras, ergueu os olhos
assustados para o oficial e, embora fosse seu desejo dizer o que sabia, de tal modose lhe entaramelou a língua que apenas se limitou a responder afirmativamente
às perguntas que lhe faziam. Denissov franziu as sobrancelhas, voltou-lhe as costas
e disse para o capitão de cossacos quais as suas intenções.
Pétia, azafamado e curioso, ora fitava o tamborzito, ora Denissov, ora o
capitão de cossacos, ora ainda os Franceses lá adiante, na aldeia, e na estrada
além, para nada perder do espectáculo.
— Quer o Dolokov venha ou não, temos de cair em cima deles, não acham? —
exclamou Denissov esfregando as mãos e os olhos a brilhar de satisfação.
— Sim, o sítio é bom — confirmou o capitão de cossacos.
— Destacaremos a infantaria pela parte de baixo, pelo lado dos pântanos —
prosseguiu Denissov. — Infiltrar-se-á até ao jardim. Tu e os cossacos saltam por ali
— continuou, apontando para a mata por detrás da povoação — e eu, com os
meus hússares, por aqui. E ao primeiro tiro de espingarda...
— Não se pode atravessar o barranco, há ali um lodaçal. Os cavalos são
capazes de se atolar. É preciso ir um pouco mais pela esquerda.
Quando assim conversavam em voz baixa, no barranco, para lados do tanque,
soou um tiro, viu-se um fumozinho branco, e logo outro tiro, seguido de grande
algazarra, jovial, ao que parecia, de todos os franceses que estavam na ladeira. No
primeiro momento, Denissov e o capitão de cossacos recuaram. Tão perto estavam
do inimigo que supuseram serem eles a causa dos tiros e os gritos. Mas não, No
terreno pantanoso, em baixo, patinhava um homem vestido de encarnado. Eis,
evidentemente, a causa dos tiros e do clamor.
— Mas e o nosso Tikon — exclamou o capitão.
— Realmente. é ele!
— Patife! — vociferou Denissov.
— Escapará? — murmurou o capitão, piscando os olhos.
O homem, a quem chamaram Tikon correu para o rio, e chafurdando, com a
água a saltar de todos os lados, desapareceu por momentos, para logo em
seguida, coberto de lodo negro, emergir da água, de gatas, afastando-se a correr.
Os Franceses, depois de o perseguirem algum tempo, acabaram por desistir
— Não é peco! — comentou o capitão.
— Que grande animal! — voltou Denissov, enfadado com o que via. — Que
terá estado ele a fazer ate agora?
— Quem é? — inquiriu, Pétia.— É o nosso espião. Tinha-o mandado saber coisas.
— Ah!, sim! — acrescentou Pétia, aprovando com um aceno de, cabeça,
embora não tivesse percebido patavina do que Denissov dissera.
Tikon Chtcherbatii, dos homens mais úteis do grupo, era um camponês de
Pokrovskoie, dos sítios de Gjat. Quando no princípio da sua actividade de
guerrilheiro. Denissov apareceu naquela terreola, e, consoante o seu costume,
falou com o estaroste sobre o que havia acerca dos Franceses, este respondeu-lhe,
como aliás todos os seus parceiros, cheio de prudência, dizendo que para falar a
verdade não sabia coisa alguma. Mas como Denissov lhe explicasse que pensava
atacar os Franceses e lhe perguntasse se não havia, inimigos por aqueles sítios, o
funcionário acabou por dizer que vira, realmente, alguns salteadores, mas que em
todo o povoado só uma pessoa sabia do assunto, um tal Tikon Chtcherbatii. O
oficial mandou chamar Tikon, felicitou-o, e, na presença do estaroste, disse-lhe
qualquer coisa a respeito da fidelidade ao czar e à pátria e do ódio que todos os
seus filhos deviam alimentar pelos Franceses.
— Não fizemos mal algum aos Franceses — disse Tikon, um pouco embaraçado
com os elogios de Denissov. — É como quem diz, apenas rios divertimos com eles.
Matámos aí duas dúzias de salteadores, mas não lhes fizemos mal algum...
No dia seguinte, quando Denissov, que já esquecera o tal camponês, deixava a
aldeia, vieram dizer-lhe que Tikon se juntara ao grupo dos guerrilheiros e pedia
licença para se alistar. Denissov consentiu.
Ao princípio Tikon foi encarregado dos serviços mais pesados, de acender o
lume, de ir buscar água, de esfolar os cavalos, mas não tardou a mostrar ser
excelentemente dotado para aquele género de guerra. A noite despedia para os
assaltos e voltava sempre com roupas e armas que pilhara aos Franceses e quando
para tal recebia ordens regressava, mesmo, com os seus prisioneiros. Denissov
dispensou-o, pois, dos trabalhos pesados, passou a, levá-lo consigo nas suas
expedições e colocou-o entre os cossacos.
Tikon não gostava por aí além de montar a cavalo. Preferia caminhar a pé,
sem nunca se distanciar muito dos cavaleiros. Andava armado com um mosquete,
que trazia consigo mais por graça que por outra coisa, com um chuço e com um
machado, de Que se servia como o lobo se serve dos dentes, tão capaz de com ele
matar pulgas como de quebrar os ossos mais duros. Tão habilmente rachava aomeio, de um só golpe, uma prancha de madeira como aparava finas réguas ou
talhava uma colher pegando no machado pela cabeça. Desempenhava no grupo
um cargo particular, excepcional. Sempre que havia qualquer coisa a fazer
perigosa ou especialmente difícil, como desatolar um carro. â força de músculos, ou
arrancar de um atoleiro, puxando-lhe pela cauda, o cavalo que se atolou ou ainda
arrancar-lhe a pele ou infiltrar-se pelo meio dos Franceses, ou percorrer numa só
jornada cinquenta verstas, chocarreando, toda a gente apontava Tikon.
— Que diabo, faz isso com uma, perna às costas, ninguém pode com a vida
dele! — diziam.
Certo dia um francês a quem Tikon acabava de deitar a mão alvejou-o à
queima-roupa, atingindo-o nas espáduas. E este ferimento, que Tikon tratou a sua
maneira, com copinhos de aguardente por dentro e por fora, converteu-se em
pretexto de intermináveis gracejos por todo o destacamento, gracejos a que ele,
aliás, se prestava de bom grado.
— Que contas tu de novo, irmão? Chegaram para ti, hem? — diziam, rindo, os
cossacos.
Tikon, de cariz macambúzio e mal humorado, ia cobrindo os Franceses de
divertidos impropérios. O resultado desta aventura foi passar a não trazer tão
frequentemente como até ai prisioneiros franceses.
Era o mais útil e o mais valente de todos os homens do grupo. Ninguém sabia
tão bem como ele preparar uma emboscada, nem ninguém matara ou capturara
tantos franceses. E assim se converteu no bobo favorito de todos os hússares e
cossacos, aceitando de boa mente a promoção. Nessa mesma noite, efectivamente,
tinham-no enviado a Chamchevo colher informações. Mas ou fosse porque se não
contentara em abordar só um francês, ou porque dormira toda a noite, escondido
atrás de uns arbustos, ei-lo que, mal desponta o dia, tenta introduzir-se no meio
do inimigo. E foi assim que viera a ser descoberto, como Denissov pudera ver do
alto do seu observatório.
[VI]
Depois de trocar ainda algumas impressões com o capitão de cossacos acercado projectado ataque do dia seguinte, por que definitivamente se decidira, em
virtude da proximidade dos Franceses. Denissov virou de rédea, voltando ao ponto
de partida.
— Bom, amigo, agora vamos tratar de nos enxugarmos — disse para Pétia.
Quando chegaram à casa do guarda na floresta, parou, inspeccionando os
arredores. E viu, então, avançando do matagal, um homem de longas pernas e
grandes braços balouçantes. De cafetã curto, laptis nos pés e um gorro de Kazan
na cabeça, trazia uma espingarda em bandoleira e um machado à cinta. Ao ver
Denissov tratou de arremessar qualquer coisa para uma moita e, tirando o gorro
encharcado, de abas caídas, aproximou-se do chefe. Era Tikon. As suas faces
picadas das bexigas e sulcadas de rugas, os olhitos pespontados, resplandeciam de
satisfação. Erguendo muito a cabeça e como se fizesse o possível para não rir,
parou diante de Denissov.
— Onde te meteste, homem? — perguntou-lhe este.
— Eu? Andei à caça aos Franceses — deu-se pressa em dizer Tikon
resolutamente na sua rouca voz de baixo, mas cantante.
— Que estavas tu ali a fazer em pleno dia, animal? Então, apanhaste algum?...
— Apanhar, apanhei — respondeu ele.
— E onde está?
— Sim, apanhei um logo de princípio; ainda não nascera o dia — prosseguiu
Tikon, afastando os pés chatos enfiados nos laptis — e levei-o comigo para a
floresta. Mas só então vi que para nada prestava. E disse com os meus botões:
«Volto lá e apanho outro que me sirva melhor.»
— Ah, patife! Foi por isso — exclamou Denissov para o capitão de cossacos. —
E porque o não trouxeste, então?
— Para que o queria eu? — interrompeu Tikon de má catadura. — Para nada
prestava. Como se eu não soubesse do que o meu oficial precisa?
— Sempre me saíste um animal! E então?...
— Fui arranjar outro — prosseguiu Tikon. — Arrastei-me até à floresta e
deitei-me no chão. — E ei-lo que se atira ao chão de barriga para baixo a explicar o
que fizera. — E lá vem um. Salto-lhe em cima deste jeito. — E dizendo o que, dá
um pulo cheio de agilidade. — «Vamos», virei-me para ele. «toca daí para o meu
coronel.» Então o homem não se me põe a gritar? E aí me caem em cima mais
quatro, de baionetas desembainhadas. Mas eu saco do machado e aí vai disto.«Vamos, desamparem-me a loja!», ameacei-os. — E Tikon pôs-se a repetir com o
braço o gesto que fizera, assumindo uma expressão terrível e arqueando o peito.
— Sim, sim, nós bem vimos do nosso esconderijo como davas às de vila-diogo
pelo pântano dentro — disse o capitão, cujos olhos cintilavam.
Pétia a custo reprimia o riso, fazendo-o apenas porque os outros se
conservavam muito sérios. E ia fitando Denissov, depois o capitão e Tikon, sem
poder compreender o que tudo aquilo significava.
— Bom, deixa-te de tolices — disse Denissov, que parecia furioso. — Porque
não trouxeste tu o primeiro?
Tikon, coçando as costas com uma das mãos e a cabeça com a outra, pôs-se de
súbito a rir, um franco riso animal, que lhe descobria a cova de um dente, origem
da alcunha por que era conhecido: Chtcherbatii. Denissov sorriu e Pétia
prorrompeu numa alegre gargalhada, que Tikon acompanhou.
— É o que lhe digo, para nada prestava — continuou ele. — Estava muito mal
vestido; para que teria servido trazê-lo? E que insolente, Excelência. «Eu, um filho
de um amaral» (Palavra francesa deformada pelo povo russo. Queria dizer
«general». (N. dos T.), dizia ele, «Não vou!»
— Animal! — voltou Denissov. — Era interrogá-lo...
— Mas eu interroguei-o — continuou Tikon. — E ele disse-me: «Não sei coisas
por aí além. Sim, os nossos são muitos, mas não valem nada. Basta dar-lhes um
grito e eles caem-vos todos no papo.» — E Tikon, enquanto falava, ia fixando o
chefe com, o seu olhar alegre e decidido.
— Bom, estou a ver que tenho de aplicar-te o correctivo se continuas a fazer-te
parvo — disse Denissov severamente.
— — Para que se há-de zangar? — voltou Tikon. — Julga que eu não sei o que
são os seus Franceses? Deixe só que escureça um pouco, e eu lhe trarei quantos
quiser, três de uma só vez, se for preciso.
— Vamos, a caminho — exclamou Denissov, e até chegarem ao posto
conservou-se calado e com cara de poucos amigos. Tikon ia atrás e Pétia ouvia os
cossacos que riam com ele e o troçavam por causa das botas que ele escondera
numa moita. Quando se lhe foi o riso que lhe provocaram as palavras de Tikon,
Pétia percebeu que este matara o francês e um sentimento de desgosto o pungiu.
E depois, pousando os olhos no pobre tambor, o coração apertou-se-lhe, Mas foiobra de um momento, Percebeu que devia conservar a cabeça direita, mostrar-se
mais marcial, e com um olhar cheio de embófia interrogou o capitão de cossacos
sobre o empreendimento do dia seguinte, para que o não julgassem indigno da
companhia em que estava.
O oficial que Denissov expedira veio ao seu encontro, no meio do caminho, com
a notícia de que Dolokov ia chegar de um momento para o outro e que da sua
parte tudo caminhava bem.
De súbito Denissov recuperou a, sua boa disposição e, chamando Pétia, pôs-se
a conversar com ele:
— Vamos, conta-me o que tens feito.
[VII]
Pétia, ao sair de Moscovo e depois de se ter separado dos pais, juntara-se ao
seu regimento, sendo daí a pouco colocado como oficial de ordenança de um
general que comandava um importante destacamento. Desde que fora promovido
a oficial, e sobretudo desde que ingressara no exército activo, tomando parte na
batalha de Viazma, estava sempre num estado de espírito alegre e excitado, pois
se sentia um homem e não queria perder a ocasião de se comportar como herói.
Tudo quanto vira e experimentara no exército o encantava, embora tivesse a
impressão de que onde ele não estava é que se praticavam os mais belos actos de
bravura. Assim vivia no desejo de estar onde não estava.
No dia 21 de Outubro, quando o general falou em designar alguém para
delegado junto do destacamento de Denissov, tais foram os pedidos que ele lhe fez
que este lhe não pôde recusar autorização de partir. Lembrando-se, porém, da
loucura que Pétia cometera em Viazma, pois, em vez de seguir por onde o tinham
mandado, se pusera a galopar para as linhas inimigas debaixo do fogo dos
Franceses, disparando a pistola, proibiu-o, formal— mente, de tomar parte fosse
em que operação fosse sob o comando de Denissov. Eis porque Pétia corara e se
sentira embaraçado quando Denissov lhe perguntou se podia ficar junto dele.
Antes de chegar à orla da floresta, dissera de si para consigo que ia voltar
imediatamente, mas assim que viu os Franceses e Tikon e que soube que nessamesma noite, naturalmente, haveria um ataque, graças a mobilidade de ideias a
que os jovens são sujeitos, resolveu que o seu general, a quem até ai respeitara,
não valia grande coisa, pois era alemão, e que Denissov, esse, era um herói e que
o capitão de cossacos também e que Tikon ia pelo mesmo caminho, e que seria
uma vergonha abandoná-los naquela difícil emergência.
Já era noite quando os três chegaram à casa do guarda. Na semi-obscuridade
lobrigavam-se cavalos selados, cossacos, hússares, que armavam tendas na
clareira ou acendiam fogueiras no fundo de um barranco para que os Franceses
não vissem fumo. No vestíbulo da pequena isbá, um cossaco, de mangas
arregaçadas, trinchava um cordeiro e, na sala viam-se três oficiais do
destacamento de Denissov que preparavam uma mesa servindo-se de uma porta.
Para se enxugar, Pétia despiu o uniforme molhado e pôs-se imediatamente a
ajudar os oficiais a dispor a mesa para a ceia. Passados dez minutos, estava pronta
a mesa com a sua toalha e os seus guardanapos. Havia vodka, um frasquito de
rum, pão branco, sal e cordeiro assado.
Abancado à mesa na companhia dos oficiais, Pétia partia à mão o cordeiro
suculento e oloroso, cuja gordura lhe escorria pelos dedos, expandindo-se numa
ternura infantil por toda a gente, certo de que todos sentiam o mesmo por ele.
— Que acha, Vassili Fedorovitch? — perguntou a Denissov. — Acha que não
faz mal que eu aqui fique até amanhã? — E, sem esperar resposta, ele próprio
respondeu: — Sim, deram-me ordens para me informar, e é o que estou a fazer...
Mas só lhes peço uma coisa, que me deixem ir ao ponto principal... Não preciso de
recompensas... Mas gostaria...
De dentes cerrados, lançou um olhar cheio de altivez à sua roda, erguendo a
cabeça e fazendo um gesto ameaçador.
— Sim, onde a batalha for mais acesa — confirmou Denissov, sorrindo.
— Sim, por favor, dêem-me um comando qualquer, por mais insignificante que
seja, que eu comande, pelo menos. Sim, que lhes custa? Ah! Quer a minha
navalha? — continuou, dirigindo-se a um dos oficiais que se preparava para
trinchar a carne. E puxou da navalha. O oficial achou-a muito bonita.
— Fique com ela, faça favor. Tenho muitas iguais... — disse Pétia corando. —
Ah! Santos Padres! Tinha-me esquecido completamente — exclamou, de súbito. —
Tenho ali umas passas magníficas, sem grainhas, sabe. Temos um cantineiro novo.
Que coisas óptimas ele tem! Comprei-lhe dez libras de passas. Estou habituado asguloseimas. Querem?... — E precipitou-se para o vestíbulo, à procura do seu
cossaco, voltando daí a pouco com uma alcofa com umas cinco libras de passas. —
Toca a comer, meus senhores, fazem favor de se servir. Não precisarão de uma
cafeteira? — continuou, dirigindo-se ao capitão de cossacos — Comprei uma de
primeira ordem ao meu cantineiro! Tem coisas tão bonitas! E é um homem sério. E
isso é o mais importante. Vou mandar-vo-lo. Talvez as vossas pederneiras estejam
gastas, isso acontece. Tenho algumas comigo. Ali, naquele saco, umas cem.
Comprei-as baratíssimas. Façam favor, tirem as que quiserem, todas, se for
preciso...
De súbito calou-se, muito enleado, corando, como se se perguntasse se não
estaria dizendo muita tolice.
E relembrou tudo o que se passara horas atrás, procurando inteirar-se se não
teria cometido outras tolices, A figura do tamborzito veio-lhe à memória. «Nós,
aqui, que bem que estamos, mas ele, que será feito dele? Onde o teriam metido?
Ter-lhe-iam dado de comer? Não lhe teriam feito mal?» Ao lembrar-se, porém, de
que mentira a propósito das pederneiras, nada ousou perguntar a respeito dele.
«Se eu lhes perguntasse, seriam capazes de dizer que era um garoto a
perguntar por outro garoto!», disse com os seus botões. «Mas amanhã eu lhes
direi se sou um garoto! Que vergonha haveria em perguntar por ele? Ora, tanto
faz!» E, de súbito, corando muito e olhando bem para os oficiais, como para ver se
eles não troçariam dele, acrescentou:
— Dão-me licença que eu mande chamar o rapazito prisioneiro? Não lhe
poderíamos dar qualquer coisa a comer?...
Claro, pobre pequeno — contraveio Denissov, que nada tinha a censurar à
ideia do moço oficial. — Chama-o. Chama-se Vincent Bosse. Chama-o.
— Vou buscá-lo — disse Pétia.
— Muito bem, muito bem, vai, anda. Coitado do pequeno! — repetiu Denissov.
Pétia já ia a caminho da porta, porém voltou para trás, aproximou-se de novo
dos oficiais e chegou-se a Denissov.
— Consinta que o beije, meu amigo — exclamou. — Ah! Assim, sim, como é
bonito da sua parte!
E, depois de o beijar, saiu correndo.
— Bosse! Vincent! — gritou no limiar da porta.
— Quem chama, meu oficial? — respondeu uma voz na obscuridade.Pétia explicou que chamava o rapazito que fora feito prisioneiro nesse dia.
— Ah! Vessionii! — exclamou o cossaco.
Os cossacos de Vincent já o tinham feito nada menos que Vessionii enquanto os
camponeses e os soldados lhe chamavam Vissénia. Em qualquer dos casos, a alusão
à «Primavera» assentava como uma luva, na juventude do tamborzito (Vesna quer
dizer «a Primavera», vessionú «primaveril». (N. dos T)
.— Está a aquecer-se lá em baixo no acampamento. Eh! Vissénia! Vissénia!
Vessionii! — gritavam vozes na obscuridade à mistura com a sua gargalhada. —
Ah!, o garoto é manhoso! — exclamou um cossaco ao lado de Pétia. — Ainda
agora lhe deram de comer, Aquilo é que era uma fome!
Ouviram-se passos nas trevas, pés descalços que chapinhavam na lama e o
tambor apareceu à porta da isbá.
— Ah!, sois vós! — disse-lhe Pétia. — Quer comer? Não tenha medo, ninguém
lhe faz mal. — E, timidamente, carinhosamente, pousou-lhe a mão no braço. —
Entre, entre.
— Obrigado, senhor — murmurou o garoto, numa voz hesitante e quase
infantil, limpando os pés cheios de lama no limiar da porta.
Pétia tinha vontade de lhe dizer muita coisa, mas não ousava. Ali, estava de
pé, ao lado dele, no vestíbulo, sem saber o que havia de fazer. Por fim, pegou-lhe
na mão e apertou-a entre as suas.
— Entre, entre — repetia, em voz baixa e com todo o carinho.
«Ah! Que poderei eu fazer por ele?», disse de si para consigo, ao abrir a porta
e deixando que ele passasse adiante. Assim que o garoto entrou na sala, Pétia
conservou-se afastado dele, pensando que naturalmente lhe não ficaria bem dar-
lhe importância de mais. Limitou-se a apertar, na algibeira, o dinheiro que trazia
consigo, pensando se não lhe ficaria mal passar-lho para as mãos.
[VIII]
Denissov mandou que dessem ao tamborzito vodka e um pedaço de cordeiro e
que lhe vestissem um cafetã russo, para que ele se não confundisse com os demais
prisioneiros, no intuito de o conservar no seu destacamento. Mas a atenção dePétia em breve se desviou do pobre pequeno graças à chegada de Dolokov. Ouvira
falar muito da extraordinária bravura deste homem e da sua crueldade para, com
os Franceses. Assim que ele entrou, nunca mais Pétia o perdeu de vista,
procurando assumir ares importantes, de cabeça muito erguida, para não parecer
indigno da companhia, O aspecto exterior de Dolokov impressionou o jovem oficial
pela sua extrema correcção.
Denissov envergava o tchekmene (Cafetã curto. (N. dos T.), usava a barba
crescida e trazia ao peito uma imagem de Nicolau, o Taumaturgo. Tanto na sua
maneira de falar como nos seus modos, procurava dar a entender que não
pertencia ao exército regular. Pelo contrário, Dolokov, que outrora, em Moscovo,
dava nas vistas com o seu trajo persa, apresentava-se agora como o mais elegante
dos oficiais da Guarda. Escrupulosamente barbeado, vestia a túnica almofadada do
seu regimento, com a cruz de S. Jorge na botoeira, e na cabeça trazia um gorro
pequeno muito simples. Depois de despir o capote todo molhado, sem
cumprimentar ninguém, aproximou-se de Denissov e imediatamente se pôs a falar
do ataque. Este explicou-lhe quais as intenções dos grandes destacamentos quanto
à captura do comboio, falou-lhe da missão de Pétia e da resposta que dera aos dois
generais. Por fim, pô-lo ao corrente de tudo quanto sabia acerca do destacamento
francês.
— Está bem, Mas é preciso saber que tropas são estas e de quantos homens
dispõem — observou Dolokov. — É preciso ir ver. Não nos devemos meter nisto
sem sabermos ao certo quantos homens temos pela frente, Gosto de fazer as
coisas com limpeza. Não haverá aqui alguém, entre os senhores oficiais, que esteja
disposto a acompanhar-me ao acampamento inimigo? Tenho um uniforme francês
a mais.
— Eu, eu, eu acompanho-o! — exclamou Pétia,
— Não é, preciso — atalhou Denissov — E, quanto a ti, não te deixarei sair
daqui por nada deste mundo.
— Que história é esta? — volveu Pétia — Porque não posso eu ir?
— Porque é inútil.
— Perdão, porque... porque... vou mesmo, e é que vou! Leva-me? — inquiriu,
dirigindo-se a Dolokov.
— E porque não?... — replicou este, distraidamente, pois estava a observar o
tambor francês — Há muito que tens contigo este garoto? — perguntou aDenissov.
— Aprisionaram-no hoje, mas nada sabe e resolvi conservá-lo ao pé de mim.
— Ah! E os outros, onde os guardas? — inquiriu Dolokov.
— Onde os guardo? Expeço-os contra recibo — volveu Denissov, muito corado.
— E posso dizer que nenhuma morte me pesa na consciência. Pois não será mais
simples evacuar trinta ou trezentos homens para a cidade, com uma boa escolta, a
manchar a nossa honra de soldado?
— Ora aí está uma dessas gentilezas que ficariam bem na boca deste condezito
de dezasseis anos — volveu Dolokov, com um frio sorriso. — Mas tu há muito que
te devias ter deixado disso.
— Eu nada digo, insisto apenas em ir consigo.
— Quanto a nós, amigo, já é tempo de pormos de lado todas estas lindas coisas
— prosseguiu Dolokov, como se sentisse prazer especial em falar de um assunto
que exasperava Denissov. — Vamos a ver porque ficaste com este? Naturalmente
porque tiveste perna dele. E depois a gente sabe muitíssimo bem o valor que eles
dão aos tais recibos. Remetes-lhes cem, e ao destino chegam apenas trinta. Ou
morrem de fome ou matam-nos pelo caminho. Pois não dará o mesmo resultado
deixarmo-nos de fazer prisioneiros?
O capitão de cossacos, que piscava os olhos claros, aprovou com um aceno de
cabeça.
— Não discuto se o resultado é ou não o mesmo. Seja como for o que não
quero é tomar essa responsabilidade. Achas tu que eles morrem da mesma
maneira? É possível, mas não nas minhas mãos.
Dolokov soltou uma gargalhada.
— Julgas que não terão recebido mais de vinte vezes ordem para me
apanharem? E o certo é que se nos apanhassem, a mim ou a ti, apesar de todos os
teus sentimentos cavalheirescos, íamos acabar igualmente enforcados. — E após
alguns momentos de silêncio: — E não ficamos por aqui. Precisamos de falar a
sério. O meu cossaco que me traga a minha bagagem. Tenho dois uniformes
franceses. Bom!
— Vens então comigo, não é verdade? — perguntou a Pétia.
— Vou, vou, está decidido — exclamou o rapaz, que fitara Denissov, corando
muito.
Durante a discussão dos dois oficiais acerca da maneira de tratar osprisioneiros, Pétia sentira-se embaraçado, embora não tivesse percebido muito
bem o que eles pensavam, realmente, a respeito desses homens. «Se as pessoas
de idade e experimentadas pensam assim. é que assim tem de ser, com toda a
certeza», dizia ele com os seus botões. «Assim é que está certo. Mas é preciso que
Denissov se não convença de que eu estou disposto a obedecer-lhe em tudo, que
me pode dar ordens. Seja como for, hei-de acompanhar Dolokov ao acampamento
francês. Se ele o pode fazer, porque não hei-de eu fazê-lo também?»
A todas as admoestações de Denissov, Pétia replicou que também ele estava
habituado a fazer as coisas como era mister, e não à maluca, e que de resto nunca
pensava no perigo.
— E a verdade, tem de o confessar. é que se não soubermos precisamente
quantos soldados eles têm... arriscamo-nos a expor a vida de centenas de homens,
e nós, nós somos apenas dois. Enfim, quero tanto ir que vou seja como for. E não
procure impedir-me — acrescentou — porque então ainda seria pior.
[IX]
Depois de enfiarem os capotes franceses e de se cobrirem com as barretinas do
exército napoleónico, Pétia e Dolokov dirigiram-se à clareira donde Denissov
examinara o acampamento do inimigo, Assim que saíram da floresta, protegidos
pelas trevas cerradas da noite, desceram até ao fundo do barranco. Ao chegarem
aí, Dolokov disse aos cossacos que o acompanhavam que esperassem por ele ali, e
a trote meteu pela estrada em direcção à ponte. Pétia, emocionadíssimo,
cavalgava a seu lado.
— Se eles nos atacarem, vivo é que me não apanham. Tenho a minha pistola
— disse em voz baixa.
— Não fales russo — ripostou Dolokov em voz baixa também. Nesse instante,
nas trevas, soou o grito: «Qui vive?», ao mesmo tempo que se ouvia o engatilhar
de uma espingarda.
Pétia sentiu que o sangue lhe subia à cara e levou a mão à pistola.
— Lanceiros do 6º — gritou Dolokov, sem travar a marcha do seu cavalo.
A negra figura da sentinela destacava-se na ponte.— A senha.
Dolokov refreou o cavalo e continuou a passo.
— Diga-me cá, o coronel Gérard está aí? — perguntou.
— A senha — repetiu a sentinela, sem responder e atravessando-se no
caminho.
— Quando um oficial faz a ronda, as sentinelas não pedem a senha... —
exclamou Dolokov fora de si, arrojando o cavalo sobre a sentinela. — Pergunto-te
se está cá o coronel.
E sem esperar resposta da sentinela, que se afastara, indiferente, pôs-se a
subir a ladeira a passo.
Ao divisar a silhueta de um homem que atravessava a estrada, mandou-o
parar para lhe perguntar onde estavam o comandante do regimento e os
respectivos oficiais. O soldado, que levava um saco às costas, parou, aproximou-se
do cavalo de Dolokov, passou-lhe a mão pelo lombo e contou, com a maior
simplicidade e no tom mais amistoso deste mundo, que os oficiais estavam um
pouco mais acima, na rampa, à direita, no pátio de uma quinta, que assim
designou a casa senhorial.
Dolokov prosseguiu estrada além. Dos dois lados, nos acampamentos, ouviam-
se conversas em francês. Entrou no pátio da casa senhorial. Junto do portão
desmontou, aproximou-se de uma grande fogueira em volta da qual um grupo de
homens conversava em voz alta. Numa marmita, sobre as chamas, fumegava o
rancho de um soldado, o qual, de quépi e capote azul, todo banhado pela luz da
fogueira, remexia a panela com uma vareta de espingarda.
— Oh!, é duro de roer — dizia um dos oficiais na sombra, do outro lado.
— Este lhes dará o arroz, cambada — respondeu outro, rindo. Ambos se
calaram ao ouvirem, no meio das trevas, os passos de Dolokov e de Pétia, que se
aproximavam com os cavalos pela arreata.
— Bom dia, meus senhores! — saudou Dolokov em voz clara e vibrante.
Os oficiais agitaram-se no escuro e um deles, um alto, de pescoço esgalgado,
deu a volta à fogueira para se aproximar.
— É você, Clément? — exclamou ele. — Donde diabo...? — Mas não concluiu a
frase, reconhecendo o engano em que caíra. Franziu as sobrancelhas e saudou
Dolokov como desconhecido, que era, perguntando-lhe que desejava.
Dolokov contou-lhe que ele e o seu camarada procuravam reunir-se ao seuregimento, e em seguida, dirigindo-se ao grupo, perguntou se eles não saberiam,
porventura, onde se encontrava o 6.o de lanceiros. Ninguém sabia, e Pétia
percebeu que os estavam examinando com hostilidade e desconfiança. Toda a
gente se calou por momentos.
— Se conta com a sopa da noite, chega tarde — disse, junto da fogueira, a voz
de alguém que continha o riso.
Dolokov respondeu que já haviam comido e que tinham de prosseguir no seu
caminho aquela mesma noite.
Entregou as rédeas do cavalo ao soldado que mexia o rancho e pôs-se de
cócoras diante das chamas, ao lado do oficial do pescoço esgalgado. Este, mirando
Dolokov com obstinação, perguntou-lhe mais uma vez a que regimento pertencia.
Dolokov fingiu não ouvir e pôs-se a fumar por um cachimbo curto, francês, que
retirara da algibeira enquanto perguntava aos oficiais se as estradas estavam em
segurança, pois dizia-se que os cossacos andavam pelos campos.
— Esses bandidos estão em toda a parte — replicou o oficial que estava perto
da fogueira.
Dolokov sustentou que os cossacos não eram perigosos senão para os
retardatários como ele e o seu companheiro, mas que não seriam capazes de
atacar os grandes destacamentos. Ninguém respondeu.
«É agora que ele se vai embora», dizia Pétia com os seus botões, de pé diante
da fogueira, escutando a conversa. Dolokov rompeu o silêncio para perguntar
quantos homens tinham eles no batalha, quantos batalhões havia e quantos eram
os prisioneiros. A propósito destes, observou:
— Que raio de ideia trazer esses cadáveres a reboque. Era melhor fuzilar essa
canalha. — E ao dizer isto, soltou uma gargalhada tão estranha que. Pétia,
pensando que os franceses iam descobrir o embuste, deu um passo à retaguarda.
Ninguém respondeu fosse o que fosse à gargalhada de Dolokov, e um dos
oficiais na sombra, enrolado no capote estendido no chão, soergueu-se, e
murmurou qualquer coisa ao ouvido de, um camarada. Dolokov ergueu-se então e
chamou o soldado que segurava os cavalos.
«Teremos cavalos ou não?», murmurou Pétia de si para consigo, aproximando-
se de Dolokov.
Os cavalos apareceram.
— Bom dia, meus senhores — disse Dolokov.Pétia teria gostado de pronunciar «boa noite», mas foi-lhe impossível articular
a palavra. Os oficiais sussurraram qualquer coisa entre si. Dolokov levou tempo a
montar, porque o cavalo não havia maneira de estar quieto. Depois saiu a passo
pelo portão do pátio. Pétia acompanhava-o, desejoso de se voltar para ver se não
eram perseguidos, mas não ousava fazê-lo. Ao atingir a estrada, Dolokov, em vez
de se meter pelos campos, seguiu ao longo da povoação. A determinada altura
parou para escutar. «Estás a ouvir?», murmurou. Pétia reconheceu que se falava
russo ali, e junto das fogueiras viu as silhuetas negras dos prisioneiros. Depois de
terem descido até à ponte, cruzaram a sentinela que continuava de guarda, e
nada lhes disse, alcançando em seguida o barranco onde os esperavam os cossacos.
— Bom, agora adeus. Diz ao Denissov que lá o espero de madrugada, ao
primeiro tiro — observou Dolokov, afastando-se. Pétia, porém, agarrou-o, por um
braço.
— Ah! É um herói! Ah! Que bem! Magnífico! Muito gosto de si!
— Bom, bom — replicou Dolokov.
Pétia, porém, não o largava, e Dolokov viu, no meio das trevas, que o rapaz se
debruçava para ele, querendo beijá-lo. Dolokov beijou-o, rindo, e dando meia
volta desapareceu no meio da noite.
[X]
No regresso à casa do guarda, Pétia encontrou Denissov no vestíbulo. Agitado,
inquieto, furioso consigo próprio por tê-lo deixado partir, estava à espera dele.
— Louvado seja Deus! Sim, louvado seja Deus! — repetia enquanto ia ouvindo
o relato entusiasta de Pétia. — Diabos te levem, tiraste-me o sono! Graças a
Deus, agora vai deitar-te. Ainda podemos dormir um bocado até de madrugada.
— Não, não — discordou Pétia. — Não tenho sono. E se adormeço, já sei, não
acordo mais. De resto, não costumo dormir antes das batalhas.
Pétia permaneceu, pois, ainda algum tempo na isbá, recordando os
pormenores da expedição e pensando no que iria suceder no dia seguinte. Depois,
vendo que Denissov adormecera, levantou-se e saiu.
Cá fora as trevas eram cerradas. A chuva deixara de cair, mas as folhas dasárvores gotejavam. Ali perto via-se o vulto negro das tendas dos cossacos e dos
cavalos atados uns aos outros. Lá para trás desenhava-se o perfil de dois carroções
rodeados de cavalos e na ravina as fogueiras apagavam-se. Nem todos os cossacos
e hússares estavam a dormir: aqui e ali. à mistura com o ruído das gotas de água
que caíam e do mastigar dos cavalos que roíam a sua aveia, ouviam-se vozes
murmurar.
Pétia saiu do vestíbulo, perscrutou a obscuridade e aproximou-se dos
carroções. Estendido sobre um deles um homem ressonava, enquanto à sua volta
cavalos selados comiam aveia. Nas trevas reconheceu o seu cavalo, o Karabak, e
aproximou-se dele.
— Eh, Karabak, amanhã temos que fazer — disse-lhe, beijando-lhe o focinho.
— Ainda está acordado? — murmurou o cossaco estendido em cima do
carroção.
— Estou, mas escuta... Chamas-te Likatchov, não é? Acabo de chegar. Fomos
visitar os Franceses.
E Pétia contou ao cossaco, por miúdo, não só a expedição em que tomara
parte, mas porque participara nela e como era preferível arriscar a vida a deixar
que os outros fossem às cegas para o combate.
— Sim, sim, mas era melhor que dormisse — observou o cossaco.
— Não, estou habituado — replicou ele. — As pederneiras da tua pistola não
estão gastas? Se quiseres algumas, tenho aqui. Se precisas, toma lá.
O cossaco ergueu a cabeça e espreitou cá para fora, para melhor examinar o
que se passava.
— Gosto de fazer as coisas com todo o cuidado — continuou Pétia. — Há alguns
que não tomam precauções e depois é tarde. Não gosto disso.
— Tem razão — volveu o cossaco.
— E olha, espera lá, rapaz, afia-me o sabre, se queres. Está rombo... — Mas,
para não mentir, calou-se. Nunca mandara afiar o sabre. — Posso contar contigo?
— Claro, porque não?
Likatchov levantou-se, remexeu no fundo da carroça, e daí a pouco Pétia ouvia
o ruído bem marcial do aço contra a pedra de afiar. Trepou para cima do carroção
e sentou-se. O cossaco continuava a sua tarefa.
— E os rapazes, estão todos a dormir? — perguntou Pétia.
— Uns dormem, outros não.— E o garoto, que está ele a fazer?
— Vessionii? Está lá adiante, deitado no vestíbulo. Depois de tanto medo que
teve, adormeceu. Que contente ele estava!
Pétia ficou depois calado por muito tempo, sempre de ouvido à escuta.
Ouviram-se passos na escuridão e um vulto apareceu.
— Que estas tu a afiar? — perguntou o recém-chegado, aproximando-se.
— O sabre deste senhor.
— Muito bem — replicou o homem que Pétia supôs ser um hússar. — Não
haverá por aqui uma tigela?
— Há, sim, ali, ao pé da roda.
O hússar pegou na tigela.
— Não falta muito para amanhecer — disse ele, bocejando, enquanto se
afastava.
Pétia sabia que estava no meio da floresta, entre os soldados de Denissov, a
uma versta da estrada real. Sabia que estava sentado em cima de uma carroça
apanhada aos Franceses, à volta da qual havia cavalos amarrados, sabia que ali ao
pé estava o cossaco Likatchov tratando de lhe afiar o sabre, sabia que aquela
mancha negra lá adiante era a casa do guarda e que a mancha vermelho-clara em
baixo era a fogueira do bivaque que se apagava, sabia que o homem que viera
buscar a tigela era um hússar com sede, Sabia tudo isto, e era como se de nada
quisesse saber. Flutuava num reino encantado onde nada se parecia com a
realidade. Talvez que aquela mancha preta fosse, de facto, a casa do guarda, mas
também podia ser uma caverna que se abria até às entranhas da Terra. E talvez
que efectivamente aquela mancha encarnada fosse, realmente, lume, mas também
podia ser o olho de um monstro enorme. Bem podia ser estar sentado numa
carroça, mas talvez aquilo não fosse uma carroça, mas uma torre altíssima, do alto
da qual, se porventura lhe acontecesse vir a cair, voaria na direcção da terra
durante um dia, durante um mês, sem nunca mais poder chegar ao chão. Era
possível que ao pé da carroça apenas estivesse o cossaco Likatchov, mas também
podia acontecer que esse homem fosse o homem melhor, mais valente, mais
extraordinário, maior, que existisse no mundo, um homem que ninguém
conhecesse. E também podia ser que houvesse por ali um hússar procurando água
no barranco, mas também podia acontecer que se tivesse desvanecido e
desaparecido e ninguém o tivesse visto.Nada o surpreendia mais do que o que os seus olhos viam. Ei-lo num mundo
encantado onde tudo era possível.
Ergueu os olhos ao céu. E o céu, tal qual como a terra, era um sítio encantado.
Iluminava-se e no topo das árvores corriam nuvens rápidas que pareciam descobrir
as estrelas, As vezes parecia que o firmamento se limpava por inteiro e via-se
então aparecer um céu negro e puro. Ora aquelas manchas escuras lhe pareciam
nuvens, ora a abóbada celeste se lhe afigurava muito alto por cima da sua cabeça,
ora descer de tal sorte que lhe seria possível tocar-lhe com a ponta dos dedos.
Pétia fechou os olhos e sentiu que a cabeça lhe andava à roda Ouviam-se as
gotas de água que continuavam a cair, as conversas sussurradas, os cavalos a
escarvar o chão e a agitar-se, algures o ressonar de alguém.
Zig, zig, zig.... fazia o aço do sabre que o cossaco afiava e de súbito Pétia ouviu
uma orquestra harmoniosíssima, que tocava um hino qualquer desconhecido e de
uma solene suavidade. Como Natacha, e ainda mais que Nicolau, também ele
gostava muito de música, mas nunca pensara aprender a tocar, por isso os motivos
que espontaneamente lhe chegaram ao ouvido lhe pareciam tão novos. E a música
era cada vez mais vibrante. A melodia ampliava-se como se de um instrumento
fosse passando a outro. Era uma fuga, mas Pétia não fazia a mais pequena ideia
disso. Cada um dos instrumentos, ora como se fossem violinos, ora como se fossem
trombetas, embora de som muito mais fino e muito mais puro, tocava o seu
motivo próprio, que, sem chegar ao fim da sua modelação, se fundia noutro, que
principiava por assim dizer o mesmo motivo, e depois ainda com outro e com outro
ainda, confundindo-se todos, por fim, para se separarem e voltarem a confundir-se
num cântico religioso e solene ou numa ária triunfal clara e brilhante.
«Ah!, mas estou a sonhar», dizia Pétia de si para consigo, perdendo por assim
dizer o equilíbrio. «São os meus ouvidos que ressoam. Ou talvez seja a minha
orquestra própria a tocar. Então, mais uma vez. Vamos, minha orquestra!
Vamos!..»
Fechou os olhos. E de todos os lados, como se viessem de muito longe,
vibravam acordes em uníssono ou se dissipavam, para de novo se fundirem, e
outra vez o hino recomeçava, solene e cheio de suavidade. «Ah! Que maravilha! E
pelo tempo que quero e como quero!», dizia de si para consigo. E tentava reger
aquela imensa orquestra.
«Mais piano, agora mais piano, até deixar de se ouvir.» E os sons obedeciam-lhe. «Vá, agora mais alto, mais alegre. Mais, mais, mais alegre.» E de
desconhecidas profundezas irradiavam acordes largos e magníficos. «E agora, vós,
as vozes!», comandava ele. E vozes de homem chegavam da distância, e em
seguida vozes de mulher, e essas vozes iam crescendo, pouco a pouco, até
atingirem tinia imponente vibração. Pétia sentia-se ao mesmo tempo temeroso e
fascinado com aquela surpreendente beleza.
O canto alargava, transformando-se numa solene marcha Triunfal, enquanto as
árvores continuavam a gotejar, o aço a ranger e os cavalos a relinchar e a
escarvar o chão, sem que nada perturbasse o coro, mas como se fizesse parte nele.
Pétia não saberia dizer o tempo que isto teria durado. Sentia um infinito
prazer, estava como que deslumbrado e só lamentava não poder partilhar com
outro tudo quanto experimentava. Foi a voz afável de Likatchov que o acordou.
— Aqui o tem, Excelência. Pode rachar um francês ao meio.
Pétia despertou do seu torpor.
— Já é manhã, já é dia! — exclamou ele.
Agora já se viam os cavalos, até então invisíveis. Através dos ramos despidos
de folhas transparecia uma claridade húmida. Pétia espreguiçou-se, saltou do alto
da carroça, puxou de um rublo da algibeira e deu-o a Likatchov. Depois brandiu o
sabre, para o experimentar, e enfiou-o a seguir na bainha. Os cossacos, entre—
tanto, selavam os cavalos.
— Aí vem o comandante — exclamou Likatchov.
Denissov, que saía da isbá, chamou Pétia e deu-lhe ordem de se preparar para
partir.
[XI]
Rapidamente, na semi-obscuridade, cada um lançou mão do seu cavalo, ajustou
o selim e ocupou o seu lugar. Denissov, de pé junto da casa do guarda, dava as
suas ordens. A infantaria, patinhando na lama, foi a primeira a partir,
desaparecendo daí a pouco, por entre as árvores, no meio da neblina matinal. O
capitão de cossacos deu as instruções aos seus homens. Pétia, com o cavalo pela
arreata, aguardava, impaciente, o momento de montar. Embora tivessemergulhado a cara em água fria, sentia no rosto, e especialmente nos olhos, um
ardor febril. Já não tinha arrepios ao longo da espinha, mas todo o seu corpo se
agitava em movimentos nervosos.
— Está tudo pronto? — interrogou Denissov. — Venham os cavalos!
Os cavalos apareceram. Denissov repreendeu o seu cossaco porque a sela
estava mal afivelada, depois saltou para a, garupa do ginete. Pétia meteu o pé no
estribo. Como de costume, o cavalo procurou mordisca-lo na perna, mas ele, leve
como uma pluma, saltou-lhe para cima e lançando um golpe de vista aos hússares
que principiavam a mover-se na sua retaguarda aproximou-se de Denissov.
— Vassili Federovitch, não se esquece de me dar um comando, não é verdade?
Peço-lhe — disse ele.
Dir-se-ia que Denissov se esquecera da existência de Pétia. Relanceou-lhe um
olhar.
— Só te peço uma coisa — disse-lhe com severidade — que me obedeças e que
não metas o nariz onde não és chamado. Durante o resto do percurso, Denissov
não voltou a trocar palavra com ele, cavalgando em silêncio. Principiava a clarear
por sobre os campos quando chegaram à orla da floresta. Denissov disse qualquer
coisa em voz baixa ao capitão de cossacos e os seus homens desfilaram diante
deles. Depois de eles passarem, Denissov pôs-se a descer a encosta atrás da
coluna, Escorregando e retesando as patas, atingiram os cavalos o fundo do
barranco. Pétia ia ao lado de Denissov. Cada vez tremia mais. O dia ia raiando e a
neblina apenas envolvia agora os objectos muito distantes. Ao chegar ao fundo,
Denissov, voltando-se, fez um aceno de cabeça ao cossaco mais perto dele.
— O sinal! — ordenou.
O cossaco ergueu a mão e um tiro ressoou. No mesmo instante, os cavalos
despediram a galope, enquanto se ouviam gritos de todos os lados e novos tiros
ressoavam.
No mesmo momento, igualmente, Pétia esporeou o cavalo e soltou-lhe as
rédeas, e sem ouvir Denissov, que o chamava, aos gritos, debandou a galope.
Afigurara-se-lhe, de súbito, no momento em que ressoou o primeiro tiro, que tudo
ficara claro como se fosse dia alto. Alcançou a ponte. Os cossacos galopavam
diante dele. Em cima da ponte esbarrou com um retardatário e continuou
galopando. Por diante dele, alguns homens, franceses, naturalmente, passavam,
assodados, do lado direito da estrada para e, lado esquerdo. Um deles estatelou-se na lama mesmo debaixo das patas do seu cavalo.
A porta de uma casa um grupo de cossacos fazia fosse o que fosse. Um grito
terrível saiu do grupo. Pétia, que passava nesse instante a galope, a primeira
coisa que viu foi o rosto pálido e convulsionado de um francês que sustinha a vara
de uma lança apontada ao peito.
«Hurra!... Rapazes!...», gritou Pétia. E esporeando o cavalo, excitado pela
corrida, meteu pela rua da povoação. Diante dele ressoaram tiros. Cossacos,
hússares e prisioneiros russos esfarrapados corriam pelos dois lados da rua,
soltando gritos estridentes e ininteligíveis. Um francês, de cabeça descoberta, o
rosto vermelho e crispado, de capote azul, defendia-se dos hússares com a
baioneta. Quando Pétia chegou junto dele, já estava prostrado no chão. «Outra
vez tarde de mais», disse de si para consigo o moço oficial, num relâmpago, e
dirigiu-se para o ponto onde a fuzilaria era mais nutrida. No pátio da casa
senhorial em que estivera nessa mesma noite com Dolokov o tiroteio crepitava.
Os Franceses, entrincheirados atrás da espessa sebe do jardim, visavam os
cossacos amontoados junto da porta principal. Assim que chegou ali, Pétia viu
logo, através da fumarada. Dolokov, o rosto pálido e esverdeado, que gritava aos
seus homens:
— Cerquem-nos pelo outro lado! Esperem a infantaria!
— Quê? Esperar?... Hurra! — exclamou Pétia e, sem mais detenças, avançou
para o local onde o tiroteio e a fumarada eram maiores.
Uma salva se ouviu, balas perdidas assobiaram e vieram cravar-se aqui e ali.
Dolokov e os cossacos enfiaram, atrás de Pétia, pelo portão do pátio. Os
Franceses, no meio de uma densa fumarada, atiravam fora as armas e saíam da
sebe para se precipitar em na direcção dos cossacos, enquanto outros galgavam a
encosta em direcção ao tanque. Pétia continuava a galopar pelo pátio dentro, mas
abandonara as rédeas, os braços gesticulavam-lhe de maneira estranha e ia
tombando cada vez mais para cima da sela. O cavalo, que pousara as patas sobre
os carvões ardentes de uma fogueira visível graças à claridade da manhã, parou
bruscamente e o cavaleiro foi precipitado no chão, Os cossacos ainda viram agitar-
se os braços e as pernas de Pétia enquanto a cabeça lhe descaía sem vida. Uma
bala atravessara-lhe o crânio.
Depois de trocar algumas palavras com o comandante do destacamento
francês que saíra do edifício com um lenço amarrado à ponta da espada, em sinalde rendição, Dolokov desmontou e aproximou-se de Pétia, estendido no chão,
imóvel, com os braços em cruz.
— Este já tem a sua conta — disse, franzindo o sobrecenho. E foi ao encontro
de Denissov, que nessa altura aparecia à porta do pátio.
— Morto? — exclamou, ao ver o corpo de Pétia estendido no chão e
evidentemente sem vida.
— Já tem a sua conta — repetiu Dolokov, como se sentisse prazer em
empregar essa expressão, e seguiu na direcção dos prisioneiros que os cossacos
cercavam. — Nada de prisioneiros! gritou ele para Denissov.
Denissov não respondeu. Aproximou-se de Pétia, desmontou, e de mãos
trémulas voltou para si o rosto do moço, empapado em sangue e lama, já de uma
palidez cadavérica.
«Estou habituado às guloseimas, óptimas passas, tomem-nas todas... »
Lembrava-se das palavras dele Os cossacos olhavam-no estupefactos: soluços em
que havia fosse o que fosse dos uivos de um cão lhe saíam do peito, enquanto
desviava a cabeça e, cambaleante, se aproximava da sebe para se segurar de pé.
Entre os prisioneiros russos libertos por Denissov e Dolokov encontrava-se
Pedro Bezukov.
[XII]
As autoridades francesas não tinham tomado novas disposições para o
transporte do destacamento de prisioneiros de que fazia parte Pedro durante a
retirada. No dia 22 de Outubro já não se encontrava com as tropas com que saíra
de Moscovo. Metade do comboio de biscoitos que os seguira durante as primeiras
jornadas fora pilhada pelos cossacos e a outra metade seguira adiante. Dos
cavaleiros que abriam a marcha, nem falar: todos tinham desaparecido, A
artilharia, que nos primeiros dias constituíra a guarda avançada, fora substituída
pelas imensas bagagens do marechal Junot, que eram escoltadas pelos
westfalianos. Atrás dos prisioneiros vinham as bagagens da cavalaria.
A partir de Viazma, as tropas, que até aí marchavam em três colunas,
transformaram-se num verdadeiro rebanho. Os indícios de desorganização quePedro observara já durante a primeira jornada eram agora evidentes.
A estrada, de um lado e outro, estava juncada de cadáveres de cavalos;
soldados esfarrapados, retardatários de diversas armas, que se sucediam
continuamente, ora se reuniam à coluna em marcha, ora ficavam de novo para
trás.
Por várias vezes, durante a marcha, houvera rebates falsos. Os soldados da
escolta pegavam nas armas, disparavam ao acaso, fugiam a mais não poderem,
esbarrando uns nos outros, e depois tornavam a formar, acusando-se mutuamente
dos seus loucos terrores. O depósito da cavalaria, os prisioneiros e as bagagens de
Junot, que compunham a coluna, formavam ainda uma espécie de todo, mas esse
mesmo todo ia-se desfazendo rapidamente. O depósito, que de princípio era
formado por cento e vinte viaturas, estava reduzido a sessenta no máximo: todas
as outras tinham sido pilhadas ou abandonadas. Algumas das viaturas das
bagagens de Junot também se haviam perdido. Três, pelo menos, tinham sido
assaltadas por retardatários do corpo de exército de Davout. Pedro percebera,
pelas conversas dos alemães, que esse comboio era guardado com mais cuidado
que o dos prisioneiros e que um soldado que fazia parte da escolta, um alemão,
fora fuzilado por ordem do marechal, por lhe terem encontrado uma colher de
prata com as suas insígnias.
Mas o grupo mais reduzido era o dos prisioneiros. Dos trezentos e trinta
homens que o formavam à partida de Moscovo, restavam agora menos de cem. E
causavam maior embaraço às tropas que os escoltavam que o depósito de
cavalaria ou as bagagens de Junot. Esses soldados compreendiam muito bem que
as selas de cavalaria ou as colheres do Sr. Marechal podiam tentar este ou aquele,
mas para que estarem de sentinela, eles, cheios de fome e de frio, a esses russos,
esfomeados e transidos como eles, que iam ficando pelo caminho ou enregelavam
nos acampamentos e contra os quais havia ordem de fuzilamento? Eis o que não
podiam compreender e os descoroçoava. Eles, tia mesma penosa condição, tinham
medo de se deixar comover diante desses desgraçados, agravando a sua própria
situação, e esse o motivo por que os tratavam cada vez mais severamente.
Em Dorogobuje, enquanto os soldados da escolta, depois de fecharem os
prisioneiros numa cavalariça, foram pilhar as lojas, alguns dos cativos abriram um
buraco na parede e fugiram. Apanhados daí a pouco, eram passados pelas armas.
O regime fixado na altura da saída de Moscovo, segundo o qual os oficiaisdeviam estar separados dos soldados, há muito fora abolido. Todos os que podiam
caminhar seguiam juntos, e Pedro, após a terceira jornada, voltara a encontrar-se
com Karataiev e o seu cãozito arruivado, de pernas tortas, que o adoptara como
dono.
Dois dias após a partida de Moscovo, Karataiev fora de novo acometido p(,.Ias
febres que o tinham levado ao hospital e à medida que piorava Pedro afastava-se
dele instintivamente. Não dava muito por isso, mas o certo é que devia fazer um
grande esforço sobre si mesmo para se aproximar dele, os gemidos do desgraçado
quando se deitava no fim da jornada e o cheiro acre que exalava afastavam Pedro
e tornavam menos íntimas as suas relações. Enquanto estivera fechado no
abarracamento, Pedro adquirira a convicção, não racional, mas graças ao
sentimento íntimo de todo o seu ser, de que o homem nascera para a felicidade,
de que a felicidade estava nele, homem, na satisfação das suas tendências
naturais, e de que todas as desgraças eram antes consequência de excessos que
propriamente de privações. Mas depois daquelas três últimas semanas de marcha,
nova e consoladora verdade se lhe revelara, a saber, que neste mundo nada há de
verdadeiramente terrível. Assim como o homem nunca consegue ser
perfeitamente feliz e livre, também não há situação alguma em que seja
completamente infeliz e escravo, Assim como há limite para o sofrimento, também
há limite para a liberdade, e esses limites tocam-se mutuamente. Agora sabia que
o homem que sofre porque, deitado em cama de rosas, o magoa uma ruga das suas
pétalas, era tão infeliz como ele próprio, dormindo na terra húmida e nua, com frio
por um lado e calor pelo outro. Lembrava-se de que quando, outrora, enfiava nos
pés uns escarpins de baile muito apertados sofria tanto ou mais que actualmente,
que caminhava descalço, pois as botas há muito as não podia calçar e tinha os pés
cobertos de pústulas. Sabia que na altura do seu casamento, na aparência
perfeitamente livre, não era mais livre que neste momento, que passava a noite
fechado numa cavalariça. De todos os sofrimentos de que mais tarde se lembrava,
e então o deixavam quase insensível, o pior fora o ver os pés cheios de feridas e
crostas.
A carne de cavalo agradava-lhe e era nutritiva; essa espécie de sabor a
pólvora do sal de nitro empregado em vez do sal propriamente dito era mesmo
agradável; o frio não era muito intenso: de dia tinham sempre calor durante as
marchas e à noite acendiam fogueiras; os piolhos que o devoravam aqueciam-no.Só uma coisa o fizera sofrer realmente nos primeiros tempos: os pés.
Na segunda jornada, ao examinar as feridas ao clarão das fogueiras, dissera de
si para consigo que não poderia dar mais um passo; mas quando os companheiros
se puseram a caminho lá os foi seguindo, embora coxeando, e assim que os pés lhe
aqueceram não mais os sentiu, embora ficasse aterrado quando à noite tornou a
olhar para eles. E decidiu não lhes pôr mais a vista em cima e pensar noutra coisa.
Só agora, realmente, sabia até que ponto o homem pode resistir e quanto
valia o poder de distracção que lhe foi dado, espécie de válvula de segurança das
caldeiras a vapor para quando a pressão ultrapassa a normal.
Não queria ver nem ouvir fuzilar prisioneiros retardatários, embora para cima
de cem já lá ficassem para trás. Já não pensava em Karataiev, que, de dia para dia
mais fraco, não tardaria, evidentemente, a ter o destino dos demais. E nele
próprio ainda pensava menos. Quando mais difícil se tornava a situação, quando
mais sombrio se lhe antolhava o futuro, mais ele se desprendia de tudo o que o
cercava e mais suaves e consoladores eram os seus pensamentos, as suas
recordações e os seus devaneios de imaginação.
[XIII]
A 22, por volta do meio-dia, subia Pedro uma ladeira coberta de lama
escorregadia, atento às irregularidades do terreno e aos sítios em que punha os
pés. De quando em quando erguia os olhos para o grupo dos companheiros e de
novo voltava a pousá-los no chão. Não assistia a um espectáculo novo. Sierii, o
cachorrito das pernas tortas, pulava pela berma da estrada, e de vez em quando,
para mostrar ligeireza e contentamento, erguia uma das patas traseiras e trotava
nas outras três, voltando daí a pouco ., trotar nas quatro para ladrar aos corvos
que pousavam em cima dos cadáveres. Sierii sentia-se ali muito mais feliz e
contente que em Moscovo. Por toda a parte havia cadáveres de cavalos e de
homens, em variado estado de decomposição, em que ele podia saciar-se à
vontade, e o trânsito contínuo das tropas, mantendo os lobos a distância,
permitia-lhe refastelar-se.
Desde manhã que chovia, e não havia esperança de deixar de chover, pois,mesmo quando o céu clareava, era para chover ainda mais, após uma breve pausa.
A estrada, alagada, não podia absorver mais água e as valetas eram verdadeiros
rios.
Pedro, de olhos no chão, à medida que caminhava, contava pelos dedos, de
três em três passos. Para si mesmo, pensando na chuva, dizia: «Vamos, vamos,
mais, mais, continua.»
Dir-se-ia já não ter em que pensar, mas na realidade a sua alma cada vez
mergulhava mais fundo em pensamentos graves e consoladores. Eis a subtil lição
que extraía da conversa da véspera com Karataiev.
Na véspera, durante o descanso da noite, transido de frio junto de uma
fogueira apagada, Pedro levantara-se e aproximara-se da fogueira vizinha, que
ardia melhor. Junto dela, Platão, envolto na sua capa, como um padre na sua
casula, contava aos soldados, na sua voz de enfermo, cheia e agradável, mas fraca,
uma história que Pedro já conhecia. Passava da meia-noite. Era , hora em que lhe
descia o febrão e o deixava habitualmente mais animado. Assim que Pedro se
aproximou da fogueira, ouviu a voz débil do pobre homem e lhe viu o lastimoso
rosto vivamente iluminado, sentiu confranger-se-lhe o coração. Quis afastar-se,
tanto o afligia o estado do desgraçado, mas, como não havia outra fogueira acesa,
acocorou-se ali mesmo, procurando não olhar para ele.
— E então, como vai essa saúde? — perguntou-lhe Pedro.
— A saúde? Chorarmos a nossa saúde não impede que Deus nos dê a morte —
respondeu Karataiev, que logo continuou a sua história.
— E aqui tens, meu amiguinho — prosseguiu, com um sorriso que lhe iluminava
o pálido e magro rosto e os olhos brilhantes. — Aqui tens, meu amiguinho...
Há muito que Pedro conhecia aquela história. Karataiev contara-lha cinco ou
seis vezes, sempre com grande satisfação. Mas, embora a conhecesse muito bem,
dir-se-ia ouvi-la pela primeira vez. A animação contida do narrador comunicava-se-
lhe a ele, Era a história de um velho mercador que vivia no meio dos seus,
honestamente e no temor de Deus. Certo dia, com um dos seus camaradas, dirigiu-
se à, feira de Makarié.
Pernoitaram numa estalagem, e no dia seguinte o seu companheiro foi
encontrado morto e roubado. Debaixo da almofada do honesto mercador
encontraram uma faca cheia de sangue. Julgaram-no, flagelaram-no, arrancaram-
lhe as narinas «como era de justiça e de acordo com as leis estabelecidas»,acrescentava, Karataiev, e por fim foi enviado para as galés.
-...E aqui tens, meu amiguinho. — Nesta altura da história que Pedro apareceu.
— Passaram dez ou mais anos, E o velho nas galés, obediente a tudo, sem fazer
mal a ninguém. Só pedia a Deus que o levasse. Pois bem! — Uma noite os
condenados reuniram-se, como nós neste momento. O velhinho estava com eles. E
puseram-se a contar uns aos outros porque tinham sido condenados e porque eram
culpados perante Deus. ’rodos contaram a sua história: um deles matara um
homem, outro, dois; este era incendiário, aquele, servo fugitivo. Interrogaram o
velho: «E tu, avô, porque padeces?» «Eu, meus irmãos», disse ele, «eu sofro pelos
meus pecados e pelos pecados dos outros, E a verdade é que não matei nem furtei
o que era de outros, muito pelo contrário, costumava dar aos pobres. Eu, meus
irmãos, era mercador e tinha o meu pé-de-meia.» Eis, palavra por palavra, o que
ele lhes disse. E contou-lhes, por miúdo, tudo o que se passara, «Por mim», disse-
lhes ele, «não me queixo. Isto só quer dizer que Deus me escolheu. Só tenho pena
de uma coisa, da minha velha e dos meus filhos.» E então pôs-se a chorar. E eis que
por acaso, no meio deles, está o homem que matara o mercador. «Onde foi isso,
avó?», inquiriu ele. «Há quanto tempo? Em que mês?» — E o velho deu conta de
tudo. O coração do outro confrange-se-lhe. Eis que se aproxima do velho e, zás,
ajoelha-se-lhe aos pés. «É por minha causa», diz ele, «é por minha causa, velho,
que aqui estás. Podem crer, rapazes, este homem está inocente. Fui eu»,
confessou, «que matei o homem e escondi a faca debaixo da almofada enquanto
ele dormia. Perdoa-me, avô, perdoa-me em nome de Cristo!»
Karataiev calou-se, os olhos fitos na chama, sorrindo docemente. Depois
ajeitou as achas.
— E o velho disse: «Deus te perdoará: de resto, todos somos pecadores diante
de Deus. É pelos meus pecados que sofro.» E ele próprio se pós a chorar
amargamente. E que pensas tu, meu falcãozinho — acrescentou Karataiev, cujo
rosto se iluminava por uma espécie de sorriso de triunfo, como se, no que tinha a
dizer agora, estivesse todo o encanto e todo o valor da sua história. — Que te
parece? o verdadeiro assassino foi confessar-se às autoridades. «Matei», disse ele,
«matei seis almas humanas» — era um grande malfeitor — «mas a que me mete
mais dó é a deste pobre velho. Não quero que ele chore por minha causa.»
Escreveram tudo num papel e mandaram esse papel para a justiça, Era muito
longe, foi preciso muito tempo para que o tribunal resolvesse, para queescrevessem todos os papéis que eram precisos, como as autoridades costumam
fazer, claro está. A questão foi até à presença do czar. Por fim veio o ucasse do
imperador: «Ponha-se o mercador em liberdade e dê-se-lhe uma recompensa, de
acordo com o que foi resolvido.» Chegou o papel. Puseram-se à procura do velho.
Onde está esse velho condenado inocentemente? Chegou o papel do czar.
Procuram. — Aqui o queixo de Karataiev teve um tremor convulsivo. — Deus já
lhe tinha perdoado. Morrera. Pois é o que te digo, meu falcãozinho — concluiu ele;
por muito tempo, calado, sorrindo, ficou a olhar o espaço diante dele. Não era a
história em si, mas o seu misterioso significado e aquela serena exaltação que
iluminava o rosto de Karataiev enquanto ele falava, o misterioso significado dessa
exaltação, era tudo isso que enchia agora a alma de Pedro de uma felicidade
indefinível.
[XIV]
— A postos! — gritou, de, súbito, uma voz. Uma alegre agitação se produziu
entre os prisioneiros e os soldados da escolta, na esperança de um acontecimento
importante e feliz. Por todos os lados se ouviram vozes de comando, e à esquerda
da coluna apareceram, galopando, cavaleiros bem vestidos, montados em bons
cavalos. Todos os rostos exprimiram a tensão que em geral se produz aquando da
chegada de grandes personalidades. Os prisioneiros amontoaram-se a um lado
para deixar a estrada desimpedida. Os soldados da escolta alinharam:
— O imperador! O imperador! O marechal! O duque!
Mal acabara de desfilar a escolta, chegava uma carruagem tirada por cavalos
cinzentos, no meio de grande fragor. Pedro viu, à passagem, uma figura de rosto
sereno, cheio e branco, com um bicorne na cabeça. Era um dos marechais. O seu
olhar deteve-se na alta estatura de Pedro que sobressaía no meio da multidão, e,
pela maneira como franziu as sobrancelhas e virou a cara, a prisioneiro julgou
perceber que procurava ocultar um sentimento de piedade.
O general comandante do depósito, muito corado e cara de susto, esporeou o
cavalo para seguir a carruagem. Alguns oficiais formaram grupo e os soldados
juntaram-se em torno deles. Todos pareciam perturbados e inquietos.— Que é que há? Que disse ele? — repetiam.
Enquanto o marechal passava, como os prisioneiros se tinham aglomerado,
Pedro viu Karataiev, em quem ainda não pusera os olhos nessa manhã.
Embrulhado no capote, estava sentado, encostado a um álamo. No seu rosto, com
a mesma expressão de enternecida suavidade que tinha na véspera ao contar a
sua história, havia agora um calmo sorriso.
Fitava Pedro com os seus bondosos olhos redondos velados de lágrimas, e via-
se que o chamava, como se lhe quisesse falar. Mas Pedro tinha medo de si mesmo.
Fingiu não ver esse olhar e desviou a cara apressadamente.
Quando a coluna retomou a marcha, Pedro olhou para trás. Karataiev
continuava sentado à beira da estrada, encostado ao álamo; dois franceses,
apontando-o, diziam qualquer coisa entre si. Não mais se voltou e subiu a ladeira a
coxear. Lá para trás, para o sítio onde estava Karataiev, um tiro soou. Ouviu-o
nitidamente, mas nesse mesmo instante lembrou-se de que quando o marechal
aparecera calculava ele o número de jornadas que ainda teriam até Smolensk.
Voltou aos seus cálculos. Dois soldados franceses, um dos quais com a espingarda
ainda fumegante, passaram por ele a correr. Muito pálidos, enquanto um deles o
olhava com timidez, Pedro descobriu-lhe no rosto a mesma expressão que vira
estampada na cara do soldado aquando da execução dos incendiários. E Pedro
reconheceu-o: era o mesmo que na antevéspera queimara a camisa estando a
enxugá-la na fogueira do bivaque e que fora troçado pelos camaradas.
Lá para trás, para onde ficara Karataiev, um cão uivou. «Porque está aquele
imbecil a uivar?», disse Pedro com os seus botões. Os soldados prisioneiros que
marchavam a seu lado não voltaram a cabeça, como ele, para onde soara o tiro e
depois o uivo do cão. Uma expressão sinistra se lhes pintava na cara.
[XV]
O depósito de cavalaria, os prisioneiros e as bagagens do marechal fizeram
alto na aldeia de Chamchevo. Toda a gente se juntou em volta dos bivaques.
Pedro aproximou-se de uma das fogueiras, comeu um pedaço de carne de cavalo,
deitou-se, de costas para a fogueira, e adormeceu imediatamente. Mergulhou numsono tão pesado como em Mojaisk, depois da batalha de Borodino.
Tal como então, também agora os acontecimentos reais se confundiram com
visões imaginárias, e uma voz, a sua própria voz ou a de qualquer outra pessoa,
repetiu-lhe as mesmas frases que ouvira nessa altura.
— A vida é tudo. A vida é Deus. Tudo vai e vem, tudo se move, e esse
movimento é Deus. E enquanto há vida, há a satisfação de reconhecermos a
divindade. Amar a vida é amar a Deus. O mais difícil e meritório é amar a vida nas
suas dores, nos seus sofrimentos imerecidos.
«Karataiev!» Esse nome surgiu-lhe de súbito no pensamento, e de súbito viu,
como se estivesse vivo, um velho mestre, de que há muito se esquecera, que na
Suíça lhe ensinara geografia. «Espera», dizia-lhe o velho, mostrando-lhe o globo
terrestre. Esse globo era uma esfera viva, oscilando e sem contornos definidos.
Toda a sua superfície era formada por gotas de água muito uni— das umas às
outras, e essas gotas de água evoluíam, deslocavam-se, ora unindo-se numa gota
mais grossa, ora dividindo-se de novo. Cada gota procurava dilatar-se, ocupar o
maior espaço possível, mas, como as outras faziam o mesmo, apertavam-na,
obrigando-a a desaparecer, por momentos, e misturando-se com ela outras vezes.
«Eis a imagem da vida», dizia-lhe, o velho.
«Como é simples e claro», pensava Pedro. «Com o não compreendi eu há mais
tempo?»
Deus está no centro e cada uma das gotas tenta alargar-se, na esperança de O
reflectir na sua maior extensão. E cresce, alarga-se, comprime-se e desaparece da
superfície, mergulha e volta depois a sobrenadar. Por exemplo, Karataiev dilatou-
se e desapareceu. «Compreende, meu filho?», dizia-lhe o mestre.
— Compreendeu. Caramba! — gritava uma voz, e Pedro acordou.
Endireitou-se, ficando sentado no chão. Ao clarão da fogueira, sentado de
cócoras, um francês, que acabava de empurrar um soldado russo, assava um
pedaço de carne na ponta da vareta de uma espingarda. As suas mãos vermelhas
e peludas, de dedos curtos e musculosos, manejavam a vareta com perícia. O seu
rosto, de cor terrosa e sobrecenho franzido, recebia em cheio o clarão das brasas.
— Isso é-lhe indiferente — resmungou, dirigindo-se a um soldado de pé atrás
dele. — Bandido! Ala!
O soldado que manuseava a vareta da espingarda relanceou um soturno olhar
para o lado onde estava Pedro. Este voltou-se e pôs-se a fitar o escuro. Um dosprisioneiros, esse mesmo que o francês empurrara, estava sentado junto da
fogueira e parecia acariciar com a mão fosse o que fosse. Pedro olhou mais
atentamente e viu o cachorrito arruivado abanando a cauda, ao pé do soldado.
— Ah!, voltou? — disse Pedro. — Eh! Pla. Mas não pode concluir.
De súbito, na imaginação, misturaram-se-lhe ao mesmo tempo e olhar que lhe
lançara Platão sentado de encontro à árvore, o tiro que ressoara para esses lados,
os uivos o cão e a expressão comprometida dos dois franceses passando a correr
diante dele, com a espingarda ainda fumegante. E juntando a isso o
desaparecimento de Karataiev só então pareceu compreender que o desgraçado
fora abatido. No mesmo instante, porém, sem saber como, passou-lhe por diante
dos olhos a varanda da sua casa de Kiev, onde passara uma noite de Verão com
uma linda polaca, Sem relacionar estas lembranças com as impressões de
momento, e sem nada concluir, Pedro fechou os olhos, e o quadro que evocara — a
noite de Estio —, trazendo-lhe à ideia um banho refrescante e a esfera líquida em
movimento, fê-lo sentir-se afundar numa massa de água onde todo ele
desaparecia.
Antes do nascer do Sol acordou com um vivo tiroteio e uma grande algazarra.
Os franceses corriam como loucos.
— Os cossacos — gritava um deles e instantes depois Pedro estava rodeado de
caras russas.
Levou tempo a compreender o que se passava. Ouviam-se por todos os lados
exclamações entusiastas dos seus compatriotas.
— Meus irmãos! Meus amigos! Meus queridos camaradas! — gritavam, com
as lágrimas nos olhos, velhos soldados, apertando nos braços cossacos e hússares.
Estes cercavam os prisioneiros e ofereciam-lhes, à discrição, pão, roupas, botas.
Pedro, no meio deles, soluçava, incapaz de articular palavra. Porém, tomando nos
braços o primeiro soldado que lhe apareceu, beijou-o, chorando.
Dolokov estava de pé diante do portão da casa em ruínas assistindo ao desfile
das tropas francesas desarmadas. Estas, desorientadas com o que acontecera,
falavam entre si em alta voz, mas, ao passarem diante de Dolokov, que fustigava
as botas com a chibata, fitando-as com olhos frios e vidrados, onde nada de bom se
lia, calavam-se. Ao lado dele, o cossaco contava os prisioneiros, marcando a giz, na
porta, centena por centena.
— Quantos? — perguntou-lhe Dolokov.— É a segunda centena — respondeu-lhe ele.
— Toca a andar, toca a andar! — dizia Dolokov, que aprendera com os
franceses esta expressão. E o seu olhar, quando se encontrava com o dos
prisioneiros, despedia centelhas de crueldade.
Denissov, de ar triste e cabeça descoberta, seguia atrás dos, cossacos que
transportavam o corpo de Pétia Rostov, que ia a enterrar num fosso aberto no
jardim.
[XVI]
A partir de 28 de Outubro, data em que principiaram os frios, a retirada
francesa assumiu um aspecto trágico. Alguns homens morriam gelados, outros
tentavam aquecer-se junto de fogueiras; outros ainda, embrulhados em quentes
peliças, continuavam a fuga, levando nas seges os bens do imperador, dos reis e
dos duques. No conjunto, porém, nada mudara no estado de decomposição do
exército em retirada.
De Moscovo a Viazma, os seiscentos e treze mil homens de que se compunha o
exército francês ficaram reduzidos a pouco mais de trinta e seis mil, sem contar a
Guarda, a qual, durante toda a campanha, outra coisa não fizera que pilhar. Dos
seus trinta e seis mil homens, no máximo não apareceram no campo de batalha
mais de cinco mil. Eis o primeiro termo da proporção que pode determinar
exactamente o que veio a ocorrer depois. O exército francês liquefez-se e
desapareceu, na mesma proporção, de Moscovo a Viazma, de Smolensk ao
Beresina, do Beresina a Vilna, independentemente do frio mais ou menos intenso,
em consequência da perseguição que lhe moviam os Russos, dos obstáculos que
encontravam no caminho ou de todas as outras circunstâncias isoladamente.
Berthier escrevia ao amo nos termos seguintes, e toda a gente sabe quanto se
afastam da verdade os chefes que descrevem a situação do seu exercito:
Creio dever levar ao conhecimento de Vossa Majestade
o estado das suas tropas nos vários corpos de exército, o
qual pude verificar em diferentes pontos de há dois ou trêsdias para cá. Estão por assim dizer em debandada. Os
soldados que seguem as bandeiras são apenas a quarta
parte dos efectivos em todos os regimentos; os demais
marcham isoladamente, em diversas direcções, e por conta
própria, na esperança de encontrarem que comer e para se
verem livres da disciplina. Em geral consideram Smolensk o
ponto onde se reorganizarão. Nestes últimos dias,
numerosos soldados deitaram fora as armas e os cartuchos.
Perante tal estado de coisas, o serviço de Vossa Majestade
exige, sejam, quais forem os objectivos ulteriores, que as
tropas se reorganizem em Smolensk, principiando por
desembaraçá-las dos não combatentes, ou seja, dos homens
a pé, das bagagens inúteis e do material de artilharia, em
desproporção com as forças actuais. Além de dias de
descanso são necessários mantimentos para os soldados
extenuados pela fome e pela fadiga; nos últimos dias
morreram muitos nas estradas e nos bivaques. Este estado
de coisas vai de mal a pior e faz-nos recear, caso se lhe não
dê pronto remédio, não termos mão nas tropas para as
obrigar a combater.
9 de Novembro, a trinta verstas de Smolensk.
Ao atingirem Smolensk, para os soldados uma espécie de terra de promissão,
matam-se uns aos outros pelo pão para a boca, assaltam os seus próprios
armazéns e quando tudo se acaba continuam a sua rota.
Todos caminhavam sem saber porque avançavam nem onde iam e ainda menos
do que ninguém o sabia o próprio Napoleão, esse génio, ele que não recebia
ordens de quem quer que fosse. Mas nem por isso deixavam de seguir os velhos
hábitos, ele e os seus generais; lá continuavam, como sempre, a expedir
instruções, mensagens, relatórios, ordens do dia, e a dizer uns para os outros:
«Sire, meu primo, príncipe de Eckmühl, rei de Nápoles.» No entanto, todas estas
ordens, todos estes relatórios, não passavam do papel. Já nada se executava,
porque nada podia ser executado, e, apesar de todos os pomposos títulos que se
davam uns aos outros, sentiam que não passavam de pobres e miseráveiscriaturas, que muito mal haviam feito, e agora tinham de prestar contas. E,
embora se fingissem interessados pelo destino do exército, só numa coisa
pensavam, lá no seu íntimo: fugirem o mais depressa que pudessem e salvarem-se,
se ainda fossem a tempo.
[XVII]
Os movimentos das tropas russas e francesas durante a retirada de Moscovo
ao Niémen fazem lembrar o jogo da cabra-cega. E como se vendassem os olhos dos
jogadores, e um deles, de tempos a tempos, tocasse numa sineta a desafiar o
outro. De princípio, toca destemido, mas, quando se vê em posição desvantajosa,
trata de fugir do parceiro em silêncio; e, no entanto, cai-lhe amiúde nas mãos.
Nos primeiros tempos, os exércitos de Napoleão assinalavam a sua presença:
foi isso no início da retirada pela estrada de Kaluga. Mais tarde, quando meteram
pela de Smolensk, fugiram, com o badalo da sineta bem seguro, e por mais de uma
vez, pensando que escapavam, foram cair no papo dos Russos.
Graças à rapidez da fuga dos Franceses perseguidos pelos Russos, e à fadiga
dos cavalos que daí resultava, a melhor maneira de conhecerem,
aproximadamente, a posição do inimigo, isto é, os reconhecimentos de cavalaria,
era coisa que não existia. Além disso, resultado das mudanças rápidas na situação
recíproca dos dois exércitos, as informações, quaisquer que fossem, não chegavam
a tempo. Se no dia 2 do mês vinham a saber que e exército inimigo se encontrava
no dia 1 em tal sítio, no dia 3, data em que era possível empreender qualquer
acção, o dito exército já fizera duas jornadas de marcha e ocupava outra posição,
Um dos exércitos fugia, o outro perseguia-o. A partir de Smolensk, várias eram
as estradas que se ofereciam aos Franceses. Era de supor que após quatro dias de
permanência ali lhes fosse possível saber com exactidão onde estava o inimigo,
permitindo-lhes traçar um plano favorável e tentar nova campanha. Mas,
passados esses quatro dias, os bandos escaparam-se pela direita e pela esquerda,
sem um movimento definitivo ou um percurso previsto, tomando a antiga estrada,
a mais perigosa, a estrada por Krasnoie e Orcha, via já por eles percorrida.
Supondo terem o inimigo na retaguarda, e não na vanguarda, fugiram,deixando entre eles intervalos de mais de vinte e quatro horas de marcha. A
frente vinha o imperador, depois os reis e os duques. O exército russo, persuadido
de que Napoleão ia meter pela direita e atravessar o Dniepre, aliás a única
estrada razoável, seguiu esta direcção, desembocando na estrada real para
Krasnoie. E foi ali, como se jogassem a cabra-cega, que os Franceses encontraram a
vanguarda russa. Tomados de pânico perante a inesperada aparição, pararam,
mas depressa se puseram em fuga, abandonando os que vinham atrás deles. Eis
(,orno, durante três dias, passaram corpos separados uns atrás dos outros através
da torrente das forças russas, primeiro o do vice-rei, depois o de Davout, em
seguida o de Ney, Abandonaram-se mutuamente à sua infeliz sorte, perdendo as
bagagens, a artilharia, metade dos homens, fugindo, com um único pensamento:
contornarem os Russos pela direita a coberto da noite..
Ney, que, apesar da infeliz situação das tropas , talvez precisamente por essa
circunstância, ficara para trás ocupado a fazer saltar as muralhas de Smolensk, que
a ninguém incomodavam, só para castigo da terra que determinara a sua perda,
era o último a marchar com o seu corpo de dez mil homens. Reunira-se a Napoleão
em Orcha, reduzido a mil homens, depois de ter espalhado o resto, bem como os
canhões, em marchas nocturnas através dos bosques para alcançar o Dniepre.
De Orcha prosseguiram a sua rota para Vilna, sempre a jogar à cabra-cega com
o exército que os perseguia. No Beresina, nova confusão: muitos afogaram-se,
outros renderam-se: mas os que conseguiram atravessar o no lá continuaram.
Entretanto o seu grande chefe enfiava uma peliça, sentava-se num trenó e fugia
sozinho, abandonando os companheiros. Os que puderam fizeram o mesmo, os que
não puderam deixaram-se apanhar ou morreram.
[XVIII]
Dir-se-ia que perante esta fuga doida dos Franceses, quando eles faziam tudo
para se perderem a si mesmos, quando todos os seus movimentos, desde o desvio
pela estrada de Kaluga até à fuga atrás do chefe do exército, eram desprovidos de
qualquer bom senso, dir-se-ia que, ao menos, para este primeiro período da
campanha, os historiadores, que atribuem a acção das massas à vontade de um sóhomem, confessassem o erro das suas teorias ao descreverem esta retirada.
Montanhas de livros se escreveram sobre esta campanha e em toda a parte se
encontram exaltadas as disposições tomadas por Napoleão, a argúcia dos seus
planos e das suas manobras e o génio dos seus marechais.
Explicam-nos, por uma série de profundos raciocínios, o motivo da retirada dos
Franceses de Maloiaroslovets por uma estrada devastada quando se lhes deixava
a passagem livre por uma região rica em abastecimentos e se lhes oferecia o
caminho paralelo que seguiu posteriormente Kutuzov para os perseguir. Também
se nos explica assim a retirada de Smolensk para Orcha. Em seguida traçam-nos
um quadro do comportamento heróico de Napoleão em Krasnoie, onde, ao que
parece, teve intenção de travar batalha e pôr-se à frente das suas tropas. E
mostram-no-lo de um lado para o outro, com uma vara de olmo na mão, dizendo
— Já estou farto de fazer de imperador, é tempo de fazer de general. — O que
o não impediu, pouco depois, de prosseguir na fuga, abandonando à sua triste
sorte todos os corpos de exército dispersos que o seguiam.
Descrevem-nos igualmente a bravura dos marechais, particularmente a de
Ney, bravura que se limitou a operar um desvio pela floresta a fim de atravessar o
Dniepre de noite e fugir na direcção de Orcha, depois de perder as bandeiras, a
artilharia e nove décimos dos efectivos.
Enfim, o abandono pelo grande imperador do seu heróico exército é-nos
apresentado como uma grande acção e um rasgo de génio. Até mesmo o
empreendimento final da sua fuga, que em qualquer língua só pode ter um nome,
a última das cobardias, acto que envergonharia uma criança, até mesmo isso
encontra a sua justificação na pena dos historiadores.
Quando já lhes não é possível estenderem mais o fio elástico dos raciocínios,
quando o acto é realmente contrário ao que os homens chamam o bem e a justiça,
recorrem. à míngua de argumentos. à noção de grandeza. A grandeza parece
excluir a possibilidade de apreciar o bem e o mal. O mal não existe para o que é
grande. Quem é grande nunca poderá ser acusado de uma atrocidade.
«É grande!», dizem os historiadores, e então deixa de existir o bem e o mal,
para só haver o que é grande e o que não é grande. O que é grande é o bem, o
que não é grande é, o mal. O grande é, segundo eles, privilégio de indivíduos
especiais que recebem a classificação de heróis. Napoleão, muito bem embrulhado
numa peliça, volta para casa, deixando morrer não só companheiros, mas pessoasque, assim ele o confessou, arrastara atrás de si. Para si mesmo diz: sou o grande,
e a alma tranquiliza-se-lhe.
«Do sublime ao ridículo vai apenas um passo», dizia Napoleão, e o sublime era
ele próprio. E de há cinquenta anos para cá o universo inteiro repete: «Sublime!
Grande! Napoleão, o Grande! Do sublime ao ridículo vai apenas um passo!»
E a ninguém ocorre que confessar que a grandeza está para além do bem e do
mal é como reconhecer ao mesmo tempo a sua inferioridade e a sua infinita
pequenez. Para nós, que recebemos de Cristo a medida do bem e do mal, nada
existe fora dessa medida. Não há autêntica grandeza sem espontaneidade,
bondade e verdade.
[XIX]
Haverá algum russo que ao ler as descrições do último período da campanha
de 1812 não tenha experimentado um penoso sentimento de despeito,
descontentamento e inquietação? Quem não terá perguntado a si próprio: porque
não fizeram prisioneiros, porque não exterminaram todos os franceses, tendo três
exércitos muito superiores em número a cercá-los, e eles, em debandada,
morrendo de fome e de frio, se entregavam em massa, e sabendo nós, assim no-lo
diz a história, que o objectivo dos Russos era precisamente deter, cortar a retirada
e capturar todos os franceses?
Como se explica que o exército russo, menos numeroso que o francês, tenha
travado a batalha de Borodino e não haja atingido o seu objectivo quando cercava
o inimigo por três lados e a sua intenção era aniquilá-lo? Tinham então os
Franceses tão grande superioridade sobre nós que os não podíamos bater mesmo
cercados por forças esmagadoras? Como pôde acontecer uma coisa destas?
A história, pelo menos a que se vangloria de tal nome, responde que a culpa
foi de Kutuzov, Tormassov, Tchitchagov, deste e daquele, que não fizeram estes ou
aqueles movimentos.
Mas porque não fizeram eles esses movimentos? Partindo do princípio de que
eram culpados de não terem sabido atingir o objectivo previsto, porque não foram
eles submetidos a conselho de guerra e devidamente castigados? E, se se admiteque Kutuzov, Tchitchagov e os outros são culpados de tais reveses, não se
compreende, mesmo nas condições em que se encontravam as tropas russas em
Krasnoie e no Beresina — e em ambos os casos a sua superioridade era
esmagadora —, não se compreende porque o exército francês não foi capturado
com os seus marechais, os seus reis e o seu imperador, uma vez que essa era a
finalidade dos Russos.
A explicação deste facto estranho, dada pelos historiadores russos, qual seja
que Kutuzov se teria oposto ao ataque, cai pela base, pois toda a gente sabe que a
vontade do general-chefe não evitara o ataque em Viazma e em Tarutino.
Porque é que este exército russo, que, com forças inferiores, em Borodino,
alcançou uma vitória sobre um inimigo em pleno vigor, veio a ser vencido por
bandos desorganizados de franceses em Krasnoie e no Beresina, quando dispunha,
então, de superioridade esmagadora?
Se o objectivo dos Russos era cortar a retirada ao exército francês e aprisionar
o imperador e os seus marechais, o certo é que esse objectivo não só não foi
alcançado, como todos os esforços no sentido de o conseguir foram malogrados de
maneira lamentável, de tal modo que o último período da campanha se apresenta,
com justa razão, como uma série de vitórias dos Franceses e que os historiadores
russos se enganam redondamente ao considerá-lo vitorioso.
Os historiadores russos, forçados a admitir a lógica, chegam fatalmente a esta
conclusão, e a verdade é que, não obstante as suas pomposas frases sobre a
coragem e a dedicação, se vêem obrigados a admitir que a retirada de Moscovo é
assinalada por uma série de vitórias de Napoleão e de derrotas de Kutuzov.
No entanto, pondo de parte todas as questões de amor-próprio nacional,
sente-se que esta conclusão encerra em si uma contradição, pois essa série de
vitórias levou os Franceses ao aniquilamento total, enquanto as derrotas dos
Russos os levaram ao esmagamento do inimigo e à libertação da Pátria.
A razão desta contradição está no facto seguinte: que os historiadores, que
estudam os acontecimentos de harmonia com a correspondência dos imperadores
e dos generais e segundo relatórios, relações ou planos, pressupõem um objectivo
errado, que nunca existiu no período final da guerra de 1812, o qual era cortar a
retirada aos exércitos franceses e capturar Napoleão com os seus marechais.
Nunca existiu semelhante objectivo, nem podia existir, visto não ter o mais
pequeno sentido e ser absolutamente impossível de alcançar.Semelhante finalidade não tinha o mais pequeno sentido, primeiro porque o
exército derrotado de Napoleão fugia da Rússia o mais depressa que podia, isto é,
procedia exactamente de acordo com os desejos dos Russos.
Para quê operações contra os Franceses, quando eram eles próprios quem
retirava a toda a pressa?
Em segundo lugar, era absurdo cortar a retirada a quem se empenhava em
fugir com toda a força.
Em terceiro lugar, era estúpido sacrificar as próprias forças para esmagar os
exércitos franceses, os quais, sem causas exteriores, desapareciam numa proporção
tal que, sem que se opusesse qualquer obstáculo à sua fuga, se lhes tornava
mesmo assim impossível transpor a fronteira (como o vieram a conseguir em
Dezembro) senão reduzidos à centésima parte dos seus efectivos.
Em último lugar, o projecto para aprisionar o imperador, os reis e os duques
era ridículo, pois a captura de tais personalidades só teria servido para prejudicar
a política russa, como o reconheceram os melhores diplomatas da época. Joseph de
Maistre e outros. E ainda era mais insensato quererem os Russos apoderar-se dos
corpos franceses quando as tropas russas estavam reduzidas a metade antes de
Krasnoie e seria precisa uma divisão de escolta para guardar os prisioneiros,
quando era certo que os soldados russos nem sempre tinham a sua ração completa
e que os franceses já capturados morriam de fome.
Esta profunda concepção segundo a qual se deveria cortar a retirada aos
exércitos franceses e aprisionar Napoleão faz lembrar a atitude de um hortelão
que para enxotar o gado que lhe espezinha a horta corre à porta da quinta e se
põe a bater na cabeça dos animais. Só um excesso de ira justificaria semelhante
atitude. Mas nem isto era de invocar para justificação dos autores do projecto,
pois a verdade é que não tinham tido sequer o horto espezinhado.
Aliás, cortar a retirada a Napoleão e ao seu exército era uma operação não só
absurda, mas impossível.
Impossível, primeiro, porque, se é verdade que a experiência ensina que um
movimento executado a cinco verstas de um campo de batalha nunca se harmoniza
com o plano primitivo, era tão inverosímil que Tchitchagov, Kutuzov e
Wittgenstein chegassem a tempo ao local determinado que pode dizer-se
impossível. Tal a opinião de Kutuzov ao saber da existência do plano, dizendo que
uma diversão a grandes distâncias não pode dar o resultado esperado.Em segundo lugar, impossível porque, para se conseguir paralisar a força da
inércia que fazia recuar o exército francês, era preciso dispor de tropas a
incomparavelmente superiores àquelas que os Russos tinham.
Em terceiro lugar, ainda impossível porque a expressão militar de «cortar a
retirada» a um exército não tem sentido. Pode cortar-se um bocado de pão, mas
um exército, de maneira nenhuma. Cortar a retirada a um exército, isto é, cortar-
lhe o caminho, não é coisa que se possa fazer, pois há sempre maneira de
contornar o obstáculo, e há a noite, durante a qual todo e qualquer movimento se
torna desapercebido, coisa de que os especialistas militares Puderam persuadir-se
graças a Krasnoie e ao Beresina. É absolutamente impossível aprisionar seja quem
for, a menos que o aprisionado consinta, pela mesma razão de que então é
possível apanhar uma andorinha, a não ser que ela venha pousar na nossa mão.
Capturam-se aqueles que se entregam, como os Alemães, segundo as regras da
estratégia e da táctica. Mas os Franceses não viam nisso vantagem alguma, pois
em fuga ou capturados só a fome e o frio os esperavam.
Em quarto lugar, sobretudo, deve considerar-se que desde que o mundo é
mundo nunca houve guerra em condições tão terríveis como a de 1812, e que os
exércitos russos, para perseguirem os Franceses, haviam posto em jogo todas as
suas forças e não podiam fazer mais sem se aniquilarem a si próprios.
Durante a sua marcha de Tarutino para Krasnoie, os Russos Perderam
cinquenta mil doentes e retardatários, quer dizer, um número de homens igual à
população de uma importante cidade de província. Metade do exército perdeu-se,
sem combate.
A propósito deste período da campanha em que as tropas, sem botas e sem
agasalhos, com abastecimentos insuficientíssimos, sem vodka, tiveram de passar
as suas noites, durante meses, no meio da neve, com temperaturas de quinze
graus negativos em que os dias apenas tinham sete ou oito horas de luz solar e as
noites eram sem fim, o que tornava impossível toda a disciplina eficaz: em que os
homens, não como numa batalha, onde não vêem a morte diante dos olhos senão
durante algumas horas, Passavam meses inteiros receando, a cada instante,
morrer de fome e de frio; em que, no decurso de um mês, metade do exército
soçobrou, a este propósito vêm os historiadores contar-nos tranquilamente como
Miloradovitch se viu obrigado a fazer uma marcha de flanco em tal sítio,
Tormassov em tal outro e Tchitchagov se viu forçado a deslocar-se paradeterminado ponto, deslocação levada a cabo com neve para cima dos joelhos dos
homens, e como fulano caiu em cima do inimigo e lhe cortou a retirada, etc.
Os Russos, reduzidos, por morte, a metade dos seus efectivos, fizeram tudo o
que puderam e deviam fazer para atingir um objectivo digno e a culpa não é sua
se outros russos houve que, fechados em quartos confortáveis, gizaram planos que
se não podiam pôr em prática.
Esta contradição estranha, que se não compreende nos nossos dias, entre os
factos e as descrições dos historiadores resulta apenas de estes terem querido
fazer a história dos belos discursos de certos generais em vez de contarem os
acontecimentos.
Interessante para eles são as palavras de Miloradovitch, as condecorações
recebidas por este ou por aquele general, os planos propostos. Os cinquenta mil
desgraçados que ficaram nos hospitais ou caíram por terra não lhes interessam,
porque não dizem respeito aos seus estudos.
E, no entanto, basta voltarmos as costas ao exame dos relatórios e dos planos
para vermos remexer essas centenas de milhares de homens que tomaram parte
directa e imediata nos acontecimentos e tudo o que anteriormente nos parecia
insolúvel se nos apresentar desde logo como a solução mais fácil e mais simples.
O intento de cortar a retirada a Napoleão e ao seu exército apenas existiu na
imaginação de meia dúzia de indivíduos. Era irrealizável, por absurdo e impossível.
O povo só queria uma coisa: libertar o solo pátrio da invasão. Esse objectivo
alcançou-se, primeiro sem a intervenção fosse de quem fosse, visto que os
Franceses fugiam e bastava deixá-los fugir; em segundo lugar, graças à guerra
patriótica que exterminava os Franceses; e por fim porque um poderoso exército
russo seguia de perto o inimigo, pronto a utilizar a força caso os Franceses
parassem no caminho.
O exército russo devia agir como o chicote no dorso do animal que foge. E os
pastores hábeis sabem que a melhor maneira de conduzir o gado é segurar o
chicote ameaçador no ar sem fustigar a cabeça dos animais.
QUARTA PARTE
[I] [II] [III] [IV] [V] [VI] [VII] [VIII] [IX] [X] [XI] [XII] [XIII] [XIV] [XV] [XVI]
[XVII] [XVIII] [XIX] [XX] [XXI]
[I]
Quando o homem vê morrer um animal, fica aterrorizado. A qualidade de ser
vivo de que ele próprio participa desaparece diante dos seus olhos, deixa de
existir. Mas quando aquele que morre é um ser humano, e um ser querido, além
desse horror perante a vida que desaparece, o homem sente um dilaceramento,
uma ferida moral que, como o ferimento físico, em certos casos leva à morte,
noutras cura-se e por vezes também continua sensível e receia os contactos
exteriores.
Depois da morte do príncipe, Natacha e a princesa Maria passaram ambas por
essa experiência. Prostradas moralmente, esmagadas sob a terrível nuvem da
morte que se estendera sobre elas, deixaram de ser capazes de olhar a vida cara a
cara. Preservavam cuidadosamente a sua ferida, que ainda sangrava, contra
qualquer contacto capaz de a irritar. Uma carruagem que passava depressa de
mais na rua, o anunciarem estar o jantar na mesa, a pergunta de uma criada
relativa ao fato que era preciso preparar, e, ainda mais, uma palavra de simpatia
pouco sincera, ou expressa de maneira superficial, tudo lhes irritava
dolorosamente a ferida, produzindo-lhes a impressão de um ultraje, rompendo a
calma que lhes era necessária para estarem atentas ao coro terrível e severo que
não deixava de lhes ressoar na imaginação e as impedia de contemplar as
distâncias misteriosas e infinitas que por instantes se haviam desvendado diante
delas.
Só quando estavam sós nada as feria ou lhes fazia mal. Trocavam poucas
palavras entre si. Quando falavam, era das coisas mais insignificantes. Tanto uma
como outra evitavam toda a espécie de alusões ao que pudesse ser o futuro.
Admitirem sequer a possibilidade de um futuro era uma ofensa à sua saudade.
E ainda eram mais cautelosas em evitar que nas suas conversas se filtrasse fosse o
que fosse alusivo ao defunto. Afigurava-se-lhes que as provas e as impressões por
que tinham passado não podiam exprimir-se por meio de palavras.Parecia-lhes que qualquer alusão a pormenores da sua vida quebrava a
majestade e a santidade do mistério que passara diante dos seus olhos.
A discrição que punham rias palavras, o silêncio em relação a qualquer coisa
que o pudesse lembrar, a maneira de se manterem sempre na reserva, só
concorriam para lhes aguçar a sensibilidade.
Mas é tão impossível uma dor pura e perfeita como uma pura e perfeita
alegria, A princesa Maria, de então para cá única senhora do seu destino, tutora e
educadora do sobrinho, foi a primeira a ouvir a voz da vida chamando-a para fora
dessa atmosfera de tristeza em que vivera as duas primeiras semanas. Teve de
responder a cartas de parentes seus. O quarto em que dormia Nikoluchka era
húmido e a criança principiou a tossir.
Alpatitch chegou a Iaroslav com as suas contas, propondo e aconselhando o
regresso a Moscovo, pois a casa da Vozdvienka ficara intacta e apenas precisava,
para ser ocupada, de algumas pequenas reparações. A vida não parava e era
preciso viver. Por mais penoso que fosse para ela sair daquela solidão
contemplativa em que vivera até aí, por mais escrúpulos e por mais que lhe
custasse deixar Natacha sozinha, a vida reclamava-a, e ela não tinha outro
remédio se não submeter-se-lhe. Verificou as contas de Alpatitch, aconselhou-se
com Dessales a respeito do sobrinho e preparou as coisas para regressar a
Moscovo.
Natacha, só, evitava vê-la sequer desde que ela se pusera a preparar a
partida.
A princesa Maria pediu licença à condessa para que Natacha a acompanhasse,
e o pai e a mãe consentiram da melhor vontade, pois notavam que as forças físicas
da filha diminuíam a olhos vistos. Pensavam que uma mudança de ares lhe seria
favorável e que podia consultar os médicos de Moscovo.
— Não irei a parte alguma — respondeu Natacha às propostas que lhe fizeram
—, só desejo uma coisa, que me deixem em paz — E dizendo isto fugiu, retendo
dificilmente as lágrimas menos de dor que de despeito e cólera.
Desde que se sentira abandonada pela companheira e entregue sozinha à sua
dor passava a maior parte do tempo no quarto, enterrada no canto do divã,
entretendo os dedos finos e ágeis nalgum trabalho maquinal, os olhos fixos
obstinadamente, e sem verem, num ponto qualquer na sua frente. Esta solidão
esgotava-a, fazia-lhe mal, mas era-lhe necessária. Quando alguém entrava noquarto, levantava-se imediatamente, mudava de atitude, modificava a expressão
do olhar e punha-se a ler ou a coser, esperando, impaciente, que o importuno
voltasse a sair. Parecia-lhe sempre estar a ponto de compreender e penetrar o
terrível e, acabrunhador problema que lhe tomava todas as forças espirituais.
No fim de Dezembro, com um vestido de lã preto, a trança negligentemente
amarrada no alto da cabeça, magra e pálida, Natacha estava acocorada no seu
divã, desfiando inconscientemente a ponta do cinto, os olhos fitos no àrigulo da
porta.
Olhava o ponto donde ele partira para a outra vida. E essa outra vida em que
ela não pensara antes, que se lhe afigurava tão distante, tão inverosímil, era-lhe
agora próxima e familiar, muito mais inteligível que a vida presente, onde só
havia futilidades e ruínas, sofrimento e dor.
Olhava para o ponto onde ela sabia que ele estava, mas não podia vê-lo senão
como o vira nos últimos tempos. Via-o como ele estava em Mitichtchi, em Troisa,
em Iaroslav.
Via-lhe o rosto, ouvia-lhe a voz, repetia as suas próprias palavras e as que ele
lhe dirigia e por vezes imaginava ainda frases que poderiam ter trocado.
Ele ali estava, estendido na poltrona, com o casaco forrado de veludo, a cabeça
apoiada na mão magra e pálida. Tem o peito metido para dentro e os ombros
salientes, os lábios cerrados, os olhos brilhantes e rugas lhe aparecem e
desaparecem na testa pálida. Uma das suas pernas agita-se nervosamente de
maneira quase insensível. Natacha pensa que ele está lutando naquele momento
contra uma dor pungentíssima. Que dor? Porquê essa dor? Que sente ele? Que
espécie de dor é a sua?, pensa Natacha. Ele, porém, reparou que ela está inquieta,
ergueu os olhos e pôs-se a falar sem sorrir.
«Que coisa horrível ligar-se uma mulher para toda a vida a um homem doente.
É um suplício perpétuo.» E, falando assim, olhava-a escrutadoramente. Natacha,
como sempre, responde-lhe sem reflectir no que lhe diz: «Isso não pode continuar
assim, não pode ser, há-de recuperar a saúde por completo.»
Só agora podia ler no seu pensamento e reviver os seus sentimentos de então.
Lembrava-se do triste e severo olhar que por muito tempo pousara nela quando
falara e compreendeu a espécie de reproche e de desespero que esse olhar
encerrava.
«Era de considerar», dizia ela agora, «horrível ele permanecer sempre naquelesofrimento. Falei então desse modo porque, efectivamente, seria horrível para
ele, mas ele interpretou as minhas palavras de outra maneira. Julgou que eu
queria dizer que seria horrível para mim. Nessa altura ainda ele tinha amor à
vida, ainda tinha medo de morrer. Fui estúpida, brutal. Falei sem reflectir. Estava
a pensar em coisa muito diferente. Se eu me tivesse expressado como realmente
pensava, ter-lhe-ia dito que seria feliz vendo-o agonizante, sempre agonizante
diante dos meus olhos, que preferia isso a sofrer como hoje sofro. Hoje nada mais
existe, ninguém. Teria ele compreendido o fundo do meu pensamento? Não, não o
compreendeu nem nunca o poderá conhecer. E agora nunca, nunca mais poderei
reparar a falta que cometi.» E lá está ele a dirigir-lhe as mesmas palavras e
mental— mente ela a responder-lhe de maneira totalmente diferente. Fá-lo calar
e diz-lhe: «Isso é horrível para si, mas não para mim. Sem si, a vida, para mim, não
tem sentido, e sofrer consigo seria, para mim, a maior das felicidades.» E ele,
então, pega-lhe na mão e aperta-a entre as suas, como nessa medonha noite,
quatro dias antes do fim. E imaginava palavras de ternura e amor que então lhe
não saíram dos lábios, mas que lhe dizia agora, «Amo-te!... Sim, amo-te, amo-te»,
repetia ela, juntando convulsivamente as mãos e apertando os dentes uns contra
os outros com a maior violência.
E então invadia-a uma dor menos amarga e as lágrimas saltavam-lhe dos
olhos. De súbito, porém, perguntava a si própria a quem estava a falar. «Onde
está ele e quem é ele agora?» E de novo se sentia submersa numa cruel incerteza,
que lhe detinha as efusões, e de sobrancelhas carregadas fixava os olhos no
espaço, na direcção onde ele podia estar. E pouco a pouco julgava ter penetrado o
mistério... No momento, porém, em que julgava que o incognoscível se lhe ia
revelar, um golpe violento no fecho da porta lhe impressiona o ouvido. Sem pedir
licença, o rosto pálido e descomposto, entra no quarto Duniacha, a criada.
— Depressa, o pai, depressa — exclama Duniacha vivamente e retendo os
soluços. — Uma desgraça, Piotre Ilitch... Uma carta.
[II]
A aversão que Natacha sentia por toda a gente ainda era mais acentuadapelas pessoas da família. Todos os seus, o pai, a mãe, Sónia, lhe eram tão
próximos, tão familiares, via-os tanta vez, que as suas palavras, os sentimentos
que eles exprimiam, lhe pareciam uma ofensa a esse mundo ideal em que vivia
naqueles últimos tempos, e testemunhava-lhes não só indiferença, mas uma
espécie de hostilidade. Ouviu sem compreender Duniacha, que lhe falava de Piotre
Ilitch e de uma desgraça.
«De que desgraça me está ela a falar, que desgraça pode ter acontecido? Para
eles, os dias decorrem sempre da mesma maneira, por hábito, tranquilamente»,
dizia de si para consigo.
Ao entrar no salão viu o pai sair bruscamente do quarto da condessa, o rosto
contraído e banhado de lágrimas. Via-se que saíra do quarto contíguo para poder
expandir a sua dor. Ao ver Natacha fez um gesto de desespero e soltou uns soluços
convulsivos que lhe contraíram a grossa e plácida figura.
— Pétia... Pétia... Depressa... Ela... chama-te. — E, a chorar como uma criança,
aproximou-se, em passos miúdos, de uma cadeira, as pernas a tremer. Deixou-se
cair nela, cobrindo a cara com as mãos.
De súbito como que uma descarga eléctrica percorreu Natacha dos pés à
cabeça. Sentiu um golpe terrível no coração, Julgou que qualquer coisa se rompera
nela e que ia morrer. Mas a dor foi imediatamente seguida do sentimento de se
haver libertado da interdição de viver que sobre ela pesava. A presença do pai, os
gritos medonhos e selvagens da mãe, ressoando no aposento vizinho, fizeram-na
esquecer a sua própria dor.
Correu para o pai, mas este, num gesto impotente, indicou-lhe a porta do
quarto. A princesa Maria, pálida e trémula, surgiu no limiar da porta, e, pegando
na mão de Natacha, disse-lhe qualquer coisa. Natacha, sem a ver, sem a ouvir,
encaminhou-se rapidamente para o quarto contíguo, parou, irresoluta, alguns
instantes, depois correu para a mãe.
A condessa estava estendida numa poltrona, sacudida por estranhas
convulsões nervosas, e batia com a cabeça na parede. Sónia e a criada seguravam-
lhe os braços.
— Natacha, chamem a Natacha!... Não é verdade... Mentem... Onde está a
Natacha? — gritava, repelindo as pessoas que a rodeavam. — Vão-se todos
embora, não é verdade! Mataram-no!... Ah! Ah! Ah!... Não é verdade!
Natacha ajoelhou-se, inclinou-se para ela, tornou-a nos braços, levantou-a comuma força inesperada e, voltando para a sua a cara da mãe, encostou-lhe os lábios.
— Mãe!... Mãezinha!... Estou aqui, minha mãezinha dizia-lhe ela muito
baixinho e incessantemente.
Não a deixou um só minuto; lutava ternamente contra ela, pedia almofadas,
água, desapertava-lhe o vestido.
— Minha querida mãe!... Minha mãezinha! — continuava, beijando-a na
cabeça, nas mãos, nas faces, e sentindo lágrimas inexauríveis correr-lhe, em
torrente, pela cara abaixo.
A condessa apertou-lhe a mão, fechou os olhos e serenou por momentos. De
súbito ergueu-se com uma energia insuspeitada, lançou à sua volta um olhar
esgazeado, e, vendo Natacha, estreitou-lhe com toda a força a cabeça entre as
mãos. Em seguida, voltando contra o seu esse rosto contraído pela dor, fitou-o
longamente.
— Natacha, gostas de mim? — disse-lhe muito baixinho, num tom confiante —
Natacha, tu não me enganas? Vais dizer-me toda a verdade.
Natacha fitou-a com os olhos velados pelas lágrimas. Parecia implorar-lhe o seu
perdão e o seu amor.
— Minha querida mãezinha — repetia, dilatando todas as f orças do seu amor,
como a tentar chamar a si parte da dor que esmagava a mãe.
E na sua luta impotente contra a realidade, esta, recusando-se a acreditar que
pudesse continuar a viver, uma vez que o seu querido filhinho morrera na flor da
idade, de novo se evadiu para o mundo do delírio, fugindo, assim, à terrível
evidência.
Natacha nunca soube dizer depois o que passara naquele dia, naquela noite, no
dia seguinte e na noite do dia seguinte. Não dormiu e não deixou a mãe um só
instante. O seu amor obstinado, paciente, que não procurava explicar nem
consolar, envolvia-a por todos os lados e a cada momento numa ternura que era
como que um apelo à vida.
Na terceira noite a condessa serenou por alguns instantes e Natacha
aproveitou a circunstância para fechar os olhos, a cabeça apoiada no braço de uma
poltrona. Ao ouvir a cama ranger abriu os olhos e viu a mãe sentada no leito a
falar baixo sozinha.
— Como me sinto feliz que tenhas voltado. Estás cansado, meu menino, queres
tomar chá?Natacha, ao ouvir estas palavras, aproximou-se da cama. — Que grande e lindo
que tu és! — continuava a condessa, apertando o braço da filha.
— Mãezinha, que estás tu a dizer? — Natacha, acabou-se, acabou-se.
E, abraçando a filha, pela primeira vez rompeu a chorar.
[III]
A princesa Maria adiara a partida. Sónia e o conde haviam tentado debalde
substituir Natacha. Reconheciam que só ela seria capaz de deter a mãe à beira de
um desespero vizinho da loucura. Durante três semanas Natacha manteve-se
continua— mente ao lado da condessa; dormia numa poltrona, dava-lhe de comer
e beber, falava-lhe constantemente, pois sabia que só a sua voz terna e carinhosa
a podia serenar.
A ferida moral da pobre senhora não podia curar-se. A morte de Pétia levara-
lhe o melhor da sua vida. Um mês depois de ter conhecimento da terrível notícia,
essa mulher de cinquenta anos, ágil e robusta, ao voltar a sair pela primeira vez,
não passava de uma velha meio morta, sem o mais pequeno interesse na vida. No
entanto a ferida que fulminara a condessa, por sua vez chamara à vida Natacha.
Por estranha que pareça, a verdade é que a ferida moral produzida por um
desregramento do espírito cicatriza-se, pouco a pouco, como uma ferida física,
renovando ela própria os seus tecidos, graças à força vital que vem de dentro.
Assim cicatrizou a ferida de Natacha. Julgava ela que a vida se lhe acabara.
Mas, de súbito, o amor pela mãe deu-lhe a prova de que a essência da sua vida, o
amor, continuava a viver dentro dela. Despertando o amor, também despertara a
vida.
Os últimos dias do príncipe André já tinham unido Natacha e a princesa Maria.
Esta nova desgraça ainda mais as aproximou. Maria adiara para mais tarde a sua
partida e durante aquelas três últimas semanas cuidara de Natacha como de uma
criança doente. As semanas passadas ao pé da mãe tinham abalado gravemente
as forças físicas da jovem.
Certa vez a princesa Maria, ao reparar que Natacha, em pleno dia, tinha
arrepios de febre, levou-a para o seu quarto e obrigou-a a deitar-se, mas quandoMaria, depois de puxar os estores, ia sair, chamou-a.
— Não me apetece dormir, Maria. Fica ao pé de mim.
— Estás fatigada, procura dormir.
— Não, não. Porque me trouxeste para aqui? Ela vai chamar-me.
— Está muito melhor. Falou hoje com muito juízo — disse Maria.
Natacha, estendida na cama, olhava para Maria na obscuridade do quarto.
«Parece-se com ele?», interrogava-se ela. «Parece-se e não se parece. Há nela
qualquer coisa de particular, de estranho, de completamente novo, que eu não
conheço. E gosta de mim. Que haverá no seu coração? Nada que não seja de
primeira ordem. Mas em que pensa ela? Que opinião tem de mim? Sim. é uma
bela alma.»
— Macha — chamou-a timidamente, puxando para si a mão da amiga. —
Macha, não vás pensar que sou má. Sim, Macha, minha querida Macha. Gosto
muito de ti. Sejamos amigas, amigas completas.
E Natacha, abraçando-a, beijou-lhe o rosto e as mãos. A princesa Maria, um
pouco confusa, respondeu, no entanto, com alegria a estas efusões.
A partir daquele dia houve entre elas uma amizade apaixonada e carinhosa, só
possível entre mulheres. Beijavam-se a todo o momento, diziam uma à outra
palavras ternas e passavam quase todo o tempo juntas. Quando uma se
ausentava, logo a outra ficava inquieta e se dava pressa em ir ao seu encontro.
Sentiam-se mais em paz consigo próprias juntas que quando separadas e
entregues a si mesmas. Um sentimento mais forte mesmo que a amizade as unia: a
convicção de não poderem viver uma sem a outra.
Algumas vezes ficavam horas inteiras sem falar; outras, assim que se
deitavam, punham-se a tagarelar até de manhã. A princesa Maria falava da sua
infância, da mãe, do pai, dos seus sonhos; e Natacha, que outrora se afastara com
tranquila indiferença daquela vida de abnegação e submissão, dessa abnegação
cristã de que desconhecia a poesia, agora, que estava unida a Maria por laços tão
ternos, adorava o seu passado, compreendia uma vida cujo sentido até aí lhe
escapara. Não pensava em praticar aquela submissão e aquela abnegação
absolutas, pois estava habituada a outras satisfações, mas compreendia e
apreciava noutrem virtudes que antes lhe eram inacessíveis. A princesa Maria, ao
ouvir a história da infância e da primeira juventude de Natacha, descobriu, pela
sua parte, um mundo desconhecido para ela: a fé na vida e nos seus prazeres.Quase nunca falavam dele, realmente, para não perturbarem, assim pelo
menos o supunham, a elevação dos sentimentos que lhes enchiam a alma, e o
silêncio que mantinham fizera que elas, Pouco a pouco, sem mesmo darem por isso,
acabassem por esquecê-lo.
Natacha estava magra e pálida, e tão fraca que todos se preocupavam com a
sua Saúde, o que lhe dava um certo prazer. Outras vezes, porém, sentia-se
subitamente dominada, senão pelo medo da morte, pelo menos pelo receio de
estar doente, de per— der as forças e a beleza, e surpreendia-se a contemplar
espantada as suas mãos descarnadas ou, pela manhã, a mirar no espelho o rosto
que se lhe afigurava repuxado e doentio. De si para consigo dizia que assim tinha
de ser, mas nem por isso deixava de ser triste e assustador.
Um dia, depois de subir umas escadas apressadamente, sentiu-se sufocar. Acto
contínuo imaginou um motivo para voltar a descer as escadas e de novo subi-las,
na intenção de observar e medir as suas forças.
De outra vez, ao chamar Duniacha, faltou-lhe a voz. Chamou-a de novo,
embora estivesse a ouvir-lhe os passos, com essa voz do peito que usava para
cantar e ficou-se à escuta.
Não o sabia nem poderia acreditar que assim fosse, mas a verdade é que sob a
espessa camada de húmus que lhe revestia a alma, parecia despontar já uma
plantazinha tenra que não tardaria a crescer e a estender os seus vigorosos
rebentos sobre a dor que a esmagava, dor que não tardaria muito a não ser
visível nem perceptível. A sua ferida cicatrizara pelo interior.
No fim de Janeiro a princesa Maria partiu para Moscovo e o conde insistiu
para que Natacha a acompanhasse na intenção de consultar os médicos.
[IV]
Depois do choque dos exércitos em Viazma, onde Kutuzov não pudera refrear o
desejo das suas tropas ansiosas por aniquilar e cortar a retirada ao inimigo, o
movimento de recuo dos Franceses, perseguidos pelos Russos, continuou até
Krasnoie sem outra batalha. A fuga era tão rápida que o exército russo não podia
acompanhar os Franceses. Havia falta de cavalos na cavalaria e na artilharia e nãose sabia com precisão onde o inimigo estava.
Os homens, extenuados por esta marcha ininterrupta, à razão de quarenta
verstas em vinte e quatro horas, não podiam andar mais depressa.
Para que possa compreender-se o grau de esgotamento do exército russo basta
verificar-se o seguinte: se desde Tarutino esse exército não perdera, entre mortos
e feridos, mais de cinco mil homens, além de uma centena de prisioneiros, e se à
saída de Tarutino contava cem mil homens, o certo é que, ao chegar a Krasnoie os
seus efectivos não iam a mais de cinquenta mil,
A rapidez da perseguição agia sobre o exército russo de maneira tão
dissolvente como a fuga no exército francês. A única diferença estava nisto: que o
exército russo avançava a seu talante, sem a ameaça que a cada momento pesava
sobre o exército francês, que via os retardatários doentes caírem nas mãos do
inimigo. Os Russos sempre estavam em sua casa. A causa principal das perdas do
exército napoleónico foi a rapidez da sua marcha e a prova incontestável está nas
perdas idênticas das tropas russas.
Kutuzov, tanto em Tarutino como em Viazma, fez tudo o que pôde para não
entravar a retirada mortífera dos Franceses, como queriam Petersburgo e os
generais do exército, antes, pelo contrário, favoreceu-a, facilitando o movimento
avante dessas tropas.
Mas, além da lassidão das tropas e das perdas que sofreram, consequência da
marcha acelerada. Kutuzov ainda tinha outro motivo para moderar os seus
ímpetos e ganhar tempo. Evidentemente que o objectivo dos Russos era perseguir
os Franceses. A estrada que estes seguiam não era conhecida daí, quanto mais os
Russos lhe seguiam o rastro, mais distanciados eles estavam. Só seguindo-os a uma
distância respeitável era possível, metendo por atalhos, cortar os ziguezagues que
o inimigo efectuava na sua marcha. As sábias manobras propostas pelos generais
traduziam-se em toda a sorte de movimentos de tropas, numa multiplicação das
jornadas e a única coisa razoável a fazer era reduzir o número destas marchas. Foi
esse o objectivo que Kutuzov procurou realizar energicamente, durante toda a
campanha, de Moscovo a Vilna, não temporariamente ou ao acaso, mas com um
tal espírito de continuidade que dele se não desviou uma só vez.
Kutuzov, não graças a um esforço de raciocínio ou mercê dos seus
conhecimentos militares, mas instintivamente, com todas as fibras do seu ser,
sentia que todos os seus soldados acreditavam na derrota dos Franceses, que oinimigo fugia e que era necessário reconduzi-lo. Ao mesmo tempo, porém, tanto
ele como os seus homens, davam-se conta do fardo que representava esta
campanha inaudita na sua rapidez e na estação do ano em que se realizava.
Quanto aos generais, sobretudo os que não eram russos, e não queriam outra
coisa senão distinguir-se, provocar surpresa, aprisionar um duque ou um rei, esses
eram de opinião de que, para travar batalha e vencer, o movimento era preciso. E
nada teria sido mais absurdo e mais culpável. Kutuzov limitava-se a encolher os
ombros quando general após general lhe vinham apresentar os seus planos de
movimentos com soldados mal calçados, sem roupas quentes e esfomeados. Num
mês, sem travar batalha, o exército russo perdera metade dos seus efectivos, e
nas condições mais favoráveis ainda tinha de percorrer até à fronteira uma
distancia maior do que a que percorrera já.
Esta ânsia de se distinguirem, de manobrarem, de esmagarem ou cortarem a
retirada ao inimigo, manifestava-se sobretudo sempre que os Russos vinham a
encontrar-se na presença do exército francês.
Assim aconteceu em Krasnoie, onde julgaram ter pela frente uma das três
colunas francesas e onde vieram a defrontar o próprio Napoleão e dezasseis mil
homens. Apesar de todos os esforços de Kutuzov para evitar um conflito funesto e
poupar os seus homens, as tropas russas extenuadas levaram três dias a aniquilar
os bandos franceses.
Toll redigiu o dispositivo: «die erste Kolonne marschirt» (Em alemão no texto
original «A primeira coluna marcha, etc.». (N dos T.), etc., E, como sempre, nada se
fez segundo o dispositivo. O príncipe Eugénio de Wurtemberg fuzilava do alto de
um monte os franceses que fugiam e pedia reforços, que nunca chegaram. Os
Franceses, iludindo os Russos, durante a noite, espalharam-se, esconderam-se lias
florestas e acabaram por escapar-se-lhes.
Milarodovitch, que dizia não querer saber das necessidades materiais do seu
destacamento, e nunca ninguém encontrava onde era preciso, esse «cavaleiro sem
medo e sem mácula», como se cognominava a si mesmo, esse amador de
entendimentos com os Franceses, enviou-lhes parlamentários com a intimação de
se renderem, perdeu o seu tempo e acabou por fazer, precisamente, que lhe não
tinham ordenado.
— Rapazes, ofereço-vos esta coluna — dizia ele para os seus soldados de
cavalaria, mostrando-lhes os Franceses.E a cavalaria, em cima de cavalos que mal se podiam mexer, instigados à força
de espora e sabre, marchou a trote curto, penosamente, sobre a coluna que ele
lhe oferecia, isto é, sobre um bando de homens mortos de fome e enregelados. E a
coluna, lançando fora as suas armas, fez o que há muito desejava: rendeu-se.
Em Krasnoie fizeram vinte e seis mil prisioneiros, tomaram centenas de
canhões e um bastão, que se dizia ser de marechal, houve discussões sobre quem
mais se distinguira, e sentiram-se contentes com isso, lamentando muito, todavia,
não terem capturado Napoleão ou outro qualquer herói, um marechal, por
exemplo, e disso se acusaram uns aos outros, responsabilizando sobretudo
Kutuzov.
Estes homens, que só davam ouvidos às suas próprias paixões, não passavam
de cegos instrumentos de uma triste e inexorável fatalidade. Mas estavam
convencidos de que eram heróis e julgavam cumprir a mais bela e a mais nobre
das missões. Acusavam Kutuzov e diziam que desde que a campanha principiara
não fizera outra coisa senão impedi-los de vencer Napoleão, que apenas pensava
em satisfazer as suas paixões e não queria abandonar as suas «casas de pano»,
pois só aí se sentia em sossego: que em Krasnoie detivera o exército, pois, ao
saber da presença de Napoleão, perdera por completo a cabeça; que estava em
contacto com ele e que fora comprado pelo imperador dos Franceses, etc.
(Memórias de Wilson. (Nota de Tolstoi).
Não só os contemporâneos, cegos de paixão, falaram assim. A posteridade
proclamou Napoleão grande e os historiadores estrangeiros disseram que Kutuzov
era um velho cortesão, débil, manhoso e corrupto. E os Russos, esses, pintaram-no
como uma criatura indefinível, espécie de palhaço, apenas útil em determinado
momento, graças ao seu nome essencialmente eslavo.
[V]
Durante os anos de 1812 e 1813, Kutuzov foi francamente acusado pelos seus
erros. O imperador estava descontente com ele. Uma história escrita nessa altura
dizia que ele era um cortesão lisonjeador e embusteiro, que tremia só de ouvir o
nome de Napoleão e, mercê dos erros que cometera em Krasnoie e no Beresina,privara o exército russo de obter uma completa vitória sobre os Franceses
(História do Ano 1812, por Bogdanovitch; retrato de Kutuzov e dissertações sobre
os resultados insuficientes da batalha de Krasnoie. (Nota de Tolstoi)..
Tal é o destino dos homens superiores que não se atribuem a si próprios o
título de «grandes homens», tão contrário ao temperamento russo, dessas raras e
únicas personalidades que, interpretando os desígnios da Providência, a ela
submetem os seus próprios. O ódio e o desprezo da multidão castigam estes
homens por haverem previsto leis superiores.
Para os historiadores russos, por estranho e penoso que isso pareça, Napoleão,
esse insignificante instrumento da história, que nunca e em circunstância alguma,
nem mesmo no exílio, deu provas de dignidade humana, esse Napoleão é motivo
de entusiasmo e exaltações: é grande. Kutuzov, pelo contrário, ele, que desde o
começo, em 1812, até ao fim da sua acção, de Borodino a Vilna, nem uma só vez se
contradisse por palavras ou actos, esse homem, que é o exemplo mais notável da
história de sacrifício e clarividência do futuro na realidade presente. Kutuzov, aos
olhos deles, não passa de qualquer coisa de indefinível e lamentável e parece
quase sempre envergonhado de falar de si próprio e dos acontecimentos em que
participou.
E no entanto é difícil conceber uma personagem histórica cujos actos tenham
sido dirigidos com maior perseverança para um só e único fim. É difícil imaginar
escopo mais nobre e mais de acordo com a vontade de todo um povo. E ainda é
mais difícil encontrar na história um objectivo de antemão assinalado que haja
sido mais completamente realizado que aquele que se propôs Kutuzov em 1812.
Kutuzov nunca falou dos «quarenta séculos que nos contemplam do alto das
Pirâmides», dos sacrifícios que fez pela pátria, do que tencionava fazer ou do que
realizou; nunca falou propriamente de si próprio, nunca se propôs representar um
papel. Sempre teve o aspecto do homem mais simples e mais comum, dizendo as
coisas mais simples e mais banais. Escrevia às filhas e a Madame de Staël, lia
romances, gostava do convívio das mulheres bonitas, gracejava com os generais,
os oficiais e os soldados, e nunca desmentia as pessoas que lhe queriam provar
fosse o que fosse. Quando Rostoptchine, na ponte de Iauza, lhe veio fazer censuras
pessoais, acusando-o de responsável pela perda de Moscovo e declarando-lhe:
«Pois quê, o senhor prometera entregar a cidade sem combate?», ele respondeu-
lhe: «Mas não a entregarei sem combate!», quando é certo que a cidade a essahora já caíra nas mãos dos Franceses.
Quando, tendo-o procurado em nome do imperador, Araktcheiev lhe disse ser
preciso nomear Ermolov para o comando da artilharia, ele respondeu-lhe: «Sim,
era precisamente isso que eu dizia», embora momentos antes tivesse dito
exactamente o contrário. Que lhe importava a ele, a única pessoa no meio daquela
gente absurda que o cercava que compreendia então o sentido formidável dos
acontecimentos, que lhe importava que a infeliz sorte da capital fosse atribuída a
Rostoptchine ou a ele próprio? E se isso lhe não importava, como lhe havia de
importar o nome do comandante da artilharia?
Não só nestes casos, mas constantemente, este velho, que adquirira, pela sua
experiência da vida, a convicção de que tudo quanto se possa pensar ou dizer está
longe de influir na direcção dos homens, apenas dizia palavras insignificantes, as
primeiras que lhe vinham à cabeça. Contudo este homem, que tão pouca
importância atribuía às suas palavras, nunca em toda a sua vida activa pronunciou
uma palavra que não tivesse em vista o objectivo único que se propusera no
decurso de toda a guerra. No entanto, a involuntariamente, é certo, apesar de ter
a certeza, bem triste, de que o não compreenderiam, mais de uma vez, em
circunstâncias muito diferentes, exprimiu o fundo do seu pensamento. Não foi ele,
depois da batalha de Borodino, causa inicial das dissensões com os homens que o
rodeavam, o único a exprimir a opinião de que aquela batalha constituía uma
vitória, opinião que repetiu tanto oralmente como nos seus relatórios e até nos
seus relatos, até à sua derradeira hora? Só ele também se atreveu a dizer que a
perda de Moscovo não era a perda da Rússia. Na sua resposta a Lauriston, que
pedia a paz, não é certo ter afirmado que a paz não era possível porque o povo a
não queria? Não foi ele o único, durante a retirada dos Franceses, que garantiu
que os movimentos russos eram inúteis, que as coisas se arranjariam por si melhor
do que o que se podia desejar, que ao inimigo que foge «ponte de euro», que não
tinham sido necessários nem o combate de Tarutino nem os de Viazma ou de
Krasnoie, que era preciso atingir a fronteira com forças suficientes, que não daria
um soldado russo por dez franceses?
E foi só ele, esse homem que nos pintam como se fosse um cortesão, e que
dizem ter mentido a Araktcheiev para agradar ao imperador, foi ele quem ousou,
em Vilna, sabendo que desagradava ao seu monarca, afirmar que a continuação da
guerra para lá da fronteira seria prejudicial e sem sentido.Não disse estas palavras apenas para provar que compreendia muitíssimo bem
o sentido dos acontecimentos. Os seus actos, todos, sem excepção alguma, visaram
este tríplice objectivo: concentrar todas as suas forças no intuito de fazer frente
aos Franceses, vencer o, inimigo e por fim expulsá-lo da Rússia, minorando quanto
possível os sofrimentos do povo e do exército.
Só ele, Kutuzov, o contemporizador, cujo lema era: «Paciência e Tempo», só
ele, o inimigo dos actos decisivos, trava a batalha de Borodino dando aos
preparativos dela uma solenidade sem exemplo. Esse Kutuzov, que em Austerlitz
previra que a batalha seria perdida em Borodino, a despeito da opinião dos
generais que afirmavam certa a derrota, a despeito do exemplo único na história
de um exército vitorioso que abandona o campo de batalha, afirma, só e até à
morte, contra a opinião de todo o mundo, que essa batalha constitui uma vitória.
Só ele, enquanto dura a retirada, insiste para que se não travem novos combates,
que eram inúteis, sustentando que se não devia começar nova guerra, nem
atravessar a fronteira.
Hoje, desde que se ponham de lado todos esses objectivos que só um reduzido
número de homens concebia, é fácil darmo-nos conta dos acontecimentos, pois
estão a ver-se agora todas as suas consequências.
Mas como é que esse velho, sozinho contra a opinião de todos os outros, pôde
adivinhar tão bem o instinto popular na inteligência dos factos que nunca o
atraiçoou?
Essa extraordinária clarividência tinha a sua fonte no sentimento patriótico
que nele vibrava em toda a sua força e em toda a sua pureza.
O povo, por estranhas vias, soube reconhecer naquele homem esse sentimento
intenso e escolher esse velho, então do desagrado do monarca, contra a vontade
do czar, para que fosse ele a, conduzir a guerra patriótica. E só esse sentimento o
colocou em tal altura moral e fez que, generalíssimo, empregasse todos os seus
esforços, não para que fossem mortos e exterminados os seus homens, mas salvos
e poupados.
Esta figura simples, modesta e por conseguinte magna figura, não podia
amoldar-se à forma mentirosa do herói europeu, pseudo-dominador dos povos, que
a história imaginou.
Não há grandes homens para o seu criado de quarto, porque o criado de
quarto tem a sua maneira pessoal de compreender a grandeza.
[VI]
O dia 5 de Novembro foi o primeiro dia da batalha conhecida pela «batalha de
Krasnoie». Para a noite, depois de muitos debates e de falsas manobras dos
generais, após numerosas expedições de ajudantes-de-campo portadores de ordens
contraditórias, quando se tornou evidente que o inimigo fugia por todos os lados e
que era impossível travar batalha, Kutuzov seguiu de Krasnoie para Dobroie, para
onde fora transferido, durante o dia, o quartel-general.
Fazia um tempo claro e frio. Kutuzov, seguido de uma imponente comitiva de
generais, que em voz baixa exprimiam o seu descontentamento, dirigia-se para
Dobroie, montado no seu bem nutrido cavalo branco. Ao longo da estrada, em
volta das fogueiras, juntavam-se os prisioneiros franceses capturados durante o
dia, num total de sete mil. A pequena distância da aldeia um grande grupo desses
prisioneiros esfarrapados, embrulhados nos primeiros trapos que tinham
encontrado à mão, falava em tom elevado, junto de uma longa fila de peças
francesas desatreladas. Quando o general-chefe se aproximou, as conversas
cessaram e todos os olhares convergiram para Kutuzov, que, com um gorro branco
de rebordos vermelhos, embrulhado numa capa almofadada, caminhava
lentamente, as costas vergadas e esbarrondado sobre o cavalo. Um general ia-lhe
explicando onde tinham sido apreendidas as peças e capturados os prisioneiros.
Kutuzov, preocupado, não ouvia o que lhe diziam. Piscava o seu único olho com
uma expressão descontente e observava os prisioneiros, de aspecto
particularmente lamentável. A maior parte deles tinham as faces e o nariz gelados
e os olhos vermelhos, inchados e lacrimosos.
Um grupo encontrava-se mesmo junto do caminho, e dois soldados, um dos
quais com a cara cheia de pústulas, rasgavam à mão um pedaço de carne crua. No
olhar furtivo que lançaram aos generais havia qualquer coisa de terrível e bestial
e o soldado do rosto em ferida teve uma expressão feroz quando viu Kutuzov,
voltando-se em seguida e continuando a sua tarefa.
O general-chefe contemplou por algum tempo esses dois soldados. Com uma
expressão cada vez mais preocupada, abanava pensativamente a cabeça. Noutroponto reparou num soldado russo que, rindo e batendo familiarmente no ombro de
um francês, lhe falava amistosamente, Kutuzov teve idêntico abanar de cabeça.
— Que estás tu a dizer? — perguntou ele ao general que continuava a fazer o
seu relatório, procurando chamar-lhe a atenção para as bandeiras francesas
capturadas que, hasteadas, se encontravam diante do regimento Preobrajenski.
— Ah! As bandeiras! — exclamou Kutuzov, arrancando-se, penosamente, ao
curso das suas reflexões.
E lançou à sua roda um olhar distraído. Milhares de olhos, à sua volta, se
fixaram nele, aguardando o que ele ia dizer. Diante do regimento Preobrajenski
parou, soltou um profundo suspiro e fechou os olhos. Alguém da comitiva fez sinal
aos soldados que empunhavam as bandeiras para que se aproximassem e estes
agruparam-se em volta do general-chefe, empunhando os estandartes. Kutuzov
esteve calado alguns instantes, e, sem grande prazer, apenas como se se
submetesse às circunstâncias, ergueu a cabeça e pôs-se a falar. A chusma dos
oficiais envolveu-o. Kutuzov percorreu-os atentamente com o olhar, reconhecendo
alguns.
— Agradeço-vos a todos! — disse, primeiro virado para os soldados e depois
para os oficiais. E no silêncio que reinava as suas palavras destacavam-se
nitidamente. — Agradeço-vos o vosso penoso e fiel serviço, A vitória é completa e
a Rússia não vos esquecerá. Que a glória seja convosco para sempre!
Calou-se e olhou em volta de si.
— Abaixa-lhe, abaixa-lhe a cabeça! — gritou ele a um soldado que inclinava,
sem querer, a águia francesa diante da bandeira do regimento Preobrajenski. —
Mais, mais para baixo, assim. Hurra!, rapazes! — gritou, dirigindo-se aos soldados
com uma contracção nervosa do queixo.
— Hurra! Hurra! — rugiram milhares de vozes.
Enquanto os soldados gritavam, ele, debruçado sobre a sela, inclinava a
cabeça, e pelo seu único olho perpassou-lhe um lampejo ligeiramente trocista.
— Ouçam-me, rapazes — principiou, quando as vozes se calaram.
E de súbito a sua voz e a expressão do rosto mudaram por completo. Já não
era o general quem falava, mas um velho, simplesmente, que queria agora
comunicar coisas urgentes aos seus camaradas.
Houve uma agitação no meio dos oficiais e nas fileiras dos soldados, todos
tentando ouvir o melhor possível o que ele ia dizer.— Ouçam, rapazes. Eu bem sei que é duro, mas que havemos de fazer? Tenham
paciência. Já não é por muito tempo. Vamos acompanhar os nossos hóspedes e
depois toca a descansar. O czar não esquecerá os vossos serviços. É duro, mas, seja
como for, vocês estão naquilo que vos pertence: em vossa casa. Mas esses, olhem
para eles, onde estão eles? — acrescentou, apontando para os prisioneiros. —
Estão em pior estado que os mais miseráveis bandidos, Quando eram poderosos,
não tínhamos que nos compadecer deles, mas agora também os podemos
lamentar. São homens como nós. Não é verdade, rapazes?
Kutuzov olhou à sua volta, e em todos os olhares atentos, respeitosamente
interrogadores, fixados nele, havia simpatia pelas suas palavras. O rosto cada vez
se lhe iluminava mais do seu bom sorriso de velho, que lhe abria estrelas de rugas
nas comissuras dos lábios e no canto dos olhos. Calou-se e baixou a cabeça: dir-se-ia
irresoluto.
— Mas, para falar verdade, quem os mandou cá vir? É bem feito, com mil
bombas! — disse, de súbito, erguendo a cabeça. Brandindo o látego, abalou a
galope, pela primeira vez em toda a campanha, no meio dos risos e dos hurras
alegres dos soldados, que principiavam a destroçar.
Evidentemente que nem todos os soldados tinham compreendido as palavras
de Kutuzov. Ninguém seria capaz de repetir textualmente este discurso, solene no
princípio e de uma simplicidade cheia de bonomia nas suas últimas frases. A
verdade, porém, é que o seu sentido íntimo não só foi bem compreendido, mas
chegou ao fundo da alma dos soldados. Esses sentimentos de grandeza majestosa
aliados à piedade para com o inimigo e à consciência de que a razão estava do seu
lado, expressos na imprecação característica do velho, correspondiam ao que eles
próprios sentiam, Essa a razão por que soltaram prolongadas e alegres
aclamações. Quando em seguida um dos generais veio perguntar ao generalíssimo
se ele queria seguir de carruagem. Kutuzov respondeu-lhe com um soluço, tão viva
era a emoção que, sentia.
[VII]
A 8 de Novembro, último dia dos combates de Krasnoie, já era noite quando astropas chegaram aos bivaques. O dia fora tranquilo, frio e com alguns raros flocos
de neve que esvoaçavam pelo ar. Para a noite o tempo clareou: através da neve
ligeira surgiu um céu estrelado, negro-violeta, e o frio tornou-se mais vivo.
O regimento de fuzileiros, que partira de Tarutino com três mil homens e
estava agora reduzido a novecentos, foi um dos primeiros a chegar ao ponto
indicado, uma aldeia situada na estrada real. Os forrageiros que tinham saído ao
seu encontro declararam que todas as isbás estavam ocupadas por doentes ou
cadáveres de franceses, a cavalaria e o estado-maior. Apenas restava uma para o
comandante do regimento.
Este último dirigiu-se à isbá devoluta. O regimento atravessou a povoação e
ensarilhou armas nas últimas casas à beira da estrada.
Como um grande animal de muitos braços, o regimento pôs-se a organizar o
seu alojamento e a tratar do rancho. Parte dos soldados, com neve até aos
joelhos, dispersou-se pela mata de álamos, à direita da aldeia, e logo se ouviram
machados e pederneiras, estalar de ramos quebrados e vozes joviais; outra parte
azafamava-se em volta das viaturas regimentais e dos cavalos agrupados no
mesmo sítio. Dos carros tiraram marmitas e biscoitos e deram aos cavalos a sua
ração. Ainda outros soldados se espalharam pela aldeia em busca de instalações
para o estado-maior, retirando os cadáveres dos franceses que atulhavam as isbás,
arrastando pranchas, lenha ou palha arrancada dos tectos das casas para
alimentar as fogueiras, demolindo os tabiques para com eles arranjar abrigos.
No extremo da povoação, uns quinze homens tratavam de derrubar, no meio
de alegre gritaria, o alto tabique de uma granja cujo telhado já fora arrancado.
— Força, força, empurremos todos juntos! — gritavam, e no meio das trevas
ouvia-se o ruído seco da divisória que estremecia, completamente coberta de
neve. O rangido era cada vez maior e por fim toda aquela massa cedeu com os
soldados que a ela se apoiavam. Ouviram-se grandes risadas e altos gritos.
— Agarrem-na os dois. Tragam uma alavanca! Assim! Onde é que te meteste?
— Força! Todos ao mesmo tempo!... Força, rapazes!... Cantem... A compasso!
Todos se calaram: depois uma voz bastante fraca, de timbre agradável, entoou
uma canção. No final da terceira estrofe, quando a última nota se extinguiu, vinte
vozes gritaram em coro: — Uuupa! — Uuupa! Todos à uma, rapazes! Isto vai!
Apesar dos esforços de todos, o tabique não se movia, e no meio do silêncio
que reinou de novo ouviu-se o resfolgar dos peitos cansados.— E então vocês, os da 6ª! Diabos vos levem! Ajudem aqui!... A gente depois
vos ajudará noutra coisa!
Uns vinte homens da 6ª companhia que iam passando juntaram-se aos que
faziam força, e daí a pouco o tabique, que tinha cinco sagenas de comprido por
uma de altura, seguia aos ombros dos soldados, ajoujados, pelas ruas da povoação
além.
— Eh, tu, lá adiante! Porque páras? Assim não. — Os gracejos, as
interpelações joviais sucediam-se.
— Que estão vocês a fazer? — gritou, de súbito, um sargento, numa voz de
comando, correndo atrás dos homens que levavam às costas o tabique — Estão aí
os patrões! Está aí o general! Ah!, seus malandros! Eu ajustarei contas com vocês!
— E deixou cair o punho fechado em cima do primeiro soldado que lhe passou à
mão. — Não podem fazer menos barulho?
Os soldados calaram-se. Aquele que apanhara o murro do sargento,
resmoneando, pôs-se a limpar a cara, que sangrava por ter batido contra o
tabique.
— Ah! Raios o partam! Isto é maneira de bater num homem? Pôs-me a cara
em lindo estado! — exclamou, sem levantar a voz, quando o sargento se afastou.
— Hem? Não gostaste!? — gracejou um deles. E os soldados prosseguiram a
sua marcha, procurando não gritar num tom tão elevado.
A saída da aldeia tornaram de novo à risota e aos ditos inofensivos.
Na isbá diante da qual os soldados tinham passado estava reunido o alto
comando, e enquanto bebiam chá os oficiais iam discutindo animadamente o dia
que findara e as manobras projectadas para depois. Tinham proposto uma marcha
de flanco sobre a esquerda, cortando a retirada ao vice-rei e capturando-o.
Quando os soldados chegaram com o tabique demolido, já por toda a parte
estavam acesas as fogueiras do rancho. A lenha estralejava, a neve derretia-se e
as sombras negras dos soldados enchiam o espaço coberto de gelo espezinhado.
Por todos os lados se ouviam machados e pederneiras. Tudo se fazia sem
ordens de comando. Acumulavam lenha para a noite, levantavam barracas para os
comandantes, a sopa cozia nas marmitas, limpavam-se as espingardas e os
fardamentos.
O tabique que a 8ª companhia transportara foi colocado em semicírculo do lado
do vento, firmado no chão por estacas, e, abrigado por ele, montaram um bivaque.Tocou a recolher, fez-se a chamada, os homens cearam e aninharam-se para a
noite diante das fogueiras, uns remendando as botas, outros fumando cachimbo,
outros despindo-se para catar os piolhos.
[VIII]
Dir-se-ia que nas condições extremamente penosas em que se encontravam
naquele momento os soldados russos, sem botas de Inverno nem peliças e
acampando a céu aberto, com temperaturas de dezoito graus abaixo de zero, sem
mesmo saberem o que era rancho regulamentar, pois a pitança nem sempre
chegava a horas, deviam oferecer o mais lamentável e o mais desolador dos
espectáculos. E no entanto nunca os soldados tinham estado tão alegres e
animados, nem mesmo durante a época em que se encontravam em situação
material mais favorável. E isto explica-se, pois, à medida que o tempo ia passando,
do meio deles desaparecia tudo quanto era tristeza e fraqueza. Todos os que se
haviam debilitado física ou moralmente ficavam para trás. O que estava ali agora
era a fina flor do exército, do ponto de vista moral e do vigor físico.
Atrás do abrigo da 8ª companhia abrigara-se uma grande multidão. Tinham-se-
lhe juntado dois sargentos e as fogueiras ardiam ali melhor que em qualquer outra
parte. Para se ter o direito de estar sentado atrás do tabique era mister fornecer
lenha para o fogo.
— Eh! Makaiev, que estás a fazer?... Perdeste-te ou foste comido pelos lobos?
Anda, traz-me lenha — gritava um soldado ruivo de ventas iluminadas, com os
olhos vermelhos muito piscos por causa do fumo, e que nem assim deixava a
fogueira. — Anda, traz lenha, vadio! — dizia ele para o camarada.
Não era sargento nem cabo, mas soldado vigoroso, por isso se dava ao luxo de
mandar nos mais fracos. O soldado magro, pequenito, de nariz aguçado, a que ele
chamara vadio, ergueu-se docilmente e preparava-se para cumprir a ordem
recebida quando surgiu junto da fogueira a silhueta fina e agradável de um moço
soldado sobraçando um molho de lenha.
— Traz para aqui! Bem bom!
Quebraram os ramos, deitaram-nos na fogueira, e, soprando e agitando oscapotes, não tardou que o lume, reanimado, se pusesse a crepitar. O moço soldado
de, bela figura firmou as mãos na cinta e pôs-se a bater vigorosamente com os pés
no chão.
— «Ah, mãezinha, a cacimba está fria, mas é bonita!» — cantarolou ele,
suspirando entre cada sílaba da canção.
— Eh!, era melhor que remendasses as botas em vez de dançares! — gritou-
lhe o soldado ruivo ao ver a badalar uma das solas do dançarino.
O dançarino deteve-se, arrancou o bocado de sola e atirou com ela para a
fogueira.
— É o que estás vendo, irmão — disse ele, sentando-se. E tirou do bornal um
pedaço de pano azul, resto de um uniforme francês, e embrulhou-o em volta do pé.
— As duas lá se foram acrescentou, estendendo os pés para a fogueira.
— Não tarda que nos estejam a dar umas novas. Segundo dizem, quando
chegar o fim, recebemos o pré a dobrar.
— Pois não queres saber? Esse filho de uma cadela do Petrov ficou pelo
caminho — disse um sargento.
— Sim, já tinha dado por isso há tempo — comentou outro. — Que queres?
Soldados de papelão!...
— Na 3ª, parece que ontem faltaram nove a chamada. — Sabes?, quando nos
gelam os pés, a gente não pode andar, — Deixa-te de tolices! — comentou o
sargento.
— Querias tu, naturalmente, que te sucedesse o mesmo — disse um velho
soldado dirigindo-se, mal-humorado, ao que falara em pés gelados.
— E que julgas tu? — interveio, de súbito, soerguendo-se, numa voz estrídula
e trémula, o soldado de nariz aguçado a quem tinham chamado vadio. — Por mais
que uma pessoa esteja fresca e bem disposta, vamos emagrecendo, apesar de
tudo, e quando a gente emagrece lá está a morte à nossa espera. Olhem, eu não
posso mais — acrescentou, de repente, em tom enérgico, dirigindo-se ao sargento.
— Mande-me baixar ao hospital. Estou tolhido de reumatismo, De outra maneira,
acabo pelo caminho, como os outros.
— Basta, basta! — disse tranquilamente o sargento.
O soldado enfezado calou-se e a conversa continuou.
— Isso é que foi hoje um apanhar de franceses! Mas a respeito de botas, valha
a verdade, nem um par para amostra comentou um soldado para mudar deassunto.
— São os cossacos quem lhas tiram. Limparam a isbá para instalar o coronel e
tiraram-nos todos lá de dentro. Corta o coração vê-los, rapazes — exclamou então
o soldado que dançara. — Tiraram-lhes tudo. Um deles ainda estava vivo, e lá ia
dizendo qualquer coisa na sua língua.
— E é gente apurada, rapazes — voltou o primeiro. — São brancos, brancos
como os álamos, E alguns parecem valentes, é o que te digo, e há os que são
nobres.
— É verdade, tens razão. Recrutam homens de todas as classes.
— E não sabem uma palavra de russo — prosseguiu o outro com um ingénuo
espanto. — Perguntei a um a que coroa pertencia, e ele pôs-se a arengar qualquer
coisa lá na língua dele. São tipos estranhos.
— Sim, rapazes, é curioso — continuou o que se surpreendera com a brancura
da pele dos Franceses. — Disseram os camponeses que em Mojaisk, quando
contaram os mortos, depois da batalha, que hão-de eles ver? Havia quase um mês
que tinham morrido. E estavam ali estendidos, diziam eles, brancos como uma
folha de papel, e limpos, nem sombra de cheiro.
— Ora, é por causa do frio — objectou um deles.
— Sempre és muito esperto! O frio? Mas fazia calor! E se fosse por causa do
frio também os nossos não apodreciam. E quando aparecia um dos nossos estava
sempre coberto de bichos, e de tal maneira, diziam eles, que era preciso pôr um
lenço na boca e virar a cara para o lado quando carregavam com eles. Não se
podia aguentar. Enquanto os franceses estavam brancos como uma folha de papel,
e nem sombra de cheiro.
Toda a gente se calou.
— É talvez por causa do que comem — disse o sargento. — Comem que nem
senhores.
Ninguém objectou fosse o que fosse.
— E esse camponês de Mojaisk, onde se travou a batalha, contou que
evacuaram mortos de mais de dez aldeias, que os andaram a acarretar durante
vinte dias e que não conseguiram levá-los todos. E que havia por lá cada lobo,
dizem eles...
— Sim, aquela, sim, foi uma verdadeira batalha — comentou o velho soldado.
— Nunca mais a esqueceremos. Mas o que depois aconteceu... Só para fazer sofreros soldados.
— Queres saber, tio? Antes de ontem foram atrás deles. E eles não nos deixam
sequer aproximar. Deitam fora as armas e põem-se logo de joelhos! «Perdão!»,
dizem eles. E aqui tens outra. Parece que o Platov já por duas vezes esteve a
ponto de deitar a mão ao próprio Polião. Mas ele não sabe a palavra mágica.
Prende-o, prende-o, mas aí está, o outro, uma vez nas suas mãos, transforma-se
num pássaro e lá vai ele a voar, a voar. E dizem também que não há maneira de o
matarem.
— És danado para a mentira, Kisseliev!
— Quê? Mentiras? É a verdade pura!
— Pois bem, eu, se o tivesse apanhado, tinha-o enterrado vivo. E com uma
estaca de faia, ainda por cima. A gente que ele tem matado!
— Seja como for, há-de ter a sua conta, não escapa. — concluiu o velho
soldado, bocejando.
A conversa ficou por ali e os soldados aninharam-se para dormir.
— Olha lá para cima. Aquilo é que são estrelas! Que me dizes? As mulheres
puseram a roupa a, enxugar! — disse um soldado que admirava a Via Láctea.
— É sinal de que vamos ter ano farto, rapazes!
— Era precisa mais lenha na fogueira.
— Temos as costas quentes e a barriga fria, Não é brincadeira!
— Oh! Deus meu!
— Que estás tu a empurrar, é só para ti o fogo, porventura? Não querem ver
como ele se estende!
No meio do silêncio que se começava a estabelecer ouviu-se o ressonar de
alguns homens. Os outros continuavam a dar voltas e reviravoltas para se
aquecerem, trocando entre si raras palavras. De um bivaque afastado um cento de
passos chegava um rumor de gargalhadas.
— Estás a ouvir o que eles se divertem na 5ª? — disse um soldado. — E a
quantidade de gente que eles lá têm! Levantou-se para ver o que se passava na 5ª
companhia. — Tem graça! — disse ele, quando voltou. — Apareceram dois
franceses. Um deles está todo gelado, mas o outro, aquilo é que é divertido! Está
a cantar cantigas lá deles.
— Então vamos ouvi-lo.
E alguns soldados encaminharam-se para a 5ª companhia.
[IX]
A 5ª companhia estava mesmo junto da floresta. Uma grande fogueira ardia no
meio da neve, iluminando os ramos das árvores carregados de gelo.
No meio da noite, os homens daquela companhia tinham ouvido, na floresta,
um ruído de passos e de ramos pisados.
— Rapazes! Um urso! — disse um deles.
Todos levantaram a cabeça, de ouvido alerta, e viram surgir da floresta,
iluminadas pela chama da fogueira, duas formas humanas amparando-se uma à
outra, estranhamente vestidas.
Eram dois franceses que se haviam escondido na mata. Pronunciando palavras
numa voz rouca em língua desconhecida dos soldados, aproximaram-se da fogueira.
Um deles, bastante alto, de barretina de oficial, parecia muito debilitado. Assim
que chegou, deixou-se cair praticamente no chão. O outro, soldado raso, mais
pequeno, gordinho, com os queixos amarrados, parecia em melhor estado. Ajudou
a erguer o companheiro e pronunciou algumas palavras mostrando a boca. Os
soldados russos juntaram-se à sua volta, estenderam uma manta sobre o doente e
deram-lhes cacha e vodka.
O oficial doente era Ramballe e o soldado dos queixos amarrados o seu
impedido, Morel.
Morel, depois de emborcar a vodka e engolir uma marmita de cacha, sentiu-se,
de repente, tomado por um verdadeiro acesso de alegria, e pôs-se, sem se calar, a
contar uma quantidade de coisas absolutamente incompreensíveis para os
soldados russos. Ramballe não quis comer e ficou encostado, sem dizer palavra
junto da fogueira, fitando os soldados russos com os seus olhos vermelhos vazios
de expressão. De vez em quando soltava um profundo suspiro, depois voltava a
ficar silencioso. Morel, apontando-lhe para as charlateiras, procurava explicar aos
soldado que era oficial e que era preciso aquecê-lo. Um oficial russo que se
aproximara mandou perguntar ao coronel se não quereria dai, hospitalidade a um
oficial francês. O coronel deu ordem para o conduzirem e os soldados persuadiram
Ramballe a aceitar o convite. Este ergueu-se e tentou caminhar, mas tropeçou eteria caído se um soldado o não tem amparado.
— Então, que é isso? Não podes andar? — disse a Ramballe um soldado,
trocista.
— Imbecil! Que estás tu a dizer? — acorreram logo outros, indignados com o
gracejo do camarada. — Não passas de um rústico, sim, de um rústico.
Rodearam Ramballe, dois pegaram-lhe por debaixo dos braços e transportaram
— no para a isbá do coronel. Ramballe, com os braços à roda do pescoço dos que o
levavam, murmurava em voz lamentosa:
— Oh!, meus valentes, oh!, meus valentes, meus bons amigos! Isto é que são
homens! Oh!, meus valentes, meus bons amigos! — E, como uma criança, deixava
descair a cabeça ora no ombro de um ora no ombro do outro dos homens que o
ajudavam. Entretanto, Morel instalara-se no melhor lugar, no meio de uma roda
de curiosos.
O atarracado francês, de olhos inchados e lacrimosos, o lenço amarrado aos
queixos como uma mulher, tinha vestido uma peliça de senhora. Naturalmente já
de grão na asa, abraçava-se ao soldado que lhe ficava ao lado e cantava, em voz
entrecortada rouca, uma canção francesa. Os soldados riam a bandeiras
despregadas.
— Anda, ensina-nos a cantiga. Como é isso? Eu apanho logo música. Como é
isso? — pedia-lhe o rústico, apreciador de cantigas, que Morel abraçava
carinhosamente.
— Viva Henrique IV! Viva esse valente rei! — cantarolava Morel, piscando os
olhos. — Esse diabo a quatro...
— Vivariká! Vif seruvaru!, sidiablaka... (Algaravia russa que pretende
reproduzir a letra da melodia francesa. (N. dos T.) — repetia o soldado
gesticulando e seguindo, realmente, a música da canção.
— Bravo! Bravo! exclamavam várias vozes, à mistura com gargalhadas.
Morel ria também.
— Bem, anda, mais, mais!
— Que teve o triplo talento de beber, de batalhar e de ser um galanteador...
— Caramba! Isto soa bem ao ouvido! Agora tu, Zaletaiev, repete!...
— Kiu, kiu, kiu... — entoou Zaletaiev com dificuldade, fazendo um momo com
os lábios — lietriptala dié bu dié ba a dietravagala (Algaravia russa que pretende
reproduzir a letra da melodia francesa. (N. dos T.).— Muito bem! Muito bem! Pareces mesmo um francês! Ah! Ah! Ah! Olha lá,
ainda tens fome?
— Dá-lhe mais cacha. Não é tão depressa que ele se ,ai sentir farto.
Deram-lhe uma nova tigela de cacha e Morel, muito risonho, pôs-se logo a
emborcá-la. A soldadesca nova estava alegre na sua companhia. Os velhos
soldados, que achavam, impróprias aquelas necedades, formavam grupo à parte,
mas de quando em quando, soerguendo-se nos cotovelos, olhavam para o francês e
sorriam.
— Eles também são homens — observou um deles, e aconchegando-se no
capote. — Até o absinto deita raízes. (O absinto é considerado planta de mau
agoiro. (N. dos T.)
— Oh! Meu Deus, meu Deus! Tantas estrelas! Que geleira aí vem!
Tudo foi serenando As estrelas, como se soubessem que já mais ninguém havia
para as ver, iam cintilando, qual delas a mais brilhante, no céu de breu. Ora
chispando, ora apagando-se ou chispando ainda mais, dir-se-ia participarem umas
as outras qualquer misteriosa e alegre notícia.
[X]
As tropas francesas continuavam a decompor-se regularmente segundo uma
progressão matemática. A travessia do Beresina, sobre que se escreveu tanta
coisa, não foi mais que um incidente intercalar na obra de destruição e de modo
algum um episódio decisivo da campanha. Se muito se escreveu, se ainda continua
a escrever-se a este respeito, é que, do lado francês, esta ponte, que foi pelos
ares, sintetizava, por assim dizer, as desgraças, até aí mais ou menos iguais umas
às outras, experimentadas pelo exército francês, num espectáculo trágico, que
para sempre ficou na memória de todos. Se os Russos, pela sua parte, muito
comentaram este caso, é porque, longe do teatro da guerra, em Petersburgo, um
plano estabelecido por Pfuhl previra a ratoeira estratégica do Beresina. Ali toda a
gente estava, convencida de que na realidade tudo se passaria como estava
previsto no plano e por isso mesmo atribuíram à passagem do no a perda dos
Franceses. A verdade, porém. é que as consequências foram muito menosdesastrosas para eles, em homens e canhões, que as de Krasnoie, por exemplo,
como se pode provar com algarismos.
O caso do Beresina só numa coisa é importante: em ter demonstrado de
maneira evidente e incontestável que todos os planos para cortar a retirada ao
inimigo eram errados e que a única coisa sensata era o que exigia Kutuzov e a
massa das tropas, isto é, que se seguisse o inimigo de perto. Os Franceses fugiam
cada vez mais depressa, não pensando noutra coisa senão em chegar onde
queriam. Fugiam como um animal ferido e não lhes era possível deterem-se no
caminho. E isso ficou bem demonstrado menos pela própria organização da
travessia do no que pela passagem das pontes. As pontes tinham ido pelos ares, e
toda aquela gente, soldados desarmados, habitantes de Moscovo, mulheres e
crianças que acompanhavam as bagagens dos Franceses, graças à velocidade
adquirida, em vez de se resignar a esperar, precipitou-se para a frente, para
dentro das barcas, e para cima das águas geladas.
Compreendia-se esta precipitação. Tão má era a situação dos que fugiam como
a dos que os perseguiam. Conservando-se ao lado dos seus, na sua desgraça, cada
um esperava o auxílio do camarada, tinha o seu lugar entre eles. Se se
entregassem aos Russos, era para continuarem na mesma desgraçada situação,
passando a ser contados entre os últimos com direito a receber mantimentos. Os
Franceses não precisavam de informações precisas para saberem que metade dos
prisioneiros nas mãos dos Russos — e o certo é que estes não sabiam que destino
dar-lhes, por mais que quisessem salvá-los — morriam de fome e de frio.
Pressentiam que assim tinha de ser. Os chefes russos mais compassivos e que mais
simpatias tinham pelos Franceses, os próprios franceses ao serviço dos Russos,
nada podiam fazer pelos prisioneiros. A ma situação em que se encontrava o
exercito russo concorria para a perdição dos Franceses. Era impossível tirar pão e
roupa a soldados esfomeados e cheios de privações para dá-los aos Franceses,
evidentemente inofensivos, nem sequer hostis ou culpados, simplesmente inúteis.
Alguns o fizeram, mas só excepcionalmente.
Voltar para trás era a perdição certa: avançar, a esperança. Tinham-se
queimado as embarcações, só havia uma salvação, a fuga em comum, e todas as
forças francesas tendiam para essa meta
Quanto mais demorada era a retirada, mais lamentável o aspecto que
ofereciam os restos do exército francês, sobretudo depois do Beresina, que fizeranascer, graças ao plano de Petersburgo, esperanças particulares, e mais se
exasperavam as paixões dos chefes russos, que se culpavam uns aos outros e
principalmente Kutuzov. Diziam que ele seria chamado à responsabilidade pelo
malogro do plano do Beresina estabelecido em Petersburgo, o que tornava maior
o descontentamento, o desdém e a troça que ele inspirava. Claro que tanto a
troça, como as provas de desconsideração exprimiam-se de uma forma respeitosa,
e de tal sorte que o próprio interessado nem sequer podia perguntar de que o
acusavam. Não lhe falavam a sério; quando lhe apresentavam qualquer
informação ou lhe pediam uma decisão, dir-se-ia cumprirem uma cerimónia
fúnebre. Por detrás das suas costas piscavam o olho uns aos outros e faziam o que
podiam para o enganar.
Todos aqueles homens, precisamente porque o não podiam compreender,
estavam convencidos de que era inútil discutir com semelhante velho, incapaz de
entender jamais a profundidade dos seus planos, o qual sempre lhes respondia com
uma das suas frases, para eles frases apenas, como a da «ponte de ouro» e que
não era possível chegar à fronteira com aqueles bandos de esfarrapados, e coisas
no mesmo género. Há muito que lhe conheciam semelhante estribilho. Tudo
quanto ele dizia: que era preciso esperar pelos mantimentos, que os homens não
tinham botas para calçar, tudo era de uma simplicidade infantil, enquanto eles
propunham coisas complicadíssimas e sábias. E daí tornar-se evidente que Kutuzov
não passava de um velho imbecil enquanto eles, cabos-de-guerra geniais, ali
estavam sem poderes para realizar o que congeminavam.
Depois da junção do exército de Kutuzov com o do preclaro almirante
Wittgenstein, herói de Petersburgo, todas essas malévolas disposições e todas
essas intrigas do estado-maior se agravaram ainda mais. Kutuzov, ao dar por isso,
limitava-se a despedir um suspiro e a encolher os ombros. Só uma vez, depois do
Beresina, se zangou e escreveu a Bennigsen, o autor das informações particulares
enviadas ao imperador, a carta seguinte:
Rogo a Vossa Excelência que, ao receber esta carta, se
apresente em Kaluga, em virtude do seu estado de saúde
pouco satisfatório, onde aguardara ordens ulteriores de
Sua Majestade Imperial.
Como resultado do afastamento de Bennigsen, o grão-duque Constantino
Pavlovitch, que havia tomado parte na primeira fase da campanha e fora afastado
por Kutuzov, foi reintegrado no exército. Ao chegar informou o general-chefe de
que o czar estava muito descontente com os ligeiros êxitos das tropas russas e a
lentidão dos seus movimentos e anunciou-lhe que o imperador tinha a intenção de
visitar pessoalmente, o exército. Kutuzov, esse velho, tão experimentado cortesão
quão bom militar, que em Agosto desse ano fora nomeado generalíssimo contra a
vontade do imperador, que determinara o abandono de Moscovo, esse homem
compreendeu imediatamente que a sua hora tinha soado, que o seu papel acabara
e que os supostos poderes que ainda lhe pertenciam lhe iam ser retirados. E não
só como cortesão compreendia que assim era. Percebia que a acção militar em que
desempenhara o seu papel estava no fim, que a sua missão terminara. Por outro
lado, principiava ao mesmo tempo a sentir que o corpo, quebrado pela idade,
cansado, pedia descanso.
[XI]
No dia 29 de Novembro, Kutuzov entrou em Vilna, na sua querida Vilna, como
ele dizia. Duas vezes na sua carreira fora governador da cidade. Na rica Vilna, que
se conservava intacta, além das comodidades de que por tanto tempo estivera
privado, encontrava velhos amigos e boas recordações. Liberto, de súbito, de
todas as preocupações oficiais e militares, entregou-se a uma vida regular e
tranquila, na medida em que o permitiam as paixões que germinavam à sua roda,
como se tudo que se estivesse a passar naquele momento, e que ainda tinha de se
cumprir como acontecimento histórico, lhe fosse de todo indiferente.
Tchitchagov um dos mais ardorosos partidários da ideia de se cercarem e
derrotarem os Franceses, que a princípio quisera levar a cabo uma diversão
militar na Grécia, e depois em Varsóvia, mas que nunca se apresentava onde o
mandavam, esse homem célebre pela ousadia com que falara ao imperador, que
ao mesmo se considerava protector de Kutuzov, pois, quando si fora à Turquia, em
1811, incumbido da missão de concluir a paz, ao saber que a paz já fora concluída,
dissera ao imperador que o mérito de tal missão pertencia a Kutuzov —Tchitchagov foi o primeiro a receber o generalíssimo junto do castelo de Vilna,
onde este devia hospedar-se. Com o seu uniforme de marinheiro, de espada à
cinta, o chapéu debaixo do braço, apresentou a Kutuzov o seu relatório sobre o
estado da guarnição e as chaves da cidade. A deferência um tanto desdenhosa que
a juventude testemunhava a um velho que ela entendia chegado â segunda
meninice traduzia-se no mais alto grau na maneira de agir de Tchitchagov, ao
corrente das acusações que faziam ao generalíssimo.
Na conversa que teve com ele, Kutuzov dissera-lhe, entre outras coisas, que as
suas bagagens tornadas em Borissov, com toda a sua baixela, estavam intactas e
lhe iam ser entregues.
— É para me dizer que eu não tenho que comer... Estou habilitado, pelo
contrário, a fornecer-lhe seja o que for, mesmo que pretenda oferecer banquetes
— respondeu-lhe Tchitchagov acaloradamente. Queria mostrar-se importante em
cada uma das palavras que dizia e estava persuadido de que essa era a intenção
do seu interlocutor.
Kutuzov teve um sorriso fino e penetrante e respondeu encolhendo os ombros:
— É apenas para lhe dizer o que lhe estou a dizer.
Ao contrário do que o imperador queria, o generalíssimo mandou que se
detivesse em Vilna a maior parte das suas tropas. Na opinião das pessoas que o
rodeavam, decaíra muito fisicamente durante a sua permanência nesta cidade. Só
muito ao de leve se preocupava com os assuntos militares, deixando que os
generais fizessem tudo, e enquanto aguardava a chegada, do imperador
entregava-se ao prazer.
Tendo saído de Petersburgo com a sua comitiva no dia 7 de Dezembro — o
conde Tolstoi, o príncipe Volkonski, Araktcheiev e outros — o imperador chegou a
Vilna no dia 11, dirigindo-se imediatamente ao castelo no seu trenó de viagem.
Apesar do frio que fazia, esperavam-no, cá fora, uma centena de generais e de
oficiais do estado-maior, de uniforme de gala, bem como uma guarda de honra do
regimento Semionovski.
O correio que precedia o czar chegou ao castelo, numa troika, coberto de suor,
e gritou:
— O imperador!
Konovnitsine precipitou-se no vestíbulo para advertir Kutuzov, que esperava
no compartimento do porteiro.Um minuto depois, Kutuzov, no seu uniforme de gala, com todas as
condecorações e cobrindo-lhe o peito por completo, uma faixa a apertar-lhe o
ventre, surgia no alpendre em passos titubeantes. Cobriu a cabeça, como se
estivesse a comandar o exército, pegou nas luvas, desceu com dificuldade os
degraus do alpendre e pegou no relatório que ia ser apresentado ao czar.
Um grande alarido se ouviu, uma troika passou vertiginosa a toda a gente
fixou os olhos no trenó que chegava, a galope, onde se destacavam as silhuetas do
imperador e de Volkonski.
Apesar de mais de cinquenta anos de experiência, esta chegada não deixou de
impressionar, como sempre, o velho general. Apalpou-se, febrilmente, à pressa,
ajeitou o gorro e as condecorações, enquanto o imperador, apeando-se do trenó,
erguia para ele os olhos. Depois apresentou-lhe o relatório, dominando a emoção
que o tomava, sem perder o aprumo militar, e pôs-se a falar numa voz comedida e
insinuante.
O imperador olhou-o rapidamente da cabeça aos pés, franziu as sobrancelhas
por segundos, mas, dominando-se imediatamente, aproximou-se e, de braços
abertos, apertou-o contra o peito, Esta atitude do imperador, acordando-lhe
velhas impressões e pensamentos íntimos, produziu em Kutuzov o efeito habitual:
rompeu em soluços.
O imperador saudou os oficiais, a guarda de honra do Semionovski e,
apertando mais uma vez a mão do generalíssimo, penetrou com ele no castelo.
Quando ficou só com o marechal exprimiu-lhe o seu descontentamento por
causa da morosidade na perseguição dos Franceses, dos erros cometidos em
Krasnoie e no Beresina e pó-1o ao corrente dos seus planos sobre a futura
campanha no estrangeiro. Kutuzov não fez a mais pequena observação nem teve o
mais pequeno comentário. No seu rosto havia a mesma expressão submissa de
sete anos antes, ao receber as ordens do soberano no campo de batalha de
Austerlitz.
Quando, no seu andar pesado e cambaleante, saiu do gabinete do imperador e,
de cabeça baixa, atravessou o salão, uma voz deteve-o.
— Sereníssimo! — dizia-lhe alguém.
Kutuzov ergueu a cabeça e ficou a olhar por muito tempo o conde Tolstoi, que
estava diante dele, com um minúsculo objecto dentro de uma salva de prata. Dir-
se-ia não compreender o que queriam dele.De súbito pareceu recordar-se, um sorriso imperceptível lhe perpassou pelo
rosto entumecido, e, inclinando-se respeitosamente, numa grande vénia, pegou no
objecto que estava na salva. Era a cruz de S. Jorge de 1ª classe.
[XII]
No dia seguinte, o marechal ofereceu um jantar seguido de baile, que o
imperador honrou com a sua presença. Kutuzov recebia a cruz de S. Jorge de 1ª
classe; o imperador prestava-lhe as maiores honras; mas o descontentamento do
soberano não era segredo para ninguém. Tinham-se respeitado as conveniências e
ele fora o primeiro a dar o exemplo. Mas toda a gente sabia que o velho era
culpado e já para nada prestava. Como Kutuzov ordenasse, de acordo com um
velho costume dos tempos de Catarina, que no momento em que o imperador
entrasse na sala de baile lhe depusessem aos pés os estandartes tomados ao
inimigo, o soberano, descontente, franziu o sobrolho e pronunciou algumas
palavras, onde alguns julgaram surpreender esta frase: «Velho comediante! »
O descontentamento do czar ainda se tornou mais evidente durante a
permanência em Vilna quando verificou que Kutuzov não queria ou não podia
compreender a utilidade da campanha projectada. No dia seguinte ao da sua
chegada, o imperador dissera aos oficiais reunidos à sua volta:
— Os senhores não salvaram apenas a Rússia, os senhores salvaram a Europa.
— E então todos compreenderam que a guerra não findara.
Só Kutuzov não podia compreender e dizia a quem o queria ouvir que uma
nova guerra não melhoraria a situação nem aumentaria a glória da Rússia, mas,
muito pelo contrário, concorreria para piorar e diminuir o alto prestígio de que o
país então desfrutava, segundo ele. Esforçava-se por demonstrar ao imperador a
impossibilidade de convocar mais tropas, aludindo ao penoso estado das
populações, à possibilidade de qualquer malogro, etc. Era evidente que, numa tal
disposição de espírito. Kutuzov não podia deixar de constituir um empecilho para a
guerra prevista.
Para evitar qualquer conflito com o velho, acharam perfeitamente natural uma
escapatória, como se fizera com Barclay aquando de Austerlitz e no começo dacampanha: retirar o poder ao generalíssimo para o confiar ao próprio imperador,
sem ruído nem inúteis explicações.
Nessa intenção, procedeu-se, pouco a pouco, a uma reorganização do estado-
maior e todo o poder efectivo de Kutuzov foi suprimido e transmitido ao
imperador. Toll, Konovnitsine, Ermolov, foram encarregados de outras missões.
Dizia-se abertamente que o marechal estava muito enfraquecido e de saúde
abalada.
Era preciso, realmente, que a sua saúde estivesse muito abalada para
transmitir as suas funções àquele que o devia substituir. E de facto estava
enfermo.
Tal como vera outrora da Turquia, o mais natural e simplesmente que é
possível, a fim de reunir a milícia em Petersburgo e depois colocar-se à frente do
exército no momento em que era indispensável, agora, o mais natural e
simplesmente, e da mesma forma progressiva, terminado o seu papel, substituíam-
no por uma nova engrenagem, a engrenagem que a situação requeria.
A guerra de 1812 não devia conservar o seu carácter estritamente russo de
guerra patriótica, mas assumir outro, tornar-se uma guerra europeia.
Depois da marcha dos povos do Ocidente para o Oriente, devia verificar-se
uma, marcha do Oriente para o Ocidente, e para levar a cabo esta nova guerra
era necessário um homem novo, dotado de qualidades que Kutuzov não tinha, com
outras vistas, outros objectivos. Para realizar esta marcha dos povos em sentido
inverso e restabelecer as fronteiras, Alexandre I, eis o homem indispensável, tão
indispensável quanto o fora Kutuzov para salvação e glória da Rússia.
Kutuzov era refractário a estas noções: Europa, equilíbrio, Napoleão. Não
podia entendê-las. O representante do povo russo, esse russo, enquanto russo, já
nada tinha a fazer naquela hora em que o inimigo estava esmagado e a Rússia
liberta e no pináculo da glória. O representante da guerra patriótica só tinha
agora um caminho a seguir: morrer, E assim o fez.
[XIII]
Pedro, como sempre costuma acontecer, só sentiu o peso das privações a queestivera sujeito durante o cativeiro no dia em que as desventuras acabaram.
Assim que foi posto em liberdade, dirigiu-se a Orel e no dia seguinte, na altura de
se meter a caminho para Kiev, adoeceu. Três meses ficou de cama em Orel.
Segundo os médicos, sofria de uma febre biliosa. Apesar de todos os cuidados que
lhe dispensaram, não obstante as sangrias e os remédios, conseguiu recuperar a
saúde.
Pouca impressão lhe ficou do período que decorreu entre a sua libertação e o
ter adoecido. Ficara-lhe apenas a lembrança de um tempo húmido e sombrio, ora
de chuva ora de neve, de um enfraquecimento físico considerável, de dores nos pés
e nas ilhargas; de uma série de pessoas infelizes e sofredoras: da curiosidade
importuna dos oficiais e dos generais que lhe faziam perguntas; das dificuldades
que tivera para arranjar um carro e cavalos: e, acima de tudo, do adormecimento
moral que o prostrara durante todo esse tempo, No dia em que fora libertado vira
passar o corpo de Pétia Rostov; soube também que o príncipe André ainda vivera
um mês depois de ferido e que só recentemente morrera em Iaroslav, em casa dos
Rostov. Denissov, ao participar-lhe esta notícia, aludiu, de passagem, à morte de
Helena, pois supunha que Pedro estivesse informado disse, há muito. Todos estes
pormenores o deixaram, porém, então quase indiferente. Sentia-se incapaz de
apreciar a importância de todos estes acontecimentos. Só uma coisa o preocupava
abandonar o mais depressa possível aquelas paragens, onde os homens se
matavam uns aos outros, em busca de um refúgio mais sossegado em que pudesse
coordenar as suas ideias, repousar e reflectir sobre todas essas coisas estranhas e
novas que acabava de saber. Mas assim que, chegou a Orel caiu de cama. Quando
melhorou, descobriu junto da sua cabeceira, além dos seus dois criados. Terenti e
Vaska, vindos de Moscovo, a princesa mais velha, sua prima, que vivia numa
propriedade de Pedro em Elets e que viera tratá-lo ao saber que ele fora libertado
e estava doente.
Durante toda a sua convalescença, as impressões daqueles últimos meses, que
se lhe tinham tornado familiares, apenas se foram apagando pouco a pouco.
Lentamente se ia habituando a não ser enxotado todas as manhãs como se fosse
um animal, a não ser expulso da sua cama quente, ter todos os dias jantar, chá e
ceia. Mas, a dormir, sonhava muitas vezes encontrar-se ainda na penosa situação
do cativeiro. E levou muito tempo igualmente a compreender as coisas que lhe
contaram: a morte do príncipe André, a morte da mulher, a derrota dos Franceses.A sua alma sentia-se invadida por um agradável sentimento de liberdade
completa, inata no homem e que se lhe não pode arrebatar, a liberdade que
sentira pela primeira vez durante a jornada que fizera ao sair de Moscovo. O que
o surpreendia, porém, é que a liberdade moral, independentemente, de facto.
das circunstâncias exteriores, lhe fosse concedida com tal liberdade, tal
abundância, ao mesmo tempo que a liberdade material, Estava só numa cidade
estranha onde ninguém conhecia. Ninguém exigia dele fosse o que fosse; ninguém
lhe dava ordens. Tinha tudo que podia desejar; a lembrança da mulher, que fora
para ele um tormento constante, desaparecera, visto ela própria ter desaparecido
também.
«Oh, que bem que se está! Que bom que é!», dizia de si para consigo, quando
aproximavam dele uma mesa limpa e bem posta, com um prato de sopa bem
cheiroso em cima, ou então quando, à noite, se deitava na sua cama macia e
asseada ou ainda se lembrava que a mulher já não existia e que os Franceses
tinham sido derrotados. «Ah!, que bom! Que bom!»
E apenas por hábito antigo perguntava a si mesmo: «E agora? Que vou eu
fazer agora?» Ao que respondia imediatamente: «Nada. Vou viver. Ah!, que
bom!»
Já não existia para ele o problema de um objectivo na vida, problema que
tanto o atormentara outrora e que tão afincadamente procurara resolver. Esse
objectivo já não era sequer um objectivo provisório, válido apenas para o
momento presente: sentia que fora completamente abolido e que na realidade já
não podia existir. E esta ausência completa de objectivo na vida dava-lhe a alegre
sensação de uma liberdade sem limites, que o enchia de felicidade.
Não podia ter um objectivo, porque agora tinha fé, não fé em certas regras,
em certas palavras ou pensamentos convencionais, mas num Deus vivo e sempre
presente. Outrora procurava Deus nas missões que a si próprio se impunha.
Quando procurava um objectivo para a vida, era Deus que no fim de contas
procurava. E de repente, durante o cativeiro, descobrira, não por meio de
palavras ou raciocínios, mas graças a uma espécie de íntima revelação, o que a sua
velha ama tantas vezes lhe dissera: «Deus está em toda a parte.» No cativeiro
aprendera que o Deus de Karataiev era bem maior, mais infinito, mais inacessível
que o Grande Arquitecto do Universo dos franco-mações. Dir-se-ia que achara a
seus pés o que andava buscando muito longe de si. Toda a sua vida pusera os olhoslá longe, por cima da cabeça da multidão, quando não tinha mais que olhar para
diante de si. Até então não conseguia descobrir em parte alguma o inacessível, o
grande, o infinito. Apenas sentia que o infinito existia algures e procurava-o. Em
tudo o que o rodeava, em tudo o que lhe era dado compreender, só via interesses
acanhados, mesquinhos, absurdos, os interesses que a vida nos revela. E armava-
se de uma espécie de óculo moral para olhar ao longe, para onde esses interesses
mesquinhos, essas pequenas coisas exteriores, escondidas na névoa da distância,
se lhe afiguravam como que revestidas de grandeza, verdadeiras imagens do
infinito, pela simples razão de que as não via com nitidez. Assim se lhe
entremostrava a vida europeia, a política, a maçonaria, a filosofia, a filantropia.
Agora, porém, que se dava conta da sua fraqueza, quando o seu espírito
penetrava nessas misteriosas profundezas, era para descobrir aí também essa
mesma mesquinhez, esse mesmo absurdo, existentes na vida quotidiana. Agora
aprendera a ver o infinito em toda a parte, em tudo, por isso achava
perfeitamente natural que para usufruir da contemplação das coisas eternas já
não precisasse desse óculo que lhe permitia lobrigar para além dos homens;
admirava, à sua volta, com alegria, o espectáculo eternamente mutável,
eternamente grande, inacessível e infinito da vida. E quanto mais de perto olhava
esse espectáculo mais tranquilo e feliz se sentia. O terrível porquê que outrora
fazia ruir todas as construções do seu espírito deixara de existir para ele. Agora
essa interrogação angustiosa tinha uma resposta simples. Deus existia, esse Deus
— o assentimento do qual nem um só cabelo cairá da cabeça !o homem.
[XIV]
Pedro pouco mudara exteriormente. Na aparência era o mesmo de sempre.
Como antigamente, era uma pessoa triste e menos preocupada com o que tinha
diante dos olhos do que com o que ocorria dentro dele próprio. A única diferença
entre o passado e o presente era que, nos tempos antigos, quando se esquecia do
que estava à sua roda, e não percebia o que lhe diziam, tinha uma expressão
preocupada e inquieta, como se procurasse compreender qualquer coisa longínqua
que lhe escapava. Agora, quando estava distraído, tinha nos lábios umimperceptível sorriso, um pouco irónico, para com o que estava diante dos seus
olhos, para ouvir o que lhe diziam, estando, claro está, a pensar numa coisa
completamente diferente. Outrora, conquanto tivesse sempre um ar bondoso,
parecia infeliz; por isso, sem querer, afastava de si a simpatia. Hoje, no seu rosto
pairava sempre um sorriso de homem contente com a vida, nos seus olhos havia
bondade para todos e parecia perguntar: «Estarão todos satisfeitos como eu?» E
as pessoas sentiam-se bem na sua presença.
Antigamente falava muito, entusiasmava-se a falar e pouco ouvia os demais.
Agora raramente achava interesse em falar e sabia ouvir tão bem que lhe
confiavam espontaneamente os segredos mais íntimos.
Sua prima, a princesa, que nunca gostara dele e que nutria mesmo por ele uma
certa hostilidade após a morte do velho conde, pois ficara na sua dependência,
depois daquele tempo, em Orel, onde viera para mostrar a Pedro que, apesar da
ingratidão, entendera dever seu assistir-lhe na sua doença, com grande surpresa
sua, e não sem despeito, principiara a sentir por ele uma certa afeição. E a
verdade é que Pedro nada fizera pai ganhar a sua simpatia. Limitara-se a examiná-
la com curiosidade. Até aí ela sentira no olhar dele indiferença e ironia, e diante
dele, como diante de muitas outras pessoas, retraía-se, para apenas lhe mostrar a
sua hostilidade combativa. Agora, pelo contrário, tendo percebido que ele
penetrava no mais recôndito da sua natureza, primeiro desconfiada, depois grata,
mostrou-lhe os lados melhores do seu carácter.
O mais astucioso dos homens não teria sido capaz de ganhar a confiança da
princesa ainda que evocasse as melhores recordações da sua juventude e lhe
falasse comovidamente. A astúcia de Pedro limitou-se a mostrar interesse em
acordar sentimentos humanos naquela criatura azeda, seca e orgulhosa.
«Sim, é um homem de bom coração quando não está sob influência de gente
má mas de pessoas como eu», dizia ela com os seus botões.
A mudança que nele se operara fora notada igualmente, de certo modo, pelos
próprios criados Terenti e Vaska. Achavam-no agora muito mais simples. As vezes
Terenti, depois de ajudar a despir o amo, tomando conta das botas e do fato,
desejava-lhe boas-noites e demorava-se junto dele antes de sair, na esperança de
que ele lhe dirigisse a palavra. Geralmente Pedro, quando percebia que o criado
tinha vontade de falar, retinha-o junto de si.
— Conta-me lá, como arranjavam vocês de comer? — perguntava-lhe.E Terenti punha-se a descrever-lhe as ruínas de Moscovo, a falar-lhe do
falecido conde, e ali ficava, por muito tempo, com a roupa nos braços, falando ou
ouvindo o amo, e quando se afastava era com o sentimento agradável de se sentir
muito próximo de Pedro e quase seu amigo.
O médico que o tratava e o visitava todos os dias, embora se julgasse na
obrigação, como todo o médico que se preza, de se dar ares de quem não tem um
minuto a perder, pois o seu tempo é precioso para a humanidade que sofre,
passava horas junto dele a contar-lhe as suas anedotas favoritas e a fazer
observações sobre a sua clientela em geral e em particular as senhoras.
— É verdade, dá prazer falar com um homem assim. É raro na província —
dizia ele.
Em Orel encontravam-se alguns oficiais do exército francês prisioneiros e o
médico trouxe um dia consigo um deles, um italiano.
Passou então a visitar Pedro e a princesa achava graça à ternura que ele
mostrava para com o primo.
Via-se que o italiano só se sentia feliz junto de Pedro e a conversar com ele,
contando-lhe o seu passado, as suas questões de família, os seus amores,
expandindo-se contra os Franceses e particularmente contra Napoleão.
— Se todos os russos se parecem consigo — dizia-lhe ele —, é um sacrilégio
guerrear um povo como o vosso. Embora eles vos tenham feito sofrer tanto, não
se sente em vós qualquer ódio contra eles.
E Pedro apenas conquistara esta apaixonada simpatia do italiano pelo facto de
lhe ter revelado os tesouros que guardava na alma e despertado nele admiração.
Nos últimos tempos que passou em Orel foi visitado por um dos seus antigos
conhecidos do mundo maçónico, o conde Villarski, o mesmo que em 1807 o
recebera na loja em que ele ingressara.
Villarski casara com uma russa muito rica, com grandes propriedades na
província de Orel, e naquela altura desempenhava funções provisórias na
intendência local.
Ao saber da presença de Bezukov em Orel, embora nunca tivesse sido da sua
intimidade, veio visitá-lo, dando-lhe muitas provas de amizade e simpatia, como
geralmente acontece com as pessoas que se encontram no meio de um deserto.
Enfadava-se em Orel e era com grande satisfação que se encontrava com alguém
do seu meio, e preocupado, assim ele o supunha, com interesses semelhantes aosseus.
Mas, com grande surpresa sua, Villarski bem depressa se deu conta de que
Pedro não o acompanhava no seu interesse pela vida actual e que se deixara cair,
assim ele o pensava, pelo menos, na apatia e no egoísmo.
— Está a ficar bota-de-elástico, meu caro — dizia-lhe ele.
No entanto, o convívio com Pedro dava-lhe muito mais satisfação agora que
antigamente e vinha visitá-lo todos os dias. Quanto a Pedro, a presença de
Villarski, as suas conversas, faziam-lhe parecer estranho e inverosímil o facto de
ele próprio, e muito recentemente, ter podido ser um homem do mesmo género.
Villarski, casado e pai de família, ocupado ao mesmo tempo com os interesses
da mulher, as suas funções e os filhos, considerava estas diversas preocupações
como obstáculo à realização da sua vida e menosprezava-as por o obrigarem a não
pensar senão no seu bem-estar pessoal e no dos seus. As questões militares,
administrativas, políticas e os problemas maçónicos absorviam-lhe por completo a
atenção. E Pedro, sem pretender levá-lo a modificar o seu ponto de vista, sem se
atrever a julgá-lo, com o seu ar manso e a sua tranquila ironia, que não o deixava
nunca, ia estudando aquele fenómeno estranho, mas tão das suas relações.
No seu trato com Villarski, com a princesa, com o médico, com toda a gente
com quem privava então, evidenciava-se-lhe um novo traço de carácter que atraía
as simpatias gerais: o reconhecer a toda a gente o direito de pensar, de sentir e
de encaixar as coisas à sua maneira e a certeza de que não era possível convencer
fosse quem fosse com palavras. As particularidades individuais que outrora o
irritavam profundamente eram agora, por assim dizer, a razão do interesse
apaixonado que votava aos homens. As diferenças, as contradições, por vezes
radicais, que verificava entre as diversas opiniões e as suas próprias davam-lhe
satisfação e provocavam-lhe um sorriso ligeiramente irónico e condescendente.
Nas coisas práticas sentia em si, com surpresa, como que um ponto de apoio
que outrora lhe faltava. Antigamente todos os problemas monetários, sobretudo
os pedidos de dinheiro que na sua qualidade de homem rico o assediavam com
frequência, lançavam-no em grandes incertezas e em embaraços inextricáveis
«Dou ou não dou?», interrogava-se a si próprio. «Eu tenho dinheiro e ele não o
tem e precisa dele. Mas fulano ainda tem mais necessidade. Qual deles terá mais
precisão? E não serão ambos dois intrujões?» E não saía disto, acabando por dar
dinheiro aos dois, por dar todo o dinheiro que tinha. E mostrava a mesmaindecisão perante as questões que pusessem em jogo os seus interesses, por um
lado entendendo que era assim que devia proceder e pelo outro que devia agir
precisamente ao contrário.
Actualmente, com grande surpresa sua, não via nestas questões a mais
pequena dúvida e a menor dificuldade. Havia nele um juiz, o qual, regendo-se por
leis desconhecidas dele próprio, decidia o que devia fazer-se ou não.
Em assuntos de dinheiro, continuava, como sempre, desinteressado. Mas agora
sabia, sem contestação, o que devia ou não fazer. Teve ocasião, pela primeira vez,
de aplicar os seus novos princípios quando, certo dia, um coronel francês
prisioneiro o veio visitar, lhe falou largamente dos seus empreendimentos e por
fim quase lhe exigiu quatro mil francos para remeter à mulher e aos filhos. Pedro
recusou-se a emprestar-lhos sem a mais pequena hesitação e o menor embaraço,
ele próprio surpreendido com a simplicidade e a facilidade com que decidira o que
outrora lhe teria parecido extraordinariamente difícil. E, ao mesmo tempo que se
recusava a emprestar dinheiro ao coronel, conseguia que o italiano, ao deixar
Orel, aceitasse uma determinada importância que com certeza lhe fazia muita
falta. Procedeu de maneira idêntica quando chegou o momento de resolver a
questão das dívidas da mulher e da reedificação das suas casas na cidade e na
aldeia.
Recebeu em Orel a visita do principal administrador das suas propriedades e
procedeu com ele ao balanço dos prejuízos que tivera. O incêndio de Moscovo, de
acordo com os seus cálculos, custara-lhe aproximadamente dois milhões de rublos.
O administrador, em compensação, fez-lhe ver que, apesar destes prejuízos, os
seus rendimentos não só não tinham diminuído, mas aumentariam mesmo caso ele
se recusasse a pagar as dívidas da condessa, que ninguém o podia obrigar a
satisfazer, e desistisse de reconstruir as suas casas de Moscovo e as da aldeia, que
lhe custavam oitenta mil rublos por ano e não lhe davam o mais pequeno
rendimento.
— Sim, sim, tem razão — disse ele com ar satisfeito. — Sim, sim, tem razão,
nenhuma necessidade tenho disso. A minha ruína ainda me enriqueceu mais.
Mas em Janeiro chegou Savelitch de Moscovo, que lhe falou tia situação da
cidade, do orçamento que o arquitecto fizera para a restauração das casas e
apresentou-lhe o caso como coisa arrumada.
Entretanto, Pedro recebia cartas do príncipe Vassili e de vários amigos dePetersburgo. Falavam-lhe nas dívidas da mulher. E ele então disse de si para
consigo que as sugestões do administrador, que de princípio o haviam encantado,
não eram de aproveitar e que devia ir a Petersburgo regularizar os assuntos da
mulher e a Moscovo restaurar casas. Não sabia, porque devia agir deste modo,
mas tinha a certeza de que assim é que estava certo. Em virtude desta decisão, os
seus rendimentos diminuíam de três quartas partes. Mas assim tinha de ser: era o
que ele sentia.
Como Villarski tinha de ir a Moscovo, decidiram partir juntos. Durante todo o
período da sua convalescença em Orel, Pedro experimentara um sentimento de
alegria, de liberdade, como que um recomeçar da, vida. E agora, no decurso da
viagem, em contacto com o ar livre, as suas impressões ainda mais se exaltaram.
Sentia o contentamento de um estudante em férias. As pessoas que encontrava, o
postilhão, os donos das estações de muda, os mujiques que via na estrada ou nas
povoações, todos assumiam a seus olhos um sentido novo. A presença de Villarski,
as suas observações, as suas contínuas queixas contra a pobreza, a grosseria, o
atraso da Rússia em relação à Europa, despertavam nele uma alegria compassiva.
Onde Villarski via fermentos de morte via ele um poder vital extraordinariamente
rico, graças ao qual, no meio daqueles vastos espaços cobertos de neve, se
mantinha são esse povo tão particular e único no seu género. Não discutia as
opiniões do amigo, parecia mesmo estar de acordo com ele, pois de si para consigo
dizia que a melhor maneira de evitar discussões sem qualquer resultado era fingir
que concordava com ele. E sorria, divertido, enquanto ele falava.
[XV]
Assim como é difícil explicar as idas e vindas das formigas quando vêem o seu
formigueiro arrasado, umas carregando os ovos e os cadáveres e outras voltando
ao ninho, tropeçando, perseguindo-se, lutando, também não seria fácil dizer o que
impelia os Russos, depois da partida dos Franceses, a agrupar-se naquele local a
que outrora se dera o nome de Moscovo. Se se observarem as formigas dispersas
em volta do seu formigueiro, compreender-se-á que, apesar da ruína completa do
seu lar, mercê da sua tenacidade, da sua energia, da actividade daquelesinumeráveis insectos, tudo perderam, salvo o princípio inabalável e imaterial que
constitui a força da sua colónia. O mesmo acontecia em Moscovo em Outubro.
Embora estivesse privada das suas autoridades, das suas igrejas, das suas
riquezas, das suas casas, a cidade era a mesma que fora em Agosto. Tudo estava
destruído salvo o que nela havia de imaterial, de verdadeiramente pode roso e de
indestrutível.
Os objectivos que impeliam todos aqueles que, vindos de toda a parte, afluíam
a Moscovo depois de evacuada pelo inimigo, eram os mais diversos, e sobretudo
pessoais, e principalmente, nos primeiros tempos, de uma natureza bestial e
perfeitamente selvagem. Um único sentimento era comum a todos: o desejo de
regressar ao local onde fora Moscovo para cada um se entregar à sua própria
actividade.
Ao fim de uma semana, Moscovo contava já quinze mil habitantes, duas
semanas mais tarde tinha vinte e cinco mil e assim por diante. No Outono de 1813,
aumentando sempre, a população da cidade atingia um número de almas muito
superior ao da população de Moscovo de 1812.
Os primeiros russos que deram entrada em Moscovo foram os cossacos do
destacamento Wintzengerode, os mujiques das aldeias vizinhas e os habitantes
que tinham fugido, escondendo-se nos arredores. Estes, ao entrarem na cidade em
ruínas e encontrando-a a saque, saquearam-na também. Continuaram o que os
Franceses tinham principiado. Os mujiques, com as suas carroças, vinham buscar o
que se encontrava abandonado nas casas e ao longo das ruas. Os cossacos levaram
consigo, para o seu acampamento, o que puderam; os proprietários de imóveis
apoderavam-se do que encontravam nas casas alheias e diziam que tudo isso era
seu.
Depois dos primeiros saques, vieram outros, e outros ainda, e a pilhagem, à
medida que aumentava o número dos salteadores, tornava-se mais difícil e
obedecia a normas mais metódicas.
Os Franceses tinham encontrado a cidade abandonada, mas haviam
conservado todas as formas de uma administração regular, com o seu comércio, os
seus ofícios, as repartições públicas, a religião. A maior parte das vezes tratava-se
de corpos sem vida, mas que ainda assim mesmo existiam. Ainda havia galerias
comerciais, lojas, armazéns, entrepostos de farinhas, bazares, oficinas, ateliers,
geralmente abastecidos de mercadorias; e havia palácios, casas ricas cheias deluxuosos artefactos; havia hospitais, prisões, escritórios, igrejas, catedrais. À
medida que os Franceses foram ficando, todas estas formas de vida urbana
desapareciam pouco a pouco e por fim a cidade transformara-se num vasto campo
de saqueio.
Quanto mais se prolongava o saque dos Franceses tanto mais se esgotavam as
riquezas de Moscovo e os recursos dos próprios saqueadores. Pelo contrário, o dos
Russos, nos primeiros dias do seu regresso à capital, quanto mais se prolongava
tanto maior era o número dos que nele tomavam parte, contribuindo para
restabelecer rapidamente a riqueza da cidade e a sua vida regular.
Assim como o sangue aflui ao coração, afluíam a Moscovo, vindos de diversos
pontos, além dos saqueadores, pessoas de toda a sorte, atraídas quer pela
curiosidade, quer pelo desejo de se tornarem úteis, quer por interesse,
proprietários, eclesiásticos, pequenos e grandes funcionários, comerciantes,
artesãos, mujiques.
Ao cabo de uma semana, os mujiques que entravam na cidade com os seus
carros vazios para levarem os objectos que encontravam eram detidos pelas
autoridades e obrigados a transportar os mortos para fora da cidade. Outros, ao
saberem do que sucedera aos companheiros, trouxeram trigo, aveia, feno, e em
virtude da concorrência que faziam uns aos outros, os preços baixaram a um nível
inferior ao antigo. Os artels (Associações de trabalho comunitário. (N dos T.) dos
carpinteiros, atraídos pelos bons salários, apareciam todos os dias e por toda a
parte reconstruíam ou reparavam as casas que tinham ardido. Comerciantes
abriam lojas em abarracamentos. Nas ruínas iam-se organizando estalagens,
hotéis. O clero restabelecia o serviço religioso em muitas das igrejas que haviam
ficado intactas. Donatários traziam alfaias religiosas que haviam sido roubadas.
Funcionários instalavam em pequenas divisórias as suas mesas cobertas de pano
preto e as suas estantes. As autoridades e a polícia procediam à distribuição dos
bens abandonados pelos Franceses. Os proprietários das casas em que os
Franceses tinham acumulado muitos objectos valiosos diziam que estavam a ser
lesados, porque tudo fora levado para o Palácio das Facetas. Outros sustentavam
que os Franceses tinham concentrado num mesmo local muitos objectos roubados
de diversas casas e diziam não ser justo entregarem aos proprietários essas casas
com tudo o que lá estava dentro. Insultavam a polícia, tentavam suborná-la.
Duplicavam o valor dos bens do Tesouro queimados, exigiam socorros em dinheiro.O conde Rostoptchine redigia, as suas proclamações.
[XVI]
No fim de Janeiro, Pedro chegava a Moscovo e instalava-se numa das alas da
sua residência que ficara intacta. Visitou Rostoptchine, algumas das suas relações
que tinham regressado à capital e dispôs-se a partir no dia seguinte para
Petersburgo. Toda a gente celebrava a vitória: a vida formigava na capital em
ruínas, que principiava a renascer. Todos o acolhiam com satisfação; todos o
queriam ver para saber das suas aventuras. Pedro, evidentemente, mostrava-se
bem disposto com toda a gente que encontrava. Mas mantinha uma certa reserva,
para não se comprometer com coisa alguma. A todas as perguntas que lhe faziam,
importantes ou insignificantes, como, por exemplo: «Onde ia instalar-se?
Reconstituiria o seu palácio? Quando partia para Petersburgo? Não se importava
de tomar conta daquela caixinha?», respondia: «Sim, talvez, acho que...»
Soubera que os Rostov estavam em Kostroma, e raramente pensava em
Natacha. Se por acaso isso acontecia, era como se se tratasse de uma agradável
recordação de um passado que acabara. Sentia-se feliz não só por se ter visto livre
das obrigações da vida, mas também por um sentimento que, pensava ele,
voluntariamente a si mesmo impusera.
Três dias depois de ter chegado, soube por Drubetslkoi que a princesa Maria
estava em Moscovo. A morte, os sofrimentos, os últimos dias do príncipe André,
vinham-lhe frequentemente ao espírito e agora muito mais vivamente do que
nunca. Tendo sabido durante o jantar que a princesa Maria estava instalado na
sua casa de Vozdvijenka, poupada pelo fogo, ali se apresentou nessa mesma noite.
Pelo caminho ia pensando no seu amigo, nas varias vezes em que estivera com
ele e sobretudo no seu último encontro em Borodino. «Será possível que ele tenha
morrido no estado de irritação em que eu o vi nessa altura?», perguntava a si
mesmo.
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